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  • aprEsEntao

    Publicado pela primeira vez em 1973, no nmero 5 da revista Cause commune, Approches de quoi faz parte de um dossi dedicado s noes de infra-ordinrio e infra-cotidiano, que rene tambm artigos de Jean Duvignaud e Paul Virilio. Na forma de um pequeno ensaio, esse texto de Georges Perec pode ser considerado uma pea capital do quebra-cabea que ir formar sua produo. Nele, o es-critor desenvolve toda a potncia de suas reflexes sobre o que cha-mar de rudo de fundo, espcie de resto que compe o dia a dia da vida humana, mas ao qual no prestamos ateno. Elaborando uma crtica radical ao espetacular, Perec nos oferece em poucas li-nhas as bases do pensamento ao mesmo tempo tico e esttico que aparece de forma clara em produes como Tentative dpuisement dun lieu parisien e Espces despaces. Porm, talvez seja no mbito da prpria fico que o autor tenha deixado as marcas mais interessan-tes deste cruzamento entre tica e esttica, elaborando uma poti-ca que, influenciada pela sua participao junto ao grupo OuLiPo, dar forma ao romance La Vie mode demploi.1

    Rodrigo Silva Ielpo

    1 Em 2009, a Companhia das Letras reeditou a traduo de Ivo Barroso para o romance, sob o ttulo A vida, modo de usar.

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    aproximaEs do qu?

    Georges Perec

    O que nos fala, ao que me parece, sempre o acontecimen-to, o inslito, o extra-ordinrio: cinco colunas na primeira pgina, largas manchetes. Os trens s comeam a existir quando descar-rilam, e quanto maior o nmero de viajantes mortos, mais eles existem; os avies s ganham existncia quando se perdem; os car-ros tm por nico destino chocar-se contra os pltanos: cinquenta e dois finais de semana por ano, cinquenta e duas estatsticas: mui-tos mortos, e tanto melhor para a informao se os nmeros no param de crescer! preciso que haja por detrs do acontecimento um escndalo, uma fissura, um perigo, como se a vida s devesse se revelar atravs do espetacular, como se o eloquente, o significa-tivo fosse sempre anormal: cataclismos naturais ou reviravoltas his-tricas, conflitos sociais, escndalos polticos...

    Na nossa precipitao em medir o histrico, o significativo, o revelador, no deixemos de lado o essencial: o verdadeiramen-te intolervel, o verdadeiramente inadmissvel: o escndalo no a exploso, o trabalho nas minas. As perturbaes sociais no so preocupantes em perodos de greve, elas so intolerveis vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano.

    Os maremotos, as erupes vulcnicas, as torres que desabam, os incndios das florestas, os tneis que desmoronam, Publicis1 que queima e Aranda2 que fala! Horrvel! Terrvel! Monstruoso! Escandaloso! Mas onde est o escndalo? O verdadeiro escndalo? Os jornais no nos dizem outra coisa a no ser: fiquem tranquilos, vocs bem sabem que a vida existe, com os seus altos e baixos, vo-cs bem sabem que coisas acontecem.

    Os jornais falam de tudo, exceto do corriqueiro. Os jornais so um tdio, no me ensinam nada; o que contam no me diz res-peito, no me questiona e tampouco responde s perguntas que fa-o ou que gostaria de fazer.

    1 Em setembro de 1972, o prdio da agncia de comunicao Publicis, localiza-do na avenida Champs lyses, pegou fogo, levando destruio completa do imvel. (N. do T.)2 Gabriel Aranda, alto funcionrio durante o mandato do presidente francs Ge-orges Pompidou, denunciou imprensa, no incio da dcada de 1970, fatos com-prometedores da classe poltica do seu pas. O episdio ficou conhecido como Scandale Aranda. (N. do T.)

    ALEA VOLUME 12 NMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2010 p. 178-180

  • 179GEORGES PEREC | Aproximaes do qu?

    O que acontece realmente, o que vivemos, o resto, todo o res-to, onde ele est? O que acontece a cada dia e que sempre retorna, o banal, o cotidiano, o evidente, o comum, o ordinrio, o infra-ordinrio, o rudo de fundo, o habitual, como dar conta disso, co-mo interrog-lo, como descrev-lo?

    Interrogar o habitual. Mas justamente, estamos acostumados a ele. Ns no o interrogamos, ele no nos interroga, ele parece no causar problemas, ns o vivemos sem pensar nisso, como se ele no veiculasse nem perguntas nem respostas, como se no fosse portador de qualquer informao. No nem mais condicionamento, mas anestesia. Dormimos nossa vida em um sono sem sonhos. Mas onde est nossa vida? Onde est nosso corpo? Onde est nosso espao?

    Como falar dessas coisas comuns, ou melhor, como cerc-las, traz-las para fora, arranc-las da casca onde esto presas, co-mo dar-lhes um sentido, uma lngua: que elas falem enfim do que , do que somos.

    Talvez, trate-se de fundar finalmente nossa prpria antro-pologia: aquela que falar de ns, que ir procurar em ns aquilo que durante tanto tempo pilhamos dos outros. No mais o exti-co, mas o endtico.

    Interrogar o que parece to natural que esquecemos sua ori-gem. Reencontrar alguma coisa do espanto que podia sentir Jules Verne ou seus leitores diante de um aparelho capaz de reproduzir e transportar os sons. Pois esse espanto existiu, assim como tantos outros, e so eles que nos modelaram.

    O que preciso interrogar o tijolo, o concreto, o copo, nos-so comportamento mesa, nossas ferramentas, a organizao de nossas ocupaes, nossos ritmos. Interrogar o que parece ter ces-sado para sempre de nos espantar. claro que vivemos, que respi-ramos; ns andamos, abrimos portas, descemos escadas, sentamo-nos mesa para comer, deitamos em uma cama para dormir. Co-mo? Quando? Por qu?

    Descreva a sua rua. Descreva uma outra. Compare.

    Faa o inventrio de seu bolso, de sua bolsa. Interrogue-se sobre a procedncia, o uso e o devir de cada um dos objetos que voc retirar da.

  • 180 ALEA VOLUME 12 NMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2010

    Questione suas colheres.

    O que h debaixo do seu papel de parede?

    Quantos gestos so necessrios para discar um nmero de te-lefone? Por qu?

    Por que no encontramos cigarros nas mercearias?3 Por que no?

    Pouco me importa que estas perguntas sejam fragmentadas, apenas indicativas de um mtodo, quando muito de um projeto. O que me importa que elas paream triviais e fteis: precisamen-te o que as torna do mesmo modo essenciais, seno mais, que tan-tas outras perguntas atravs das quais tentamos inutilmente cap-tar nossa verdade.

    Traduo de Rodrigo Silva Ielpo (Doutorando UFRJ/ Paris 7)

    3 Na Frana, os cigarros so vendidos nos chamados bureaux de tabac. (N. do T.)