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UMA REFLEXAO FILOSOFICA SOBREAARTE A arte fala de uma relac;a.omais originaria entre· o homem e 0 mundo, quando 0 imaginario, 0 real, 0 olhar e o desejo surgem conjuntamente. Pretendemos com este texto refletir jilosojicamente sobre os fundamentos da experiencia estetica, como instauradora doprazer do jogo, onde a possivel libertac;a.oem causa e a de um desejo maior vindo dos subterraneos do Ser. Diante do tema que se inicia, uma certa dificuldade ja se impoe: considerando a diversidade de teorias, movimentos e comentarios criticos em teorias da obra de arte - seja classica, moderna ou contempodinea -, 0 que se poderia ainda refletir a respeito, sem 0 risco da repeti<;ao? Subjacente a este problema, surge a nossa dificuldade verdadeira, que envolve a pr6pria modalidade da reflexao em causa: escrever, ou tentar escrever sobre a arte, a partir de uma reflexao filos6fica. Antes de tudo, e necessario delimitar a nossa posi<;ao no contexto do pr6prio Francimar Duarte Arruda e Mestre em Filosofia (UFRJ). Doutora em Filosofia da Educar;:ao (UFRJ). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas do Imaginario (GEPI) UFF. Autora de "No Rastra da Nova Era", "Os Olhares Contemporaneos", "Etica e Intersubjetividade: os desvalidos de Eros", entre outras. Membra do GT "Etica e Cidadania".

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UMA REFLEXAO FILOSOFICASOBREAARTE

A arte fala de uma relac;a.omais originaria entre·o homem e 0 mundo, quando 0 imaginario, 0 real, 0 olhar eo desejo surgem conjuntamente. Pretendemos com este textorefletir jilosojicamente sobre os fundamentos da experienciaestetica, como instauradora do prazer do jogo, onde apossivel libertac;a.oem causa e a de um desejo maior vindodos subterraneos do Ser.

Diante do tema que se inicia, uma certadificuldade ja se impoe: considerando a diversidade deteorias, movimentos e comentarios criticos em teorias daobra de arte - seja classica, moderna ou contempodinea -, 0

que se poderia ainda refletir a respeito, sem 0 risco darepeti<;ao? Subjacente a este problema, surge a nossadificuldade verdadeira, que envolve a pr6pria modalidade dareflexao em causa: escrever, ou tentar escrever sobre a arte,a partir de uma reflexao filos6fica. Antes de tudo, enecessario delimitar a nossa posi<;ao no contexto do pr6prio

Francimar Duarte Arruda e Mestre em Filosofia (UFRJ). Doutora emFilosofia da Educar;:ao (UFRJ). Coordenadora do Grupo de Estudos ePesquisas do Imaginario (GEPI) UFF. Autora de "No Rastra da Nova Era","Os Olhares Contemporaneos", "Etica e Intersubjetividade: os desvalidos deEros", entre outras. Membra do GT "Etica e Cidadania".

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pensamento filosofico que investiga 0 fato artistico.Entretanto, ao delimitar a perspectiva filosofica

com a qual nos comprometemos, e que sera facilmenteidentificavel pelos seus vinculos com algumas teses dafilosofia hermeneutica, da fenomenologia e com certosaspectos do pensamento de Nietzsche, ja estaremosdemonstrando a complexidade da tarefa que e a de escreverfilosoficamente sobre a arte.

Se, por um lado, essa modalidade de medita<;aofilosofica oferece condi<;oes para orientarepistemologicamente uma pesquisa da expressao artistica,acha-se por outro lado, tao comprometida e solidaria comessa mesma expressao, que as vezes a reivindica para 0 seuproprio campo de trabalho, mesmo quando nao pretendeescrever uma Estetica.

De qualquer forma, e em que pesem asdificuldades, um ponto deve ficar bem claro: embora naotenha a inten<;ao de se distanciar das perspectivaspsicologicas, historico-sociais e mesmo formais quandobusca entender a triade essencial do fato artistico (a cria9ao,a recep9ao e a aprecia9ao), esse tipo de pensamentopretende explicitamente nao se identificar com as filosofiasque se ocupam da arte enquanto objeto de ciencia.

Definida a nos sa hipotese de trabalho,acreditamos que 0 nosso primeiro passo deveria ser 0 detentar aprofundar 0 proprio sentido ou motivo dessepensamento com vistas a compreensao de sua autenticidade,enquanto pensamento filosofico, e ao esclarecimento de suasuposta afinidade com a expressao artistica.

Costuma-se dizer que com a filosofia nada sepode fazer. .. Ela nada nos ensina e muito pouco nos propoe.Se tivermos presentes certas medita90es de Heidegger,veremos que qualquer beneficio que a filosofia possa nos

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traZer vive na dependencia de nossa disposi9ao a ela. Talvezresida ai 0 seu motivo, desde que uma tal disposi<;ao sejaentendida como abertura ao risco, a ambigtiidade e mesmoaO silencio, que estao interiorizados no proprio discursofilosofico.

Sua propria historia nos fala de sua importfmciapara alcan9ar a sua finalidade formal ou criar regrasuniversais para 0 mundo, desde que fora abalada ahegemonia da razao, apos os quatro seculos que marcaram acisao entre a consciencia e a vida.

Buscando a plenitude do conceito do discursoracional, e com 0 irracional que a filosofia se encontra,realizando-se talvez em suas proprias limita90es oumisirias ... Mesmo as inten90es Logicas que aspiram aevidencia estao irremediavelmente ligadas as intui90espoeticas, ate mesmo nos chamados sistemas fechados, cujarigidez e abrandada pelos simbolos e imagens do propriodiscurso filosofico. Descartes falava no "grande livro domundo" e Leibniz evocava uma "sinfonia de m6nadas".Qualquer tentativa de rigor formal transforma-se emausencia de rigor no proprio silencio da razao: a Ie deJaspers, 0 mistirio de Marcel. :E sempre 0 mesmo esfor90 dafilosofia , tentando reintegrar 0 "irracional" a uma razaolivre de sua unilateralidade abstrata. Se 0 homem nao e meracoisa entre coisas e delas se diferencia pela razao, pel alinguagem, pela tecnica e por tantas outras particularidadesindecifraveis, sua compreensao do mundo nao e um tema aser analisado friamente. Merleau-Ponty nos fala da trajetoriaobliqua da vida pessoal, do conhecimento, da expressao e dahistoria, caminho que nao avan9a diretamente para fins ouconceitos, pois

"0 que pracuramas com muita deliberac;fia, nfia

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o obtemos, niio faltando, pelo contrario, ideiasvalores a quem, meditando na vida, Soube;absorver a fonte de onde espontaneamente Se

liberam" (1960).

Heniclito ja 0 anunciara: "Se nao tiveres esperanya, naoencontraras 0 inesperado, pois nao e encontradiyo e einacessivel" (1978).

Lemos nessa esperanya, a disposiyao que nossugeria Heidegger. Ela descortina ao homem 0 misterio don~undo, cuja inacessibilidade nao e irreversivel, desde quesltuemos a sua inteligibiIidade entre a' regiao de absolutatransparencia e claridade e a de obscuridade total. Nao nosensinaram os primeiros gregos que a verdade somente serevela a partir de sua reserva, pois que e diferenya eambigliidade? A filosofia so pode fazer algo conosco, seestivennos dispostos a ela, se seguirmos a seu lado na' di-reyao daquela regiao de sombra, caminhando na admirayao,no pathos. Nao em um gesto apaixonado, como 0 gestodaqueles que so sabem amar com muita pressa, pois pathossignifica sofrer, suportar, se deixar levar por, ter paciencia.

Pertencendo necessariamente ao homem emanifestando a sua condiyao de ser-no-mundo, a disposiyaoe a chave da compreensao humana da existencia. Se noplano antico, 0 homem esta sempre se esquivando dessesentimento originario, sem perguntar sobre 0 que ele poderevelar, essa atitude nao anula essa revelayao, mas significa,ao contnirio, a sua possibilidade.

Assim se explica a paciencia do filosofo.Disposto ao mundo, ele suporta e ultrapassa 0 plano anticopara se ingressar naquela zona de misterio. Nao se trata paisda experiencia de uma subjetividade vazia e dogmcitica, quedivide e reduz as coisas, a procura de uma universalidade

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fjxa e movel, mas da experiencia de uma subjetividadedisponivel ao apelo de uma universaIidade tecida pordimens5es diferenciadas.

Que homem nao pressentiu a ser escondido atras.das coisas, nao descobriu a figura do mundo na dispersao deseuS fragmentos? Essa e a virtude do jogo humano de certosinstantes improvisados livremente, instantes de esperanyaque nos fazem reconhecer, porque 0 anunciam, a ladoharmonioso das coisas: aquela flor que irrompe de manhaem cor e brilho, aquele momenta eterno em que o(s)outro(s) e eu somos inesperadamente adequados, aquelahora secreta da madrugada em que olhamos 0 ceu e asestrelas SaD0 proprio ser a nos olhar, piscando.

Heidegger nos conta a sua experiencia do seratraves da memoria do Liceu, captada pelo odor e pel atextura afetiva dos objetos, "que nos da 0 ser desse ente demodo mais imediato do que qualquer visita ao edificiopoderia faze-Io" (1967).

E a invisivel fonte de sentido que se dirige ainterrogayao filosofica.

Blanchot escreveu em algum lugar que 0 discursofilosofico e um discurso sem direito, mas com direito itinterrogar;iio ... Uma interrogayao que vai crescer no interiorde si mesma, instalando-se no espayo que faz ver, sem quenada seja visto, ponto cego da consciencia,negativo-referencia, tapete cujas tramas norteiaminvisivelmente 0 lado visivel das formas.

Estamos de novo perto de Heraclito: "Aharmonia invisivel e mais forte que a visivel" (1978). Esse eo motivo da filosofia. Heidegger 0 indicou, ao fazer a criticada ciencia denunci ando 0 incontornavel que se estendealem do dominio da objetividade. Nao para desacreditar nodiscurso cientifico, mas para problematizar a seufundamento e, consequentemente, incentivar esse discurso a

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enriquecer a sua contribui~ao para 0 sentido da vida.Na esteira de Heidegger, Mer!eau-Ponty, na

abertura de um belo ensaio sobre a pintura. afirma que "aciencia manipula as coisas e renuncia a habita-las" (1980).

Ocorre-nos, a respeito, 0 projeto de Lefebvrepara alcan((ar a metafilosofia resultante da critica reflexivada vida cotidiana, com a finalidade de identificar osirredutiveis da atividade humana que se contrap5em asformas estabilizadas de nosso tempo (religiao, ciencia. arte ea pr6pria filosofia). Para atingir esses irredutiveis, eproposto 0 "metodo dos residuos" do modelo empiristatomado a Stuart Mill. Escreve Lefebvre: (1965) A religiaodeixou e deixa ainda, apesar de' seus esfon;os, esseirredutivel: a vida carnal, a vitalidade espontanea. Afilosofia coloca em evidencia o·elemento ludico, que ela naochega a absorver, assim como 0 cotidiano (0 homem nao-filos6fico), que ela manifesta quando a persegue.

A estrutura e 0 estruturalismo denunciam variosresiduos: 0 tempo, a hist6ria, 0 particular e asp2 .icularidades especificas. A tecnica e a maquina apontamcom 0 dedo, pOl' assim dizer, aquilo que resiste a elas: 0

sexo, 0 desejo, e de um modo geral, 0 ins6lito. A mimesismostra a poiesis. Caberia entretanto observar que parasurpreender esses irredutiveis (ou incontornaveis) nao hanecessidade, no caso da filosofia, que eia seja ultrapassada,ja que e no seu interior mesmo que os residuos semanifestam.

Revisitando Husser!, pOl' exemplo, veremos que,se e certo que este pensadar permaneceu preso ao idealismo,nao e menos certo que a intuic;ao da genese ~c.,ssiva, quesustentou a descri((ao da Lebenswelt, foi a clara indica((aodo residuo da ciencia e mesmo de toda filosofia rigorosa. 0retorno a experiencia pre-predicativa significa umalegitima((ao da doxa cujo dominio

"nao e feito de evidencias de uma dignidade

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inferior em relactao as da ciencia, doconhecimento predicativo e de seus produtos,mas e justamente 0 dominio ultimo e original"(1970).

Dessa forma, e confarme diziamos hi pouco, elegitimo pensar que 0 labor fiIos6fico, es~e trabalho deSisifo, en contra a sua realiza((ao no reconhecl1nento de suaslimitar;oes, no interior de um processo onde se perdeganhando-se; 0 pr6prio poder de fil?sofia se afirmandone<;se jogo do pensamento com a Vida e desta com aspossibilidades multiplas do ser.

"'A tensiio do pensamento fllos6flco seexplica pefo jato de que efe precisa ser, aom.esmo tempo, extrema distancia e proximidadeintil1'lCl,verdade critica e elan elemental" de vida,reflexao e experiencia original" (FINK, 1966).

E nesse senti do que uma medita<;ao fiIos6ficadecidida a nao procurar "defini<;5es" para 0 ftnameno daarte, disposta a viver a angustia diante da tarefa-desafio quee refletir sobre esse fenameno, deveria antes de tudoaproximar-se da experiencia original do ser, como e vividapel os artistas, em uma palavra: "instruir-se junto aquelesque nunca 0 abandonaram ..." (Mer!eau-Ponty, 1980).

Nao que se deva negar a experiencia filos6ficaem favor da experiencia artistica. Como verdade critica, afilosofia mantem sua distiincia da arte, ainda que na maissecreta intimidade, podendo mesmo provocar a pr6priaexperiencja artistica. A arte Iiteraria do seculo XX, parexemplo, tem se tornado as vezes profundamente filos6fica~tao intenso e 0 seu questionar sobre 0 ato de escrever em Slmesmo. Par outro lado, como 0 expressa De Waelhens,

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proxima da filosofia para nesta encontrarressondncia, inspirando-Ihe a inquietude etransformando-a como filosofia" (1961 :p. 3).

Assim, para que 0 discurso filos6fico nao perca asua autonomia, e preciso que ele venya os impasses quearmou para si mesmo, quando recalcou os seus pontos departida, 0 seu motivo origimirio. Sem sequer pressentir,Platao indicou 0 caminho, quando mostrou que algunsobjetos perceptfveis pelos sentidos sugerem, porque saGins6litos, que se pense em seu misterio. Infelizmente, essadescoberta foi vista como fonte de contradiyao, devendo sertransformada em favor dos objetos abstratos, imperceptfveise consistentes.

Pensar no misterio dos objetos ins6litos naosignificaria descobrir que, aquem das constrw;:oesconceptuais, encorajem dos objetos consistentes, 0 homemcriou os seus mitos, buscou a beleza nas coisas do mundo,por si mesmas signos expressivos? Se a experiencia dosensivel nao e a experiencia do pensamento, suas diferenyasnascem, entretanto, do mesmo mundo.

o fragmento 23 de Empedocles fala na obra dearte como verdade e nos pintores como homens de profundosaber, Nietzsche elegeu a Heniclito como 0 grande pensadortnigico por ter feito da experiencia um fenomeno estetico.

Nao estaria isso indicando a circularidade dosensivel e do cultural, ou seja, que 0 logos poietico ja estanatural mente integrado no logos filosofico? Se pensarl1losem Kant, relido sob um enfoque fenomenol6gico,perceberemos que ele intuiu essa integrayao, oucircularidade e, consequentemente, 0 fundamento do l6gosestetico, quando falou na harmonia espontanea entre 0

entendimento e a sensibilidade.Foi com base no que estamos dizendo que,

inicialmente, afirmamos que certas investigayoes sobre aarte, que se distanciam da compreensao filos6fica de seu

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fundamento, ainda saG fragmentarias: no interior dessaspesquisas, alguma coisa permanece incontormivel Que sepense, por exemplo, na abordagem psicanalitica da obra dearte. Nao se trata de desenvolver agora a teoria freudiana,pais, apesar de conhecermos muito pouco da mesma,estariamos nos afastando completamente dos objetivos destetrabalho. Nossa intenyao e apenas expor 0 que permanecesupostamente incerto na visao psicanalitica do fenomenoartistico. Enfoquemos, entao, 0 seu pressuposto principal, noque se refere a atividade do sujeito criador: 0 reino doimaginario e formado no psiquismo pel a operayao do desejorealizada pela fantasia. Sem nenhuma intenyao de instauraruma Estetica, Freud caracteriza a natureza do artista pelacapacidade de sublimayao e pela capacidade de lidar com asrepressoes. Sem que seja possivel explicar as mecanismosda sublimayao que produz 0 desejo de criar, tentar-se-adecifrar como a arte manifesta esse desejo. Percebe-se aiuma estrategia, que e a de fazer da criatividade Ulna especiede desvio: para libertar-se das neuroses do Inconsciente, 0

artista volta ao real atraves da fantasia (projeyao). Semneglicenciar 0 aspecto positivo da teoria freudiana peladescoberta do papel libertador da arte nas repressoes cul-turais, a que se pretende registrar e 0 risco de um certoreducionismo que, como se sabe, esta presente no interior dateoria. Sendo tambem uma terapeutica, a psicanalisecompromete a autenticidade da arte por considera-la a partirda perspectiva da neurose, como faz com a religiao. E 0 quepode ser percebido atraves da celebre questao proposta apsicanalise, questao que ela mesmo se propoe: 0 quedistingue a obra-verdadeira da obra-sintoma? Em que pesemas diferentes soluyoes que as diversas tendenciaspsicanaliticas apresentam, parece nao existir umaexplica9iio definitiva para essa dificuldade, mesmo porquecada artista e um caso singular e pode flutuar entre aslimites do genio e da loucura.

Seria oportuno um pequeno parenteses para

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lembrar 0 fato de que, exterior a questao psicanalitica, elicito falar em um certo elemento de IOllcllra nao doentia,que pertence a natureza do artista:

"0 que pertence a natureza de um homempode tornar-se doente, e isto acontece quando adoen9a da independencia a um determinadoelemento da natureza propria, fazendo desteelemento 0 desmedido. Mas e errado falar emdoen9a quando toda natureza do homem e por simesma desmedida, quando e a propria naturezaque trans borda no desmedido. Pois a natureza e

**demoniaca e nao divina" .

Para retomar 0 que dizfamos, acreditamos queconsiderar a obra como sintoma (a prodw;ao artfstica sendoexplicada pela doenva), significa dizer que 0 desejo perdeu asua disponibilidade, 0 seu espavo ludico, pennanecendoligado a formas rfgidas e mecanicas. Significa em umapalavra negar 0 trabalho positivo da criay30. Sob 0 pretextode explicar ,I obra, e 0 artista que e analisado, a pr6pria obraficando subordinada a uma biografia ... Mesmo na fase dadoenya, os poemas de Holderlin, os quadros de V. Gogh ouos escritos de Artaud expressam a verdade poetica. Mas aprofundidade da perturbavao intern a nao basta para queexista poesia. Comentando 0 Grande Vidro de MarcelDuchemp, e a prop6sito da interpretavao psicanalitica daarte, escreve Octavio Paz:

•• Wlhelm Szilasi, npud Erd. A. Bornheim, Inlrodlll;Cio 00 Filosofar, Porto Alegre. Ed.Globo, 1978, p. 16, nota 24. Szilasi faz comcntarios cle te"tos dos problemas, clocorpus aristotelicum (Arist6teles). 0 trccho citaclo se rcl'cre it melancolia clo liI6sol'o,que e tambem a do artista, distinta da melancolia doentia. Acrcsccntariamos, ainda, aprop6sito do tema, que 0 conceito de .tll.O..U..S.a, em Platao. csta ligaclo ao signilicaclo depaixao, deli rio, Inucura, a palavra lllillJ..S..i.k referindo-sc nao s6 a mllsica Illas a toclas asartes.

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realidade (0 quadro) em sombra, e a sombra (adoen9a) em realidade (..) A exatidao ou afalsidade do diagnostico nao modifica arealidade do Grande Vidro. As realidadespsicologicas e as da arte vivem em niveisdistintos de significa9ao: Freud nos oferece umachave para entender Edipo, mas a tragediagrega nao se reduz as explica90es dapsicanalise" (1977).

POl' essas e pOl' outras, talvez se justifique aquestao principal que a filosofia coloca a crfticapsicanalitica e que, em ultima analise, envolve acompreensao do espavo onde as obras artfsticas saGpossfveis. Como temos insistido em mostrar, alem de outrasfunvoes que possa assumir, a arte fala de uma relavao maisoriginaria entre 0 homem e 0 mundo, quando 0 imaginario,oreal, 0 olhar e 0 desejo surgem conjuntamente. Daf porquealgumas teorias mais pr6ximas do fundamento daexperiencia estetica falam de arte como instauradora doprazer do jogo, onde a possfvel libertayao em causa e a deum desejo maior vindo dos subtemlneos do ser. As f6rmulasde um Andre Breton, pOl' exemplo, sugerem uma intenvaode ordem cientffica, quando abandonam qualquerpreocupayao moral e estetica e procuram expressar apenas 0

mecanismo real do pensamento. Entretanto, como bemesclarece Maritain,

"essas formulas trazem em si mesmas umaespecie de revela9ao profetica dos poderesmagicos contidos no pensamento humano, comose ele fosse ligado ao todo cosmico" (1966) .

Af se encontra 0 ponto positivo que 0 fil6sofo reconhece noSurrealismo, pois, apesar de suas deficiencias, ele insistesobre 0 gosto do fantastico, do irracional e evidencia 0

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elemento de loucura do qual falavamos, presente na almado artista. 0 pr6prio Freud falou emfantasia originiiria, emmito imemorial, ao qual nos conduz a for9a libertadora dapoesia. Fugindo da linguagem psicanalitica, poder-se-iaevocar 0 jogo dionisiaco da arte (Nietzsche), jogo primitivodo homem com as suas raizes. Se a arte, como 0 sonho,revela 0 sinal da fantasia e sugere um Eu "descentrado", eainda esse Eu que esta sendo integrado no mundo, cujosembI ante, de alguma forma, a fantasia tambem revela '"

"A ausencia onde se forma a imagem estaencarada s?bre uma presen9a, ja experimentada pelo ser-no-mundo". E 0 mundo que nos pravoca, diria Bachelard.(1982).

Se tais observa90es forem justas, a psicanalisedeveria partir da obra realizada, pois somente ela poderadizer se 0 desejo do artista criador possuia a for9a necessariapara realiza-la. Criar nao e fugir do mundo, e habita-Io,sugere Heidegger, em explorar 0 belo verso de Holderlin: "epoeticamente que 0 homem habita esta terra".

Para melhor explicitar 0 que diziamos a respeitoda rela9ao entre 0 logos filosofico e 0 logos estetico,revisitaremos a hermeneutica ontol6gica de Heidegger, ondese realizam as suas ideias fenomenol6gicas. Como se sabe, amedita9ao heideggeriana da arte e muito menos umareflexao sobre 0 fato artistico do que a expressao de ummovimento circular entre filosofia e arte - ambas poieticaspel a sua fonte comum de ser 0 lugar do acontecimento daverdade. A medita9ao que esclarece esse movimentocircular se inscreve no que Heidegger mesmo denomina

. topologia do ser: 0 conjunto de ambitos, rela90esreferenciais e jogos do ser. Nesse conjunto, a verdade eentendida como cria9ao de sentido e as diferentes zonas daverdade, onde se incluem as obras de arte, pertencem aotodo do ser, saG topos do ser. Esclarece Heidegger:

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verdade, para evitar que ela seja entendida comocerteza, a verdade do ser e referida comoOrtscltaft des Seins - Verdade como localidadedo Ser. Is to pressup8e certamente umacompreensao do ser-lugar do lugar. Dai aexpressao topologia do ser" (1976:269).

Insistamos um pouco nessa questao da verdade,entendida como cria9ao de sentido. Desde Ser e Tempo,Heidegger descreve 0 mundo como algo ja interpretado, jainscrito nas rela90es entre as coisas. A explicita9ao de algofundamenta-se, portanto, sobre uma aquisi9ao e visaoprevias. Onde ha ser-no-mundo, ha significa90es.

Chegamos perto do perspectivismo nietzscheano,do qual 0 pensamento de Heidegger e de certa formadevedor. Sabemos que, para Nietzsche, nao ha possibilidadede um sentido em si, ele e sempre relacional, ja que osvalores nao saG absolutos, mas se agregam as coisassegundo a nossa interpreta9ao. Dai a afirma9ao celebre deque "N6s nao possuimos a verdade. Todos os homens deoutrara a possuiam, mesmo os ceticos ..." (1958).

Essa consciencia negativa de verdade configura aperda dos val ores absolutos e imutiveis e esta denunciandoa "vontade de verdade" da metafisica, verdade que se opoe ada vida e da arte. Assim, a verdade e uma experiencia, umapossibilidade de cria9ao, uma constru9ao de perspectivas.Diz Nietzsche:

"0 espirito do homem nao pode se impedirde ver-se a si mesmo segundo a sua propriaperspectiva, e nao pode avaliar-se senao por ela(..) 0 mundo torna-se para nos infinito nosentido de que nao podemos negar que ele sepresta a uma infinidade de interpretar;oes"(1958:75).

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Pensamos agora em uma aproximavao entre estapassagem de A Gaia Ciencia, e 0 texto de Jorge LuisBorges A Bib/ioteca de Babe/, onde 0 autor des creve 0

uni\'Crso como um conjunto de inumeras galerias formandoum labirinto infinito, multiplicado por espelhos, semelhantea uma biblioteca contendo uma infinidade de livros, cujostextos confusos sao expressos em todas as Ifnguas. Oshomens tentam decifrar esses textos na ilusao de encontrar 0

livro-chave, tal como ocorre no labirinto das filosofias, ouda filosofia ... (1982).

Percebe-se, no sub-texto, a ideia que sugere aanalogia entre Borges e Nietzsche: a posse da verdadeabsoluta sera ilusao de uma decisao pretensiosa e absurda.

A proposta do pensamento nietzscheano pode serdefinida. portanto, neste principio: nao ha totalidadecoerente, 0 que existe e diferenva, multiplicidade e acaso,coexistindo harmonicamente com a identidade, unidade enecessidade. Se a verdade e criavao, conhecer e situar-seesteticamente em relavao ao mundo.

Surge dessa forma, em Nietzsche, a figura doartista, cuja obra e uma ilusao vital, uma mentira queinventa e que se faz mais verdadeira do que a supostarea/Made, apreendida pelo conceito, ou pel a adequavaoentre a esfera de um sujeito e a esfera de um objeto. Entreduas esferas tao diferentes, nao ha causalidade ou exatidao,mas uma relavao estetica, onde deve existir "uma forpintermediaria, compondo e imaginando livremente" (1969).

"Wir haben die Kunst, damit wir nicht in del'Wahrheit zugrunde gehen": Temos a arte para niio perecer(ir ao lundo) pe/a verdade. ( 1948) . Com esta estranha edecisiva sentenva, Nietzsche nao esta negando a verdade,mas elegendo a arte e sua i1usiio para elevar 0 falso (comonao-verdade) a um poder afirmativo superior. Assim, amentira estetica e legitima porque implica uma compreensaoquase tacita da verdade originaria:

"Ah, esses gregos, como sabiam viver! Isso supoe

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a resolur;iio de permanecer bravamente nasuperficie, na epiderme, de adorar a aparencia ede acreditar na forma, nos sons, nas palavras,em todo 0 Ofimpo da aparencia ... Os gregoseram superficiais por profundidade"(1969: 13).

r ncsSC senti do que olundo tem que ser tocado pela arte;fundo que pode, ou nao, ser uma ausencia, que eentrelavamento do sim e do nao ...

Assim se explica a concepvao nietzscheana daarte como jogo. Este e qualquer coisa de real, de efetivo,mas que se eleva atem da terra e e eterno, possuindo 0 seuproprio logos, seu proprio tempo, seu proprio espavo. Porisso 0 jogo do artista renuncia a to do elemento empirico everdadeiro, pois 0 jogo so e irreal e ficticio se se considera,como a unica realidade, a vida que obedece as certezasmateriais e as norm as morais.

Em sua inocencia, na criavao e destruivao de simesmo, 0 jogo recomeva sempre, no seu tempo proprio. 0jogo e 0 eterno retorno: "se dizemos sim a um so instante,estamos dizendo sim nao apenas a nos mesmos, mas a toda aexistencia. Pois nada existe em si mesmo apenas, em nos, ouIlas coisas; e se nossa alma vibrou uma so vez em alegria,todas as cternidades colaboraram para detenninar esse fa to(lIlico - c nesse instantc (mico de afirmavao, toda actcrnidadc foi cxpcrimentada, justificada e afirmada. Nao setrata porem, em Nietzsche, de uma justificavao metaffsicado SCI". ja que 0 jogo nao e algo parcial, interior ao homem,ll1as uma parte de sua esfera intima ao lado das outras, aolado do espirito, da vontade, da razao, dos sentimentos. 0.iogo e estrutura do universo, a estrutura cosmica. Todos osContrarios estao continuamente em uniao para inaugurar 0

retorno de todas as coisas provenientes da mesma fonteeterna, realizando a sintese afirmativa mais completa.

Pelo exposto, percebe-se que a aproximavao

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entre filosofia e arte nao se da, em Nietzsche, como Ocorreem Heidegger, atraves do produto da arte (a obra comoexpressao de verdade do ser), mas atraves da propriaexperiencia da verdade, comum a arte e a filosofia.

Em (I1tima analise, a arte para Nietzsche nao eum modo deficiente de verdade, mas uma especie de Cor-retivo para a crenya na logicidade do ser, que inspira aconcepyao idealista da essencia do verdadeiro. Par isso,desde 0 Nascimento da Tragedia, ele insiste no fenomenoestetico como a (mica justificativa para a existencia e para 0

mundo, a ''(mica possibilidade de viver, apesar do saber. .."(1949). Entenderemos melhor a aproximayao entreNietzsche e Heidegger, no que se refere a relayaoarte-verdade, se pensarmos na principal conseqUencia dameditayao heideggeriana do fato artistica, que e a de negarou desconstruir a estetica. Como e por que ocorre essanecessidade de negayao? Trata-se para Heidegge~, antes detudo, de eliminar qualquer possibilidade de compreensao daobra de arte como objeto de uma experiencia vivida.

"Na medida em que a considerar;a.oestetica determJna a obra de arte do ponto devista do belo que produz a arte, a obra erepresentada como aquilo que traz e suscita 0

belo relativaJnente ao estado afetivo do homem"(1971: 17).

Na esteira da filosofia tragica da visaonietzscheana, Heidegger esta denunciando 0 rompimentodos tempos modernos, enraizados na metafisica dasubjetividade, com os primeiros gregos (osartistas-filosofos), cujo pensamento prescinddia da refexiioestetica. Instaurada na epoca de Platao e Aristoteles, talreflexao foi a responsavel pelos conceitos fundamentaissobre a arte que se desenvolveram posteriarmente.

o que significam essa ideias de Heidegger?

lntegrado numa tradiyao de filosofos que se empenha nacrftica da metafisica ocidental, ele parte do pressuposto dequ~ a filosofia, como metafisica, ev.oluiu par transfarmayoesdc um mesmo principio, ja nao malS pensado como entre ospre-socraticos, e que se manifesta histaricamente de farmasas mais diversas para expressar a essencia do ser. Peloesquecimento da diferenya ontologica (0 ser e 0 outro doente ), desde que aletheia (entrelayamento da verdade e danao-verdade, do sim e do nao) tornou-se omoiosis(adequayao); a metafisica, enquanto elucida 0 ente peloente, nao mais atinge a essencia do ser. Dessa farma, atransformayao da essencia da verdade carresponde a historiada essencia da arte ocidental.

Nao se trata de negar a metafisica, mas dedestruir a sua falsa essencia, relacionar a propria metafisicacom a sua origem abandonada. Par isso a destruir;iio daestetica pressupoe a destruir;llo da metafisica. Heideggermesmo nos explica: "destruir significa aguyar 0 nossoouvido, liberando-nos para 0 que, na tradiyao, nos fala comoo ser do ente" (1960).

Assim se explica 0 caminho positivo de retornoao passado para reinterpretar as palavras gregas em suaforya arigimlria, reintegrando essa significayao no presente.No epilogo da conferencia A Origem da Obra de Arte,I-Ieidegger comenta a conhecida sentenya de Hegel quedefine a arte como "nao mais 0 modo supremo pelo qual averdade reclama existencia". Para a leitura de Heidegger(pois bem sabemos que 0 sentido da afirmayao hegeliana eoutro), ai esta implicito todo 0 pensamento metafisico doocidente, pensamento que corresponde a uma verdade docnte ja acontecida, cuja conseqUencia e a morte da arte. Naoque se negue a existencia de obras de arte apos Hegel,adverte Heidegger, mas enquanto essa verdade do ente naofor repensada, a sentenya permanecera valida.

o que se deve reter do comentario heideggerianoe a denuncia ao conteudo metafisico do subjetivismo

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estetico, estranho a verdadeira essencia da arte. A verdadedo ente ja acontecida refere-se a ilus6ria concep<;ao do belocomo ?bjeto de prazer, pois a beleza pertence aoacontecllne~lto da verdade e nao a vivencia da subjetividade.

E claro que a contempla<;ao da obra nao isola 0

homem de seus sentimentos, mas dirige-os para 0 pertencerda verdade que acontece na obra, fundando assim, 0

ser-para-o-olltro e o-ser-com-o-olltro. Mas 0 que torna aobra. ~ossivel e 0 seu acontecimento hist6rico, e este que semal1lfesta para os que a contemplam na diferenfa: 0 Olltrodo ente (0 ser) e 0 que se manifesta na obra, ou seja, e a arteque resguarda a diferen<;a ontol6gica. No final da referidacon~erencia sobre a arte, Heidegger vai afirmar que, a cadamal1lfesta<;ao da ser no ente, a arte aparece para assimilaressa manifesta<;ao e anunciar um "novo come<;o" na hist6ria.Assim acorreu na Grecia, na Idade Media, na IdadeModerna... "De quando em quando, acontecia adesocliltafiio do ente. Ela se impunha na obra, imposi<;aoque a arte realizava" (1960).

. Dessa forma, 0 sentimento estetico e, paraHeldeqger. apenas uma conseqliencia da verdade hist6ricada. art~. Em outras palavras: e a dimensao ontol6gica(hlstonal) da arte que indica antecipadamente a nossafrui<;ao. A hist6ria da arte apenas transmite as obras atravesdos tempos, sem alcan<;ar aquela dimensao, por certoincontornavel. Nesse sentido e que a arte esta morrendo,pOl' nao mais ser considerada como 0 modo essencial enecessaria que determina 0 nosso destino hist6rico.

Assim se entende a razao pela qual HeideggerlItiliza a li-ase de Hegel, para quem 0 prazer estetico tambemc a experiencia tardia revelada pela arte, cuja natureza nao eoutra senao a de exteriorizar 0 Espirito nas diversas epocasde Hist6ria.

Em Heidegger, a verdade ten de, pois, para aobra, possui um Zlig Zlim Werk, como 0 Espfrito que se ex-prime por obras sensiveis, em Hegel. Percebe-se, entao, queapesar da diferen<;a radical nas intenyoes, Heidegger dealguma forma se concentra na questao hegeliana da arte

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como manifestafiio da verdade. Quando Hegel reconheceuque a ~rte perdera a sua mais alta destina?ao, a sua verdadeautentIca, esse mesmo reconhecllnento marcoupositivame?~e 0 rompimento da arte com 0 Ab~oluto -. suabase metaflSlca. Desde entao, 0 que a arte podena possmr deautenticamente verdadeiro passaria a pertencer ao mundo eit finitude. Assim, apesar de mover-se no interior dopensamento metafisico, Hegel p~ssibilitou que esse mesmopensamento fosse questionado. E legitimo, portanto, pensarque a crise da metafisica tenha sido uma condi<;ao para acoloca<;ao do problema da verdade na arte.

No inicio deste texto, recorremos varias vezes aHeraclito. Foi no seu pensamento-poetico que Nietzsche eHeidegger foram buscar as bases para realizar a sua criticada verdade-adequayao, de heranya plat6nica, na inten<;ao derecuperar para a arte a sua essencia verdadeira. Vale dizerque 0 retorno aos pre-socrMicos configura-se muito menoscomo uma simples nostalgia do passado, dos temposprimitivos da razao, do que um modoretrospectivo-prospectivo de registrar 0 processo demanifestayao da pr6pria verdade.

Abela Frase de Heidegger, do contexto quedes creve a experiencia do pensar, ilustra 0 que estamostentando, dizer: "Chegamos demasiado tarde para os deusese demasiado cedo para 0 ser. Deste 0 homem e 0 poemaapenas iniciado". Vivemos hoje a epoca caracterizada pelamorte dos deuses, pela perda dos val ores absoilltos datradiyao. No caso da arte, como em todas as manifesta90esda cultura contempodinea, considerada a partir dasrevoluyoes da modernidade, estamos assistindo a llInmovimento de transformayao do pensamento sobre averdade e sua concretizayao em obras. Ao deixar de sesub meter como um objeto para a reflexao filos6fica, 0 que aarte tem provocado e a transfonnayao filos6fica da pr6priaVerdade. Essa situayao esta denunciando as conseqUenciasde um acontecimento hist6rica inevitavel e registrando a seumodo a busca da verdade origimiria que a metafisica

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encobriu. Esta s6 possibilita uma abertura a compreensao daarte quando penetra no plano da doxa, do menos-ser, emuma palavra, nos setores inferiores do real: 0 individuo, 0

sensivel, porque acolhem 0 sentido de temporalidade,devem ser assumidos em si mesmos e nao mais comopassagem para 0 Absoluto, como na arte do passado. Daiporque a essencia da tragedia, tal como foi recuperada porNietzsche, esta de alguma forma presente nas teses daestetica contemponlnea. 0 tema e heraclitico ... Se 0 queexiste agora de mais pr6ximo do homem e 0 pr6prio ser,este se torna simultaneamente 0 mais complexo e distante,nao faci! de ser assumido, e 0 homem se perde na busca desi mesmo. Comentando a frase de Heidegger, ha poucocitada, escreve Octavio Paz,

"0 homem e 0 inacabado, ainda que seja cabalel1'l sua propria inconclusao, e por isso fazpoemas, imagens nas quais se realiza e se acaba,sem acabar-se nunca de todo. Ele mesmo e umpoema, eo ser sempre em perpetua possibilidadede ser completamente e cumprindo-se assim emseu nao-acabatnento. Mas nossa situac;aohistorica se caracteriza pelo demasiado tarde e 0

muito cedo. Demasiado tarde: na luz indecisa,os deuses ja desaparecidos, seus corposradiantes fundidos no horizonte que devora todasas mitologias passadas; muito cedo: 0 ser aexperiencia central saindo de nos mesmos aoencontro de sua presenc;a. Andamos perdidosentre as coisas, nossos pensamentos saocirculares e percebemos apenas algo queemerge, ainda sen'l nome" (1976: 109).

Podemos entender melhor agora porque 0 temafilos6fico da morte da (lrte, que falava implicitamente de

uma filosofia do espirito bem definida, surgecontemporaneamente para explicitar a sensivel modificayaodo conceito de arte. A atividade artistica esta propondo lllllrecomeyo radical de seus modos de vida, ou em seuprocesso de morte: poesia da poesia, pintura da pintura,musica da musica - arte da arte.

Estamos assistindo a pintura contemporflllea,quase sempre nao-figurativa, negar sua pr6pria linguagem, aobra literaria transcender-se a si mesma para tambemnegar-se. Blanchot fala dessa experiencia da negayaO desdeHolderlin, Rilke, ate Kafka e Mallarme. Obras dilaceradasonde os temas centrais abarcam ora 0 retorno da linguagema sua origem, ora a experiencia mistica de inspirayao .Quando 0 senti do da arte e posto em causa, torna-se asvezes ambiguo (Valery), impossivel (Artaud), ironico(Duchamp), ou e visto pela critica como aberto a inumerospossiveis (Eco).

Mas essas revoluyoes desde a modernidade quese passam no interior do fato artistico nao teriam um Olltrosenti do? Nao seria a experiencia da negayao, por exemplo,uma forma de a arte jogar com 0 pr6prio nada parareafirmar 0 real? Nao estara a obra dizendo esse jogo, aotranscender 0 pr6prio desejo de negar do artista, e, por serela algo produzido, poietico, nao estaria dizendo ummundo? Nao e a arte mesma um jogo, on de 0 que se perde,tambem se ganha?

Se a arte nao- figurativa tem 0 merito dedistinguir 0 objeto estetico do objeto representado, nem porisso ela dispensa a certeza de que algo deve ser dito peloobjeto estetico. Alguma significayao deve constitui-lo. Aesse respeito, e sem pretender a defesa de nenhum purismoartistico, ja natural mente inscrito na raiz da crise da arte,escreve Ferreira Gullar:

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nao foi criado por decisao de nenhumaautoridade mas por necessidade real deexpressao e comunicar;:ao - e se pretendesubstitui-Io pela valorizar;:ao de meras atdudes eespecular;:oes arbitrarias, nao se ganha nada,nao se cria nada (..). Quando Mondrian eKandinsky dao as costas a realidade e buscamformas idealizadas para se exprimirem, nao setornam os profetas de Ulna arte futura - cOl1lOsedisse e se repetiu varias vezes - mas os profetasdo jiln de uma arte que se nega a exprimir asrelar;:oesconcretas da vida" (1 982: 13).

Se e verdade que 0 artista possa ser ultrapassadopel a obra, isso nao desata 0 layo que une 0 homem e 0

mundo: se a biografia do autor e anulada, anula-se tambemo criador? 0 que dizer do projeto de Kandinsky? Se eleprocurou uma pintura impessoal e universal,' quepossibilitasse que a personalidade da arte predominassesobre a precaria personalidade do artista, essa procuradesejava concretizar 0 seu conceito de NecessidadeInterior, ou seja, expressar a espiritualidade do homem.

Negar a subjetividade nao e eliminar 0 que einsubstituivel na obra singular, 0 que inclusive permite queela se inscreva na hist6ria. Assim a negayao dasubjetividade s6 tem sentido como eliminayao dos valorespre-estabelecidos para 0 prazer estetico. Essa desestetizar;:iioteria seu equivalente naquilo que em Ortega y Gassetsignifica a desllmanizar;{io da arte: fazer com que a obraviva em sua irrealidade, realizar 0 irreal, enqllanto irreal.";\qui nao vamos da mente ao mundo, mas. ao contrario.damos plasticidade. objctivamos, mllndijicamos, oscsqllemas, 0 interno e 0 subjetivo" (1967) Novamente temosque pensar em Heidegger. Quando ele descreve acircularidade entre artista e obra para explicar a origem da

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arte, esta registrando a diferenya entre a intenyao subjetiva ea reaIiza<;;ao da obra em sua verdade. em suma. estaodefinindo a busca do destino poetico e nao do destino doautor.

Mas tal anti-humanismo, como pretendemvarios adversarios de Heidegger, nao significa a morte dohomem. Este permanece na criayao, mesmo que a iniciativavenha do mundo ...

A partir de tudo a que ja foi dito, percebe-se quea questao de fundo e ainda a da relayao arte-verdade, aquelamesma questao que explodiu na estetica hegeliana e abriuperspectivas para os movimentos e teorias da atualidade.Trata-se de uma cIarificayao cada vez mais decisiva datransformayao de arte e, em conseqliencia, de sua libertayaototal. Se a estetica contemponlnea procura para 0 artista umEu analogo aquele que constr6i a ciencia, ela nao pode seesquecer de que a consciencia do criador esta aberta nao apossibilidades 16gicas, mas a potencialidades que jorramlivremente do ser e do mundo. Apontar essaspotenciaJidades e um trabalho hermeneutico. Cabera aocritico distinguir os gestos inconseqlientes daqueles quepromovem a libertayao de novas formas artisticas, mesmoque sejam form as violentas e as vezes germinem de umasemente obscura. A complexidade dos fenomenos artisticosnao representa um fato negativo, muita vez e condiyao paraque se reflita sobre eles.

Para tanto, e necessano que antes de tudo sepense na transformayao semantica da pr6pria palavra criti-ea, ja que ela nao mais designa uma atividade de juizo eescolha, baseada numa estetica normativa ou naspreferencias do gosto. E a pr6pria natureza do fenomenoartistico atual que esta exigindo a crftica, cuja missao e parde manifesto os vas os comunicantes que fazem com que aarte contemponlnea diga a verdade do homem de hoje.Porque se eia nao disser essa verdade, nao diz coisa

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nenhuma e se torn a dispensavel - dispensa-se a crftica, mastambem a arte que a reclama.

o que estamos tentando dizer e que, desde 0

inicio do seculo, 0 projeto da arte vem se afirmando nanecessidade de encontrar 0 ser do universo visivel, oumelhor, dar ao visivel ontico a sua dimensao ontol6gica que,por nao ser evidente, exige do homem uma disposiyao a ela.Como bem 0 expressa Ortega,

"e surpreendente e misteriosa a unidadecompacta que cada epoca historica apresentaatraves de suas wirias manifestar;i5es. Uma unicae mesma inspirar;iio, um unico e mesmo estilobiologico podem ser reconhecidos nos variosramos da arte" (1967).

Acrescentariamos nietzscheanamente que a razaodessa busca da dimensao ontol6gica do visivel encontra-se,talvez, no pr6prio destino essencial da arte: eleger 0 [alsopor desejo de verdade.

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