Paulo Freire Vive Hoje Dez Anos Depois - Coletivo de Autores
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S U M R I O
Apresentao
Paulo Freire Vive!Hoje, dez anos depois...
OLHARES FREIREANOS
O pedagogo da esperana e da liberdade
Da impossibilidade de existirmossem os sonhos e sem a luta
Paulo Freire e a interdisciplinaridade em So Paulo
Compromisso e competncia na gestoeducacional: uma lio de Paulo Freire
Paulo Freire: utopia e esperana
Paulo Freire e o Projeto Mova-SP
Requerimento da Sesso Soleneem homenagem a Paulo Freire
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Ivan Valente
Ademar Bogo
Ana Maria Arajo Freire
Joo Zanetic
Lisete R. G. Arelaro
Mario Sergio Cortella
Slvia Telles
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Um mandato coletivo, comprometido com a luta popular e com
o socialismo, tem, no horizonte de sua atuao, o resgate damemria das lutas daqueles e daquelas que dedicaram suas vidas
ao combate a todas as formas de opresso e explorao dos trabalhadores.
Em nossa ltima plenria, deliberamos dedicar nossa atuao militante memria de Paulo Freire, por tudo que representa seu pensamento, sua
contribuio terica e trajetria de vida para a educao e a libertao dos
povos do Brasil e do mundo.
No incio desta Legislatura, apresentamos Requerimento na Cmara dos
Deputados, em conjunto com outros parlamentares, solicitando realizaode Sesso Solene em sua homenagem por ocasio dos dez anos de sua
morte; posteriormente, ocupamos a tribuna para proferir pronunciamento
em que consignamos nosso tributo a esse inesquecvel companheiro.
Esta publicao ganhou densidade com artigos e depoimentos elaborados
por pessoas de reconhecido saber, que conviveram, conhecem e praticamos ensinamentos de Paulo Freire, expressando diferentes aspectos datrajetria e do pensamento freireano: sua atuao compromissada e
competente frente da Secretaria Municipal de Educao de So Paulo;
a construo, coletiva, de propostas de educao para jovens e adultos e
a questo da organizao curricular; seu vnculo e a importncia de seu
legado para os movimentos populares, em especial, o Movimento dosTrabalhadores sem Terra MST; sua retido poltica e disposio de luta
A P R E S E N T A O
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em prol da educao pblica movidas pela sua inabalvel esperana por
um mundo melhor.Ficam nossos sinceros agradecimentos contribuio desses valorosos
educadores e educadoras: Ademar Bogo, Ana Maria Arajo Freire, Joo
Zanetic, Lisete R. G. Arelaro, Mario Sergio Cortella e Slvia Telles.
Por ltimo, queremos falar do sentimento de alegria que a lembrana dealgum que nos muito querido nos traz, em contrapartida com a dor de
sua ausncia. Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, artistas populares,
traduzem assim esse conflito: em Mangueira todos choram quando morre
um poeta, mas um pranto diferente, sem leno, que alegra a gente.
(Pranto do Poeta).
Paulo Freire nos alenta, nos inspira e nos alegra. Com suas idias,
alimenta nossos sonhos de mudana; com suas reflexes, nos instiga crtica; com seu exemplo, refora nosso engajamento; com sua ternura,
nos leva solidariedade e com sua tolerncia, nos mobiliza para o efetivo
exerccio da democracia.
Paulo Freire: PRESENTE!
Maro de 2007
Mandato Popular e Socialista
Ivan Valente Deputado Federal Psol/SP
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Paulo Freire Vive!
Hoje, dez anos depois...Ivan Valente
Uma das questes centrais com que temos de lidar a promoo
de posturas rebeldes em posturas revolucionrias que nos
engajam no processo radical de transformao do mundo. A
rebeldia o ponto de partida indispensvel, deflagrao da justa
ira, mas no suficiente. A rebeldia enquanto denncia precisa sealongar at uma posio mais radical e crtica, a revolucionria,
fundamentalmente anunciadora. A mudana do mundo implica
a dialetizao entre a denncia da situao desumanizante e o
anncio de sua superao; no fundo, o nosso sonho.
(Paulo Freire)
Introduo
No dia dois de maio de 2007 completar dez anos da morte do professor
Paulo Reglus Neves Freire, conhecido mundialmente como um grande
educador, pensador, filsofo e militante da Educao.
Inconformado com as injustias sociais, Paulo Freire fez da educao
um instrumento poltico de combate ao autoritarismo e de luta em favor
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da democracia. Dedicou sua vida a criticar toda e qualquer forma de
opresso e tirania e questionou o mtodo de ensinar e aprender impostos
pelas classes dominantes como instrumento de manuteno do status
quo. Em contraposio educao bancria, onde o saber transmitidode cima para baixo, autoritariamente, e o contedo tem um valor em si,
construiu, coletivamente, um projeto educacional libertador, partilhado,
capaz de criar uma cultura de pessoas livres, conscientes e responsveis
por si e pela coletividade.
Sua trajetria de vida - contribuio terica, reflexo sobre a prtica,propostas de polticas pblicas especialmente para a rea educacional-
fizeram com que se tornasse referncia mundial para intelectuais,
profissionais de diversos campos do saber, atores sociais, educadores e
educadoras, comprometidos com as causas populares, com a educao
pblica de qualidade e com a luta por uma sociedade mais justa
e igualitria.
Suas idias, nos anos duros da ditadura militar, o levaram ao exlio por
dezesseis anos. Continuou, porm, a desenvolver seu trabalho em diversos
pases, reafirmando sua opo poltica e sua concepo de educao,
democrtica e popular, dialtica e dialgica, mostrando a intencionalidade
do ato educativo.
Paulo Freire se fez e continua presente no mundo inteiro, principalmente
entre aqueles e aquelas que sempre acreditaram e continuam a crer na
possibilidade de construir um mundo novo e melhor, mais belo, mais
humano e fraterno.
Esta homenagem a Paulo Freire, mais do que recordar, com saudade,
um dos brasileiros mais ilustres, reconhecido internacionalmente porseu trabalho e testemunho de vida, tem um sentido simblico: o de
resgatar sua luta incansvel por justia social, atravs de um projeto de
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educao popular libertador, emancipador e transformador da realidade.
Esta homenagem tem tambm por objetivo fazer desta oportunidade, um
instrumento vivo de ao e de luta.
TRAJETRIA
O cidado brasileiro e cidado do mundo
Paulo Freire, pernambucano, nasceu em Recife, em 19 de setembro de
1921. De famlia humilde, teve uma infncia marcada por dificuldadeseconmicas e desde cedo conheceu a pobreza. Foi alfabetizado em casa,
por seus pais, escrevendo com gravetos, no cho de terra debaixo das
mangueiras do quintal. Como gostava muito de estudar, assim que concluiu
a escola secundria, tornou-se professor.
Formou-se em Direito, mas no exerceu a profisso. Optou por se engajar
na formao de jovens e adultos trabalhadores e por atuar em projetos dealfabetizao. A partir de sua prtica, com uma metodologia diferente, criou
uma teoria epistemolgica que o tornou conhecido internacionalmente.
A partir dos anos 60, desenvolveu uma proposta revolucionria de
alfabetizao atravs da qual, para alm da mera aquisio da linguagem
escrita, a partir da realidade vivencial dos educandos e do dilogo
permanente, busca-se a leitura e a compreenso crtica do mundo, para
poder transform-lo.
Essa nova teoria valorizava o universo cultural e vivencial dos educandos,
estabelece o dilogo como mtodo e, atravs dele, a construo coletiva
do conhecimento, estabelecendo uma relao dialgica entre natureza e
cultura, fazendo com que os alunos se percebam como sujeitos e, portanto,construtores de sua prpria histria.
Dentro dessa perspectiva, a alfabetizao um processo de educao
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permanente, constituindo-se em instrumento de conscientizao que
gera projetos de transformao da realidade. Da, porque, insistia o
Professor, o ato de educar eminentemente poltico e o fazer pedaggico,
necessariamente coletivo. Foram suas atividades no Movimento de CulturaPopular no Recife que inspiraram sua teoria do conhecimento, da qual seu
chamado mtodo de alfabetizao extrapolou os limites do pas.
Como conseqncia dessa atuao, foi preso (1964) e exilado. Durante o
perodo de exlio, trabalhou no Chile, com alfabetizao de camponeses,
nos Estados Unidos, ministrando aulas na Universidade de Harvard, comoprofessor convidado, e depois se fixou em Genebra, na Sua.
L, foi consultor especial do Departamento de Educao do Conselho
Mundial de Igrejas, viajando e trabalhando em diferentes pases, tornando-
se mundialmente conhecido. Com outros companheiros de exlio, fundou
o Instituto de Ao Cultural - IDAC e no incio dos anos 70 trabalhou
na frica, especialmente nas ex-colnias portuguesas: Guin Bissau,Cabo Verde, Angola, So Tom e Prncipe. Assessorou campanhas de
alfabetizao e contribuiu efetivamente para sistematizao de programas e
projetos educacionais naqueles pases.
Em 1980, com a anistia, voltou ao Brasil. Por considerar ofensivas
as regras impostas, recusou-se a pedir a reintegrao a seu cargo naUniversidade Federal de Pernambuco. Passou ento a trabalhar como
professor na PUC/So Paulo e, em seguida, tornou-se professor da
Universidade de Campinas - Unicamp, onde lecionou at o final de 1990.
Em 1989, foi convidado pela Prefeita Luiza Erundina para ser Secretrio
de Educao do Municpio de So Paulo. Sua Gesto caracterizou-se
por ampla discusso sobre condies de ensino e de trabalho, onde omtodo ao - reflexo - ao, enquanto um processo prtico e exigente
de Gesto Democrtica ia se consolidando; investiu no s na formao
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permanente dos educadores, mas melhorou as condies de trabalho com
uma nova jornada; aprovou o primeiro Estatuto do Magistrio da rede
municipal de So Paulo; promoveu a reviso curricular via projetos de
interdisciplinaridade e uma nova organizao do ensino por meio de ciclos.
Fez da Gesto Democrtica, nas suas diversas dimenses, uma diretriz
poltica. Com democracia, participao colegiada e construo coletiva
tornou-se um marco para a educao na rede municipal.
Com investimento na infra-estrutura, na formao dos profissionais, na
democratizao do acesso e permanncia dos alunos e na gesto escolar
conseguiu mudar a cara da escola e mostrou que possvel fazer da
escola pblica um lugar privilegiado de construo de conhecimento, de
desenvolvimento de projetos e de insero social. Reconhecido at pelos
adversrios, desenvolveu o melhor projeto de formao de professores da
cidade de So Paulo.
Depois de deixar a Secretaria de Educao do Municpio de So Paulo, em
1991, retomou suas atividades acadmicas publicando diversos livros e
fomentando, de forma permanente, a discusso educacional.
O Professor Paulo Freire morreu em 02 de maio de 1997, aos 75 anos, na
cidade de So Paulo.
Alfabetizao e conscientizao:inseparveis em Paulo Freire
O Brasil deve a Paulo Freire a incluso na categoria de lutadores sociais de
milhes de brasileiros e brasileiras que compreenderam o que ser sujeito
de sua prpria histria. Permitiu a um nmero expressivo de pessoas que
pertenciam aos de baixo enxergaremse como agentes transformadores
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na busca por uma sociedade mais justa e igualitria. Deu-lhes a chance
de escolher seu prprio caminho, em vez de ficarem sempre presos s
alternativas impostas pelas elites para perpetuar sua dominao de classe
e a brutal excluso social que sofrem os trabalhadores no Brasil, e em todaperiferia capitalista.
No toa que os interessados em manter seus privilgios e a alienao
do homem e da sociedade brasileira viram logo no seu mtodo um perigo
iminente manuteno do status quo, uma ameaa sem precedentes a
seus valores e instrumentos de dominao, uma verdadeira subverso daordem, pois se tratava no s de alfabetizar com rapidez e eficcia, mas,
estimular o processo de conscientizao. O medo das elites se agravava
quanto mais crescia a aceitao de sua metodologia. Freire se refere a
este fenmeno afirmando que se no tivesse sido interrompido pelo golpe
de 64, naquele ano, deveria estar em funcionamento vinte mil crculos da
cultura em todo pas.
Paulo Freire como intelectual orgnico e, mais do que isso, como um
militante poltico, ao colocar seus conhecimentos em prtica, valorizando o
homem do povo, aprendendo com a vida, formando educadores engajados
e respeitadores da experincia e da sabedoria popular, transformava
valores, atacava a meritocracia, o autoritarismo e a hierarquizao nasrelaes. Subvertia a ordem do poder dominante, da lgica do lucro, dos
ricos, valorizando o homem e a natureza.
Nesta passagem do seu livro Educao como prtica da liberdade
encontramos uma pequena sntese de porque o pensamento de Paulo Freire
amedrontava aqueles que tm pavor do despertar das massas:
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Como explicar que um homem, analfabeto at poucos dias,
escreva palavras com fonemas complexos antes mesmo
de estud-los. que, tendo dominado o mecanismo das
combinaes fonmicas, tentou e conseguiu expressar-segraficamente como fala.
A afirmao que nos parece fundamental de ser enfatizada a de
que, na alfabetizao de adultos, para que no seja puramente
mecnica e memorizada, o que se h de fazer proporcionar-lhes
que se conscientizem para que se alfabetizem.
Da medida que um mtodo ativo ajuda o homem a seconscientizar em torno de sua problemtica, em torno de sua
condio de pessoa, por isso de sujeito, se instrumentalizar para
suas opes.A ento, ele mesmo se politizar. Quando um ex-analfabeto de
Angicos, discutindo diante do presidente Goulart e sua comitiva,
declarou que j no era massa, mas povo, disse mais do queuma frase: afirmou-se conscientemente uma opo. Escolheu
a participao decisria, que s o povo tem, e renunciou a
demisso emocional das massas. Politizou-se.
Dilogo e construo coletivano pensamento de Freire
Uma caracterstica do pensar e do agir, da maneira de se relacionar e
aprender em Paulo Freire, diz respeito forma como ele v o outro. O
aprender a ouvir, a valorizao dos saberes que vm da experincia e da
cultura popular, a abertura para o dilogo com os diferentes e com osadversrios para melhor apreender os antagonismos, so caractersticas
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essenciais do projeto educativo de Paulo Freire. O combate ao
autoritarismo nas relaes humanas e sociais e a corajosa crtica que faz
ao sectarismo muito presente na vida e na poltica, com suas certezas
sectrias excludentes de possibilidades de outras certezas, negadorasde dvidas e o seu apelo tolerncia so outras marcas que vo dar
consistncia s aes de quem acredita no carter coletivo do
projeto educativo.
Diz, Paulo Freire em Extenso ou Comunicao?que: ser dialgico, para
o humanismo verdadeiro, no dizer-se descomprometidamente dialgico; vivenciar o dilogo. Ser dialgico no invadir, no manipular, no
sloganizar. Ser dialgico empenhar-se na transformao cons-tante
da realidade. Freire trabalha de forma excepcional o carter social da
aprendizagem. Combate com rigor a idia do professor como transferidor
de conhecimento, trata a educao como um ato poltico e ressalta a
diferena entre o falar com algum e o falar para algum. na contestao lgica de que a palavra deve estar com quem sabe;
combatendo a ideologia de que o educando nada sabe; duelando com a
lgica expandida de que o centro sabe e fala e a periferia do pas escuta,
que Paulo Freire demonstra o potencial humano e a capacidade do povo se
assenhorar do conhecimento e faz-lo instrumento da construo de um
novo sonho e de uma nova vida transformada.
Nos dilogos que reproduzimos abaixo, retirados de experincias de Paulo
Freire com trabalhadores rurais, cristalina essa matriz de pensamento:
- Muito bem - disse eu a eles. - Eu sei. Vocs no sabem. Maso que eu sei e vocs no sabem?- O senhor sabe porque doutor. Ns, no.
- Exato, eu sou doutor. Vocs no. Mas, porque eu sou doutor e
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vocs no?
- Porque foi escola, tem leitura, tem estudo e ns, no.
- Por que fui escola?
- Porque seu pai pde mandar o senhor escola. O nosso, no.
- E por que os pais de vocs no puderam mandar vocs
escola?
- Porque eram camponeses como ns.
- E o que ser campons?
- no ter educao, posses, trabalhar de sol a sol sem ter
direitos, esperana de um dia melhor.
- E por que ao campons falta tudo isso?
- Porque Deus quer.
E quem Deus?
o Pai de todos ns.
- E quem pai aqui nesta reunio?Quase todos de mos para cima, disseram que o eram.
Olhando o grupo todo em silncio, me fixei num deles e lhe
perguntei:- Quantos filhos voc tem?
- Trs.
- Voc seria capaz de sacrificar dois deles submetendo-os a
sofrimentos para que o terceiro estudasse, com vida boa noRecife? Voc seria capaz de amar assim?
- No.
- Se voc disse eu - , homem de carne e osso, no capaz de
fazer uma injustia desta, como possvel entender que Deus o
faa? Ser mesmo que Deus o fazedor dessas coisas?
Um silncio diferente, completamente diferente do anterior, umsilncio no qual algo comeava a ser pratejado. Em seguida:
No. No Deus o fazedor disso tudo. o patro.
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Nesse trecho fica claro que o educador sabe que no meio do senso comum,
convivem elementos de bom senso na experincia popular. Por outro lado,
o dilogo, o aprendizado e o respeito ao saber popular, no podem levar
o educador a uma viso complacente que no contribua para inflamar odebate e o despertar para descobertas fantsticas.
Outra faceta revolucionria dos seus ensinamentos aparece na
constatao prtica de que a participao crtica dos educandos e a
liberdade com que o fazem que confere efetividade ao aprendizado e ao
projeto educacional.
O aprender com o outro, no dilogo com seus semelhantes, ensina Paulo
Freire: ningum educa a ningum, ningum tampouco se educa sozinho, os
homens e as mulheres se educam entre si, mediatizados
pelo mundo.
Imprescindvel homenagem
Paulo Freire mostrou de diferentes ngulos, unindo a dimenso tica e
esttica das relaes humanas, que, atrs do ato de ensinar e aprender h
uma clara opo poltica e que a educao nunca neutra, toma partido,
principalmente em um mundo fortemente marcado pela opresso edesigualdade social.
Sua prxis mantm-se atual e tem servido para fundamentar trabalhos
acadmicos, inspirado prticas em vrias reas do saber e, alm disso,
estimulado a participao popular e a organizao dos movimentos sociais
em diversas partes do mundo.
Sua contribuio acadmica e intelectual, com inmeros livros publicados e
traduzidos para vrios idiomas, foi orientada para a emancipao da pessoa
humana, para a liberdade e justia social, para a democracia autntica
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O pedagogo da
esperana e daliberdadeAdemar Bogo*
Paulo Freire um daqueles seres humanos que entram na histria para nunca
mais sair. Pela simplicidade, dedicao, persistncia e empenho com que
tratou a educao, continua presente em todos os lugares em que se discute a
transformao da realidade.
A sua grande descoberta, j no final da dcada de 1950, foi que aprendemos
a ler o mundo que nos cerca, antes mesmo das palavras e frases1. A partir da
tornou-se o grande pedagogo, amigo e militante das lutas sociais.
O caminho indicado para aprender a ler o mundo a partir da tica poltica seria
a luta, por isso no s declarou que todos sabemos alguma coisa, como
tambm despertou na gerao de seu tempo e posteriores a esperana de
mudar o mundo. Conjugou como se fossem verbos as palavras esperana eliberdade e as interligou na prtica revolucionria de cada dia.
* Membro da coordenao nacional do MST.1.FREIRE, Paulo. A importncia do ato de ler. 41.ed. So Paulo: Cortez, 2001
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Astuto como educador e militante, percebeu que o mundo das necessidades
tem os problemas e, ao mesmo tempo, as solues. A organizao e a luta
que nos fazem sujeitos da histria. Assim aconteceu com o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra.
O problema social o mundo imediato de qualquer ser social que encara
a vida com vontade de se tornar sujeito. Ler a existncia da explorao e
do latifndio foi a forma embrionria da conscincia, ela permitiu que os
trabalhadores sem-terra, dispersos, procurassem algum lugar onde pudessem
denunciar o que sabiam; isso porque, na luta social, num primeiro momento,o saber se d na forma de reclamao.
A reclamao colocada se estabeleceu como denncia. Era a comparao
das condies que havia entre os seres sociais que possuam os mesmos
direitos, mas se diferenciavam nas condies.
Por sua vez, a denncia se transformou em crtica e essa, ainda
espontaneamente, avanou para a revolta. A revolta foi o primeiro sinal de
que a organizao da classe estava se configurando. Agora existia porque
aparecia e incomodava.
A leitura do mundo despertou a imaginao que, no fundo, era o desejo de
mudar. Era a esperana que desabrochava, como o movimento da primavera
que no se pode conter.Depois da leitura do mundo, vieram os documentos, as pautas de
reivindicaes, as notcias nos jornais onde algum que aprendera a ler as
letras (provavelmente sem ter levado em considerao o mundo em que vivia)
discorria diante dos ouvidos atentos, para saberem se as palavras escritas
retratavam o que haviam feito.
Dessa forma, o MST, ao nascer e se desenvolver, nada mais fez do que
confirmar pela prtica, o que Paulo Freire havia descrito em suas reflexes.
A prtica ensina, dizia Paulo Freire, mas esse conhecimento no basta,
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precisamos conhecer melhor as coisas que j conhecemos e conhecer
outras que ainda no conhecemos2. Conhecer, ento, mais do que uma
curiosidade, apreender a realidade como se ela nos pertencesse.
Foi por esse caminho que Paulo Freire nos levou pela mo; nos fez
apaixonados pelo conhecimento e pela humanizao, pois conhecamos o
latifndio pela sua extenso antes da ocupao, mas isso no era tudo, as
letras e os nmeros traziam, com preciso, o nome, tamanho e proprietrio
daquele territrio sem fim.
Ao tomar conhecimento dessas caractersticas, compreendamos as classessociais, sabamos o porqu de estarmos em lados opostos e porque
ramos inimigos. Compreendamos no pelas letras, mas porque vamos o
proprietrio que, sozinho, tinha uma enorme propriedade que no cumpria a
funo social. Por isso no havia mais terra disponvel em nosso pas para
quem quisesse trabalhar para sobreviver.
O conflito, por essa leitura do mundo e das letras, tornou-se uma sada pararesolver as necessidades que motivaram a luta. Ento lutar bom, um
prazer porque nos ensina a ler o mundo melhor e a descrev-lo como se
fosse nosso.
Estar no mundo e com o mundoPaulo Freire nos ensinou o caminho para a formao da conscincia na sua
forma poltica. Ensinou-nos que estar no mundo e com o mundo no
somente aprender a ler a realidade, mas propor-se a modific-la, j que
alteramo-nos na medida da alterao que provocamos. Acreditava Freire que
o mundo no , o mundo est sendo.
Antes de entrar na luta pela terra, as pessoas esto no mundo, mas se
2. FREIRE, Paulo. Ao cultural para a liberdade. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1982.
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comportam como se estivessem fora dele. Vem os problemas, mas se
desviam deles. Aparentemente, a fome, a falta de trabalho e moradia etc. no
tm causa, e, onde no h causas, no h lutas.
Talvez ningum tenha entendido e aplicado to bem quanto Paulo Freire
a terceira tese sobre Feuerbach, onde Karl Marx e Friedrich Engels,
descreveram que, o prprio educador tem que ser educado 3. Ou seja,
educar buscar formas de modificar as circunstncias em que vivemos para
modificar-nos junto. Separar os sujeitos das circunstncias em que vivem,
descompromet-los. E no pode haver jamais um movimento social semcomprometimento.
Paulo Freire percebeu que os problemas sociais no so apenas uma criao
humana que diminuem a humanizao, mas que eles tambm so a porta do
conhecimento. Ento, na ligao entre o ser e as circunstncias, os problemas
se transformam em temas geradores do prprio conhecimento.
A leitura do mundo, de acordo com Paulo Freire, nada mais do que uma
leitura de ns mesmos e das circunstncias que nos rodeiam. Atravs dessa
leitura reconhecemos que, aquilo que parecia estar somente fora de ns,
est tambm dentro, como cicatrizes. O educador nos ajudou a descobrir-
nos, porque ele j tinha se descoberto anteriormente e, em si, processou a
modificao enquanto pedagogo.Da que, o professor da tese de Marx e de Engels, no movimento social,
pode ser entendido como a liderana. Organizar a luta um conhecimento
poltico que precisa de habilidade, inteligncia e astcia. Logo, a formao
poltica procura combinar formas e contedos. Assim, atinge-se o estgio
de liderana quando o fazer e o dizer no esto em desacordo; quando as
relaes expressam a lgica das combinaes e das contradies. Nessaperspectiva Freire afirma que:
3. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alem. So Paulo: Centauro, 2002, pg. 108.
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A partir das relaes do homem com a realidade, resultantes
de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criao, recriao
e deciso, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a
realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de queele mesmo o fazedor. Vai temporalizando os espaos geogrficos.
Faz cultura.... 4
O processo de estabelecer relaes polticas entre as pessoas e dessas,
organizadas com a realidade, defendidas por Paulo Freire, a base fundante
da proposta pedaggica do MST, pois para o Movimento, fazer uma ocupao
ou construir uma escola so atividades de igual importncia.
Sair de inspitos recantos, de acampamentos e assentamentos, para
construir, com trabalho voluntrio, a Escola Nacional Florestan Fernandes,
em Guararema, no Estado de So Paulo, para, depois do espao preparado,
participar dos cursos de formao de militantes, a dinamizao do mundo,
agora sendo criado e recriado pelo fazer das novas relaes brotadas da
afirmao da auto-estima. o valor da solidariedade elevando o ser humano
a uma nova categoria, a de sujeito do velho mundo, s que lido e interpretado
com os olhos do novo sonho.
Assim estar com o mundo quer-lo e desej-lo. Os olhos que viam e
descreviam, agora sentem que, ao ler o mundo, pulavam pedaos na leitura,
porque no entendiam a totalidade da mensagem oferecida pelas contradiesda realidade. Ser militante ler o mundo por inteiro. relacionar-se com ele
atravs da economia, da poltica, da ideologia, da cultura, da arte etc.
O fio que liga os passos desse conhecimento o tema gerador, que aparece
com facilidade, como se viesse ao encontro no caminho que se vai a p. A
diferena que, quanto mais tempo se anda na militncia, sem abandonar
os temas iniciais, os que aparecem so cada vez mais complexos esurpreendentes. Ou seja, se o primeiro tema motivador da discusso e do
4.FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. 15. ed. So Paulo: Paz e Terra, 1983, pg. 43.
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aprendizado era latifndio, com espao determinado, agora imperialismo,
espao mundial, que tem a cara curtida pela guerra. L-lo, significa
interpret-lo, nunca tem-lo.
Aprendemos com Paulo Freire e na luta que a leitura crtica do mundo amplia
o prprio mundo. E ao l-lo conscientemente, evita-se cair em enganos e
cometer desatinos.
A prtica poltica e a democrticaNos princpios organizativos extrados da experincia da luta de classes na
histria, a democracia e a participao possuem grande importncia. Paulo
Freire no deixou de perceb-las e recomend-las. Para ele, o sectarismo
alm de ser uma doena um ato de desamor. O povo no conta nem pesa
para o sectrio, a no ser como suporte para seus fins....5
No seria possvel organizar um movimento social impondo idias
e desmerecendo as idias amigas. Um movimento social filho da
solidariedade poltica da sociedade. Esquecer desse detalhe isolar-se
e provocar a prpria derrota. Um movimento social uma obra coletiva,
tanto dos que diretamente participam quanto daqueles que admiram a sua
construo. A leitura favorvel dos fatos cria as circunstncias para os passos
seguintes. O olhar amigo sempre uma trincheira de autodefesa.
esse sentido que se pode extrair das palavras de Paulo Freire, que a fora
jamais deve desconsiderar a inteligncia. Em oposio ao sectrio, ps o
radical. Enquanto o primeiro se coloca como o nico fazedor da histria,
o radical rejeita o ativismo e submete sempre a sua ao reflexo6,
por isso no detm nem antecipa a histria. O sectrio afasta, no permiteaproximao e desconsidera a ajuda. Por isso, nada cria porque no ama.
5.Ibid, pg. 52.6.Ibid, pg. 50.
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Estuda, mas nada aprende. Fazer poltica um exerccio afetivo. A criatividade
depende da afetividade e do respeito. A raiva e a arrogncia s podem servir
aos inimigos, pois ambas so foras que nos destroem por dentro.O sectarismo pode se manifestar em qualquer aspecto da convivncia social e
poltica. Perceber os seus aspectos conter a tempo a desarmonia interna.
Nesse sentido, aprendemos que todas as manifestaes culturais, sejam
elas artsticas ou religiosas, so idias e prticas que, ao invs de
serem discriminadas, reprimidas e proibidas, devem ser interpretadas
e incentivadas. As festas e a alegria no podem ficar distantes das
atividades polticas, porque a sociedade que pretendemos construir no
pode ser triste e descorada.
No contexto da luta cotidiana, a leitura correta do mundo nos permite ver
que a sociedade se organiza e se divide em classes sociais, no em credos
religiosos, nem tampouco em etnias e gnero. E que nos movimentos sociais,a participao motivada pela condio e posio de classe. Mulheres e
homens aparecem como sujeitos fazedores da obra da emancipao. pela
participao poltica que aprendemos a ler o mundo politicamente.
Na labuta do dia-a-dia, constatamos que os textos mais difceis de serem
lidos na luta social so aqueles produzidos pelos sectrios, porque
nos foram a romper com sentimentos que deveriam ser preservados.A democracia, ento, nada mais do que incentivar que cada um leia o
mundo com seus prprios olhos e se proponha, junto com os demais
membros da classe, a transform-lo.
Exemplo de tica revolucionriaPensava Paulo Freire que a grande preocupao com a transformao do
mundo se ela contribui para a emancipao, para a humanizao ou no.
Afirmava que mesmo que no percebamos, nossa prxis, como educadores,
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para a libertao dos seres humanos, sua humanizao, ou para a
domesticao, sua dominao.7 Ele nos desafiou a segui-lo, no somente na
educao, como tambm nas atividades polticas e nas lutas sociais. Freire
nos instigou a sermos agentes da transformao.
Mas ser agente da transformao exige discernimento de que contedo se
deve desenvolver para que as pessoas se transformem juntas e para melhor.
No deixamos de ver isso nos escritos de Paulo Freire, que no faz outra
coisa a no ser declarar que todos somos capazes e que temos dentro de ns
a capacidade de fazer-nos diferente do que somos. Mas, para tanto preciso
ter o cuidado para diferenciar-nos dos opressores. No temos apenas uma
separao de classes com eles mas, acima de tudo, uma profunda diferena
de carter e de comportamento com a classe burguesa. Nesse sentido,
alertou-nos Freire: necessrio que os revolucionrios dem testemunho,
mais e mais, da radical diferena que os separa das foras reacionrias. 8
E esse testemunho o fazer propriamente dito da libertao. Entretanto, otestemunho no se d sem conflito, pois a tica torna-se necessria para que
se possa avaliar os mtodos utilizados nas relaes polticas internas ou no
trato com os inimigos.
nesse contexto que se pode extrair do pensamento de Paulo Freire a
importncia dada cultura. Para ele, as aes tornam-se cultura na medida
em que, no fazer histrico, a realizao do possvel de hoje deva viabilizarpara amanh o impossvel de hoje. Querer inverter ou impor a inverso dessa
ordem atentar-se contra as possibilidades histricas. O impossvel de hoje
ter que se tornar o possvel de amanh. preciso trabalhar para isso, com
um p no presente e o outro procurando a base do futuro, para que os sonhos
no cansem e adormeam.
Na sua relao com o MST, Paulo Freire nunca escondeu o seu entusiasmo,
7. FREIRE, Paulo. A importncia do ato de ler. 41.ed. So Paulo: Cortez, 2001, pg. 69.8. FREIRE, Paulo. Ao cultural para a liberdade. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1982, pg. 79.
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por perceber que a obra da alfabetizao e da formao das conscincias,
iniciadas por ele na dcada de 1950 no Nordeste do Brasil, continuava viva
no cotidiano da luta por terra, escola e dignidade; e na formao poltica de
nossa militncia. Externou seu contentamento em um depoimento gravadoem vdeo, em novembro de 1996, que dedicou aos educadores e educadoras
do MST, ao dizer, no encerramento de sua fala: Vivam por mim, j que no
posso viver a alegria de trabalhar com crianas e adultos que, com sua luta e
com sua esperana, esto conseguindo ser eles mesmos e elas mesmas.9
A persistncia de Paulo Freire e sua profunda crena no povo, na capacidadede organizar-se e buscar as formas da prpria libertao, fez dele uma grande
referncia para os movimentos sociais que aprenderam, mais do que imit-lo,
a t-lo como companheiro da formao poltica.
No MST, so inmeras as homenagens prestadas a ele, seja na mudana
de nomes das antigas fazendas em novos assentamentos, nos centros de
formao ou em escolas de ensino fundamental. Sua obra lida em todos oscursos de formao de educadores, do ensino mdio graduao, e nos de
formao poltica; seu rosto aparece nos murais e pinturas feitas pelos artistas
que lutam pela terra e pela emancipao de toda a classe trabalhadora; seus
ensinamentos aparecem nas palavras de ordem, nas msticas e nas msicas
feitas pelos educandos da terra de todos os cantos do Brasil.
No , mas poderia ser de Paulo Freire, a clebre frase Proletrios de todo
o mundo, uni-vos, pois esse era o seu sonho, ainda vibrante por todos os
pases por onde militou e ensinou.
Por toda a sua trajetria histrica e poltica que para os educadores e
educadoras do povo e movimentos sociais Paulo Freire vive como pedagogo,
mas acima de tudo como militante da esperana e da liberdade.
9. Paulo Freire em MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Paulo Freire: um educador do povo.So Paulo: Associao Nacional de Cooperativa Agrcola, 2001, pg. 40.
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Da impossibilidade
de existirmos sem ossonhos e sem a lutaNita
Ana Maria Arajo Freire
Sonhar no apenas um ato poltico necessrio, mas tambm uma
conotao da forma histrico-social de estar sendo de mulheres e
homens. Faz parte da natureza humana que, dentro da histria, se
acha em permanente processo de tornar-se... No h mudana sem
sonho como no h sonho sem esperana...A compreenso da histria como possibilidade e no determinismo
seria ininteligvel sem o sonho, assim como a concepo
determinista se sente incompatvel com ele e, por isso, o nega.1
Os dez anos da partida de Paulo desta vida, de existncia plena e frtil,
como uma experincia complexa, profunda e rica que foi a sua de estar
com outros e outras e com o mundo, marcada como a de muito poucos
pela dignidade, coerncia e amorosidade, me levam a escrever este texto,
como uma contribuio leitura daqueles e daquelas que sonham com um
* Ana Maria Arajo Freire (Nita) doutora em educao pela PUC-SP e viva doeducador Paulo Freire.1.FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperana. So Paulo: Paz e terra, 1992, pg. 91-2.
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O autntico dilogo freireano do qual tanto precisamos aquele que, ao
contrrio, se rege pela amorosidade, pelo respeito ao diferente e admirao
pela diversidade e pela crena na horizontalidade das relaes entre
as pessoas como sujeitos da histria para a construo de um mundoverdadeiramente democrtico.
importante que nesta publicao, que reafirma o pensamento de Paulo,
faamos uma reflexo sobre a nossa expectativa de mundo. Sobre como
nos organizar para alimentar nossos sonhos e construir nosso projeto de
transformao social. Em como manter a nossa esperana forte e aquecida,para no nos curvar perante posies fatalistas e o poder determinante
diante do qual, nada podemos fazer - nos imobilizando para reao, para
luta. Resgatar e ampliar a possibilidade deste dilogo da necessria e
justa reivindicao de mudarmos o mundo - viver Paulo Freire.
Quando comecei em princpio de 2004 a organizar os textos do livroPedagogia da tolerncia, pensava e refletia constantemente, que a
globalizao da economia e o pensamento neoliberal, ao contrrio do
que diziam os seus promotores pretender fazer, e estavam concretamente
fazendo, era disseminar atravs do poder poltico e econmico centralizado,
totalitrio e exacerbado, a arrogncia, a prepotncia e a malvadez
sem limites. Sobretudo, via com clareza, como tantos outros e outrasfaziam, que estes se comportavam e norteavam a poltica mundial com
a intolerncia do superior, dos que a ningum e a nada respeitam, dos
que: sabem com quem esto falando? Dos que pensam que a histria e
eles mesmos se fazem apenas com o eu exacerbado como demiurgos da
realidade, sem o indispensvel tu.
Sobre as tenses e confrontaes: ideolgicas, polticas, pedaggicas e
ticas entre as foras progressistas e o atraso imobilizador, Paulo Freire
contumaz nas suas palavras:
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Se as estruturas econmicas, na verdade, me dominam de
maneira to senhorial, se, moldando meu pensar, me fazem
objeto dcil de sua fora, como explicar a luta poltica, mas,
sobretudo, como faz-la e em nome de qu? Para mim,em nome da tica, obviamente, no da tica do mercado,
mas da tica universal do ser humano, para mim, em nome
da necessria transformao da sociedade de que decorra
a superao das injustias desumanizantes. E tudo isso
porque, condicionado pelas estruturas econmicas, no sou,
porm, por elas determinado. Se no possvel desconhecer,de um lado, que nas condies materiais da sociedade
que se gestam a luta e as transformaes polticas, no
possvel, de outro, negar a importncia fundamental da
subjetividade na histria(...) Para mim, no possvel falar
de subjetividade a no ser se compreendida em sua dialtica
relao com a objetividade (...) neste sentido que s faloem subjetividade entre os seres que, inacabados, se tornaram
capazes de saber-se inacabados, entre os seres que se fizeram
aptos de ir mais alm da determinao, reduzida, assim, a
condicionamento e que, assumindo-se como objetos, porque
condicionados, puderam arriscar-se como sujeitos, porque
no determinados. 3
Hoje, ao analisarmos a conjuntura mundial, constatamos sem quase
nenhuma dificuldade, sem sequer sermos cientistas polticos ou
economistas, o acirramento, h anos denunciado por Paulo, das
contradies que redundam no estado de injustia de todos os nveis egraus e que so cada dia maiores, ditadas pela globalizao da economia.
3.FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignao Cartas pedaggicas e outros escritos. So Paulo: EditoraUnesp, 2000, pg. 56-7.
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partir deste sentimento de indignao mesmo porque pouco ou quase
nada est sendo ouvido da voz de nossa indignao pelos dominantes
acerca de nossos clamores -, nutrir os sonhos que quase sempre podemos
fazer possveis para continuarmos sendo de fato e nos sentindo comohomens e mulheres sujeitos da histria. De existncia verdadeira. Para
no deixarmos que a indignao se esvaia completamente, que o espanto
desalentador ou a desesperana desestabilizadora ou o cinismo adaptador
tome conta de ns.
Por mais contraditrio que isso possa parecer, precisamos, urgentemente,pois, reavivar em ns mesmos a nossa capacidade ontolgica de sonhar, de
projetar para um futuro mais prximo possvel, dias de paz, eqidade
e solidariedade.
Reativar em nossos corpos conscientes as possibilidades de sonhar o
sonho utpico que Paulo h anos j vinha nos convidado a sonhar osonho possvel -, o que nos possibilita resgatar em ns todos e todas
a nossa humanidade mais autntica roubada por esses e essas que nos
exploram e mutilam. Pelos que minam as nossas esperanas de tornarmos
a nossa, uma sociedade sria e justa como merecemos.
Mais uma coisa acrescento, uma advertncia para nossas reflexes: ou nos
identificamos com uma tica libertadora, assim humanista; com as utopias
onde cabem as diferenas, expurgando-nos e expurgando da sociedade
planetria as discriminaes e nos solidarizamos na construo social dos
sonhos possveis da tolerncia democrtica ou marcharemos a passos
largos e rpidos para a autodestruio total dos seres humanos.
Para isso precisamos, na reflexo de Paulo, acreditar que Do alvoroo daalma faz parte tambm a dor da ruptura do sonho, da utopia 4 Mas, que,
4. FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperana. So Paulo: Paz e Terra, 1992, pg. 33.
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contraditoriamente, dos sonhos rasgados, mas no desfeitos 5, podemos
fazer renascer em ns a esperana de uma nova sociedade.
Assim, ns que temos compromisso com um mundo melhor, que sentimoshoje mais do que nunca que nossos sonhos esto sendo rasgados, que,
mais uma vez, procuremos em e com Paulo Freire re-fazer socialmente os
sonhos possveis de transformao, pois sabemos que s aparentemente
eles foram desfeitos, pois sonhar destino dado.
5. Ibdem, pg. 35.
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Paulo Freire e a
interdisciplinaridadeem So PauloJoo Zanetic*
Uma das iluses liberais que a instruo, por si s, seja fatorcapaz de transformar a sociedade, quando sabemos que em
pases como o Brasil o problema s poder ser solucionado pela
conjugao entre educao e conscincia poltica progressista.
Antonio Candido1
Introduo
Alguns dias depois que recebi o convite do Marcelo Aguirre2 para escrever
um pequeno artigo sobre nosso saudoso educador Paulo Freire (1921-1997)
para esta publicao marcando o dcimo aniversrio de sua morte, uma
notcia publicada em um jornal de So Paulo me forneceu a inspirao que eu
procurava para a abertura do artigo. Essa notcia apresentava os resultados deuma pesquisa - realizada em parceria da Unicef (Fundo das Naes Unidas
para a Infncia) com o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais) - que apontava o bom desempenho de algumas poucas
dezenas de escolas-modelo pblicas de ensino fundamental do pas. Segundo
a notcia, os principais ingredientes responsveis pelo destaque da boa
* Professor do Instituto de Fsica da USP.1. CANDIDO, Antonio. Apresentao, em VALENTE, Ivan e ARELARO, Lisete. Educao e polticaspblicas. So Paulo: Xam, 2002, pg. 7.2. Marcelo Aguirre assessor do mandato do Deputado Federal Ivan Valente (PSOL/SP).
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qualidade dessas escolas incluam: professores que incentivam atividades a
serem realizadas em sala de aula e que tm formao continuada; estudantes
interessados e esforados nas tarefas escolares; propostas pedaggicas
ligadas realidade dos alunos; participao de universidades pblicas naelaborao das propostas pedaggicas e o envolvimento dos pais e da
comunidade no processo de aprendizado.3 Um editorial do mesmo jornal,
ao comentar o contedo dessa pesquisa, conclui que, embora as propostas
pedaggicas dessas escolas sejam relevantes, as receitas das 33 instituies
selecionadas pelo Unicef e pelo Mec no so universalizveis.4
Ao ler essa notcia e a avaliao do editorial, imediatamente veio-me
mente uma prazerosa lembrana de uma experincia educacional que, entre
vrias outras, tambm possua os ingredientes acima citados e que tinha
e tem tudo para ser universalizada nas escolas do pas. Essa experincia
educacional, que tive a satisfao e o orgulho de ter participado como um
dos representantes da Universidade de So Paulo, ocorreu entre os anos
de 1989 e 1992, na Administrao Popular do Municpio de So Paulo
na primeira gesto do Partido dos Trabalhadores (PT). Nesses anos teve
lugar o Movimento de Reorientao Curricular, que foi comandado por
Paulo Freire que, na maior parte desse perodo, desempenhou o cargo
de Secretrio Municipal de Educao. A experincia educacional nas
escolas de ensino fundamental da rede municipal denominava-se Projeto
Interdisciplinar, via Tema Gerador.
Creio que relevante e atual relembrar algo dessa experincia educacional
principalmente neste momento da vida do pas quando a pssima qualidade
da educao dos jovens brasileiros tem ocupado as pginas de nossos
jornais. Tanto durante a primeira gesto de Lula como presidente da
Repblica, quanto no incio de sua segunda gesto, a poltica educacional
dominante est distante do legado educacional de Paulo Freire.
3.CONSTANTINO, Luciana. Ensino pblico tem 33 escolas modelo. Folha de So Paulo, 20/12/2006, pg. C4.4.Editorial. Folha de So Paulo, 24/12/2006, pg. A2.
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Para situar melhor essa experincia exporei brevemente algumas concepes
freireanas crticas educao tradicional e suas propostas alternativas.
Educao bancria
Paulo Freire denominava o modelo tradicional de prtica pedaggica de
educao bancria, pois entendia que ela visava mera transmisso passiva
de contedos do professor, assumido como aquele que supostamente tudo
sabe, para o aluno, que era assumido como aquele que nada sabe. Era como se
o professor fosse preenchendo com seu saber a cabea vazia de seus alunos;
depositava contedos, como algum deposita dinheiro num banco. O professor
seria um mero narrador, nessa concepo de educao. Nessa narrao a
realidade apareceria como algo imutvel, esttico, compartimentado e bem
comportado, como se fosse uma coisa morta. Se na alfabetizao dominava
o b, a, ba, no ensino fundamental e mdio deveria dominar a repetio,
a memorizao, algo que nas aulas de fsica se resumiria no x = xo + vot +1/2at2 ou a segunda lei de Newton diz que a fora igual massa vezes
acelerao, entre outras tantas frmulas e frases a serem memorizadas.
Tanto a concepo bancria da educao que Paulo Freire tambm
denominava como a educao como prtica de dominao, quanto sua
negao, representada pela concepo problematizadora e emancipadora de
educao, apareceram pela primeira vez no seu livro Pedagogia do oprimido,
escrito durante seu exlio no Chile nos anos 1967-1969 e publicado
inicialmente em Nova York, em setembro de 1970. Esse livro, devido
censura imposta pela ditadura militar, que em 1964 expulsara seu autor do
Brasil, s teve sua primeira impresso brasileira em portugus em 1975,
depois de terem sido publicadas edies em ingls, espanhol, italiano,
francs, alemo, holands e sueco! 5
5.Eu mesmo li pela primeira vez o livro mais famoso de Paulo Freire, em 1973, na verso inglesaPedagogy of the oppressed, publicada na coleo Penguin Education Titles.
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A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e
libertadora, terdois momentos distintos. O primeiro, em que
os oprimidos vo desvelando o mundo da opresso e vo
comprometendo-se na prxis com a sua transformao; o segundo,em que, transformada a realidade opressora, essa pedagogia deixa
de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em
processo de permanente libertao.6
Embora sua preocupao original estivesse relacionada com a problemtica
envolvida na educao de adultos (alfabetizao e cultura), sua anlisesempre transcendeu essa educao e propiciou temas que nos ajudam a
entender vrios conceitos cruciais: a educao, o professor, o aluno, a escola,
o contedo escolar com finalidades sociais, o respeito pela cultura popular,
entre outros.
A palavra geradora na alfabetizao de adultos
Em um livro7 publicado alguns anos antes do Pedagogia do oprimido, Paulo Freire
delineava no trato do problema da alfabetizao de adultos algumas concepes que
marcariam a reformulao curricular por meio da interdisciplinaridade, no perodo
de 1989 a 1992. Por conta disso, creio que til resgatar algumas dessas idias.
Sua prtica educacional estava baseada nas experincias por ele acumuladas nocampo da educao de adultos em reas proletrias e sub-proletrias, urbanas e
rurais do Brasil durante as dcadas de 50 e 60 do sculo passado.
Desde o incio fora afastada qualquer hiptese de uma alfabetizao
puramente mecnica. Como educar, como auxiliar o homem e a mulher
analfabetos a decodificarem, entenderem e usarem os diversos sinais
grficos que os cercam no cotidiano, no trabalho, no lazer e na vida poltica?
6.FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 2 edio, 1975, pg. 44.7.FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 4 edio, 1974.Paulo Freire concluiu a escrita desse livro no exlio em Santiago, capital do Chile, na primavera de 1965.
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Como proporcionar-lhes os meios necessrios para superar suas atitudes,
mgicas ou ingnuas, diante da realidade? Paulo Freire apresentava sua
resposta propondo: a) um mtodo ativo, dialgico, crtico e criticista; b) uma
modificao no contedo programtico da educao levando em conta arealidade vivenciada pelo educando; c) o uso de tcnicas como a da reduo
temtica e da codificao.
De uma forma bem abreviada estas so as vrias fases de elaborao do mtodo8:
1. Levantamento do universo vocabular dos grupos com que se trabalha; so
palavras ligadas s experincias existenciais, profissionais e polticas dosparticipantes dos diferentes grupos.
2. Escolha das palavras geradoras9, selecionadas do universo vocabular
pesquisado. Para essa seleo devem ser obedecidos os seguintes critrios:
a) riqueza fontica; b) as palavras selecionadas devem responder s
dificuldades fonticas da lngua; c) teor pragmtico da palavra implicando
numa maior pluralidade de envolvimento da mesma numa dada realidadesocial, cultural e poltica.
3. Criao de situaes existenciais tpicas do grupo com que se vai trabalhar.
4. Elaborao de fichas-roteiro, que auxiliem os coordenadores de debates no
seu trabalho.
A programao desses debates nos era oferecida pelos prprios grupos,
atravs de entrevistas que mantnhamos com eles e de que resultava a
enumerao de problemas que gostariam de debater. Nacionalismo,
Remessa de lucros para o estrangeiro, Evoluo poltica do Brasil,
Desenvolvimento, Analfabetismo. Voto do analfabeto, Democracia,
eram entre outros, temas que serepetiam, de grupo a grupo.
10
8.Ibid., pgs. 112-118.9.Palavras geradoras so aquelas que, decompostas em seus elementos silbicos, propiciam, pelacombinao desses elementos, a criao de novas palavras. Ibid, nota de rodap da pg. 112.10.Ibid., pg. 103.
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5. Feitura de fichas com a decomposio das famlias fonticas
correspondentes aos vocbulos geradores.
A execuo prtica era realizada com a projeo de situaes com a palavrageradora, por exemplo, entre pedreiros, a palavra tijolo. A seguir esgota-se
a anlise (descodificao) da situao dada. Projeta-se a palavra geradora
TIJOLO. Na seqncia trabalha-se a separao da palavra em slabas: TI JO
LO. E, finalmente, elabora-se a ficha da descoberta:
Solicita-se aos participantes do crculo de cultura que o grupo forme palavras
utilizando a ficha da descoberta. Assim surgem, por arranjo das slabas:
tatu, luta, tijolo, lajota, tito, loja, lote, teta, tela, jato, tijela (tigela)e at frases
como tu ja le(tu j ls). Surgem ainda palavras juntando slabas e vogais: tio,
leite, jeito, lua, etc.
Terminados esses exerccios orais o homem e a mulher passam a escrever.
E isso se verificou em todas as experincias que passaram a
ser feitas no Pas, e que se iam estender e aprofundar atravs do
Programa Nacional de Alfabetizao do Ministrio de Educao e
Cultura, que coordenvamos, extinto depois do Golpe Militar.11
Essas palavras de Paulo Freire valem como registro da violncia da ditadura
militar instalada no pas em 1964 e que interrompeu esse processo de
alfabetizao. Paulo Freire s retornaria ao Brasil em 1979, em funo daaprovao da Lei de Anistia Poltica, conquistada por intensa campanha popular.
TA TE TI TO TULA LE LI LO LU
JA JE JI JO JU
11.Ibid., pg. 119.
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Projeto Interdisciplinar, via Tema Gerador
A educao problematizadora de Paulo Freire rompe com a polarizao entre
professor e alunos, dominante na educao bancria, propondo em seu lugar opar educador-educandos. Nessa educao predomina o dilogo entre educador
e educandos envolvidos num processo que deve propiciar a construo de
um dilogo inteligente com o mundo, problematizando o contedo que os
mediatiza. O costume de aceitar como neutro o contedo educacional, mesmo
numa rea do conhecimento como a fsica, tem que ser abandonado.
Como escreveria Demtrio Delizoicov, que desempenhou um papelimportantssimo quando atuava como assessor na reformulao curricular do
Projeto Interdisciplinar, via Tema Gerador, o prprio termo contedo deveria
ser analisado criticamente.
Critrios mnimos, objetivamente colocados, precisam ser
explicitados para a seleo do conhecimento universal que tem umanatureza ampla, dinmica, no acabada sob pena de se reduzirem
apenas aos mesmos dos manuais didticos e programas escolares j
propostos, isto , roupa nova sobre a mesma velha carcaa.
No apenas a forma de abordagem do contedo, mas o prprio
contedo escolar que deve estar em questo na construo de uma
educao progressista.
12
A construo da educao libertadora tem que enfrentar o problema de
selecionar o contedo que constituir o conhecimento a ser processado
na escola de modo democrtico, competente, culturalmente significativo e
comprometido com a transformao social e que, ao mesmo tempo, tenha por
eixo os interesses e necessidades da maioria da populao.
A realizao dessa tarefa no Projeto Interdisciplinar, via Tema Gerador
12.DELIZOICOV, Demtrio. Conhecimento, tenses e transies. Tese de Doutorado, FEUSP, So Paulo,1991, pg. 131.
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guardava alguma semelhana com o que foi descrito acima sobre a escolha
das palavras geradoras do processo de alfabetizao. A seleo de elementos
culturais representados pelas diferentes reas do conhecimento passou por
um processo de vrias etapas para a construo curricular, com base nainterdisciplinaridade, e por vrios momentos pedaggicos para a construo
da organizao didtica a ser trabalhada com os alunos nas unidades de
ensino. Todo esse processo envolveu professores das diferentes reas do
conhecimento e a assessoria composta pelos docentes universitrios, alm
dos alunos, demais trabalhadores em educao e representantes de pais de
alunos.
Utilizando o material da proposta do grupo de cincias naturais do Projeto,
vou apresentar resumidamente como ocorreram essas etapas e momentos.
Primeira etapa: levantamento preliminar de informaes sobre as condies
da localidade em que se encontrava a escola. Segunda etapa: esse
levantamento possibilitava a anlise e escolha de situaes contraditrias,
que eram codificadas (desenhos, fotografias ou depoimentos orais) para
serem utilizadas na etapa seguinte. Terceira etapa: constitua-se um crculo
de investigao temtica envolvendo professores, alunos, assessores
e conselhos de escola - que iniciava um processo de descodificao das
situaes escolhidas para discusso; era um momento de problematizao
quando eram identificados os temas geradores; essa etapa desempenhava
o importante papel de formao continuada de professores em servio.
Quarta etapa: era realizado um estudo interdisciplinar e sistemtico de todo o
material coletado visando reduo temtica para a construo do programa.
Quinta etapa: produo e discusso do material didtico (textos especficos
temticos de cada rea, diretrizes, abordagens epistemolgicas, entre
outros), ao longo do ano letivo, com a equipe de professores e assessores
universitrios; dessa forma, o professor deixava de ser um mero reprodutor
de currculos tradicionais.
A organizao didtica nas salas de aula era realizada sistematicamente por
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meio de trs momentos pedaggicos:
1. Estudo da Realidade: discusso crtica de uma situao da realidade,
visando a sua compreenso, a partir da viso que o aluno tem sobre ela.2. Organizao do Conhecimento: estudo do conhecimento universal
das diferentes reas do conhecimento buscando contedos especficos e
cotejando as vises distintas; nesse momento fica explicitado o conflito
entre essas vises de mundo na construo do conhecimento cientfico; o
momento da ruptura com um obstculo epistemolgico.
3. Aplicao do Conhecimento: neste momento, o contedo apreendido
utilizado para reinterpretar a situao apresentada no primeiro momento;
esse conhecimento tambm extrapolado para outras situaes; nesse
momento busca-se a sntese dos momentos anteriores.
Eis uma lista de alguns temas geradores que surgiram em escolas no
Ncleo de Ao Educativa 6 (NAE 6): falta de lazer; violncia na convivncia;crrego/lixo; falta de segurana; utilizao do tempo livre; escola e televiso;
dificuldades no relacionamento humano; falta de organizao social;
desemprego; falta de saneamento bsico; enchente/lixo; ser humano:
uma ameaa ao planeta; baixo salrio; escola para qu?; relaes locais
conformistas e precariedade do trabalho.
A definio do tema gerador que iria ser utilizado por determinada escolano era uma tarefa fcil e rpida. Ao contrrio, exigia uma discusso e
aprofundamento de potenciais temas geradores que muitas vezes chegava a
ser dramtico. Muitas vezes era difcil para professores e alunos aceitarem
que sua escola e seu bairro fossem problemticos a tal ponto que gerassem
temas para serem debatidos no currculo escolar.
Deve-se destacar que a implementao da mudana curricular, ao final de
1992, trmino da gesto da Administrao Popular do Municpio de So
Paulo, ainda estava em processo de consolidao quando foi interrompida
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Gerador como referncia bsica. E isso ele fez ou est fazendo em vrias
cidades como Angra dos Reis (RJ), Belm do Par (PA), Caxias do Sul (RS),
Chapec (SC), Criscima (SC), Dourados (MS), Esteio (RS), Goinia (GO),
Gravata (RS), Macei (AL), Porto Alegre (RS) e Vitria da Conquista (BA).14
A prtica da educao emancipadora comandada por Paulo Freire em
So Paulo entre 1989-1992 e multiplicada nas vrias experincias acima
mencionadas permite concluir que ela uma proposta universalizvel no
Brasil. Basta vontade poltica e luta popular que a sustente.
Essa proposta de Paulo Freire tambm me parece adequada ao desafio
proposto pelo filsofo Istvn Msszros em livro recentemente publicado,
quando ele diz que preciso romper com a lgica do capital na rea da
educaosubstituindo as formas dominantes de educao que se restringem
a fornecer os conhecimentose um quadro de valoresque servem
mquina produtiva e quase nada mais.15
A educao no pode ser simplesmente reprodutora da ideologia dominante.
verdade que o educador e a educadora crticos no podem sozinhos
transformar o pas para alm do capital mas, como acreditava Paulo Freire,
eles podem demonstrar que possvel mudar. E isto refora nele ou nela a
importncia de sua tarefa poltico-pedaggica.16
14.SILVA, Antonio Fernando Gouva da. A construo do currculo na perspectiva popular crtica: dasfalas significativas s prticas contextualizadas. Tese de Doutorado, PUC/SP, So Paulo, 2004.15.MSSZROS, Istvn. A educao para alm do capital. So Paulo: Boitempo Editorial, 2005, pg. 47.16.FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessrios prtica pedaggica. So Paulo:Editora Paz e Terra, 1997, pgs. 126-127.
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Compromisso e
competncia na gestoeducacional: uma lio
de Paulo Freire.Lisete R. G. Arelaro*
um pouco complexo discutir, hoje, lies de vida e opes de Paulo Freireem relao a diversos aspectos da poltica educacional quando esteve frente
da Secretaria Municipal de Educao de So Paulo, na Gesto Luiza Erundina
(1989-1992), em funo das muitas obras e artigos que j contriburam para
se conhecer um pouco mais deste extraordinrio Educador, que foi Paulo
Freire. H, no entanto, um aspecto que, acredito, possa ser melhor revelado,
pois ainda pouco discutido: o de gestor educacional.
* Professora da Faculdade de Educao da USP; pesquisadora na rea de PolticaEducacional. Participou da Equipe do Prof. Paulo Freire na Gesto Luiza Erundina, naCidade de So Paulo (1989/92). Endereo eletrnico: [email protected].
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Em geral, os estudos e pesquisas disponveis expem as teorias de Paulo
Freire, em particular sua Teoria do Conhecimento, centradas na ao
pedaggica que o processo educacional intra e inter escolares apresentam.
E nele, uma nova proposta de atuao pedaggica que ganhou o apelido deeducao popular, pois nela se discutia, fundamentalmente, o processo
poltico de incluso social a que todos tm direito e o direito educao
a que os oprimidos no caso, os pobres - na nossa sociedade desigual,
nunca tiveram.
O direito de todos educao, histrica e politicamente, no Brasil, significoupossibilitar o acesso escola, no mximo, a crianas de 6 ou 7 anos de
idade at 14 ou 15. No mais. Os jovens maiores de 15 anos e os adultos
analfabetos ou com baixa escolaridade, nunca fizeram parte das prioridades
educacionais do pas. Exceo feita h muitos anos atrs e uma s vez
no Governo Jango Goulart (nos idos dos anos 60...) quando Paulo de
Tarso Santos, juntamente com Darcy Ribeiro, o primeiro, como Ministro da
Educao, e o segundo, o idealizador e fundador da Universidade de Braslia,
convidaram um professor pernambucano simptico, para coordenar um
Plano de Alfabetizao ousado como se exigia naqueles tempos que
atendesse, em curto prazo, e de ponta a ponta do pas, os milhes de jovens e
adultos analfabetos.
No por acaso, durante muito tempo falou-se mais num tal mtodo dealfabetizao paulofreireano que produzia milagres, j que em somente 30
horas diziam - um analfabeto poderia se transformar em um leitor do
mundo, agora, alfabetizado.
Foram necessrios bons anos, para que o prprio Paulo Freire desmentisse,
de forma convincente e definitiva essa criao que a mdia havia
produzido, ajudado por um amigo jornalista, que mais do que lanar a notciaespetaculosa como ele gostava de se referir do mtodo mgico
esperava conquistar a ateno de muitos, em especial dos dirigentes e
polticos nacionais, para um problema que, at ento, parecia insolvel, dadas
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as condies de desigualdade social do Brasil. Estvamos nos anos 60. E
o jovem Paulo Freire, quanto mais testava, na prtica, essa nova concepo
de educao e de processo ensino-aprendizagem, mais se convencia de
que ouvir o outro, com os ouvidos de dentro, implicava em reconhecere se formar no processo cidado do dilogo, do respeito aos pensamentos
diferentes, aos diferentes jeitos de ser, estar, sentir e criar.
Da a convico, que sempre lhe custou crticas cidas de adversrios
numerosos, de que esse ouvir, que ele caracterizava como uma opo
poltica pelo direito igualdade e fraternidade, na diferena, traduzia anecessidade de que as relaes entre aluno e professor e portanto, de quem
aprende, com quem ensina fossem estabelecidas a partir de um pacto
democrtico, em que um, nunca sabe tudo e o outro, nunca to ignorante,
que no possa contribuir com suas reflexes e prticas de vida.
Nascia, assim, a concepo dialgica, no como um mtodo de ensino
ou estratgia pedaggica, mas como uma teoria do conhecimento e daaprendizagem, e condio fundante das relaes educacionais, dentro e
fora da escola. Na vida, com os amigos, com o namorado, com o patro, na
escola... e nesta, envolvendo todas as funes do trabalho escolar
e pedaggico.
Nessa concepo, no h mais o chefe que manda, porque tudo sabe, e
este saber lhe d poder, mas o colega de equipe, que coopera, que apia,
que coordena. E cada um da equipe, tem, a partir de metas construdas em
funo de um objetivo comum, um conjunto possvel e variado de tarefas e
funes a desempenhar.
por isso que na sua teoria, o professor no o que tudo sabe, e o aluno,
um corpo vazio onde se colocam conhecimentos. Por ela, professor ealuno tm uma relao necessria teoricamente de camaradagem, de
companheirismo e de respeito, nos seus diferentes papis, que interfere
e modifica o prprio processo de aprendizagem. Assim, passa a ser
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compreensvel que o professor no seja simplesmente quem tudo sabe, e o
aluno o que, passivamente, aprende, mas, ao contrrio, uma aprendizagem
em processoque envolve todos os personagens.
Em So Paulo, a megalpole brasileira e a cidade mais rica do pas,
tradicionalmente conservadora e elitista, na sua primeira Gesto pblica,
esquerda, quando, construir uma sociedade socialista era objetivo, ainda,
do Partido dos Trabalhadores (PT), essa sua concepo de gesto e de
administrao da coisa e dos servios pblicos, certamente incomodou
muitos, porque, ao mesmo tempo, em que ele era sempre solidrio, eratambm, de forma bem humorada, exigente, ousado, competente e atento.
E a sua ao e postura, no cotidiano de Dirigente Educacional e de Governo,
foram coerentes com sua concepo de educao, de cidadania, de processo
de ensino-aprendizagem. Paulo Freire nunca foi arrogante, mesmo sendo o
mais titulado dos intelectuais brasileiros. Nunca reivindicou para si, direitos
especiais como Secretrio Municipal ou como professor reconhecido eamado em todo o mundo. O seu lema o mundo no ; o mundo est sendo,
valia para ele, tambm, onde cada minuto constitua uma oportunidade nica
de transformar o mundo, e nele, as pessoas. E a possibilidade de, mesmo
crendo, hoje, totalmente em alguns valores, poder reavali-los, amanh, a
partir de novas condies histrico-culturais. Era, portanto, um professor,
frente de seu tempo.O seu mtodo de trabalho ao, reflexo, ao inspirava o seu cotidiano
de Dirigente: as reunies de equipe eram necessrias, sistemticas e
permanentes, para que, de forma coletiva, se avaliasse, a todo momento, a
coerncia das propostas educacionais, frente aos objetivos definidos e s
sugestes de ao, que a rede municipal apontava.
Criou colegiadosde deciso, espaos pblicos que, administrativa e
politicamente, definiam as polticas de ao frente s polticas educacionais
estabelecidas nos Fruns do Partido, que caracterizaram e definiram, naquela
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dcada, o modo petista de governar. Naquele momento histrico, a gesto
democrtica, que envolvesse pessoas, grupos, associaes e sindicatos, a
construir, de forma coletiva, princpio e diretrizes de governo, era o princpio
que dirigia e motivava as gestes petistas. E onde a participao popularganharia reforo, organizao e espao de deciso, no esforo de construo
de uma sociedade cada vez mais radicalmente democrtica.
Na sua origem, e tendo Paulo Freire como referncia efetiva, a razo maior
que motivava o PT para a disputa institucional, era a certeza da importncia
histrica da mobilizao popular, que atravs de Conselhos Populares, decarter deliberativo, motivassem os diferentes grupos sociais e movimentos
populares a se fazer presentes, com sugestes e propostas de polticas
que melhor orientassem a ao pblica dos dirigentes, democraticamente
escolhidos pelo voto universal.
Seriam estes Conselhos Populares idia logo abandonada no incio da
gesto popular e democrtica - uma criao poltica e de adoo gerencial,que se constituiria marca de Governo, pois mostraria aos incrdulos, a
fora do povo, quando estimulados e organizados, sistematicamente. Afinal,
o lema o povo unido, jamais ser vencido havia motivado e mobilizado
as campanhas do Partido e, mesmo, os movimentos populares, na maioria
de suas reivindicaes e de aes de resistncia ao governo militar, recm
substitudo pelos civis.Paulo Freire com um jeito muito prprio sorria, sabiamente, ao ouvir
essas propostas. Sabia que este era um equvoco poltico, ainda que
estimulante, uma vez que o processo de participao popular em decises
fundamentais de governo muito mais complexo do que o simples desejo
de governantes, por mais avanadas que representem estas propostas para
os oprimidos.
Sabia, ainda que isso no abatesse sua militncia e esperana nos
movimentos sociais, que o sistema capitalista brasileiro com os apelidos
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que se adotasse: perifrico ou emergente era muito mais forte e tinha razes
mais profundas, que uma gesto municipal pudesse combater ou contestar.
Sentia, pelas suas caminhadas pelo mundo, a proximidade de discursos
mais combativos do capitalismo internacional.Na sua prtica, contestava, sem perder tempo com longas citaes,
os equvocos tericos de intelectuais, que pregavam e, ainda hoje,
condicionam e inspiram a ao de muitos! concepes correntes de que
poder e chefia so sempre sinnimos de controle, como pr-condio
da eficcia e eficincia das aes. Esse modo de entender a vida e o trabalho,
dizia ele, implica em uma relao de subordinao e de separao necessriaentre os que pensam e os que fazem. E, em conseqncia, a necessidade
mudana visvel, em muitos colegas nossos - de assumir um ar superior,
que uma posio hierrquica de chefia, aparentemente, d, e cria a (falsa)
impresso, de que alguns so mais iguais que outros e que os chefes so
sempre! cidados acima de qualquer suspeita.
Esta era, para o Professor Paulo, a funo ideolgica que o aparato
burocrtico criava, quando um grupo poltico eleito pelo povo e para
governar para e com o povo em nome dele, se encastelava, se isolava,
estabelecendo novos direitos e privilgios, que negavam, na prtica, a gesto
democrtica e o direito de todos.
Ou, como se encontra freqentemente na atual literatura sobre gerncia eadministrao, a crena quase religiosa de que a inovao e a criatividade
s alcanam seu mais alto potencial, se estimuladas por uma feroz e por
isso salutar competitividade entre os componentes da equipe de trabalho. E
onde se declara, como critrio cientfico porque neutro - de avaliao da
produtividade e de qualidade da atuao, em qualquer campo do saber e da
atuao pblica, a produo de resultados quantificveis, que justifiquem(ou no) os processos adotados.
Na educao, estas concepes j esto tambm presentes, pois hoje,
pouco importante saber se uma criana ou jovem gosta da escola e que
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significado ela tem para eles, mas sim, avaliar se sua competncia no
cumprimento dos seus objetivos, podem ser verificados atravs de processos
que meam as habilidades adquiridas, habilidades estas definidas a partir
dos interesses e das indicaes do mercado. Ou seja, vivemos um momentoem que a nfase dada aos produtos, e no mais aos processos.
Esta uma mudana estratgica para o processo de ensino, e ainda que
parea sutil, altera, profundamente, a atual organizao escolar e dos
sistemas escolares. Traduz a entrada, atravs de processos economicistas
e de competio, da lgica do mercado na escola e na educao, em que o
lucro, produzido pelo menor custo e o aumento cada vez mais constantedele define (em dlares!) a competncia da empresa. As polticas sociais
seriam a primeira vtima dessa concepo.
Nesta lgica, os que nada ou pouco - rendem, ainda que por culpa do
sistema poltico e econmico, devem ser eliminados, e, caso no se consiga
elimin-los totalmente, por conta dos antigos e retrgrados direitos sociais,
temos que fazer com que seus encontros (passagens?) nas escolas, sejam
os mais breves possveis. No por acaso, da UNESCO ao Banco Mundial,
as indicaes de flexibilizao das propostas educacionais embutem a
necessidade da formao, a mais rpida possvel dos sem consumo os
pobres, como tradicionalmente eram chamados.
Argumentam, de forma palatvel e moderna, que o desafio atual aprender a aprender, no paulofreireanamente falando, mas, j que o
processo de educao permanente, cada um que cuide, pessoalmente,
e sob sua responsabilidade, de sua prpria educao, e arque com o
nus econmico de estar preparado sempre! para as exigncias do
mercado. Aos muitos, o pouco que o Estado deve oferecer, aos poucos
economicamente falando pelos seus mritos, e em seu nome, muitoser oferecido.
O prprio conceito de qualidade da educao, traduzida em produtos
mensurveis, desejo de muitos com viso economicista, constituiu um
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desafio, na gesto municipal de So Paulo, a que Paulo Freire se contraps,
de maneira competente e coerente. Ele riria hoje, se vivo estivesse, com a
febre de exames unificados, sob a forma de testes de mltipla escolha,
como critrio quase exclusivo de se avaliar a qualidade dos sistemas deensino, da atuao dos professores e da aprendizagem dos alunos.
Ele simplesmente props, na sua Gesto, uma inverso correta de caminhos.
Primeiro movimento: perguntou aos alunos, funcionrios, professores e pais,
o que achavam da escola, em que eles ou seus filhos estavam matriculados
ou que atuavam, profissionalmente e essa ao constituiu a realizao doprimeiro diagnstico da escola e de suas circunstncias. Segundo passo:
perguntou, a todos, como eles gostariam que fosse sua escola escola
ideal para cada um dos segmentos que nela atuavam ou conviviam para
que a partir desses desejos e concepes ideais, se estabelecessem os
objetivos educacionais a serem atingidos, sob responsabilidade conjunta,
pelas escolas. E, em terceiro lugar: o que e em que eles gostariam que suasescolas fossem diferentes ou seja, realizava-se ali, uma primeira avaliao e
proposio de alternativas de soluo para cada uma e para todas as escolas,
respeitando-se a histria e as especificidades de cada uma.
Em funo desse processo e coerente com a disputa do dilogo como
mtodo de trabalho e de vida Paulo Freire convidou/convocou os melhores
professores das melhores universidades, para que, juntos, ajudassem asescolas a construir, prtica e cotidianamente, seu caminho pedaggico e
poltico que orientasse suas escolhas educacionais. Realizou, assim, um
precioso e indito processo de formao de professores da rede municipal de
ensino, que no significou contratos e imposio de pacotes, mas ofereceu
subsdios vitais para que a escola de qualidade, e com a qualidade dos
alunos reais, fosse sendo construda.
Os resultados no tardaram a aparecer, pois no foram poucos os alunos
oriundos de segmentos de classe mdia que, reiniciaram sua volta s
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escolas pblicas municipais, no pela falta de recursos econmicos, mas
pela excelncia das mesmas, traduzidas e avaliadas, num primeiro olhar,
pela alegria e esperana dos professores, de que estavam sendo ouvidos
e, em conseqncia, respeitados. Assim sendo, uma coleo de projetoscomearam a florescer nas escolas, projetos estes, escritos pelos prprios
professores e especialistas de ensino, desejosos de construir uma nova
escola pblica, em que a qualidade, agora, definida pela maioria presente
na escola - e apelidada de qualidade social - constitusse sua audcia
pedaggica.
Feito isso procedimento que burocrata algum colocaria defeito, pois
os passos do planejamento haviam sido obedecidos como propor ou
defender um sistema unificado ou centralizado de avaliao da aprendizagem
e de avaliao educacional? Como propor um currculo nico, para todas
as escolas? Como sustentar, pedagogicamente, a concepo dialgica do
conhecimento e da aprendizagem, com uma concepo diretiva ainda que
em nome da competncia?
Tinha clareza de que se fossem criadas brechas para a diviso do
conhecimento, em contedos cientficos, profissionais e tcnicos ou
crticos, essa diviso do trabalho entre os educadores, cada um assumindo
a propriedade de sua tarefa, levaria, necessariamente, a um descompromisso
pela totalidade do ato educativo.Assumia, com ousadia, a con