Para todos os afetados por demência, - topseller.pt · Viajámos desde Filadélfia até Short...

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Para todos os afetados por demência, em especial para Pat Hanrahan, que nunca será esquecida

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Anna

Há 15 meses…

Ninguém confia em nada do que eu digo. Se chamo a aten‑ção para uma torrada que se está a queimar ou que vai começar o noticiário das 18 horas, as pessoas ficam admi‑

radas. Quem diria? Está de facto a começar o noticiário das 18 horas. Bravo, Anna! Talvez não me importasse se tivesse 88 anos em vez de 38. Pensando bem, talvez me importasse. Como nova residente de Rosalind House, uma casa de repouso para cidadãos seniores, estou a ter um novo apreço pelas provações dos idosos.

— Anna, este é o Bert — diz alguém quando um homem desce a rampa no seu andarilho.

Fui apresentada a meia dúzia de pessoas que têm mais ou me‑nos o mesmo aspeto do Bert: velhas, pálidas, curvadas. Estamos sentados em cadeiras de jardim em vime, a apanhar sol, e sei que o Jack me trouxe cá para fora para nos sentirmos melhor os dois. Sim, estás a instalar-te num lar para velhos, mas repara que tem jardim!

Aceno ao Bert, mas o meu olhar está fixado no outro lado do rel‑vado, onde um homem de roupão às riscas azuis e vermelhas está a retirar moedas das orelhas do meu sobrinho de 5 anos, o Ethan. Fico mais bem‑disposta. O Ethan está sempre a dizer a brincar que é o meu sobrinho preferido e, mesmo que eu negue em público,

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é verdade. É o mais novo dos rapazes do Jack e, decididamente, o melhor.

Uma vez, quando tinha 4 anos, levei‑o a dar uma volta na mi‑nha mota. Nem sequer me dei ao trabalho de pedir ao Brayden ou ao Hank: sabia que eles iam dizer que era perigoso e que depois iam fazer queixa à mãe. Tanto quanto sei, o Ethan nunca dá com a língua nos dentes. O Brayden e o Hank sabem o que se passa comi‑go — percebo pela maneira como estão sempre a olhar de relance para a mãe quando falam comigo. Mas o Ethan ou não sabe ou não se importa. E não me interessa qual das duas é a opção verdadeira.

— E esta é a Clara.A Clara vem direita a nós com uma notável rapidez (em com‑

paração com os outros). Provavelmente já tem mais de 80 anos — mas é corpulenta, de aspeto mais robusto do que os outros. Com uma nuvem de cabelo fofinho cinzento‑amarelado, recorda‑me um pinto com poucos dias.

— Queria tanto conhecê‑la — diz ela, e depois dá‑me um beijo abigodado. Uma explosão de perfume enche o meu espaço aéreo. Normalmente não gosto que me beijem, mas, vindo dela, o gesto parece estranhamente natural. E atualmente faço questão de respei‑tar as pessoas que estão com naturalidade à minha volta. — Se pre‑cisar seja do que for, diga‑me, querida — diz ela, para depois seguir na direção de um enorme carvalho. Quando lá chega, beija o ho‑mem de roupão às riscas azuis e vermelhas na boca, de uma forma vagamente territorial, como se estivesse a fazer uma reivindicação.

Ao meu lado, o Jack está a falar com o Eric, o gestor da casa de repouso — um homem barrigudo e de cara vermelha, com um denso bigode à Tom Selleck e um riso sufocado que, por direito, deveria pertencer a uma mulher nos seus 80 anos. Sempre que o ouço (e ouço‑o muito, pois ele ri‑se no fim de cada frase que pro‑nuncia), volto‑me de repente à procura de um grupo de senhoras a soltar risadinhas enquanto fazem malha. Ele e o Jack conversam e eu ouço sem, na verdade, escutar.

— Fazemos muitas atividades… Vamos mantê‑la ativa… Cuida‑dos e segurança 24 horas… Experiência com demência... O melhor lugar possível para ela…

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Blá‑blá‑blá. O Eric exibe um certo modo «desesperado‑por‑agra‑dar» por causa do qual, há alguns anos, o Jack e eu teríamos tro‑cado um olhar, mas hoje ele está a engolir tudo. Está alegremente alheio ao riso falso do Eric, às suas calças demasiado justas, ao seu olhar que, a curtos intervalos, vagueia para a direita (e vagamente para perto do meu peito). Até ali, a única caraterística redentora do Eric aconteceu mal chegámos — pediu‑me um conselho acerca de uma lesão antiga num joelho que andava a dar‑lhe alguns proble‑mas (provavelmente porque tinha a esperança de que eu me ofere‑cesse para lhe fazer uma massagem). Expliquei‑lhe que precisava de um médico, não de um paramédico, mas apreciei o facto de ter perguntado. Agora, as conversas mais interessantes que tenho gi‑ram em torno da minha cor preferida ou do tipo de comida de que mais gosto. Fico satisfeita quando as pessoas se lembram de que sou uma pessoa e não simplesmente uma pessoa com Alzheimer.

O Jack parece‑se ter esquecido isso. Desde que fui viver com ele e com a Helen, deixou de ser meu irmão e passou a ser meu pai, o que me tira do sério. Pensa que não ouço quando ele e a Helen sussurram a meu respeito na cozinha. Que não noto quando tro‑cam um olhar sempre que me ofereço para levar os rapazes à esco‑la. Que não vejo a Helen a seguir no meu encalço de carro, para ter a certeza de que não me desoriento pelo caminho.

O Jack já passou por isto antes — ou melhor, ambos passámos —, e sei que se considera um especialista. Ando sempre a lembrá‑ ‑lo de que é advogado e não neurologista. Seja como for, as situa‑ções são diferentes. A mãe entrou em negação acerca da doença. Lutou por se agarrar à sua independência, a ponto de ter deitado fogo à casa da família. Eu não faço planos para lutar contra o inevi‑tável. Foi por isso que dei entrada num lar.

O lado bom deste lar, se eu optar por ser positiva, é que nem toda a gente é «maluquinha». O Jack e eu visitámos algumas da‑quelas unidades específicas de pessoas com demência e pareciam a Cidade dos Zombies, cheias de lunáticos com um olhar vago. Este local, pelo menos, também é para a comunidade envelhecida comum — as pessoas que precisam de ter alguém que lhes cozi‑nhe as refeições e lhes trate da roupa — uma espécie de hotel para

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idosos (os idosos ricos, a avaliar pelos zeros no cheque que o Jack passou esta manhã).

Mesmo assim, não me sinto propriamente radiante por estar aqui. Já foi suficientemente mau quando o Jack me mandou para um centro de Cuidados de Dia. A sério, é assim que se chama. Um programa diário para pessoas como eu. E também para pes‑soas que não são como eu porque, como só 5 por cento dos casos de Alzheimer ocorrem em pessoas com menos de 65 anos de ida‑de, não há muitas pessoas como eu. É isso que torna a situação ainda mais invulgar. Não pensem que me estou a registar num lar qualquer…. Viajámos desde Filadélfia até Short Hills, Nova Jérsia, para eu poder viver num lar com alguém como eu. Um indivíduo, também com manifestação precoce de demência, alguém de que o Jack ouviu falar através da Rede de Apoio à Demência. Desde que soube da existência desse tipo, o Jack ficou determinado em pôr‑me na mesma instituição de cuidados permanentes em que ele vivia. No seu entender, se puser dois jovens num sítio cheio de velhotes, isso vai transformá‑lo numas férias de primavera em vez de um lar.

— Quer conhecer o Luke, Anna? — pergunta o Eric, e o Jack acena entusiasticamente.

O Luke deve ser o tipo. Pergunto a mim mesma se ele vai des‑cer em rappel de uma árvore ou qualquer coisa do género. A sua entrada terá de ser muito impressionante, se eles pensam que vai alterar a minha disposição.

— Só quero ir para o meu quarto — respondo.O Jack e o Eric olham de lado um para o outro e sinto que per‑

dem a coragem.— Claro — diz o Jack. — Queres que te leve lá?— Não. Vou sozinha.Ponho‑me de pé. Não quero olhar para o Jack, mas ele também

se põe de pé e mesmo à minha frente, para eu não poder olhar para mais lado nenhum. Os seus olhos estão muito abertos e húmidos e tenho um vislumbre do homem de bom coração que ele costuma‑va ser antes do seu encontro com a demência e o abandono o ter endurecido.

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— Anna — diz ele —, eu sei que estás assustada.— Assustada? — Bufo, mas depois a minha visão começa a

enevoar‑se. Estou mesmo assustada. Um dos problemas dos gé‑meos é habituarmo‑nos a ter alguém ao nosso lado sempre que queremos companhia. Mas dentro de pouco tempo o Jack vai‑se embora. E vou ficar sozinha.

— Desaparece, está bem? — acabo por dizer ao Jack. — Tenho uma pedicure marcada para daqui a meia hora. Este sítio tem um spa, não tem?

O Jack ri‑se levemente e limpa uma lágrima da face. Quando éramos mais novos, ele exibia sempre um bronzeado dourado, mas agora tem a pele vagamente cinzenta, quase tão branca como a mi‑nha. Desconfio que isso tem alguma coisa que ver comigo.

— Ethan! Vem dizer adeus à Anna.O Ethan investe pelo relvado, direito a nós, e atira‑se para os

meus braços. Estrangula‑me num abraço.— Adeus, Anna Banana.Quando se afasta, lanço um longo e duro olhar ao grande cura‑

tivo branco que lhe cobre a face esquerda e tento lembrar‑me das violentas queimaduras vermelhas e dos vergões que oculta. Preciso de me recordar deles. Eles são a razão de eu estar aqui.

Na primeira vez em que soube que alguma coisa de errado se passava comigo, estava no centro comercial. Arrastava os sacos para a saída quando me apercebi de que não fazia a mínima ideia de onde tinha estacionado o carro. O parque de estacionamento tinha sete andares. No elevador, fiquei a olhar fixamente para os botões. Nenhum deles parecia mais provável do que os outros.

Acabei por conseguir chegar à cabine do segurança. O homem sentado à secretária riu‑se e disse que isso estava sempre a acon‑tecer. Pegou no walkie‑talkie e pediu‑me a matrícula. Quando lhe lancei um olhar vazio, sorriu.

— Marca e modelo?Era uma pergunta tão fácil! Mas quanto mais tentava encontrar

a resposta, mais tudo se apagava. Como uma fotografia com um ponto de interrogação sobre o rosto, um criminoso com o casaco a

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tapar a cabeça — estava lá qualquer coisa, mas o meu cérebro não me deixava ver.

O sorriso do homem desapareceu.— A cor?Só consegui encolher os ombros. Esperei que ele dissesse que

isto estava sempre a acontecer. Não disse.Apanhei o autocarro para casa.Se eu tivesse feito o teste do gene mutante, como o Jack, teria

sabido de certeza que isto havia de chegar. Mas descobrir que ia ser derrubada no apogeu da minha vida não se enquadrava nos meus planos.

Depois disso, as coisas começaram a acontecer a toda a hora. Geralmente conseguia justificar os incidentes. Claro, esqueci‑me de muitos compromissos, mas era uma paramédica muito ocu‑pada. Perder‑me quando ia do trabalho para casa era um pouco enervante, mas as direções nunca tinham sido o meu forte. Infe‑lizmente, havia coisas que eram mais difíceis de explicar. Como quando parti a janela do carro com um bastão de esqui por não conseguir encontrar as chaves para abrir a porta (e depois desco‑bri que o carro pertencia à família do outro lado da rua). E quando apareci no trabalho no meu dia de folga… pela quarta vez seguida.

Foi quando esqueci a palavra «gémeo» ao apresentar o Jack ao meu colega de trabalho Tyrone que me comecei realmente a preocupar. Foi um ano depois do incidente no parque de estacio‑namento. Lembro‑me de olhar fixamente para o Jack, perguntando a mim mesma se havia de facto uma palavra para o que éramos. Procurei nos cantos escuros e poeirentos do meu cérebro, mas foi inútil. Acabei por lhe chamar uma pessoa que a minha mãe tinha trazido no útero ao mesmo tempo que a mim. Sei que me lembrei de «útero», mas não de «gémeo». O Tyrone riu‑se; sempre tinha pensado que eu era pírulas. Mas o Jack não se riu. E percebi que a brincadeira tinha acabado.

Deixei o emprego nesse mesmo dia. Se não me conseguia lembrar da palavra «gémeo», que aconteceria quando não me lem‑brasse de como se ressuscitava alguém ou decidisse movimentar um doente com uma possível lesão no pescoço? Tinha a sensação

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de que já não estava a cem por cento. E, quando sei que alguma coisa vai acontecer, acho que não vale a pena arrastar.

A mesma teoria aplica‑se à vida. A vida avança lentamente numa direção. Eu posso ficar na faixa mais lenta, deixar‑me sim‑plesmente ir, ficando coberta de musgo e teias de aranha até que, quando parar, estou tão coberta de porcaria que estou irreconhecí‑vel. Foi o que a minha mãe fez. É o que faz a maioria das pessoas. Mas nunca foi o meu estilo.

Em Rosalind House dão‑nos muitos medicamentos. Suficientes para cada pessoa ter o seu próprio cesto. Todos os dias, de manhã e à tarde, a enfermeira empurra o seu carrinho pelos corredores com os cestos, uma autêntica vendedora ambulante de produtos farma‑cêuticos. O meu cesto contém Aricept, um comprimido redondo cor de pêssego responsável por atrasar a falha de um composto que transmite as mensagens entre as células nervosas. Também tem vitamina E, transparente e amarela, comprida e fina. Por fim, há Celexa, um antidepressivo potente responsável por fazer com que tudo isto não pareça importante. Este é aquele que eu sei de certeza que não está a resultar.

Só na segunda semana passada em Rosalind House é que me vesti. E ao vestir‑me, pergunto a mim mesma por que razão me dou a este trabalho. Tudo o que faço aqui é estar deitada na cama, escrevinhar no meu diário e olhar pela janela. Quaisquer visitan‑tes que poderia ter recebido (além do Jack) foram informados, a meu pedido, que estou num lar no outro lado do país. (Seja como for, provavelmente já não me lembro deles e preciso tanto de uma «visita piedosa» como de um buraco na cabeça.) O Eric, o diretor, está sempre a aparecer, tentando persuadir‑me a ir ao bingo. (Pois. Como se isso fosse acontecer.) Apareceram várias enfermeiras e funcionários. Mas só saí do quarto uma vez e, quando saí, deram tantas voltas comigo que não consegui encontrar o caminho de re‑gresso. Em termos de movimentação, esta não foi muito má. Pelo menos sabia que estava em Rosalind House. Sabia que tinha um quarto. Mas a única coisa que a minha curta viagem para fora do quarto me ensinou é que estou no sítio certo. Cuidados residenciais.

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Hoje, diante da minha janela, um jardineiro bem‑parecido apa‑ra um buxo. Lá fora está calor e ele despiu‑se e ficou só com uma fina t‑shirt branca que me permite apreciar o seu corpo trabalhado. Há alguns anos, ter‑me‑ia debruçado na janela e pedido um rami‑nho de qualquer coisa ou teria até perguntado se ele precisava de ajuda. (Quando eu era miúda, o Jack e eu costumávamos passar muito tempo no jardim com a mãe, a plantar, arrancar ervas dani‑nhas e estrumar.) Mas agora nem sequer me dou ao trabalho de re‑tribuir o sorriso do jardineiro. Estou demasiado ocupada a pensar no Ethan. No incidente.

Aconteceu à noite. À noite fico agitada, um dos muitos glorio‑sos efeitos colaterais da «doença». Estava na sala de estar, tentando perceber como usar a Xbox, quando ouvi os seus pequenos passos atrás de mim.

— Vamos fazer «fongue».«Fongue» é um derivado liberal de fondue e era a nossa pala‑

vra para derreter barras de chocolate ao lume e depois mergulhar biscoitos, marshmallows, ou qualquer outra coisa que tivéssemos à mão, naquela pasta viscosa derretida. Concordei por várias razões. Primeiro, adoro «fongue». Segundo, não sou mãe dele — não me compete preocupar‑me com os seus dentes ou a falta de sono. Ter‑ceiro, a minha vida está a descambar para um ponto em que vou deixar de me conhecer e, enquanto ainda me conheço, garanto que quero fazer «fongue» com o meu sobrinho.

Tínhamos acabado o «fongue» e estávamos a jogar Xbox quan‑do nos cheirou a queimado. Olhámos um para o outro.

— Mer‑due! — disse eu. — O fongue.Corri para a cozinha, a praguejar. Deitar fogo à casa não servi‑

ria de nada para garantir ao Jack que era uma adulta competente. Abri a porta de rompante, pronta para deitar a mão ao extintor de incêndio, mas, em vez de o encontrar, encontrei a casa de banho. Virei‑me, abri outra porta. Um armário cheio de toalhas. Rodopiei outra vez. Oh, meu Deus, onde era a cozinha?

Não era a primeira vez que aquilo acontecia. Sabia que só tinha de manter a calma e esperar alguns instantes para me recordar de tudo. Mas o cheiro a queimado estava a ficar mais forte e não via o

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Ethan em lado nenhum. E nem sequer conseguia descobrir a ma‑neira de sair da porcaria da casa de banho!

Foi então que ouvi o Ethan a gritar.Segundo o Jack, depois de eu correr para o lado contrário, o Ethan

entrou de rompante na cozinha e tentou tirar a caçarola do fogão. A pega estava em brasa. Ele tirou a mão tão de repente, que virou a caçarola, salpicando a face com chocolate a ferver. O pior, além da queimadura do Ethan, foi que tudo aquilo confirmou que eles tinham razão a meu respeito. Não sou de confiança para tomar conta do meu sobrinho. Não me podem deixar sozinha, nem por um segundo.

— Truz‑truz.Virei a cabeça para a porta, que está eternamente aberta, graças

à ajudante magrinha, que tem uma obsessão nada natural por ar fresco. Sempre que tento fechá‑la, ela aparece como uma mágica fada do ar — ar fresco, ar fresco, AR FRESCO! — Desta vez, quando olho, vejo o Eric, com um cão enorme, que mais parece um leão, ao seu lado. Sinto que as minhas entranhas se contraem para formar um escudo interno.

— Olá — diz ele. — Como está?— Ótima.Dirijo‑me ao cão, pois parece que não consigo olhar para mais

lado nenhum.— Está tudo a correr bem?— Sim.É um pastor‑alemão. Tem os dentes amarelos e brilhantes de

saliva; a boca curva‑se naquele sorriso‑rosnido que os cães exibem sempre que nos querem manter em guarda. Estou feliz? Estou zan-gado? Aproxima-te um pouco e descobre.

— Oh — diz o Eric. — Tem medo de cães?Tento apresentar uma expressão corajosa, mas é óbvio que fa‑

lho, porque o Eric manda o cão embora. Ao entrar no quarto, faz uma pausa diante de uma aguarela de uma folha que o Jack deve ter pendurado na minha parede. Pertencia à minha mãe.

— É encantadora — diz ele.— Fique com ela — digo‑lhe.Ele faz‑me uma careta.

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— Sabe que não precisa de estar aí sentada no quarto durante todo o dia. Há um autocarro que vai à cidade duas vezes por dia. Algumas pessoas gostam de ir ao centro comercial ou ver um filme.

Eu endireito‑me na cama.— Posso fazer isso?— Claro. Hoje a Trish, que faz parte do nosso pessoal, acompa‑

nha o grupo do autocarro.Volto a enterrar‑me na cama.— Ou há jogos de tabuleiro na sala de estar — diz ele. — Ten‑

tamos encorajar os residentes a reunirem‑se lá quando estão em casa. Acreditamos que as pessoas se sentem isoladas quando pas‑sam o tempo todo fechadas nos quartos.

— Sinto‑me bem quando estou isolada.O Eric empoleira‑se na beira da minha cama, franzindo a tes‑

ta. Cai‑me o coração aos pés. Deve estar na altura da conversa de encorajamento. Na realidade, tenho pena dele. Não quer ter aquela conversa, assim como eu não a quero ouvir. Lá no fundo, provavel‑mente sabe que, se fosse residente aqui, também ficaria no quarto. Mas não é isso que nos dizem.

— Bem… — digo, interrompendo‑o antes de ele conseguir come‑çar. (Sobretudo porque quero que ele saia de cima da minha cama.) — A sala de estar? É para irmos para lá? Eu vou ainda hoje. Prometo.

O Eric deixa escapar um suspiro.— Não tem de ir para a sala de estar. A questão não era essa.

A questão é que quero que se sinta feliz aqui.— Eu sei.Toda a gente quer que eu me sinta feliz aqui. Se eu estiver feliz,

não precisam de se sentir culpados.O Eric pousa a mão perigosamente perto da minha coxa.— Dê‑nos uma oportunidade, Anna. Não vou fingir que sei como

se sente. Mas há algo que sei com toda a certeza: o seu irmão não a pôs aqui para definhar e morrer no seu quarto. Ainda há muita vida para viver, mas precisa de continuar em jogo. — Pisca‑me o olho. — O Jack disse‑me que era viciada em adrenalina. Tenho de reconhecer que fiquei muito entusiasmado quando soube isso. O máximo de adrenalina que nos aparece por aqui é na noite do bingo.

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Arreganha os dentes e sinto que corro o risco de efetivamente vomitar.

— Tem razão — digo. — Não faz a mínima ideia de como me sinto.

Costuma dizer‑se que quando perdemos uma parte dos nos‑sos sentidos, os outros ficam mais apurados. Penso que é verda‑de. Houve uma altura em que eu tinha uma língua muito afiada. Se ficasse a saber de uma piada, apoderava‑me logo dela (e depois repetia‑a com mais requinte do que qualquer outra pessoa). Agora não sou tão rápida como costumava ser, mas sou mais observadora, em especial quando se trata do estado de espírito das pessoas. Por isso, quando uma jovem de cabelo louro todo espetado me entra pela porta adentro, basta olhar para ela para perceber que não só está perdida como tem qualquer coisa em mente.

— Oh, hum… — diz. — Por onde é que se vai para a casa de banho das visitas?

Obviamente, não faço ideia. Quando foi feito o meu diagnós‑tico, o meu neuropsicólogo (Dr. Cérebro, como eu lhe chamava) explicou que as recordações tinham tendência para se desvanece‑rem por ordem inversa. Isto significa que as minhas recordações mais antigas seriam as que durariam mais tempo e que as informa‑ções novas, incluindo casas de banho para visitantes, desapareciam depressa no buraco negro sem regresso do meu cérebro.

— Lamento, não sei — digo à mulher. Reparo que a cara dela está enrugada e vermelha. Húmida. — Sente‑se bem?

Ela suspira, e fico à espera de que vire costas e se vá embora — continue a sua busca pela casa de banho das visitas. Mas fica.

— Pois. — Funga. — Quero dizer, não. É o meu avô. Ele está impossível.

— Quem é o seu avô?— É o Bert. Bert Dickens.— Oh… — digo, embora não me lembre de todo de conhecer o

Bert. — Ele está bem?— Está ótimo, fisicamente. Mentalmente, nem por isso. Des‑

culpe, não devia ter invadido o seu quarto desta maneira. Está…?

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— Não estou ocupada. — É o eufemismo do século. — Que se passa com o Bert?

— Tem a certeza de que quer ouvir isto?— Claro que tenho a certeza.— Está bem. — Avança pelo quarto adentro. — A questão é —

diz ao estender uma mão e abanar os dedos —: vou casar.Contemplo o diamante e sorrio como é esperado neste tipo

de situações, embora nunca tenha percebido o alarido que se faz quando estão em causa aqueles calhaus cintilantes.

— Parabéns.— Obrigada.Olho para o meu próprio dedo anelar, despido há quase um

ano. A articulação parece estar agora mais saliente, sem a sua ân‑cora a sobrecarregá‑lo.

— O Bertie não gosta do sujeito?— Não, quero dizer, sim. Gosta dele. Mas não quer que nos

casemos.— Porque não?— Pensa que a nossa família está amaldiçoada. Sim, e também

não está senil. Sempre pensou isso. A mulher dele, a minha avó, morreu quando a minha mãe era bebé. E a minha mãe morreu quando eu tinha 4 anos. Ele acredita que, se eu casar, a maldição vai continuar.

— Lamento a perda da sua mãe.— Obrigada.— Porque é que ele pensa que é o casamento que provoca a

maldição? Porque não é o bebé?Ela olha para mim com uma expressão estranha. Apercebo‑me

de que provavelmente o comentário não ajudou.— Repare, estou apenas a salientar que a teoria dele não é estan‑

que. Talvez possa convencê‑lo de que é o bebé que causa a praga?— E, depois, quando eu tiver um bebé?— Também quer um bebé?Ela acena que sim. Algures no fundo da minha alma penso que

está a ser um pouco gananciosa.— Bem, acredita na praga? — pergunto.

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— Não. Isto é, a minha família tem tido pouca sorte, mas… Não. Não acredito nela. Mas quero que o avô venha ao meu casa‑mento e ele diz que não. Diz que não consegue suportar ver‑me selar o meu destino.

— Diga‑lhe que, se não se casar, o seu destino será pior do que a morte.

Ela observa‑me com os olhos semicerrados.— Diga‑lhe que se for para a sepultura sendo casada, irá como

uma mulher feliz. E que, mesmo que ele tenha razão, prefere um ano de verdadeira felicidade a morrer sem saber o que é a felicida‑de. — Penso por um momento. — Se ele disser que está errada, pergunte‑lhe se ele desejaria nunca ter casado com a mulher.

— Uau! — diz ela. — Você é boa!Há uma expressão que diz exatamente isso e tento invocá‑la.

Pouco a pouco, começo a recordá‑la.— Uma vida vivida em… Tento continuar, mas o resto escapa‑se. Puf! Desapareceu.— Uma vida vivida no medo é uma vida meio vivida?— É isso. Exatamente.— Tem razão. Ele adorava a Myrna. Nem por sombras desejaria

não ter casado com ela. Além disso, se eu der ouvidos às suas tolas superstições, estou a reforçar a ideia de que esta praga podia ser realmente verdadeira. — Suspira. — Obrigada por ser a voz da ra‑zão. É melhor voltar para junto dele. — Inclina a cabeça para a por‑ta fechada da casa de banho. — Acha que ela está bem lá dentro?

— Quem?— A sua… avó? — Lança um olhar para a etiqueta prateada com

o meu nome que está na parede. — Anna, não é?Tenho com frequência dificuldade em compreender as coi‑

sas, por isso não me preocupo demais se aquilo não faz sentido. Estou prestes a acenar como se compreendesse perfeitamente — quando, de repente, percebo. Ela pensa que estou de visita a uma pessoa idosa chamada Anna.

— Oh… Está ótima! — Sorrio para a rapariga cujo nome não percebi, se é que ela mo chegou a dizer. — Vai sair daqui não tarda nada.

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Há qualquer coisa na minha sopa a flutuar entre um pedaço de cenoura e um feijão‑verde. Não é um cabelo nem uma mosca. É branca. Tem cerca de cinco centímetros de com‑

primento e enrola‑se à volta de si mesma como uma espiral. Intro‑duzo a mão na taça e aperto. Fica comprimida entre os meus dedos e depois salta como um pedaço de borracha. Antes mesmo de a meter na boca, sei a que vai saber: macia, pegajosa, mas atraente. Gosto desta comida. Porque não me consigo lembrar de como se chama?

— Sabe a bota velha, não é?Quando levanto o olhar, a senhora idosa que está ao meu lado

observa‑me. Sinto‑me grata por ter sido ela a falar porque a alter‑nativa, do meu outro lado, é um velho careca que está sempre a fa‑lar com o lugar vazio ao seu lado, chamando‑lhe «Myrna». A certa altura, até pediu a alguém que passasse o sal à Myrna. Lá se vai a teoria de que não há malucos em Rosalind House.

— Desculpe?— A massa — diz ela. — Sabe a bota velha.Massa! Sinto uma excitação semelhante à de encontrar uma…

bota desaparecida.— Na verdade, a massa está boa — digo. — O pior é o resto.

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— Talvez tenha razão — diz ela, examinando a espiral que tem na sua própria colher. — Feijão e aipo e sopa aguada, a massa é que a salva, de facto.

A mulher tem um sotaque sulista, o que me anima um pouco. Afinal, como podemos não gostar de uma pessoa com sotaque su‑lista? Por outro lado, há os campónios e o Ku Klux Klan, mas esta mulher não parece fazer parte de nenhum deles. É mais nova do que os restantes residentes, que me lembram pedaços de madeira salpicada à deriva quase a enterrarem‑se no fundo do oceano. Esta mulher, pelo contrário, embora deva ter provavelmente 80 anos, parece forte, quase ágil, até.

— Parece‑me que me esqueci do seu nome — diz ela.Quase me rio.— Chamo‑me Anna.— Ando tão esquecida ultimamente, não ando, doçura? A Dama do Sul olha para o velho ao seu lado com tanta ado‑

ração, que sinto que qualquer coisa se mexe no meu coração frio como uma pedra. Depois volta a olhar para mim.

— Chamo‑me Clara. Este é o Laurie — diz, apontando com a colher para o homem sentado ao seu lado —, o meu marido.

Observo o rosto da Clara, tentando perceber se se esqueceu de facto do meu nome ou se foi só uma maneira inteligente de se apresentar. Se foi o segundo caso, gosto ainda mais dela.

— Estou satisfeita que tenha saído do quarto para vir almoçar — diz. — Tenho andado desejosa de encontrar outra pessoa jovem com quem conversar.

Tem o seu quê de agradável ouvir uma mulher com cerca de 80 anos a falar de si mesma como «jovem». Não vejo qualquer ra‑zão para lhe dizer que só vim à sala porque o Jack me vem ver esta semana e sei que me vai perguntar se me aventurei a sair do quar‑to. Se puder dizer que sim, será uma visita agradável, uma visita descontraída. Talvez partilhemos até algumas piadas? Num mundo ideal, também partilharíamos uma ou duas cervejas, mas, como é evidente, o mundo não é ideal.

— Já conhece o nosso Luke? — pergunta a Clara, inclinando a cabeça para o jovem sentado à sua frente.

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Por algum motivo, não me tinha apercebido dele. E aí apercebo‑ ‑me de que a Clara não estava a falar de si mesma quando men‑cionou outra pessoa jovem. Estava a falar da outra pessoa como eu.

— Penso que não — digo —, o que significa que é totalmente possível.

Sem levantar a cabeça, ele solta uma risada. Fico contente ao notar que não está tão mal que não consiga apreciar um pouco de humor demencial. Faço‑lhe um exame rápido. Pele dourada, dentes brancos em bom estado, uma covinha. O cabelo ondulado é quase preto e suficientemente comprido para entalar atrás das orelhas; as mangas da camisa azul estão arregaçadas até aos antebraços. Bem.

A Clara baixa a voz, mas não o suficiente.— Sensual, hein?— Então é o meu homólogo? — digo, ignorando a Clara. —

Pessoa jovem, mente velha.Ele volta a rir‑se.— A‑a‑acho que p‑p‑pode d‑dizer isso.O meu homólogo gagueja, mas, quanto ao mais, parece nota‑

velmente normal. Ergue o olhar. Os seus olhos têm a tonalidade de chá preto fraco. Como eu gosto.

— Como está a amb‑b‑bientar‑se? — pergunta ele. Encolho os ombros. — É preciso algum tempo para nos habituarmos a este sítio — diz ele. — As r‑r‑refeições em grupo, as atividades, os duches…

Eu estremeço ao lembrar‑me dos duches. Talvez estupidamen‑te, nunca me lembrara de que teria de ser ajudada no chuveiro. Mas a folha branca laminada na minha casa de banho tinha outras ideias. Ali, escrito com uma caneta apagável, estava a programação diária para me lavar e, no momento em que o relógio batia essa hora, uma auxiliar irrompia por ali adentro, pronta para me obri‑gar, pela força, a meter‑me debaixo do chuveiro.

«É o protocolo», tinha dito quando expliquei que não precisava de acompanhante. «Não estou interessada em espreitar. Estou ape‑nas junto da porta para o caso de precisar de mim.»

Passei a consultar sempre a folhinha e a ter o cuidado de termi‑nar o meu duche à hora em que ela aparecia. Quando me interro‑gou sobre isso, atirei as culpas para a demência.

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«Oh, devia ter esperado por si? Que tolice a minha.»— Odeio os duches — digo‑lhe.— É d‑duro nas primeiras semanas — diz ele. — Eu lembro‑me.A covinha dele sobe e desce na bochecha e não consigo evi‑

tar sorrir. Fico com a impressão de que ele se recorda mesmo. Os meus olhos descem para as mãos dele, que pousa levemente sobre a mesa — grandes, masculinas e, no entanto, com uma certa elegância.

A Clara tem razão. «Sensual» é a palavra certa para este tipo.A sala ficou conspicuamente silenciosa. Debaixo da mesa, qual‑

quer coisa roça‑se nas minhas pernas. Qualquer coisa… cabeluda. Puxo a cadeira para trás.

— É só a Kayla — diz o Luke. — A c‑c‑cadela do Eric. É i‑i‑inofensiva.Aceno, com os olhos postos na cadela.— Não gosta de cães? — pergunta ele.— Para uma pessoa com Alzheimer, é bastante perspicaz.— Na verdade, tenho demência frontotemporal.Faz‑se outro intervalo de silêncio e eu desvio o olhar da cadela

para olhar para ele.— Você perde as memórias — diz ele, respondendo à minha

pergunta não formulada. — Eu perco a fala.Volto a olhar para a cadela. A língua dela desenrola‑se para fora

da boca, o tapete de boas‑vindas menos bem‑vindo que alguma vez vi.A mão do Luke aconchega o pescoço do animal.— A sério, não gosta de c‑c‑cães? — pergunta. Compreendo, pela

maneira como os seus dedos dos pés se enrolam por baixo da barriga da cadela, que é um amante de cães. — Nem sequer… de cachorrinhos?

Agora estou perfeitamente consciente da maneira como fala. Não só é arrastada, como também ligeiramente mal‑articulada. E, mais do que isso, ele parece precisar de fazer um esforço acima da média para projetar as palavras para fora da garganta. A desconexão parece deslocada, vinda de um homem tão jovem e de aspeto saudável.

— Nem sequer de embriões de cachorrinhos — digo.Ele faz uma festa à cadela e depois guia‑a para as portas de vi‑

dro deslizantes, deixando‑a sair. Ela obedece sai lentamente, com a cauda a abanar.

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As Memórias do Nosso Amor

— Houve algum i‑i‑incidente? — pergunta ele quando regressa. — Com um cão. Para provocar a sua av‑v‑versão.

Eu aceno, apontando para a leve tira rosada que corta ao meio a minha sobrancelha direita.

— Quando tinha 3 anos.— Cão da família?— De um vizinho. É evidente que é um apreciador de cães.— Decididamente. Costumava… — Faz uma pausa e a testa

fica cheia de rugas, como se refletisse profundamente. — Dedicar o meu tempo a um abrigo de animais. Há alguns anos. Estava en‑carregado da adoção de cachorros.

— Ah, sim? — Na minha mente vejo de repente uma imagem dele a aconchegar um cachorro contra o peito.

— Última chamada para o autocarro da tarde! — Um ho‑mem de camisa e calças brancas com um grande crachá de iden‑tificação a dizer TREV aparece à entrada. — Alguém precisa de ajuda?

O Luke vira‑se para mim.— Planos para esta tarde?— Sim. — Solto uma gargalhada. — A minha agenda social

está cheia.— Bem, ouviu o homem. Última ch…ch‑amada para o autocar‑

ro da tarde.— Oooh! — A Clara levanta‑se de um salto. — É melhor ir bus‑

car a minha mala. O autocarro da tarde não espera por ninguém.A Clara sai apressadamente e o Luke inclina‑se para a frente na

sua cadeira.— Ela está enganada, sabe? O autocarro da tarde espera por

toda a gente.Rio‑me. E sinto uma impressão no estômago.— Precisa de alguma coisa? — pergunta‑me o Luke. Faz um

gesto como se estivesse a pendurar uma coisa invisível no ombro. — Aquela coisinha onde mete coisas?

— Oh… — Sei exatamente ao que se está a referir, mas, neste momento, também não me consigo lembrar do nome que tem. — Na verdade, penso que hoje não vou.

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Sally Hepworth

No liceu, tínhamos sempre uma semana de aulas depois de terminados os exames. Não restava nada no currículo, porque tí‑nhamos finalizado tudo — e feito testes —, mas a ideia era dar‑nos uma oportunidade de «terminarmos o ano letivo como deve ser.» Fosse o que fosse que isso queria dizer. A maioria dos professores jogava jogos connosco. Alguns deixavam‑nos conversar e conviver. O Prof. Kaiser continuava a dar aulas normalmente. Tudo aquilo era absolutamente inútil, mas não deixávamos de o fazer todos os anos. Ir agora com o Luke ao centro comercial, para desenvolver uma conversa do tipo «vamos‑conhecer‑nos‑melhor» era para mim igualmente inútil.

— Me‑meias para separar? — Sim. Mais ou menos isso.Ele acena e volta a baixar a cabeça.— Parece que somos só nós, Clara — diz, quando ela volta.— Bem, isso é mesmo uma pena — diz ela, olhando para mim.

— Tem a certeza de que não a conseguimos convencer a vir, querida?Faz‑se um momento de silêncio enquanto esperam, o tem‑

po suficiente para me obrigarem a pensar duas vezes. Talvez eu devesse estar a fazer essas coisas? Uma última viagem ao centro comercial? Uma última conversa com um homem atraente? Mas afasto as dúvidas, já tenho muito com que me preocupar sem ter de aumentar a lista de «últimas coisas a fazer».

Enquanto eles se afastam devagar, contudo, apercebo‑me de que, se estava a tentar evitar acrescentar um novo item à lista, falhei. Toda a conversa representou, na verdade, uma «última»: era a última vez que eu diria «não» a alguma coisa que queria realmente fazer.

Certa vez, o Dr. Cérebro disse‑me que um cérebro com Alzheimer é como a neve no pico de uma montanha a derreter lentamente. Há dias em que o Sol brilha muito e caem pedaços por todo o lado e ou‑tros há em que o Sol fica escondido atrás das nuvens e tudo fica, em grande medida, intacto. Depois há dias — dias espetaculares, nas suas palavras — em que tropeçamos num trilho que julgávamos que se tinha derretido e, durante algum — pouco — tempo, recuperamos alguma coisa que pensávamos que tinha desaparecido para sempre.

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As Memórias do Nosso Amor

Tenho a sensação de que, como a analogia envolvia as palavras «pico da montanha» e «espetacular», o Dr. Cérebro pensava que ou‑vir esta informação não seria deprimente quando, na verdade, acon‑tecia exatamente o oposto. Penso que me teria sentido melhor acerca do meu prognóstico se ele tivesse reformulado um pouco a infor‑mação. Algo como: «O cérebro é como um monte de lixo, porco e fedorento. Quando o Sol aparece, cheira ainda pior do que se poderia imaginar, e quando está frio ou enevoado, mal o conseguimos chei‑rar. Depois há dias em que, se o vento vem de um certo lado, talvez se apanhe o aroma frio de um abeto durante algumas horas e seja pos‑sível esquecer que o lixo está sequer ali.» Com uma analogia assim, pelo menos chamaríamos as coisas pelos nomes. Porque a verdade é que, se temos demência, o nosso cérebro é lixo. E, mesmo que não se sinta o cheiro dele neste preciso minuto, continua a tresandar.

Pouco tempo depois de o Luke e a Clara terem partido, ainda estou sentada, mas a sensação de solidão é maior. Toda a gente saiu da sala de refeições, exceto eu e o velho careca. E, presumo, a Myrna.

Estou prestes a voltar para o meu quarto quando o velho careca atira a colher para dentro da taça. Uma chuvada de sopa rega‑lhe a cara.

— Ei! — grita. — Quem lhe disse para levar o almoço da Myrna? Está a olhar para a cozinheira, uma bonita latina de cabelo es‑

curo e grandes argolas nas orelhas. Ouvi os outros residentes cha‑marem‑lhe Gabriela.

Ela suspira.— Desculpe, Bert — diz. — Pensei que tinha terminado.— Mas não terminou. Portanto, é melhor marchar para a cozi‑

nha e trazê‑lo outra vez.— Já o deitei para o lixo e não sobrou mais nada. — Não o diz

indelicadamente, mas com um cansaço na voz. — E se eu lhe trou‑xer uma banana da taça da fruta?

Por muito estranho que seja, tenho algum respeito por ela ali‑nhar na história da Myrna. Mas o Bert não parece convencido.

— A Myrna não gosta de bananas.

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— Então, uma sanduíche.— Não gosta de sanduíches.A Gabriela põe a mão na anca. Semicerra os olhos.— Bem, então gosta de quê?O Bert espeta o queixo; um desafio.— Sopa.Não consigo evitar sorrir.— Bem, ainda lhe resta um pouco de sopa — diz ela, atirando

um pano da loiça por cima do ombro. — Vai ter de a partilhar com a Myrna.

O Bert resmunga em voz baixa e sinto um pouco de pena dele. É um velho rabugento, sem a menor dúvida, mas gosto da sua rabugice. A defender a sua esfomeada mulher (apesar de fictícia) daquela maneira? É de cavalheiro, pelas minhas regras.

— Não te preocupes, amor — diz ele, empurrando a sua pró‑pria taça para o lugar vazio. — Tens a minha. Linda menina.

Agora a cara do Bert está transformada. Os seus olhos são sua‑ves e contemplativos. Os seus lábios curvam‑se num sorriso inde‑feso. Começo por pensar que ele está a sorrir para mim, mas só levo um segundo a perceber a verdade. Está a sorrir para a Myrna. Por um lado, acho que é inimaginavelmente triste. Por outro, é a coisa mais romântica que alguma vez vi.

— Desculpe — digo impulsivamente. — Mal toquei na minha sopa e não tenho fome. Talvez a Myrna queira… acabá‑la?

Preparo‑me, consciente de que o Bert pode sentir‑se insultado com a proposta de a Myrna comer restos. Ele olha para mim de sobro‑lho franzido, mas, depois de uma avaliação rápida, anui bruscamente.

— Ela vai gostar muito. Muito obrigado, minha jovem.Devolvo ao Bert a taça dele e coloco a minha diante da «Myrna».

Levanto‑me para sair, mas hesito junto da cadeira do Bert.— A Myrna é uma senhora cheia de sorte, sabe? Eu bem gos‑

taria de ter alguém que tomasse conta de mim quando eu… não posso fazer as coisas sozinha.

O Bert continua a olhar para mim de testa franzida, mas agora está um pouco diferente. Menos irritado. Mais pensativo.

— Nunca se sabe, minha jovem — diz. — Talvez um dia tenha.

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Eve

Atualmente…

O homem que está de pé à minha frente não é o que eu esperava. Para começar, tem uns cinco anos a menos do que eu — 30, no máximo — e tem um borrão de sujidade

na face esquerda. Os seus olhos são profundos, a pele morena e o cabelo, fulvo. É lindo. Mas de calções verdes, uma fina t‑shirt branca e botas de caminhada, está demasiado desgrenhado para ser o diretor. Volto a lançar um olhar para a pequena chapa dourada ao lado da campainha: ROSALIND HOUSE. DAMOS‑LHES PAZ. A SI DAMOS PAZ DE ESPÍRITO. Estou sem dúvida no sítio certo.

— Chamo‑me Eve Bennett — digo. Tenho um breve lampejo de mim mesma de pé no palco, a aceitar o prémio para a mais pro‑missora diplomada pelo Instituto de Educação Culinária de Nova Iorque e outro lampejo da cara da minha mãe quando lhe disse que ia concorrer a um emprego numa instituição de cuidados per‑manentes para idosos. — Tenho uma entrevista às 14 horas. Para o lugar de cozinheira.

Espero uma saudação, um aperto de mão, um «Oh, claro. Faça o favor de entrar.», mas o homem limita‑se a olhar fixamente para mim. Vejo um brilho de reconhecimento nos seus olhos e sinto um aperto no coração.

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A minha última entrevista foi dura, mas pelo menos disseram‑ ‑me «Olá». Foi há dez anos, no Benu, o famoso restaurante asiático de cozinha de fusão de Nova Iorque (quando a cozinha de fusão asiática estava na moda). Conseguir uma entrevista para o lugar de aprendiz no Benu era quase um milagre. Corria o boato entre os meus amigos da escola de culinária que Min‑Jun, o cozinheiro‑ ‑chefe, só contratava parentes de sangue para trabalharem na cozinha, com medo de que os outros lhe roubassem a receita do seu famoso molho. Encontrei‑me com Min‑Jun na cozinha e, em vez de me apertar a mão, forneceu‑me uma faca e um saco de ce‑nouras para palitar. Na hora que lá passei, ele mal me dirigiu uma palavra. Mais tarde, quando me ofereceu o emprego (que eu recu‑sei, estupidamente), disse‑me que tinha sido a maneira como eu olhara para as cenouras, como se estivesse apaixonada por elas, que o levara a fazer‑me a oferta.

O homem desgrenhado ainda não falou. Espero que ele prague‑je ou que me dê com a porta na cara, ao invés, ele recua e deixa‑me entrar. Entro num vestíbulo alegre com uma escadaria em espiral. Mesas de apoio baixas, de madeira polida, estão dispostas junto de mobiliário estofado em tons pastel. Embora não tenha estado dentro de muitas instituições de cuidados permanentes, suspeito que esta seja muito agradável. Uma construção colonial de três andares e ja‑nelas que dão para um enorme jardim, bom para passear. Lembra‑ ‑me muito… Bem, a minha casa.

— O senhor é o Eric? — pergunto.O homem vira‑se e faz‑me sinal para que o siga.— Não.— Oh — digo, aliviada. — Então hum… quem é?— O jardineiro.Desaparece numa esquina e tenho de correr para o acompa‑

nhar. Apanho‑o no fim do corredor, onde ele já está a bater à porta.— Eric? — diz, antes de abrir. O seu olhar cruza‑se brevemente

com o meu. — A Eve Bennett está aqui para falar consigo.A porta abre‑se. O homem que ali está tem um bigode farto e,

ao contrário do jardineiro, está a sorrir.— Olá — diz alegremente. — Deve ser a Eve. Eu sou o Eric.

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As Memórias do Nosso Amor

O jardineiro desaparece e aperto a mão estendida do Eric.— Muito prazer em conhecê‑lo.— Então, não fique aí. Entre. — Leva‑me para dentro. — É um

sotaque britânico que deteto?— Zona oriental de Londres — digo. — Mas estou nos Estados

Unidos há quase 15 anos.— Bem, nesse caso não vou dar‑lhe as boas‑vindas a este país.

— Ri‑se, de um modo estranhamente feminino. — Só ao meu ga‑binete. Por favor, sente‑se.

O Eric enche dois copos de água e, assim que estamos confor‑tavelmente sentados, pega no meu currículo.

— Devo dizer que não temos muitos candidatos com as suas credenciais como cozinheira — diz. — A nossa atual cozinheira é autodidata e, embora os residentes gostem bastante dela, penso que andam a ficar um pouco fartos de arroz e feijão e enchiladas todos os dias ao jantar. A Gabriela está grávida e o seu último dia é na sexta‑feira, pelo que estamos desesperados por arranjar alguém.

— Estou disponível para começar imediatamente — digo.— Ótimo — diz ele. — Nesse caso, porque não me diz a razão

para estar a concorrer a este emprego? Com o seu treino, calculo que podia arranjar emprego num restaurante ou num café sofisti‑cado!

O Eric volta a rir e sinto um clarão de encorajamento. É evi‑dente que, ao contrário do jardineiro, ele não faz a menor ideia de quem eu sou.

— Estou perto de casa — digo. — E a minha filha está na escola básica, por isso os turnos de dia são mais adequados do que os ho‑rários habituais na restauração.

— Está certo. — O olhar do Eric desvia‑se rapidamente para a direita e depois para o meu currículo. — E porque pensa que seria uma boa candidata?

Ergue os olhos com expetativa, e eu bebo um gole de água, para ganhar algum tempo. Não penso que esta seja a melhor ocasião para referir que esta é a minha última tentativa desesperada para obter um endereço na zona da escola da Clementine. Que, sem este endereço, ela será colocada na muito menos idílica Escola Primária

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de Buttwell Road, conhecida, como não podia deixar de ser, pelos residentes da área por «Butt Road», a estrada do traseiro.

— Cozinhar é a minha paixão — acabo por dizer. — Sei o que precisa de ser cozinhado na hora e o que tem de ser preparado com antecedência. Cultivo os meus próprios vegetais e tento usar produtos sazonais, quer pelo sabor, quer para manter os custos re‑duzidos…

— Alguns dos nossos residentes têm necessidades dietéticas especiais — interrompe o Eric. — Tensão arterial elevada, esse gé‑nero de coisas, por isso precisamos que as nossas refeições sejam sempre saudáveis e equilibradas, para não falar na consistência suave para aqueles que têm dentaduras postiças.

Escondo uma careta.— Sei tudo sobre a cozinha para a tensão arterial alta. E adoro o

desafio de fazer comida simples com um sabor fantástico.O Eric sorri, cruzando os dedos atrás da cabeça. Os botões da

camisa fazem pressão contra a sua barriga gorducha.— E penso que não tenha feito grande coisa na área das lim‑

pezas?Faço uma pausa.— Eu… hum… pensava que o lugar era para cozinheira.— Oh, é. Mas a nossa empregada da limpeza deixou‑nos em

apuros e eu tinha a esperança de que quem ficasse com este empre‑go pudesse preencher o vazio até eu encontrar alguém.

Engulo em seco.— Compreendo.— Já teve alguma experiência de limpezas?— Claro que sim — consigo dizer, embora até há quatro meses

a Valentina, a nossa empregada interna, cuidasse de todo o traba‑lho doméstico em nossa casa.

Desde a partida da Valentina, eu tinha‑a substituído, mas o pa‑drão de limpeza tinha descido muito.

— Fantástico! Bem, na realidade não é muito. A cozinha precisa de ser limpa depois das refeições e os quartos dos residentes têm de ser arranjados todos os dias. Não há muita roupa para passar a ferro, mas alguns dos homens gostam de vestir uma camisa ao domingo.

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Enterro‑me um pouco na cadeira. Devo ter passado a ferro um par de camisas, mas provavelmente não mais do que isso. Quando o Richard e eu éramos recém‑casados, eu tinha feito um grande alarido por ter de passar as camisas dele. Uma vez, até as tinha pas‑sado nua. Achava que era terrivelmente romântico passar a ferro as camisas do meu amado antes de ele sair para o trabalho de manhã. Mas, algum tempo depois, deixei a tarefa de passar a ferro para a Valentina, juntamente com o resto das tarefas domésticas que não me interessavam.

— Camisas ao domingo — disse, a pensar na Butt Road. — Não há problema.

— Que mais? — diz ele, dando um estalido com a língua. — Temos uma enfermeira fantástica, a Rosie, que faz o turno da noite, e temos aqui cuidadores das 8 às 17 horas. A Trish presta os nossos cuidados de saúde e a Carole é a assistente dela. O Angus, que a trouxe aqui, é o jardineiro, que também cuida da manutenção. Quanto aos residentes, neste momento, temos 12. Um dos pontos a nosso favor é que temos um ambiente de intimidade. Na realidade, uma família. Temos de nos assegurar de que toda a gente se enqua‑dra bem antes de entrarem.

Aceno, com um sorriso falso a desenhar‑se. A única coisa de que estou convencida é que não podia estar mais desenquadrada. Sou chef, especializada em alta cozinha. Que sei eu acerca de ser cozinheira e empregada de limpeza temporária numa casa de re‑pouso?

— Somos uma instituição privada — continua o Eric —, uma de várias em todo o país, propriedade de um grupo chamado Advanced Retirement Solutions [Soluções Avançadas para Idosos]. Sou o administrador deste centro. Temos licenciamento e somos inspecionados todos os anos pelo Departamento de Saúde e Servi‑ços a Seniores de Nova Jérsia.

» Somos uma instituição de vida assistida, não uma casa de saúde, pelo que os nossos residentes estão todos saudáveis, fisi‑camente falando. Mas, na verdade, temos alguns residentes com demência. Um dos nossos residentes mais antigos, o Bert, começa a apresentar alguns sinais, e também temos dois residentes jovens

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que sofrem da doença. A Anna tem 39 anos. Tem um caso precoce de Alzheimer, o tipo de demência relacionado com a memória de que a maioria das pessoas já ouviu falar. O Luke tem 41 anos. Tem uma variante de demência frontotemporal, que afeta a fala e a pro‑dução das palavras. Sente dificuldade física em falar, além de ter dificuldade em encontrar as palavras de que precisa. Atualmente é sobretudo não‑verbal.

— Uau.— Embora não seja responsável por cuidar dos residentes,

terá de interagir diariamente com eles. Que pensa sobre isto? Tem experiência com idosos ou doentes? Avós?

— Não tenho avós nem uma experiência real com idosos. Mas isso é uma coisa que gostaria de mudar.

Esta parte, pelo menos, é verdade. Recentemente tomei cons‑ciência de como a vida pode ser demasiado dura. E, pela firmeza do aceno do Eric, deduzo que também o convenci.

— Bem, veio ao lugar certo — diz ele, e volta a rir‑se. — De toda a maneira, para mim chega. Tem algumas perguntas a fazer?

— Apenas uma — digo. — Como mencionei, tenho uma filha na escola básica. A Clementine estará na escola durante a maior parte do dia, mas está comigo de manhã cedo e depois da escola, por isso terei de a trazer para qui. E terei de a levar à escola e trazer a pé, mas é menos de cinco minutos para cada lado.

Endireito‑me na cadeira e tento passar um ar confiante. Como se este fosse um de 20 empregos para a qual estou a ser entrevista‑da, em vez da minha última esperança.

— Na verdade, penso que os residentes adorariam ter uma criança por perto — diz o Eric. — Desde que isso não interfira com o seu trabalho, claro.

Solto o ar que estava a reter e o Eric põe‑se de pé.— Bem, que acha de darmos uma volta para ficar a conhecer o

espaço?Sorrio e levanto‑me, pronta para a volta à minha nova vida.

Há quatro meses, a minha vida fez‑se em pedaços. E não foi devagar, como uma doença terminal, mas de repente, como um

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As Memórias do Nosso Amor

acidente de carro fatal. Pelo menos eu e a Clementine recebemos o choque de uma vez, assim que o Richard me confessou o que tinha feito. E foi o mesmo choque repentino para os milhares de investidores que perderam o seu dinheiro. Já para o Richard, foi mais como um cancro no pulmão para um fumador compulsivo. Deve ter sabido que o desastre era inevitável, todavia optou por con‑tinuar, na esperança de que seria o tal num milhão que sairia ileso.

Eram 15h15 de uma terça‑feira quando estacionou o carro. De‑via ter sido a minha primeira pista. Estava casada com o Richard há dez anos e, em todo aquele tempo, nunca tinha chegado a casa às 15h15 num dia de semana. O mais engraçado foi que me lembro de ter ficado contente. Tinha acrescentado um ingrediente novo nos meus biscoitos de abóbora que tinham acabado de sair do forno.

— Mesmo a tempo — disse‑lhe quando ele entrou na cozinha. — Podes ser o meu primeiro provador.

Ele resmungou qualquer coisa ininteligível e deixou‑se cair num banco alto.

— Querido? — disse eu.Inclinou‑se para a frente, apoiando a testa na palma da mão.

Não trazia casaco e a gravata estava solta.— Não estás a sentir‑te bem? — Apalpei‑lhe a cabeça com as

costas da mão. — Ricky? — Ele detestava que eu lhe chamasse Ricky em público, mas, em particular, geralmente fazia‑o sorrir. — Olá? Está alguém em casa?

A casa estava cheia de trabalhadores. Estávamos a prepará‑la para o verão. Um homem acenou ao passar pela janela da cozinha, transportando um escadote. Eu retribuí o aceno.

Quando o Richard continuou sem falar, dei‑lhe um encontrão na brincadeira. A cabeça descaiu‑lhe para trás e foi então que vi os olhos dele, inchados de choro.

— Richard! Oh, meu Deus.Nunca tinha visto o Richard chorar. Nem nos funerais da mãe

e do pai. Nem no dia do nosso casamento. Nem no nascimento da Clementine. Era muito mais provável que o Richard desse um murro na parede ou bebesse um pouco de uísque a mais para liber‑tar a pressão ou a emoção.

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— Que se passa? Os olhos dele encontraram‑se com os meus apenas durante um

segundo.— Lixei tudo, Eve.— Tu… — Sentei‑me ao lado dele e rodei‑lhe o banco para ele

olhar de frente para mim. — Que queres dizer? O que é que lixaste?— A minha vida. A tua vida. A vida da Clementine. — Virou‑se

de costas para mim, apoiando os cotovelos na bancada de mármo‑re. — Menti acerca dos meus investimentos, falsifiquei documen‑tos. E estou prestes a ser apanhado.

Um discreto quase‑riso saiu de dentro de mim.— Isto é alguma piada?— Estou com ar de quem está a brincar?Não fazia sentido. O Richard não precisava de mentir acerca dos

seus investimentos nem de criar documentos falsos. O Richard era brilhante no que fazia. Mesmo assim, senti as alfinetadas da incer‑teza. Os seus olhos estavam vermelhos a toda a volta, e tinha o cola‑rinho desabotoado. Ultimamente andava a perder peso e a beber em demasia. E uns dias antes encontrara‑o no escritório com uma cara que parecia vagamente manchada por lágrimas. Atirou as culpas para cima de uma constipação e muita pressão no trabalho. Eu não me tinha lembrado de lhe fazer mais perguntas sobre o assunto.

— Mas… falsificar documentos? — disse, quase para comigo. — Queres dizer como…

— Fraude, esquemas em pirâmide.Um nó apertou‑se, lenta e dolorosamente, na minha barriga.— Vamos perder todo o nosso dinheiro — disse ele. — A nossa

casa. E eu vou para a cadeia.Levantei‑me do banco.— Cadeia?— Pensei que ia correr tudo bem, desde que comunicasse lu‑

cros modestos. Pensei… pensei que ia correr tudo bem… Começou a soluçar e foi então que compreendi que aquilo era

real. Quando se tratava de negócios, o Richard era sempre dema‑siado arrogante. Nunca o tinha visto tão derrotado. Com as mãos, formei uma tenda sobre a boca e o nariz.

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As Memórias do Nosso Amor

— Tenho andado a tentar descobrir uma maneira de sair disto — continuou —, mas não consigo.

Comecei a andar de um lado para o outro.— Grande… merda. Grande, grande, grande merda. Isto é de

loucos. Como pudeste?… — De repente olhei para o forno e reparei nas horas. — Merda! Tenho de ir buscar a Clem à escola.

Agarrei nas chaves e dirigi‑me para a porta. Depois parei de repente. Não fazia a mínima ideia do protocolo para esta situação. A Polícia ia aparecer à nossa porta de um momento para o outro? Ele ia ser algemado e levado diante da nossa filha? E depois? Sería‑mos expulsas de casa?

— Richard…— Está tudo bem — disse ele, estranhamente eloquente agora

que tinha partilhado o peso. — Temos tempo. Vai buscar a Clem.Fixei o olhar dele em silêncio durante o que me pareceram ho‑

ras, embora tenham sido apenas alguns segundos. Depois, com o estômago revoltado, virei‑me e saí porta fora.

A minha volta por Rosalind House é breve e não inclui uma apre‑sentação aos residentes, mas antes uma visualização dos residentes. Passámos por um grupo de pessoas nos corredores e mais algumas numa sala de estar de teto alto a que o Eric chama a sala de convívio. Todas as outras pessoas foram dispostas na extensa área de relva que delimita a propriedade, provavelmente a absorver vitamina D para um ano, vinda do céu brilhante e limpo. O jardineiro, o Angus, está numa pequena escada a podar um arbusto demasiado grande.

— Aquele é o Bert — diz o Eric, apontando para um homem quase careca de cerca de 80 anos. — E, lá adiante, está a Clara. Na sala de convívio estava o marido dela, o Laurie. E aqueles são o Luke e a Anna, debaixo da árvore.

O jovem casal destaca‑se num jardim cheio de gente idosa. O homem, o Luke, está sentado num banco de jardim. Tem a ca‑beça inclinada e o seu cabelo escuro e ondulado espalha‑se sobre a cara. A mulher, a Anna, está sentada a alguns passos de distância dele numa cadeira de rodas e o seu cabelo é um emaranhado de caracóis castanho‑avermelhados.

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— São tão novos — digo. — Não posso acreditar que tenham demência.

— É difícil de acreditar — diz o Eric. — Alguns dias são bons e então comportam‑se como pessoas discretas e normais. Outros dias não são tão bons.

— Porque é que ela está numa cadeira de rodas? Tem que ver com a demência?

— Oh… — O Eric coça uma súbita comichão no pescoço. — Bem, não…

— Ela deixou cair o lenço — digo, avançando para o leve tecido que dança sobre a relva junto dos pés da Anna.

As suas cores alegres recordam‑me a pintura que o Richard me deu no nosso primeiro aniversário, aquela por que o leiloeiro mos‑trou grande interesse na última semana, quando veio avaliar os nossos bens.

Apanho o lenço.— Deixou cair isto — digo, pousando‑o no colo da Anna.De perto, não consigo resistir a observá‑la melhor. Não é lin‑

da — pelo menos segundo os cânones de beleza por estes lados em que linda equivale a ser loura, esbelta e simétrica. Mas é qual‑quer coisa — impressionante, talvez? A sua pele é cor de alabas‑tro e está coberta de sardas; os braços e as pernas são compridos e flexíveis. Mas o que mais me chama a atenção é a cor dos olhos: claros e límpidos como jade. Sem aqueles olhos, talvez fosse ba‑nal. Mas com aqueles olhos? Parece que não consigo desviar o olhar.

Antes de eu conseguir retirar a mão, ela cobre‑a com a sua e aperta‑a.

— Oh… — Puxo a mão, mas os dedos dela enterram‑se mais nos meus. — Não era minha intenção assustá‑la. Só não queria que perdesse o seu encantador lenço.

Ela está a preparar‑se para falar, os sinais estão todos ali — hu‑medecer os lábios, engolir, contração dos músculos faciais. Demo‑ra apenas uma fração de tempo a mais que, digamos, uma pessoa ponderada demoraria, mas estou hiperconsciente da sua demência e parece que não consigo pensar em mais nada.

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— Por favor — diz ela por fim. — Ajude‑me.Um arrepio percorre‑me a coluna.— Desculpe? — Espero, mas ela não volta a falar. — Anna?

— insisto, mas a compreensão já se desvaneceu do seu rosto, subs‑tituída por um vazio tão em desacordo com a sua pele jovem e lisa. Os seus olhos ficam levemente velados, ainda belos mas agora vazios. Endireito‑me.

— Eric — digo, voltando para junto dele —, ela acabou de dizer «Ajude‑me».

O Eric pestaneja, a perfeita imagem da surpresa.— Ela disse isso? Tem a certeza?— Sim. Quero dizer… penso que sim.— Que provocou isso? — pergunta. — Disse‑lhe alguma coisa?Olho para trás e vejo‑a.— Apenas que não queria que ela perdesse o lenço.— Vou mandar a Carole para lá — diz ele e, logo a seguir, um

elemento do pessoal segue apressadamente na direção dela. — Se há alguma coisa de errado, nós vamos descobrir.

Aceno e ele faz um gesto a indicar que devemos regressar à casa. Quando abre a porta para eu passar, diz:

— A vantagem da demência é, evidentemente, que, se perder de facto o lenço, não vai dar pela falta dele durante muito tempo.