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FolhaSEXTA-FEIRA 02 DE ABRIL DE 2010
Folha da Manhã
LetrasPOETA
OBRA FALA
DE BUSCA E
DA VONTADE
DE POTÊNCIA
Florbela Espanca (1894- 1930) é
considerada a voz feminina
mais importante da lírica por-
tuguesa do século XX. A poeta
nasceu em Vila Viçosa, região
do Alentejo, terra de mulheres
poetas, de Mariana Alcoforado
com suas cartas de amor e de mulheres
célebres que fundaram conventos, como
Margarida Cheirinha ou Maria das Cha-
gas. Vozes femininas e suas muitas histó-
rias, que de alguma forma, ecoaram a
partir do auditório interior dessa poeta
que está sendo redescoberta na contem-
poraneidade.
A trajetória de vida de Florbela Espanca
foi marcada pelo desejo de emancipação,
pela vivência intensa das emoções, da
sensualidade e do erotismo, que iam na
contramão do ideário feminino de sua
época. A escritora portuguesa Ana de Cas-
tro Osório relatou que Florbela Espanca
não abriu para si “nenhum horizonte
profissional” a não ser o de “literata”, e
este atributo era “o mais desagradável
que podia ser dito de uma senhora que
era vista com um livro na mão”. A extem-
poraneidade de Florbela fez com que a
igreja portuguesa a classificasse como
uma pessoa “moralmente perniciosa” e
um “péssimo exemplo”, o que fez com
que a leitura de seus livros passasse a ser,
também, “moralmente” desaconselhável.
Florbela Espanca publicou dois livros de
sonetos em vida, o “Livro de Mágoas”
(1919) e o “Livro de Sóror Saudade” (1923).
Ambos receberam um frio acolhimento
por parte da crítica. Após o suicídio da po-
eta, ritualisticamente realizado no dia
em que completava trinta e seis anos de
idade, seus livros póstumos, “Charneca
em Flor” (1930) e “Reliquiae” (1931), se
esgotaram, demandando novas edições,
que vieram acrescidas de cartas e prefácios
acalorados. É certo que a morte consagrou
a tragédia florbeliana, assim como consa-
grou as de Inês de Castro, de Julieta, de
Isolda, de Sylvia Plath, de Grace Kelly, de
Diana Spencer e de tantas outras mulhe-
res que, repentinamente, desapareceram
deixando uma aura de mistério no ar.
Pode-se observar que Florbela Espanca
carregou o estigma de ser mulher numa
sociedade patriarcal e falocêntrica, mes-
mo assim, através de sua poesia, imagi-
nou um mundo em diálogo com outras
subjetividades e formas, trabalhando po-
eticamente variados aspectos do universo
feminino. Ela cantou o amor, a dor, a desi-
lusão por buscar e não encontrar o ama-
do, a tristeza e o destino que arrasta os se-
res independente de sua vontade. A sede de
infinito da poeta e a sua ousadia em dialo-
gar com diferentes formas, consti-tuiram-
se num contra-poder e numa hybris femi-
nina, ou seja, o desejo de conquistar luga-
res cada vez mais altos, de adentrar espa-
ços masculinos, como a tradição poética:
SER POETA
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o explendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
É amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda gente!
Florbela Espanca possui uma obra pre-
nhe de encantamento e que tem desperta-
do cada dia mais o interesse de leitores e
pesquisadores. O eu florbeliano tem a ca-
pacidade de se metamorfosear e jogar
com as formas do mundo, o que confere a•
sua poesia uma sedução própria da alte-
ridade. Vivemos numa época desencanta-
da, onde impera a sensação de queda do
paraíso e de perda da unidade mítica, co-
mo afirmou o pensador Mangabeira Un-
ger: “a única forma de nos salvarmos é
através da vulnerabilidade”, ou seja, per-
mitindo que nossas relações sejamos ilu-
minadas por emoções que se relacionem
com desejo e risco, para que nossa visão
seja ampliada e nos lancemos para uma
instância outra, maior, e para além de
nós mesmos.
A obra de Florbela Espanca é um convite
à experimentação das emoções, é desejo,
é risco, somos confrontados com uma po-
ética que desafia os lugares instituídos e
a distribuição desses lugares, e esse desa-
fio se dá através da errância do eu poético
que busca por conhecer a si mesmo: “Sei
lá! Sei lá! Sei lá bem!/Quem sou? Um fogo-
fátuo, uma miragem.../ Sou um reflexo...
Um canto de paisagem/ Ou apenas cená-
rio!/ Um vaivém” (Espanca, 1996), e traz
em si o germe do encontro com o ou-
tro:”Procurei-O no seio de toda gente./
Procurei-O em horas silenciosas!/ [...] E
nunca O encontrei!... Prince Charmant”
(Espanca, 1996).
A errância do eu florbeliano é a expres-
são de uma relação outra com o mundo,
que se funda não na certeza e nem na
rigidez, mas na consciência da imper-
manência das coisas, dos seres e das rela-
ções. Talvez, seja destino do espírito hu-
mano estar eternamente em caminho,
tanto que a imagem do viajante e do
nômade é um arcano que engendra a
nostalgia de um outro lugar: “Mostrem-
me esse País onde eu nasci!/ Mostrem-
me o Reino de onde sou Infanta!/ [...]
Quero voltar! Não sei por onde vim...”
(Espanca, 1996). A errância corres-
ponde, também, à quebra do en-
clausuramento, um passo em dire-
ção do outro, do encontro, ela res-
taura a mobilidade e possibilita
superar as polaridades.
O desejo ardente de Flor-bela
Espanca de fazer dialogarem as-
pectos variados da feminilidade
por meio de sua poesia gerou
um coro estranho e dissonan-
te para a sua época e a teatra-
lidade de seus versos fez com
que a imagem da mulher
se fundisse à imagem de
poeta, gerando leituras
reducionistas e fazendo
com que, durante mui-
tos anos, a sua obra fosse
menos estudada do que o seu
comportamento social e emocional. As-
sim, a imagem de Florbela foi se delinean-
do e terminou por mitificá-la. Os estudio-
sos da obra da poeta também contribuí-
ram bastante para a formação dessa ima-
gem mítica, ao focarem em suas leituras
prováveis e, muitas vezes, inventados as-
pectos curiosos, anedotários e tétricos so-
bre sua vida e sobre sua morte, como o de
Florbela ter sido ninfomaníaca ou o de
ela ter sido praticante de incesto, infor-
mações que ajudaram a montar um per-
fil de mulher extemporânea, capaz de
incomodar a estamental sociedade cató-
lica portuguesa. Não é circunstancial que
ela tenha se tornado uma importante
referência para o movimento feminista.
A poeta, que escolheu para si o mundo
da multiplicidade e da resistência ao do
emparedamento do ser e que escolheu a
morte, lugar comum por excelência, é
bem mais que apenas a “poetisa da dor e
da saudade”, é uma persona dramatis que
ainda não teve todas as máscaras revela-
das. Os seus contos, por exemplo, apenas
à pouco tempo começaram a ser estuda-
dos e novos documentos e cartas têm
vindo à público, revelando outras facetas
dessa mulher instigante. Florbela Espan-
ca está sendo redescoberta.
RENATA BOMFIM *
Mistério lusitanoDepois de ser estudada de forma redundante e
redutora, obra de Florbela Espanca é redescoberta
* POETA E MESTRE EM LETRAS PELA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
AGENDA LITERÁRIA
* Três livros publicados pela Compa-
nhia das Letras ganham adaptação cine-
matográfica. O primeiro deles, “Ilha do
Medo” (2010), de Martin Scorsese, estreou
no dia 12 de março. O filme é baseado no
romance “Ilha do Medo” (originalmente
publicado como “Paciente 67)”, de Dennis
Lehane. A segunda produção, "Os homens
que não amavam as mulheres" (2009), do
diretor Niels Arden Oplev, é o primeiro
longa-metragem do sucesso editorial Tri-
logia “Millennium”, do sueco Stieg Lars-
son. O lançamento está previsto para o
dia 24 de abril. O terceiro filme é “Quincas
Berro d'Água” (2010), de Sérgio Machado
(“Cidade Baixa”, 2005), com Paulo José e
Marieta Severo no elenco. Outros roman-
ces de Jorge Amado já inspiraram filmes e
minisséries, mas esta é primeira adapta-
ção para o cinema do romance “A morte e
a morte de Quincas Berro D'água”. (A.N.)
* David Grossman acaba de receber mais
um prêmio, desta vez pelo conjunto da
obra. Grossman, um dos principais autores
israelenses da atualidade, autor de “Al-
guém para correr comigo” (2005) e “A mu-
lher foge” (2009), entre outros, publicados
pela Companhia das Letras, foi agraciado
pela prestigiada Acum (Sociedade de com-
positores, autores e editores de Israel). Em
seus 30 anos de trabalho, David Grossman
tem criado uma voz literária familiar, e
igualmente corajosa e perspicaz. “É uma
voz israelense, e ainda assim, universal",
escreveram os juízes. Segundo publicação
do jornal Folha de São Paulo, “a obra do es-
critor é mundialmente conhecida pelo tom
pacifista e esquerdista. O intelectual defen-
de que a literatura pode ser uma poderosa
arma para resgatar a dimensão humana do
conflito. Ele assina a autoria de mais de
vinte livros”. (A.N.)
REPRODUÇÃO