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Para Joyce McLennan,
amiga e assistente pessoal que há trinta e cinco anos
datilografa ou digita meus romances.
Com afeto e gratidão.
Sumário
Nota da autora
prólogo: Os Bennet de Longbourn
livro um: A véspera do baile
livro dois: O corpo na floresta
livro três: A polícia em Pemberley
livro quatro: O inquérito
livro cinco: O julgamento
livro seis: Gracechurch Street
epílogo
Nota da autora
Peço desculpas ao espírito de Jane Austen por envolver sua estimada
Elizabeth no trauma da investigação de um assassinato, principalmente
considerando que no último capítulo de Mans eld Park a srta. Austen deixou
sua posição bastante clara: “Que outras penas se debrucem sobre coisas como
culpa e pesar. Eu abdico de assuntos odiosos como esses assim que posso,
ansiosa para restituir todos os que nada tenham feito de muito grave a um
tolerável conforto e para deixar de lado os outros”. Sem dúvida, ela teria
respondido ao meu pedido de desculpas dizendo que, se desejasse se
debruçar sobre assuntos odiosos como esses, ela própria teria escrito esta
história, e melhor.
P. D. James, 2011
prólogo
Os Bennet de Longbourn
Era opinião geral entre os membros da população feminina de Meryton que
o sr. e a sra. Bennet haviam sido brindados pela sorte ao conseguir casar
quatro de suas cinco lhas. Meryton, uma pequena cidade comercial do
condado de Hertfordshire, não consta da rota de nenhuma viagem de
recreação, não tendo nem beleza natural nem uma história ilustre. Sua única
mansão senhorial, Nether eld Park, embora admirável, não é mencionada nos
livros que tratam da notável arquitetura do condado. A cidade dispõe de um
salão de reuniões público, onde bailes são realizados regularmente, mas não
conta com nenhum teatro, e os principais entretenimentos se dão em casas
particulares, onde o tédio dos jantares sociais e das mesas de uíste, sempre na
companhia das mesmas pessoas, é aliviado pelos mexericos.
Uma família com cinco lhas solteiras por certo inspira a preocupação
compassiva de todos os vizinhos, em especial onde outras distrações são
escassas, e a situação dos Bennet era particularmente dramática. Na ausência
de um herdeiro do sexo masculino, a propriedade do sr. Bennet seria legada
ao primo dele, o reverendo William Collins, que, como a sra. Bennet gostava
de lamentar aos brados, poderia expulsar a ela e suas lhas da casa antes
mesmo que o corpo de seu marido tivesse esfriado no túmulo. Era preciso
reconhecer, porém, que o sr. Collins havia tentado atenuar esse revés da
forma que estava ao seu alcance. Apesar da inconveniência e com a
aprovação de sua veneranda protetora, Lady Catherine de Bourgh, ele havia
deixado sua paróquia em Hunsford, no condado de Kent, para visitar os
Bennet com a caridosa intenção de escolher uma noiva para si entre as cinco
lhas do casal. Tal intenção foi recebida com entusiástica aprovação pela sra.
Bennet, que, no entanto, o advertiu de que a srta. Bennet, sua lha mais velha,
provavelmente caria noiva em breve. Quando ele então escolheu Elizabeth, a
segunda em idade e beleza, sua proposta foi rejeitada de forma categórica, o
que o fez buscar uma resposta mais benevolente para sua investida em uma
amiga de Elizabeth, a srta. Charlotte Lucas. A srta. Lucas aceitou o pedido de
casamento com grati cante satisfação, e o futuro que a sra. Bennet e suas
lhas podiam esperar foi selado, não de todo para a lástima geral dos
vizinhos. Quando da morte do sr. Bennet, o sr. Collins as instalaria num dos
maiores chalés da propriedade, onde receberiam conforto espiritual dos
sacramentos por ele ministrados e sustento físico das sobras da cozinha da sra.
Collins, reforçadas por presentes ocasionais como caças ou toucinho.
Felizmente, contudo, a família Bennet não precisou contar com tais
benefícios. Ao m de 1799, a sra. Bennet já podia congratular-se por ser mãe
de quatro lhas casadas, embora admitisse que o casamento de Lydia, a lha
mais nova, com apenas dezesseis anos de idade, não tivesse sido auspicioso.
Lydia fugira de casa com o tenente George Wickham, um o cial da milícia
que estava aquartelada em Meryton — uma imprudência que todos estavam
certos de que iria terminar, como todas as aventuras desse tipo merecem, com
a moça sendo abandonada por Wickham, expulsa da casa da família, rejeitada
pela sociedade e, por m, mergulhando na degradação nal que o decoro
proibia as senhoras de mencionar. O casamento, no entanto, havia se
realizado, sendo noticiado pela primeira vez por um vizinho, William
Goulding, que cou sabendo do ocorrido quando cruzou com o coche de
Longbourn na estrada e a recém-casada sra. Wickham pôs a mão na janela
aberta para que ele pudesse ver a aliança. A sra. Philips, irmã da sra. Bennet,
foi incansável em seu esforço para divulgar sua versão da fuga, segundo a
qual o casal estava a caminho de Gretna Green, mas fez uma breve parada em
Londres para que Wickham pudesse informar sua madrinha de que ia se casar,
quando então o sr. Bennet chegou à procura da lha e, em conversa com o
casal, conseguiu convencer os dois a aceitar a sugestão da família de que seria
mais conveniente realizar o casamento em Londres. Ninguém acreditou nessa
fabulação, mas todos reconheceram que a imaginação demonstrada pela sra.
Philips ao urdi-la merecia ao menos que ngissem acreditar. George Wickham,
obviamente, jamais poderia ser aceito em Meryton de novo, sendo grande o
temor de que se pusesse novamente a tirar a castidade das criadas e o lucro
dos lojistas, mas todos concordavam que, caso fosse à cidade, a sra. Wickham
deveria ser tratada com a mesma tolerante benevolência antes concedida à
srta. Lydia Bennet.
Muito se especulou sobre como o casamento teria vindo a nal a realizar-se,
ainda que com atraso. A propriedade do sr. Bennet mal rendia duas mil libras
por ano, e era opinião geral que o sr. Wickham teria exigido no mínimo
quinhentas libras de dote, além da quitação de todas as dívidas que contraíra
não só em Meryton como em outros lugares, para consentir no casamento. Era
possível que o sr. Gardiner, irmão do sr. Bennet, tivesse emprestado o
dinheiro. O sr. Gardiner era conhecido como um homem generoso, mas ele
tinha família e sem dúvida esperaria que o sr. Bennet lhe pagasse o
empréstimo. Isso gerou uma considerável ansiedade na família Lucas, que
receava que a herança do genro pudesse vir a ser reduzida em virtude da
necessidade de pagar o empréstimo, mas, à medida que o tempo foi passando
e nenhuma árvore foi derrubada, nenhum pedaço de terra foi vendido,
nenhum empregado foi dispensado e o açougueiro continuou a fornecer à
sra. Bennet sua costumeira provisão semanal sem dar nenhum sinal de
relutância, os Lucas deduziram que o sr. Collins e Charlotte não tinham nada a
temer e que, assim que o sr. Bennet estivesse devidamente enterrado, o sr.
Collins poderia tomar posse de Longbourn com toda a con ança de que a
propriedade continuava intacta.
Já o noivado da srta. Bennet com o sr. Bingley de Nether eld Park, rmado
pouco depois do casamento de Lydia, foi recebido com aprovação. Na
verdade, o enlace não foi surpresa para ninguém; a admiração do sr. Bingley
por Jane tinha cado patente desde que os dois se conheceram num baile
público. A beleza e a gentileza da srta. Bennet, somadas a um ingênuo
otimismo em relação à natureza humana que a levava a jamais falar mal de
ninguém, faziam com que ela fosse muito querida por todos. Mas, alguns dias
depois de o noivado de sua lha mais velha com o sr. Bingley ser anunciado,
a notícia de um triunfo ainda maior para a sra. Bennet chegou à cidade, sendo
a princípio recebida com incredulidade. A notícia era de que a srta. Elizabeth
Bennet, a segunda mais velha das irmãs, ia se casar com o sr. Darcy, o
proprietário de Pemberley, uma das maiores mansões senhoriais de
Derbyshire, e dono, segundo rumores, de uma renda de dez mil libras ao ano.
Era do conhecimento de todos em Meryton que a srta. Lizzy detestava o sr.
Darcy, um sentimento, aliás, compartilhado pela maioria das damas e dos
cavalheiros que estiveram presentes no primeiro baile público da cidade ao
qual o sr. Darcy comparecera, acompanhado pelo sr. Bingley e pelas duas
irmãs dele, e durante o qual o sr. Darcy dera mostras su cientes de seu
orgulho e de seu arrogante desdém pela sociedade local, deixando claro,
quando o sr. Bingley o incitou a dançar, que nenhuma mulher ali presente era
digna de ser sua parceira de dança. De fato, quando Sir William Lucas
apresentou Elizabeth a ele, o sr. Darcy absteve-se de convidá-la para dançar,
comentando mais tarde com o sr. Bingley que ela não era bonita o bastante
para tentá-lo. Era opinião geral que nenhuma mulher poderia ser feliz como
sra. Darcy, pois, como disse Maria Lucas, “Quem ia querer ter aquele rosto
antipático diante de si à mesa do café da manhã pelo resto da vida?”.
No entanto, não havia razão para condenar a srta. Elizabeth Bennet por
adotar uma posição mais prudente e otimista. Não se pode ter tudo na vida, e
qualquer moça de Meryton teria tolerado mais que um rosto antipático à mesa
do café da manhã para poder contar com uma renda de dez mil libras ao ano
e ser a senhora de Pemberley. As nobres senhoras de Meryton, como que por
dever moral, estavam sempre prontas a se compadecer dos a itos e felicitar os
afortunados, mas em tudo era preciso haver moderação, e o triunfo de
Elizabeth era grandioso demais. Embora admitissem que ela era graciosa e
tinha belos olhos, eram da opinião de que Elizabeth nada mais tinha além
disso que pudesse atrair um homem que dispunha de dez mil libras por ano;
não demorou muito, uma rodinha das mais in uentes mexeriqueiras da cidade
urdiu uma explicação: a srta. Lizzy estivera empenhada em conquistar o sr.
Darcy desde o momento em que os dois se conheceram. Quando a extensão
da estratégia de Elizabeth cou clara, todas concordaram que ela jogara seus
trunfos com muita inteligência e habilidade desde o início. Embora o sr. Darcy
tivesse se recusado a dançar com Elizabeth no baile, os olhos dele com
frequência se voltavam para ela e sua amiga Charlotte, que, já estando há anos
à procura de marido, tinha muita prática em identi car qualquer sinal de um
possível interesse e havia aconselhado Elizabeth a não deixar que sua óbvia
simpatia pelo belo e popular tenente George Wickham a zesse ofender um
homem dez vezes mais importante que ele.
Depois, houve o incidente ocasionado pela ida da srta. Bennet a
Nether eld, atendendo a um convite dos Bingley para jantar. Por insistência da
mãe, em vez de ir no coche da família, Jane fora a cavalo, o que a zera
pegar um conveniente resfriado no caminho, sendo então forçada, exatamente
como tencionava a sra. Bennet, a passar algumas noites em Nether eld.
Elizabeth, claro, foi visitar a irmã a pé, quando então a boa educação da srta.
Bingley a impeliu a oferecer hospitalidade à visitante indesejada até que Jane
se recuperasse. Passar quase uma semana na companhia do sr. Darcy deve ter
aumentado as esperanças de Elizabeth, e ela por certo havia tirado o melhor
proveito possível dessa proximidade forçada.
Pouco depois, instado pela srta. Bennet mais nova, o próprio sr. Bingley
ofereceu um baile em Nether eld, e nessa ocasião, sim, o sr. Darcy dançou
com Elizabeth. As matronas e acompanhantes, en leiradas em suas cadeiras
encostadas à parede, levaram seus lornhões aos olhos e, como o resto dos
convidados, observaram atentamente o par conforme avançava pelo salão.
Certamente os dois não haviam trocado muitas palavras, mas só o fato de o sr.
Darcy ter convidado a srta. Elizabeth para dançar e não ter recebido um não
como resposta já era suficiente para despertar interesse e especulação.
A etapa seguinte da campanha de Elizabeth foi acompanhar Sir William
Lucas e sua lha Maria numa visita ao sr. e à sra. Collins no presbitério de
Hunsford. Em circunstâncias normais, esse era um convite que a srta. Lizzy
com certeza teria recusado. Que prazer uma mulher racional poderia tirar de
seis semanas em companhia do sr. Collins? Além disso, não era segredo para
ninguém que, antes de ter seu pedido de casamento aceito pela srta. Lucas, era
a srta. Lizzy quem o sr. Collins queria como noiva. Por uma questão de
delicadeza e de consideração, Elizabeth deveria ter cado longe de Hunsford.
Mas ela devia saber que Lady Catherine de Bourgh era vizinha e protetora do
sr. Collins, e que o sobrinho dela, o sr. Darcy, caria hospedado em Rosings
enquanto os visitantes estivessem na casa do pároco. Charlotte, que mantinha a
mãe informada de todos os detalhes de sua vida de casada, incluindo a saúde
de suas vacas e galinhas e de seu marido, havia escrito em seguida para contar
que o sr. Darcy e o primo, o coronel Fitzwilliam, que também estava passando
alguns dias em Rosings, tinham feito várias visitas à residência paroquial
durante a estadia de Elizabeth e que, uma vez, o sr. Darcy fora até lá sem o
primo, quando Elizabeth estava sozinha. A sra. Collins tinha certeza de que o
fato de o sr. Darcy ter honrado Lizzy com essa visita era prova de que ele
estava se apaixonando e escreveu que, na opinião dela, a amiga teria aceitado
com satisfação um pedido de casamento de qualquer um dos dois
cavalheiros, tivesse um pedido sido feito. A srta. Lizzy, no entanto, voltara para
casa sem nada acertado.
Contudo, todos esses esforços foram recompensados quando a sra.
Gardiner e o marido, que era irmão do sr. Bennet, convidaram Elizabeth para
acompanhá-los numa viagem de veraneio. A intenção inicial era seguir rumo
ao norte até o Distrito dos Lagos, mas os negócios do sr. Gardiner
aparentemente os forçaram a encurtar a viagem e eles então decidiram seguir
apenas até Derbyshire. Foi Kitty, a quarta lha dos Bennet, quem comunicou
essa decisão aos vizinhos, mas ninguém em Meryton acreditou na justi cativa.
Uma família rica, que dispunha de meios para viajar de Londres até
Derbyshire, certamente poderia estender a viagem até os lagos se quisesse. Era
óbvio que a sra. Gardiner, uma parceira no plano matrimonial de sua sobrinha
favorita, havia escolhido Derbyshire porque o sr. Darcy estaria em Pemberley.
E, de fato, os Gardiner e Elizabeth, que sem dúvida deviam ter indagado na
estalagem quando o senhor de Pemberley estaria em casa, faziam uma visita à
mansão justo quando o sr. Darcy voltou. Naturalmente, por uma questão de
cortesia, os Gardiner foram apresentados ao dono da casa e o grupo foi
convidado a jantar em Pemberley; se a srta. Elizabeth ainda nutria alguma
dúvida quanto à sensatez de seu plano de conquistar o sr. Darcy, a primeira
visão de Pemberley só havia fortalecido sua determinação de se apaixonar por
ele no primeiro momento oportuno. Pouco depois, ele e o sr. Bingley tinham
voltado para Nether eld Park e tratado mais que depressa de fazer uma visita
a Longbourn, onde a felicidade da srta. Bennet e da srta. Elizabeth foi por m
e triunfalmente assegurada. O noivado, apesar de magní co, proporcionou
menos prazer do que o de Jane. Elizabeth nunca fora popular; na verdade, as
senhoras mais perceptivas de Meryton às vezes tinham a impressão de que a
srta. Lizzy ria delas no íntimo. Também a acusavam de ser sardônica e, embora
houvesse certa dúvida quanto ao signi cado da palavra, sabiam que essa não
era uma qualidade desejável numa mulher, sendo particularmente malquista
pelos homens. Vizinhos cuja inveja desse triunfo excedia qualquer satisfação
com a perspectiva da união podiam se consolar a rmando que o orgulho e a
arrogância do sr. Darcy e o humor cáustico de sua esposa garantiriam que os
dois vivessem na mais absoluta infelicidade juntos, para a qual nem Pemberley
nem uma renda de dez mil libras ao ano poderia oferecer consolo.
Descontando o tempo gasto com aquelas formalidades sem as quais núpcias
ilustres não poderiam ser consideradas válidas — como a pintura de retratos, a
correria dos advogados, a compra de carruagens novas, do enxoval e das
roupas para a cerimônia —, o casamento da srta. Bennet com o sr. Bingley e
da srta. Elizabeth com o sr. Darcy foi realizado com surpreendente presteza,
ambos no mesmo dia, na igreja de Longbourn. Teria sido o dia mais feliz da
vida da sra. Bennet, não tivesse sido ela acometida por palpitações durante a
cerimônia, suscitadas pelo temor de que a tia do sr. Darcy, a veneranda Lady
Catherine de Bourgh, pudesse assomar à porta da igreja para proibir o
casamento. Só mesmo depois da bênção nal foi que a sra. Bennet conseguiu
sentir-se segura de seu triunfo.
Não se sabe se a sra. Bennet sentiu falta da companhia de sua segunda lha,
mas seu marido certamente sentiu. Elizabeth sempre fora a favorita do sr.
Bennet. Ela tinha herdado a inteligência e um pouco da mordacidade do pai e,
como ele, divertia-se com a insensatez e as incongruências dos vizinhos. A
propriedade de Longbourn era um lugar mais solitário e menos racional sem
ela. O sr. Bennet era um homem perspicaz e um leitor apaixonado, cuja
biblioteca era tanto um refúgio quanto a fonte de suas horas mais felizes. Ele e
Darcy chegaram rapidamente à conclusão de que gostavam um do outro e, a
partir daí, como é comum com amigos, aceitaram suas diferentes
peculiaridades de caráter como provas do intelecto superior do outro.
Quando visitava Pemberley, o que quase sempre fazia quando era menos
esperado, o sr. Bennet passava a maior parte do tempo na biblioteca, uma das
melhores bibliotecas particulares existentes, de onde era difícil extraí-lo, até
mesmo para as refeições. Suas visitas aos Bingley em Highmarten eram menos
frequentes, já que lá não só ele tinha de tolerar a preocupação excessiva de
Jane com o conforto e o bem-estar do marido e dos lhos, coisa que às vezes
achava irritante, como havia poucos livros e periódicos novos para tentá-lo. O
dinheiro do sr. Bingley advinha originalmente do comércio. Ele não herdara
nenhuma biblioteca de família e só havia pensado em montar uma depois que
comprara a propriedade em Highmarten. Nesse projeto tanto Darcy quanto o
sr. Bennet se mostraram mais que dispostos a colaborar. Existiam poucas
atividades mais agradáveis do que gastar o dinheiro de um amigo para sua
própria satisfação e para o bem dele, e, se os compradores periodicamente
cediam à tentação de cometer extravagâncias, consolavam-se pensando que
Bingley tinha dinheiro para arcar com elas. Embora as estantes da biblioteca,
feitas segundo as especi cações de Darcy e aprovadas pelo sr. Bennet, ainda
não estivessem de forma alguma cheias, Bingley podia se orgulhar da elegante
disposição dos volumes e do lustroso couro das encadernações; às vezes até
abria um livro e era visto lendo, quando a estação ou o tempo não eram
propícios para a prática da caça, da pesca ou do tiro.
A sra. Bennet só havia acompanhado o marido nas visitas a Pemberley em
duas ocasiões. Fora tratada pelo sr. Darcy com gentileza e benevolência, mas
sentia-se por demais intimidada pelo genro para querer repetir a experiência.
Na verdade, Elizabeth suspeitava que a mãe sentia mais prazer encantando os
vizinhos com as maravilhas de Pemberley, o tamanho e a beleza dos jardins, a
suntuosidade da casa, o número de criados e o esplendor da mesa de jantar,
do que desfrutando-as. Nem o sr. Bennet nem a esposa visitavam os netos com
muita frequência. Cinco lhas nascidas uma logo atrás da outra haviam
deixado neles uma vívida lembrança de noites de sono interrompido, bebês
aos berros, uma babá-chefe que se queixava constantemente e babás
subalternas recalcitrantes. Após fazer uma inspeção preliminar pouco depois
do nascimento de cada neto para con rmar a veracidade das asseverações
dos pais de que a criança era a coisa mais linda do mundo e já exibia uma
inteligência assombrosa, eles se contentavam em receber relatos regulares do
desenvolvimento dos netos.
Para grande constrangimento de suas duas lhas mais velhas, a sra. Bennet
havia proclamado em voz alta no baile realizado em Nether eld que
acreditava que o casamento de Jane com o sr. Bingley fosse abrir caminho
para que suas lhas mais novas encontrassem também maridos ricos e, para
surpresa geral, foi Mary quem obedientemente cumpriu essa compreensível
profecia materna. Ninguém esperava que ela se casasse. Era uma leitora
compulsiva, mas sem discriminação nem entendimento; uma assídua praticante
de piano, mas desprovida de talento; e uma frequente propagadora de
trivialidades que não eram nem sagazes nem espirituosas. Certamente nunca
havia demonstrado interesse pelo sexo masculino. Um baile público, para ela,
era uma penitência a ser suportada apenas porque lhe oferecia uma
oportunidade de ocupar o lugar de centro das atenções ao sentar-se ao piano
e, por meio do uso judicioso do pedal de surdina, deixar a plateia
embasbacada e submissa. Mas, dois anos depois do casamento de Jane, Mary
já era esposa do reverendo Theodore Hopkins, reitor da paróquia adjacente a
Highmarten.
Como o vigário de Highmarten andava indisposto, o sr. Hopkins havia
celebrado os ofícios três domingos seguidos. Magro, melancólico e solteiro
aos trinta e cinco anos, ele era dado a pregar sermões excessivamente longos
e teologicamente complexos, portanto, havia naturalmente adquirido a
reputação de ser um homem muito inteligente. E, embora não pudesse ser
considerado rico, dispunha de uma renda particular bastante razoável, além
dos proventos de reitor. Mary, que estava hospedada em Highmarten num dos
domingos em que o sr. Hopkins pregou, foi apresentada a ele por Jane na
porta da igreja depois do culto e imediatamente o impressionou com seus
elogios ao sermão proferido, com seu apoio à interpretação que ele dera ao
texto e com referências tão frequentes à relevância dos sermões para moças
de James Fordyce, que Jane, ansiosa pelo marido e por si própria para voltar
para casa, onde os aguardava um almoço com saladas e carnes frias,
convidou o reverendo para jantar com eles no dia seguinte. Outros convites se
seguiram e, três meses depois, Mary se tornou a sra. Theodore Hopkins, num
casamento que despertou um interesse público tão discreto quanto a
cerimônia.
Uma vantagem para a paróquia foi que a comida servida no presbitério
melhorou de forma notável. Um dos cuidados que a sra. Bennet tivera ao criar
as lhas fora ensinar-lhes como uma boa mesa era importante para promover
a harmonia doméstica e atrair visitas do sexo masculino. Os paroquianos
tinham esperança de que o desejo de retornar prontamente à felicidade
conjugal zesse o vigário encurtar os ofícios, mas, embora a cintura do sr.
Hopkins tenha cado maior, o tamanho dos sermões continuou o mesmo. Os
dois se adaptaram à vida de casados em perfeito acordo, salvo inicialmente,
em virtude da exigência de Mary de que ela tivesse um quarto de leitura só
seu, onde pudesse ler em paz. Tal exigência foi atendida reservando-se o
único bom quarto de dormir sobressalente para o uso exclusivo de Mary, o
que trouxe a vantagem não só de promover a concórdia doméstica, mas
também de impossibilitar que eles convidassem parentes para se hospedar na
casa.
No outono de 1803, ano em que a sra. Bingley e a sra. Darcy celebraram
seis anos de seus felizes casamentos, a sra. Bennet tinha apenas uma lha para
quem um marido ainda não fora encontrado: Kitty. Nem a sra. Bennet nem
Kitty estavam muito preocupadas com esse fracasso matrimonial. A moça
desfrutava o prestígio e a indulgência de ser a única lha em casa e, com suas
visitas regulares à casa de Jane, onde era muito querida pelas crianças, gozava
uma vida que nunca antes fora tão satisfatória. Além disso, as visitas de
Wickham e Lydia estavam longe de ser uma boa propaganda para o
casamento. Eles chegavam muito alegres e bem-humorados e eram recebidos
com grande entusiasmo pela sra. Bennet, que sempre cava exultante ao rever
sua lha favorita. Mas essa alegria inicial logo degenerava em brigas,
recriminações e queixas ressentidas por parte dos visitantes contra a pobreza
em que viviam e a avareza do auxílio nanceiro que recebiam de Elizabeth e
de Jane, de modo que a sra. Bennet cava tão contente em vê-los ir embora
quanto cava em recebê-los de volta na visita seguinte. Mas ela precisava de
uma lha em casa, e Kitty, que se tornara muito mais amável e prestativa
depois da partida de Lydia, estava se saindo bem. Em 1803, portanto, a sra.
Bennet podia ser considerada uma mulher feliz até onde sua natureza permitia,
e havia inclusive conseguido passar um jantar de quatro pratos inteiro na
presença de Sir William e Lady Lucas sem se referir uma única vez à injustiça
do vínculo a que Longbourn estava submetida.
livro um
A VÉSPERA DO BAILE
1
Às onze da manhã do dia 14 de outubro de 1803, sexta-feira, Elizabeth
Darcy estava sentada a uma mesa em sua sala particular, no primeiro andar da
propriedade em Pemberley. A sala não era grande, mas suas dimensões eram
particularmente agradáveis e as duas janelas davam para o rio. Era o cômodo
que Elizabeth havia elegido para uso próprio e fora decorado inteiramente ao
gosto dela, móveis, cortinas, tapetes e quadros tendo sido escolhidos dentre
as preciosidades de Pemberley e dispostos segundo seu desejo. O próprio
Darcy havia comandado as operações, e o prazer estampado no rosto do
marido quando Elizabeth tomou posse da sala e o cuidado com que todos
procuraram atender aos desejos dela, mais do que qualquer outro dos luxos
óbvios da casa, zeram com que ela se desse conta dos privilégios
desfrutados pela sra. Darcy de Pemberley.
Havia outro cômodo na casa que lhe dava quase tanto prazer quanto sua
sala particular: a esplêndida biblioteca de Pemberley. Era resultado do
trabalho de gerações e, no presente, era seu marido quem tinha o interesse e a
alegria de fazer acréscimos aos tesouros já contidos ali. A biblioteca de
Longbourn era domínio do sr. Bennet, e até mesmo Elizabeth, sua lha
favorita, só entrava lá quando era convidada. Já as portas da biblioteca de
Pemberley estavam tão abertas para ela quanto para Darcy e, com o delicado
e afetuoso incentivo do marido, Elizabeth havia lido mais e com mais
satisfação e entendimento nos últimos seis anos do que nos quinze anteriores,
ampliando uma educação que, agora percebia, nunca passara de rudimentar.
Os jantares sociais em Pemberley não podiam ser mais diferentes dos que ela
havia frequentado em Meryton, nos quais as mesmas pessoas de sempre
espalhavam os mesmos mexericos de sempre e trocavam as mesmas opiniões
de sempre, e que só cavam mais animados quando Sir William Lucas
relembrava longamente outro fascinante detalhe de sua investidura na corte de
St. James. Agora, era sempre com tristeza que ela chamava com os olhos as
outras damas para se retirar da sala e deixar os cavalheiros com seus assuntos
masculinos. Tinha sido uma revelação para Elizabeth descobrir que havia
homens que valorizavam a inteligência numa mulher.
Era a véspera do baile de Lady Anne. Elizabeth e a governanta, a sra.
Reynolds, haviam passado a última hora conferindo se os preparativos
estavam em ordem e se tudo avançava com tranquilidade; então, Elizabeth
cara sozinha. O primeiro baile fora realizado quando Darcy tinha um ano de
idade, para celebrar o aniversário da mãe, e, salvo durante o período de luto
após o falecimento do pai de Darcy, o baile ocorrera todos os anos até a
morte da própria Lady Anne. Realizado no primeiro sábado depois da lua
cheia de outubro, o baile geralmente se dava poucos dias depois do
aniversário de casamento de Darcy e Elizabeth, mas essa era uma data que eles
preferiam comemorar de forma mais sossegada na companhia dos Bingley,
que haviam se casado no mesmo dia, por considerarem que a ocasião era
íntima e preciosa demais para ser celebrada com uma grande festa pública. A
pedido de Elizabeth, o baile do outono manteve o nome em homenagem a
Lady Anne. Para os habitantes do condado, aquele era o evento social mais
importante do ano. O sr. Darcy havia manifestado o receio de que aquele
talvez não fosse um ano propício para realizá-lo, uma vez que a esperada
guerra contra a França já fora declarada e havia no sul do país um crescente
temor de que Bonaparte pudesse tentar uma invasão a qualquer momento.
Havia também o fato de que a colheita fora fraca, com tudo o que isso
representava para a vida no campo. Alguns cavalheiros, erguendo os olhos
com ar de preocupação depois de examinar seus livros de contabilidade,
estavam inclinados a concordar que seria melhor não haver baile naquele ano,
mas, ao depararem com a enorme indignação das esposas e com a certeza de
terem pela frente pelo menos dois meses de desconforto doméstico, acabaram
nalmente concordando que nada poderia ser mais bené co para levantar os
ânimos do que um inocente festejo e que Paris, aquela cidade primitiva, ia
car extremamente contente e encher-se ainda mais de coragem caso viesse a
saber que o baile de Pemberley fora cancelado.
Os passatempos e distrações sazonais da vida no campo não são tão
numerosos nem tão estimulantes a ponto de tornar as obrigações sociais de
uma mansão senhorial uma questão indiferente para os vizinhos que possam
bene ciar-se delas, e o casamento do sr. Darcy, depois de passado o espanto
causado pela escolha que ele zera, ao menos representava a promessa de
que ele viesse a passar mais tempo em casa do que antes e alimentava a
esperança de que a nova esposa tivesse consciência de suas
responsabilidades. Quando voltaram da viagem de núpcias, que os levara até
a Itália, Elizabeth e Darcy tiveram de enfrentar as costumeiras visitas formais e
tolerar as habituais felicitações e conversas triviais com toda a boa vontade e
delicadeza de que eram capazes. Ciente desde criança de que Pemberley
sempre podia conceder mais benefícios do que receber, Darcy suportou esses
encontros com louvável paciência, enquanto Elizabeth encontrou neles uma
fonte secreta de diversão, vendo como seus novos vizinhos se esforçavam
para satisfazer a curiosidade que sentiam em relação a ela e, ao mesmo tempo,
manter sua reputação de pessoas nas e bem-educadas. Já os visitantes tinham
um prazer duplo: desfrutar da protocolar meia hora no esplendor e no
conforto da sala de visitas da sra. Darcy e, depois, tentar chegar com os
vizinhos a um veredicto acerca do vestido, da simpatia e da adequação da
noiva e das chances do casal de alcançar a felicidade doméstica. Um mês
depois, chegou-se a um consenso: os cavalheiros estavam impressionados
com a beleza e a sagacidade de Elizabeth, e suas esposas com a elegância e a
amabilidade dela, bem como com a qualidade dos petiscos servidos durante
as visitas. Todos concordaram que Pemberley, apesar dos desafortunados
antecedentes da nova sra. Darcy, agora prometia ocupar seu devido lugar na
vida social do condado, como ocupara na época de Lady Anne Darcy.
Elizabeth era realista demais para não saber que esses antecedentes não
tinham sido esquecidos e que toda nova família que se mudava para o
condado era brindada com um relato do espanto que o fato de o sr. Darcy tê-
la escolhido como esposa causara. Ele era conhecido como um homem
orgulhoso, para quem a tradição familiar e a reputação eram coisas de
extrema importância. Seu pai havia aumentado o prestígio social da família
casando-se com a lha de um conde. Parecia que nenhuma mulher tinha as
qualidades necessárias para tornar-se a sra. Fitzwilliam Darcy e, no entanto, ele
acabara escolhendo a segunda lha de um cavalheiro cuja propriedade,
submetida a um vínculo que excluía suas lhas, era pouco maior que os
jardins de Pemberley; uma moça cuja fortuna pessoal, segundo rumores, não
passava de quinhentas libras e que tinha duas irmãs solteiras e uma mãe tão
indiscreta e vulgar que chegava a ser incompatível com a boa sociedade. Pior
ainda: uma das irmãs mais novas havia se casado com George Wickham — o
desonrado lho do administrador do velho sr. Darcy — em circunstâncias que
a decência ditava que só fossem comentadas aos sussurros, impingindo,
assim, ao sr. Darcy e sua família o fardo de ter como parente um homem que
ele desprezava a ponto de o nome Wickham jamais ser mencionado em
Pemberley e de o casal ter sido totalmente banido da casa. Reconhecia-se,
porém, que a própria Elizabeth era respeitável e, por m, até os céticos
passaram a admitir que ela era graciosa e tinha belos olhos, embora o
casamento continuasse a causar espanto e também ressentimento em algumas
moças que, aconselhadas pelas mães, haviam recusado várias ofertas
razoáveis a m de manterem-se desimpedidas para um prêmio maior e que,
agora, estavam se aproximando da perigosa idade de trinta anos sem nenhum
pretendente à vista. De tudo isso, Elizabeth podia consolar-se lembrando a
resposta que dera a Lady Catherine de Bourgh, irmã de Lady Anne, quando
ela, indignada, enumerara as desvantagens que Elizabeth sofreria se tivesse a
presunção de tornar-se a sra. Darcy. “São agruras penosas, mas a esposa do
sr. Darcy deve ter fontes tão extraordinárias de felicidade necessariamente
associadas a sua posição que, no cômputo geral, ela por certo não há de ter
razão para queixa.”
O primeiro baile em que Elizabeth se postaria como an triã ao lado do
marido no alto da escada para saudar os convidados que chegavam prometia
ser uma provação, mas ela havia sobrevivido à ocasião de forma triunfante.
Gostava de dançar e, agora, podia dizer que o baile lhe dava tanto prazer
quanto dava a seus convidados. Lady Anne havia anotado meticulosamente,
com sua caligra a elegante, seus planos para a ocasião, e o caderno em que
zera essas anotações, com sua bela capa de couro marcada com o timbre
dos Darcy, continuava a ser usado e estivera aberto, naquela manhã, diante de
Elizabeth e da sra. Reynolds. A lista de convidados era basicamente a mesma,
mas os nomes dos amigos de Darcy e Elizabeth haviam sido acrescentados,
incluindo o dos Gardiner, tios de Elizabeth, e naturalmente os de Bingley e
Jane, que, naquele ano, como no anterior, levariam também seu hóspede,
Henry Alveston, um jovem advogado que, sendo bem-apessoado, inteligente e
alegre, era tão bem-vindo em Pemberley quanto em Highmarten.
Elizabeth não tinha nenhuma apreensão quanto ao sucesso do baile. Todos
os preparativos, ela sabia, haviam sido feitos. Achas tinham sido cortadas em
quantidade su ciente para garantir que não faltasse lenha para alimentar o
fogo das lareiras durante a festa, principalmente no salão de baile. A
cozinheira encarregada das massas esperaria até a manhã seguinte para
preparar as saborosas tortas e salgados de que as senhoras tanto gostavam,
enquanto aves e outros animais haviam sido abatidos para guarnecer a
refeição mais substancial com que os homens contavam. Uma boa quantidade
de vinho já fora trazida das adegas e amêndoas tinham sido moídas para o
preparo da popular sopa branca em quantidade su ciente. O vinho
temperado, que aumentaria muitíssimo o sabor e a força da sopa e contribuiria
consideravelmente para a alegria da ocasião, só seria acrescentado no último
minuto. As ores e plantas haviam sido escolhidas nas estufas e estavam
prontas para serem postas em baldes no jardim de inverno para que Elizabeth
e Georgiana, irmã de Darcy, decidissem como seriam feitos os arranjos na
tarde do dia seguinte. Thomas Bidwell já devia ter vindo de sua cabana na
oresta e estaria naquele momento sentado na copa, polindo as dezenas de
castiçais necessárias para iluminar o salão de baile, o jardim de inverno e a
pequena sala de estar reservada para as senhoras. Bidwell havia sido cocheiro-
chefe do falecido sr. Darcy, como seu pai fora dos Darcy antes dele. Agora,
com reumatismo nos dois joelhos e nas costas, ele não tinha mais condições
de trabalhar com os cavalos, mas suas mãos ainda eram fortes e ele passara
todas as noites da semana anterior ao baile polindo a prataria, ajudando a tirar
o pó das cadeiras extras necessárias para as matronas e acompanhantes e
prestando outros serviços indispensáveis. No dia seguinte, as carruagens dos
proprietários de terra e as caleches alugadas dos convidados mais humildes
subiriam a alameda de entrada para despejar seus passageiros, todos
tagarelando alegremente em seus trajes de musselina e cintilantes toucados
cobertos por capas para protegê-los do frio do outono, ávidos por desfrutar
de novo os prazeres do baile de Lady Anne.
Em todos os preparativos, a sra. Reynolds havia sido o braço direito de
Elizabeth. As duas tinham se conhecido quando Elizabeth zera uma visita a
Pemberley com os tios e fora recebida e ciceroneada pela governanta, que
conhecia o sr. Darcy desde menino e o elogiara profusamente, tanto como
patrão quanto como homem, que Elizabeth pela primeira vez se perguntou se
seu preconceito contra ele não seria injusto. Ela nunca havia falado sobre o
passado com a sra. Reynolds, mas as duas tinham se tornado amigas, e o
cuidadoso apoio da governanta fora de um valor inestimável para Elizabeth,
que já tinha consciência, mesmo antes de sua chegada a Pemberley na
condição de esposa de Darcy, de que ser a senhora de uma casa como aquela
e responsável pelo bem-estar de tantos empregados seria uma missão muito
diferente da que tinha sua mãe na administração de Longbourn. Mas a
gentileza de Elizabeth e o interesse que ela demonstrava pela vida de todos
deram aos empregados a con ança de que a nova patroa estava empenhada
em zelar pelo bem-estar deles, e tudo acabou se revelando muito mais fácil do
que ela esperava e, na verdade, até menos trabalhoso do que administrar
Longbourn, já que os empregados de Pemberley, a maioria dos quais
trabalhava na casa fazia muitos anos, tinham sido treinados pela sra. Reynolds
e por Stoughton, o mordomo, na tradição de que a família nunca deveria ser
importunada e tinha o direito de esperar um serviço imaculado.
Elizabeth não sentia muita falta de sua antiga vida, mas seus pensamentos se
voltavam com frequência para as empregadas de Longbourn: Hill, a
governanta, que sabia de todos os segredos da família, incluindo a famigerada
fuga de Lydia; Wright, a cozinheira, que nunca se queixava das exigências por
vezes nada razoáveis da sra. Bennet; e as duas criadas, que, além de cumprir
suas tarefas domésticas, desempenhavam as funções de criadas pessoais de
Jane e Elizabeth, arrumando o cabelo das duas antes dos bailes. Elas haviam
se tornado parte da família de uma forma que os empregados de Pemberley
jamais poderiam ser, mas Elizabeth sabia que era Pemberley — a casa e os
Darcy — que mantinha família, empregados e arrendatários unidos no mesmo
laço de lealdade. Muitos deles eram lhos e netos de antigos empregados, e a
casa e sua história estavam no sangue deles. Sabia também que fora o
nascimento dos dois belos e saudáveis meninos que agora ocupavam o quarto
das crianças no andar de cima — Fitzwilliam, de quase cinco anos, e Charles,
de apenas dois — que havia selado o derradeiro triunfo dela, constituindo
uma garantia de que a família e sua herança perdurariam para oferecer
trabalho para eles e para seus lhos e netos e de que continuaria a haver
Darcys em Pemberley.
Quase seis anos antes, quando as duas estavam conversando sobre a lista de
convidados, o cardápio e as ores para o primeiro jantar social que Elizabeth
ofereceria, a sra. Reynolds havia dito: “Foi uma grande felicidade para todos
nós, senhora, quando o sr. Darcy trouxe uma esposa para casa. O maior
desejo de Lady Anne era viver o bastante para ver o filho casado. Infelizmente,
isso não aconteceu. Eu sabia como ela estava ansiosa, tanto pelo bem dele
quanto pelo de Pemberley, para que o sr. Darcy fizesse um casamento feliz”.
A curiosidade de Elizabeth tinha sido mais forte que sua discrição. Sem
erguer o olhar, ela se ocupara remexendo em papéis em sua escrivaninha e
dissera, com leveza: “Mas talvez ela imaginasse outra esposa para o lho. Não
era desejo de Lady Anne Darcy e da irmã que o sr. Darcy se unisse à srta. De
Bourgh?”.
“Eu não vou dizer, senhora, que Lady Catherine não pudesse ter esse plano
em mente. Ela trazia a srta. De Bourgh a Pemberley com frequência, quando
sabia que o sr. Darcy estava aqui. Mas isso nunca ia acontecer. A srta. De
Bourgh, coitadinha, foi sempre enfermiça, e Lady Anne dava muita
importância à boa saúde numa noiva. Nós ouvimos dizer que Lady Catherine
tinha esperança de que o outro primo da srta. De Bourgh, o coronel
Fitzwilliam, fizesse uma proposta, mas, ao que parecesse, isso não aconteceu.”
Deixando as reminiscências de lado e voltando ao presente, Elizabeth
guardou o caderno de Lady Anne numa gaveta e, relutando em abandonar a
paz e a solidão que sabia que só poderia tornar a desfrutar depois do m do
baile, foi andando até uma das duas janelas que davam para a alameda longa
à entrada da casa e para o rio, que era ladeado pelo famoso bosque de
Pemberley. O bosque fora plantado sob a orientação de um célebre paisagista
algumas gerações antes. Cada árvore da borda, perfeita na forma e carregada
das cálidas folhas douradas do outono, cava um pouco distante das outras
como que para enfatizar sua beleza singular, mas depois o bosque ia se
tornando mais denso à medida que os olhos eram habilmente atraídos para a
solidão do interior, com seu perfume de terra úmida. A noroeste havia um
segundo bosque, maior que o primeiro, onde se permitira que as árvores e os
arbustos crescessem naturalmente e que havia sido um parque de recreação e
um refúgio secreto para Darcy quando menino. Seu bisavô, que ao herdar a
propriedade tornara-se um recluso, tinha construído ali uma cabana, na qual
mais tarde ele havia se matado com um tiro. Depois disso, o segundo bosque
— que era chamado de oresta para distingui-lo do primeiro — passou a
inspirar um medo supersticioso nos empregados e arrendatários de Pemberley
e raramente era visitado. Uma vereda estreita cortava a oresta em direção a
uma segunda entrada de Pemberley, mas praticamente só era usada por
vendedores. Quando os convidados do baile chegassem, eles subiriam pela
alameda principal, seus veículos e cavalos seriam acomodados nos estábulos e
seus cocheiros seriam recebidos nas cozinhas enquanto o baile estivesse em
andamento.
Demorando-se na janela e pondo de lado as preocupações do dia,
Elizabeth deixou seus olhos repousarem naquela beleza familiar e
tranquilizadora, mas sempre em mutação. O sol brilhava no céu de um azul
translúcido, no qual apenas algumas frágeis nuvens se dissolviam como os
de fumaça. Por causa da breve caminhada que costumava dar com o marido
pela manhã, Elizabeth sabia que o sol do outono era enganoso. Naquele dia,
uma brisa gelada, que a pegara desprevenida, havia feito os dois voltarem
rapidamente para casa, e agora ela notou que o vento tinha cado mais forte.
A superfície do rio estava crivada de pequenas ondas, que quebravam em
meio ao capim e aos arbustos da margem, suas sombras recortadas tremendo
na água agitada.
Elizabeth viu que duas pessoas enfrentavam com bravura o frio da manhã;
Georgiana e o coronel Fitzwilliam já haviam caminhado pela beira do rio e
agora seguiam em direção ao relvado e à escada de pedra que conduzia à
casa. O coronel estava de uniforme, seu casaco vermelho era uma vívida
mancha de cor em contraste com o azul suave da peliça de Georgiana.
Andavam um pouco afastados um do outro, mas de um jeito que sugeria,
Elizabeth achou, um companheirismo entre os dois, às vezes interrompendo
juntos a caminhada quando Georgiana levava as mãos à cabeça para segurar
o chapéu, que o vento ameaçava carregar. Quando se aproximaram da casa,
Elizabeth se afastou da janela, preocupada em evitar que se sentissem
vigiados, e voltou para sua escrivaninha. Tinha de escrever algumas cartas,
responder alguns convites e veri car se algum dos empregados ou
arrendatários de Pemberley estava passando por di culdades nanceiras ou
por revezes de outra natureza e caria contente em receber uma visita sua para
expressar solidariedade ou oferecer ajuda prática.
Mal havia pego a caneta quando ouviu uma batida suave na porta e a sra.
Reynolds reapareceu. “Lamento incomodá-la, senhora, mas o coronel
Fitzwilliam acabou de chegar de uma caminhada e pediu que eu perguntasse
se a senhora poderia lhe conceder alguns minutos, se não for muito
inconveniente.”
“Posso recebê-lo agora, se ele não se incomodar em vir até aqui”, Elizabeth
respondeu.
Elizabeth achava que sabia o que ele queria lhe dizer e, se estivesse certa,
aquela conversa seria uma fonte de ansiedade da qual preferia ser poupada.
Darcy tinha poucos parentes próximos e seu primo, o coronel Fitzwilliam,
visitava Pemberley com frequência desde menino. Quando estava iniciando
sua carreira militar, passara a ir menos lá, mas nos últimos dezoito meses suas
visitas tinham se tornado mais curtas, embora mais frequentes, e Elizabeth
havia notado uma diferença, sutil mas inequívoca, no comportamento dele
para com Georgiana: ele sorria mais quando ela estava presente e parecia mais
empenhado em aproveitar as oportunidades que surgiam para sentar-se ao seu
lado e entabular uma conversa. Desde que o coronel fora a Pemberley no ano
anterior para o baile de Lady Anne, uma mudança considerável se dera em sua
vida. Seu irmão mais velho, que herdaria o condado do pai, havia morrido no
exterior, e o coronel herdara o título de visconde Hartlep, que era do irmão, e
fora reconhecido como o novo herdeiro do condado. Ele preferia não usar o
título, principalmente quando estava entre amigos, tendo decidido esperar sua
investidura para só então assumir o novo nome e as muitas responsabilidades
que traria, de modo que todos ainda o chamavam de coronel Fitzwilliam.
Devia estar, é claro, querendo se casar, principalmente considerando que a
Inglaterra estava em guerra com a França e havia o risco de ele morrer em
combate sem deixar herdeiro. Embora nunca tivesse se interessado pela árvore
genealógica da família, Elizabeth sabia que não havia nenhum parente
próximo do sexo masculino e que se o coronel morresse sem deixar um lho
homem o condado reverteria à coroa. Não pela primeira vez, ela cou se
perguntando se o coronel estaria procurando uma noiva em Pemberley e, se
estivesse, como Darcy reagiria. A ideia de que a irmã um dia pudesse vir a ser
condessa e seu marido um membro da Câmara dos Lordes e um legislador do
país certamente devia agradá-lo. Tudo isso era razão para um justi cável
orgulho familiar, mas será que Georgiana partilharia desse orgulho? Ela agora
era uma mulher adulta e não estava mais sujeita a tutela, mas Elizabeth sabia
que Georgiana sofreria muito se desejasse se casar com um homem que o
irmão não aprovasse; e havia ainda Henry Alveston para complicar a situação.
Pelo que observara, Elizabeth tinha certeza de que ele estava apaixonado, ou
em vias de se apaixonar, por Georgiana, mas será que ela também estava? De
uma coisa Elizabeth tinha certeza: Georgiana Darcy jamais se casaria sem
amor, ou sem aquela forte atração, afeição e respeito que uma mulher podia
pensar que ia se aprofundar e se transformar em amor com o tempo. Por
acaso isso não teria sido su ciente para a própria Elizabeth, caso o coronel
Fitzwilliam a tivesse pedido em casamento quando foi visitar a tia, Lady
Catherine de Bourgh, em Rosings? A ideia de que ela poderia inadvertidamente
ter perdido Darcy e sua atual felicidade ao aceitar de forma precipitada uma
proposta do primo dele era ainda mais humilhante do que a lembrança da
atração que havia sentido pelo infame George Wickham, e Elizabeth fez um
firme esforço para tirá-la da cabeça.
O coronel havia chegado a Pemberley na noite anterior a tempo de jantar
com eles, mas, salvo pela hora em que lhe dera as boas-vindas, Elizabeth
pouco havia falado com ele. Agora, depois que bateu delicadamente na porta,
entrou e, a convite de Elizabeth, sentou-se na cadeira em frente à dela ao pé
da lareira, ela tinha a impressão de que o estava vendo com clareza pela
primeira vez. Ele era cinco anos mais velho que Darcy, mas, quando ele e
Elizabeth se conheceram na sala de visitas de Rosings, seu alegre bom humor e
atraente jovialidade haviam feito Darcy parecer ainda mais taciturno, e ela
pensou que o coronel fosse mais novo. Mas tudo isso havia mudado. Ele
agora tinha uma maturidade e uma seriedade que o faziam parecer mais velho
do que ela sabia que ele era. Era provável que isso se devesse em parte,
re etiu Elizabeth, à experiência de servir o Exército e às grandes
responsabilidades que carregava como comandante de soldados, enquanto
sua mudança de status havia trazido consigo não só uma maior gravidade, mas
também, Elizabeth achou, um orgulho familiar mais visível e até um quê de
arrogância, o que era menos atraente.
Ele não começou a falar imediatamente e, no silêncio que se seguiu,
Elizabeth decidiu que, como fora o coronel que pedira aquela reunião, era ele
que deveria falar primeiro. O coronel parecia estar considerando qual seria a
melhor forma de proceder, mas não dava sinais de estar constrangido nem
pouco à vontade. Por m, inclinando-se na direção de Elizabeth, disse: “Estou
certo, minha querida prima, de que com seu poder de observação e seu
interesse pela vida e pela felicidade de outras pessoas você não deve ignorar
de todo o que estou prestes a dizer. Como sabe, desde a morte da minha tia,
Lady Anne Darcy, tive o privilégio de dividir com Darcy a tutela da irmã dele,
e acho que posso dizer que cumpri minhas obrigações com um senso
profundo das minhas responsabilidades e uma afeição fraternal pela minha
pupila que nunca esmoreceu. Essa afeição agora se aprofundou,
transformando-se no amor que um homem deve sentir pela mulher com quem
ele espera se casar, e o meu desejo mais caro é que Georgiana aceite ser
minha esposa. Ainda não z um pedido formal a Darcy, mas ele é um homem
perceptivo, e eu tenho esperança de que minha proposta tenha a aprovação e
o consentimento dele”.
Elizabeth achou mais prudente não comentar que, como Georgiana já havia
atingido a maioridade, nenhum consentimento era necessário. Em vez disso,
perguntou: “E Georgiana?”.
“Não me sinto no direito de falar com ela antes de ter a aprovação de
Darcy. Admito que, até o momento, Georgiana nunca disse nada que me dê
motivo para nutrir grandes esperanças. A postura dela para comigo é, como
sempre foi, de amizade, con ança e, creio, de afeição. Espero que essa
con ança e essa afeição possam se transformar em amor, se eu for paciente.
Acredito que, para as mulheres, o amor surja com mais frequência depois do
casamento, e não antes. Na verdade, me parece não só natural, mas também
certo que seja assim. A nal, conheço Georgiana desde que ela nasceu.
Reconheço que a diferença de idade pode representar um problema, mas sou
apenas cinco anos mais velho que Darcy e não imagino que isso seja um
impedimento.”
Elizabeth sentiu estar adentrando um terreno perigoso, mas disse: “A idade
pode não ser um impedimento, mas uma predileção já existente, sim”.
“Você está pensando em Henry Alveston? Sei que Georgiana gosta dele, mas
nunca vi nada que sugira um afeto mais profundo. Ele é um excelente rapaz,
muito agradável e inteligente. Só ouço elogios a ele. E é bem possível que ele
nutra esperanças. Naturalmente, precisa se casar com uma moça que tenha
dinheiro.”
Elizabeth desviou o rosto. Rapidamente, o coronel acrescentou: “Não quis
insinuar que ele seja interesseiro ou insincero, mas com as responsabilidades
que tem, com sua admirável determinação de recuperar a fortuna da família e
de revitalizar a propriedade e uma das casas mais bonitas da Inglaterra, ele
não pode se dar o luxo de se casar com uma mulher pobre. Isso condenaria
ambos à infelicidade e até à penúria”.
Elizabeth cou em silêncio. Estava pensando de novo no dia em que os dois
se conheceram em Rosings, na conversa que tiveram depois do jantar, na
música, nos risos, nas visitas frequentes que ele passara a fazer à casa do
pároco, nas atenções que dedicara a ela e que tinham sido óbvias demais para
não serem notadas. Na noite do jantar, Lady Catherine certamente tinha visto o
bastante para car preocupada. Nada escapava ao olho aguçado e
perscrutador dela. Elizabeth se lembrou do que Lady Catherine lhes dissera
naquela noite: “Sobre o que vocês estão falando? Eu preciso participar dessa
conversa”. Elizabeth sabia que chegara a se perguntar se aquele homem era
alguém com quem ela poderia ser feliz, mas a esperança — se é que o que ela
sentiu foi forte o bastante para ser chamado de esperança — havia se esvaído
quando, um pouco mais tarde, eles se encontraram, talvez por acaso, talvez
por premeditação da parte dele, quando ela estava caminhando sozinha pelas
terras de Rosings e ele decidiu acompanhá-la até o presbitério. No caminho,
ele havia se lamentado de sua própria pobreza e ela perguntara em tom de
gracejo que desvantagens a pobreza trazia para o lho mais novo de um
conde. Ele havia respondido que lhos mais novos “não podem se casar com
quem quiserem”. Na hora, Elizabeth havia se perguntado se aquele comentário
fora um aviso a ela e essa suspeita lhe causara certo constrangimento, que
tentara disfarçar fazendo uma pergunta zombeteira e transformando a
conversa numa agradável brincadeira. Mas lembrar o incidente depois não
tinha sido nada agradável. Ela não precisava do aviso do coronel Fitzwilliam
para saber o que uma moça com quatro irmãs solteiras e sem fortuna podia
esperar no que se referia a casamento. Estaria ele querendo dizer que era
seguro para um rapaz privilegiado desfrutar da companhia de uma moça
assim e até ertar discretamente com ela, mas que a prudência exigia que ela
não fosse levada a esperar nada além disso? O aviso podia ter sido necessário,
mas não fora bem-feito. Se ele jamais havia cogitado pedi-la em casamento,
teria sido mais bondoso sendo menos assíduo e ostensivo nas atenções que
dispensava a ela.
O silêncio de Elizabeth não passou despercebido pelo coronel Fitzwilliam.
Passados alguns instantes, ele perguntou: “Posso contar com a sua
aprovação?”.
Ela se virou para ele e disse com rmeza: “Coronel, não posso interferir
nisso. É Georgiana quem tem de decidir o que pode fazê-la feliz. Só o que
posso dizer é que, se ela aceitar se casar com o senhor, terei tanta satisfação
com essa união quanto meu marido. Mas esse não é um assunto em que eu
possa exercer influência. A decisão tem de ser de Georgiana”.
“Pensei que talvez ela pudesse ter comentado alguma coisa com a senhora.”
“Não, ela não me con denciou nada e seria uma intromissão da minha parte
tocar nesse assunto sem que tenha decidido por conta própria falar comigo.”
Por um momento, isso pareceu satisfazê-lo, mas depois, como que levado
por uma compulsão, voltou a falar no homem que suspeitava ser seu rival.
“Alveston é um rapaz agradável e bem-apessoado e fala muito bem. O tempo e
uma maior maturidade vão sem dúvida abrandar certo excesso de con ança e
uma tendência a mostrar menos respeito pelos mais velhos do que seria
adequado na idade dele e que é lamentável em alguém tão capaz. Não duvido
que ele seja um convidado bem-vindo em Highmarten, mas me surpreende
que possa visitar o sr. e a sra. Bingley com tanta frequência. Advogados bem-
sucedidos normalmente não são tão pródigos com o tempo deles.”
Elizabeth não disse nada e talvez o coronel tenha achado que tecer aquelas
críticas, tanto as explícitas como as implícitas, fora insensato, pois logo depois
acrescentou: “Por outro lado, ele geralmente vai para Derbyshire aos sábados
ou domingos ou quando os tribunais não estão em sessão. Imagino que estude
sempre que dispõe de tempo livre”.
“Minha irmã diz que nunca teve um hóspede que passasse tanto tempo
trabalhando na biblioteca”, disse Elizabeth.
Mais uma vez houve um momento de silêncio e então, para a surpresa e o
desconforto de Elizabeth, o coronel disse: “George Wickham continua não
sendo recebido em Pemberley, suponho?”.
“Não, nunca. Nem eu nem o sr. Darcy o vimos nem tivemos qualquer
contato com ele desde que esteve em Longbourn, depois de se casar com
Lydia.”
Depois de outro momento de silêncio ainda mais longo, o coronel
Fitzwilliam disse: “Não foi nada bom Wickham ter sido tão bajulado quando
criança. Ele foi criado com Darcy como se fossem irmãos. Quando os dois
eram pequenos, isso provavelmente foi bené co para ambos; na verdade,
dada a afeição que o falecido sr. Darcy tinha pelo administrador dele, era
natural que, depois que o homem morreu, o sr. Darcy quisesse assumir certa
responsabilidade pelo lho dele. Mas para um menino do temperamento de
Wickham — mercenário, ambicioso, propenso à inveja — foi algo perigoso
gozar de um privilégio do qual, depois de adulto, não poderia compartilhar.
Eles frequentaram faculdades diferentes e Wickham, obviamente, não viajou
pela Europa com Darcy. Talvez a mudança de posição e de perspectiva para o
futuro tenha sido por demais drástica e repentina para ele. Creio que Lady
Anne Darcy tenha pressentido o perigo”.
“Wickham não poderia esperar ser convidado a viajar pela Europa com
Darcy”, disse Elizabeth.
“Não sei o que ele esperava, mas sei que sempre esperou muito mais do que
merecia.”
“Os favores concedidos a ele quando criança podem ter sido, até certo
ponto, imprudentes, mas é sempre fácil questionar o julgamento de outras
pessoas em assuntos a respeito dos quais podemos não estar muito bem
informados”, observou Elizabeth.
Inquieto, o coronel se remexeu na cadeira e disse: “Mas não pode haver
desculpa para a forma como Wickham traiu a con ança de todos nós quando
tentou seduzir a srta. Darcy. Foi uma vilania que nenhuma diferença de berço
ou de criação poderia justi car. Como cotutor dela, obviamente fui informado
por Darcy do deplorável incidente, mas esse é um assunto que procurei tirar
da cabeça. Nunca falei sobre isso com Darcy e lhe peço desculpas por estar
falando disso agora. Wickham se sobressaiu na campanha irlandesa e agora é
visto como uma espécie de herói nacional, mas isso não apaga o passado,
embora possa dar a ele oportunidades para construir uma vida mais
respeitável e bem-sucedida no futuro. Soube que ele saiu do Exército, o que
não me pareceu uma decisão muito sensata, mas ainda cultiva relações de
amizade com companheiros de farda como o sr. Denny, que, como a senhora
deve se lembrar, foi quem o apresentou à sociedade de Meryton. Mas eu não
deveria ter mencionado o nome dele na sua presença”.
Elizabeth não disse nada e, depois de uma breve pausa, o coronel se
levantou, fez uma mesura e retirou-se. Ela tinha consciência de que a conversa
não fora satisfatória para nenhum dos dois. O coronel não havia recebido a
aprovação entusiástica que esperava nem a garantia do apoio de Elizabeth, e
ela temia que, se ele fosse rejeitado por Georgiana, a humilhação e o
constrangimento que isso lhe causaria pudessem arruinar uma amizade que
vinha da infância e que sabia que o marido prezava muito. Elizabeth não tinha
dúvida de que Darcy aprovaria a intenção do coronel Fitzwilliam de casar-se
com Georgiana. O que ele mais desejava para a irmã era segurança, e ela
estaria segura com o coronel; era provável até que a diferença de idade fosse
vista por Darcy como uma vantagem. Um dia, Georgiana se tornaria uma
condessa, e dinheiro jamais seria uma preocupação para o felizardo que se
casasse com ela. Elizabeth gostaria que a questão fosse logo resolvida, de uma
forma ou de outra. Talvez as coisas chegassem a um desfecho no baile do dia
seguinte — com as oportunidades que oferecia às pessoas para sentar-se lado
a lado e sussurrar con dências enquanto dançavam, um baile era tido como
uma ocasião propícia a levar os acontecimentos a um desenlace, feliz ou não.
Ela só esperava que todos os envolvidos ficassem satisfeitos, pensou consigo e
sorriu em seguida, achando graça por supor que isso fosse possível.
Elizabeth sentia-se muito feliz com a mudança que se dera em Georgiana
desde que ela e Darcy tinham se casado. No início, Georgiana cava surpresa,
quase chocada, ao ver o irmão ser alvo de zombeteiras provocações da
esposa e ao notar com que frequência ele respondia na mesma moeda e como
os dois riam e se divertiam um com o outro. Não havia muito riso em
Pemberley antes da chegada de Elizabeth e, com o cauteloso e delicado
incentivo dela, Georgiana havia perdido um pouco de sua antiga timidez, tão
parecida com a de Darcy. Ela agora tinha mais con ança para assumir seu
lugar quando eles recebiam convidados em casa e para expressar suas
opiniões à mesa do jantar. Conforme ia conhecendo e entendendo melhor a
cunhada, Elizabeth começou a suspeitar que, por trás da timidez e do
comportamento reservado de Georgiana, escondia-se outra característica de
Darcy: uma rme vontade própria. Mas até que ponto Darcy reconhecia isso?
Será que um lado seu ainda não continuava vendo Georgiana como uma
menina de quinze anos vulnerável, uma criança que precisava do amor seguro
e vigilante dele para escapar da desonra? Não era que ele descon asse da
honra ou da virtude da irmã — tal ideia para Darcy seria quase uma blasfêmia
—, mas até que ponto ele con ava no discernimento dela? E para Georgiana,
desde que o pai morrera, Darcy era o chefe da família, o irmão mais velho
sensato com quem sempre podia contar e que tinha algo da autoridade de um
pai, um irmão imensamente amado e jamais temido, já que o amor não pode
conviver com o temor, mas visto com reverência. Georgiana nunca se casaria
sem amor, mas tampouco se casaria sem a aprovação de Darcy. E se acabasse
sendo necessário fazer uma escolha entre o coronel Fitzwilliam, que era primo
e amigo de infância de Darcy, herdeiro de um condado, um nobre e valente
soldado que Georgiana conhecia desde que nascera, e o jovem, belo e
agradável advogado, que reconhecidamente estava construindo um nome
para si, mas de quem eles sabiam tão pouco? Alveston herdaria um baronato
— aliás, um baronato muito antigo — e Georgiana teria uma casa que, depois
que ele tivesse ganhado dinheiro e a restaurado, seria uma das mais lindas da
Inglaterra. Mas Darcy tinha sua parcela de orgulho familiar, e não havia dúvida
de qual candidato oferecia a maior segurança e o futuro mais esplendoroso.
A visita do coronel havia destruído a paz de Elizabeth, deixando-a
preocupada e um pouco a ita. Ele tinha razão quando disse que não devia ter
mencionado o nome de Wickham. O próprio Darcy não tivera nenhum
contato com Wickham desde que eles se encontraram na igreja no dia do
casamento de Lydia, um casamento que jamais teria se realizado se Darcy não
tivesse gastado muito dinheiro para isso. Elizabeth tinha certeza de que esse
segredo nunca fora revelado ao coronel Fitzwilliam, mas ele havia, é claro,
tomado conhecimento do casamento e devia ter deduzido o que acontecera.
Estaria ele, Elizabeth se perguntou, tentando se reassegurar de que Wickham
não tinha mesmo nenhuma participação na vida deles em Pemberley e de que
Darcy havia comprado o silêncio de Wickham para garantir que o mundo
jamais pudesse dizer que a srta. Darcy de Pemberley tinha uma mácula em sua
reputação? A visita do coronel zera Elizabeth car inquieta e ela começou a
andar de um lado para o outro, tentando aplacar temores que ela esperava
que fossem infundados e recuperar parte da serenidade de antes.
O almoço, com apenas quatro membros da família à mesa, foi breve. Darcy
tinha um encontro marcado com seu administrador e voltara para seu gabinete
para esperar por ele. Elizabeth havia combinado encontrar-se com Georgiana
no jardim de inverno, onde as duas examinariam as ores e ramagens verdes
que o jardineiro-chefe trouxera das estufas. Lady Anne gostava de arranjos
complexos e de muitas cores, mas Elizabeth preferia usar apenas duas cores
além do verde e distribuir as plantas por diversos vasos, grandes e pequenos,
de modo que todos os cômodos contivessem ores perfumadas. Para o baile
do dia seguinte, as cores seriam branco e rosa, e Elizabeth e Georgiana
puseram-se a trabalhar e trocar impressões em meio ao perfume penetrante de
rosas e gerânios. A atmosfera quente e úmida do jardim de inverno era
opressiva e Elizabeth teve um súbito desejo de respirar ar fresco e sentir o
vento soprar em seu rosto. Seria isso efeito da apreensão gerada pela presença
de Georgiana e pela con dência do coronel, que pesava como um fardo em
seu dia?
De repente, a sra. Reynolds apareceu perto delas e disse: “Senhora, o coche
do sr. e da sra. Bingley está subindo a alameda de entrada. Se for depressa, a
senhora ainda pode chegar à porta a tempo de recebê-los”.
Elizabeth soltou um pequeno grito de alegria e foi correndo até a porta da
frente, enquanto Georgiana seguia atrás. Stoughton já estava lá para abrir a
porta quando a carruagem veio chegando lentamente e parou diante da casa.
Elizabeth correu porta afora, sentindo o sopro frio do vento cada vez mais
forte. Sua amada Jane havia chegado e, por um momento, toda a apreensão
que estava sentindo sucumbiu à felicidade daquele encontro.
2
Os Bingley não caram muito tempo em Nether eld depois que se casaram.
Bingley era um homem de uma paciência e de uma gentileza in nitas, mas
Jane logo percebeu que morar tão perto da mãe dela não contribuiria para a
tranquilidade do marido nem para sua própria paz de espírito. Jane tinha um
temperamento naturalmente afetuoso e uma grande lealdade e amor à sua
família, mas a felicidade de Bingley vinha em primeiro lugar. Ambos estavam
ansiosos para xar residência em algum lugar próximo a Pemberley e, quando
o contrato de aluguel de Nether eld venceu, eles passaram um curto período
em Londres na casa da sra. Hurst, irmã de Bingley, e depois se mudaram com
certo alívio para Pemberley, um centro conveniente de onde sair à procura de
uma moradia de nitiva. Nessa busca, Darcy teve uma participação ativa. Darcy
e Bingley haviam frequentado a mesma escola, mas a diferença de idade que
existia entre eles, embora fosse de apenas dois anos, signi cava que os dois
não tinham convivido muito na infância. Foi em Oxford que eles se tornaram
amigos. Darcy — orgulhoso, reservado e já pouco à vontade em ocasiões
sociais — encontrava alívio na generosa afabilidade de Bingley, na facilidade
com que ele fazia amizades e em sua con ança otimista de que a vida sempre
seria boa para ele, enquanto Bingley tinha tamanha fé na sensatez e na
inteligência superior de Darcy que relutava em tomar qualquer decisão em
questões importantes sem a aprovação do amigo.
Darcy havia aconselhado Bingley a comprar uma casa em vez de construir
e, como Jane já estava grávida do primeiro lho do casal, todos concordaram
que seria desejável encontrar uma casa o quanto antes, e uma casa para a qual
eles pudessem se mudar com o mínimo de transtorno. Foi Darcy quem,
empenhado em ajudar o amigo, descobriu Highmarten, e tanto Jane quanto o
marido caram encantados com o lugar assim que o viram. Era uma casa
moderna e elegante construída no alto de uma colina, com janelas das quais
se tinha uma vista ampla e agradável da paisagem em volta, espaçosa o
bastante para acomodar uma família com grande conforto, com jardins bem
planejados e um terreno grande o su ciente para que Bingley pudesse
convidar grupos para caçar sem atrair comparações desfavoráveis com
Pemberley. O dr. McFee, que fazia anos cuidava da saúde da família Darcy e
dos empregados de Pemberley, tinha visitado o lugar e declarado que as
condições eram salutares e a água pura, e então as formalidades foram
rapidamente cumpridas. Pouco mais foi necessário a não ser comprar a
mobília e cuidar da decoração, e Jane sentiu enorme prazer em ir de cômodo
em cômodo, decidindo, com a ajuda de Elizabeth, a cor do papel de parede,
da pintura e das cortinas. Dois meses depois de terem encontrado a
propriedade, os Bingley já estavam instalados na nova casa e a felicidade das
duas irmãs em seus casamentos se tornou completa.
As duas famílias se viam com frequência e eram poucas as semanas em que
uma carruagem não zesse a viagem entre Highmarten e Pemberley. Jane só
muito raramente cava longe dos lhos por mais de uma noite — as gêmeas
de quatro anos, Elizabeth e Maria, e o pequeno Charles Edward, agora com
quase dois anos. No entanto, sabia que podia deixá-los em segurança nas
mãos experientes e competentes da sra. Metcalf — que fora babá de Bingley
— e cava contente em poder passar duas noites em Pemberley para ir ao
baile sem ter de enfrentar os inevitáveis problemas que surgiam ao se tirar três
crianças e sua babá de casa para uma estadia tão curta. Ela viera, como
sempre, sem sua criada pessoal, mas Belton, a jovem e e ciente criada de
Elizabeth, cuidava de bom grado das duas irmãs. O coche e o cocheiro dos
Bingley foram deixados aos cuidados de Wilkinson, o cocheiro de Darcy.
Depois do costumeiro alvoroço das saudações, Elizabeth e Jane subiram a
escada de braços dados até o quarto que sempre era reservado para Jane em
suas visitas, com o quarto de vestir de Bingley ao lado. Belton já havia se
encarregado da mala de Jane e estava pendurando o vestido que ela usaria à
noite e também o que ela usaria no baile; dali a uma hora, estaria com as duas
para ajudá-las a trocar de roupa e ajeitar o cabelo. As irmãs, que haviam
dividido o mesmo quarto em Longbourn, eram companheiras particularmente
próximas desde a infância e não havia nenhum assunto sobre o qual Elizabeth
não pudesse falar com Jane, pois sabia que podia con ar totalmente nela para
guardar segredos e que qualquer conselho que ela lhe desse seria inspirado
por sua generosidade e seu coração afetuoso.
Assim que terminaram de falar com Belton, foram, como sempre, até o
quarto das crianças para dar a Charles os esperados abraços e doces, para
brincar com Fitzwilliam e ouvi-lo ler em voz alta — logo ele trocaria o quarto
das crianças pela sala de aula e por um preceptor — e para ter uma breve mas
aprazível conversa com a sra. Donovan. Ela e a sra. Metcalf tinham, juntas,
cinquenta anos de experiência e as duas benevolentes déspotas logo haviam
formado uma forte aliança, defensiva e ofensiva, e reinavam absolutas em seus
respectivos quartos, amadas pelas crianças e merecedoras de toda a con ança
dos pais, embora Elizabeth descon asse que, para a sra. Donovan, a única
função de uma mãe era produzir um novo bebê para o quarto das crianças
tão logo o irmão mais novo não coubesse mais em suas primeiras toucas. Jane
falou dos progressos de Charles Edward e das gêmeas, e o regime sob o qual
eles viviam em Highmarten foi discutido e aprovado pela sra. Donovan, o que
não era de surpreender, já que era o mesmo que ela adotava em Pemberley.
Quando faltava apenas uma hora para que elas tivessem de começar a se
arrumar para o jantar, as duas irmãs se dirigiram ao quarto de Elizabeth para a
agradável troca de notícias corriqueiras da qual tanto depende a felicidade da
vida doméstica.
Teria sido um alívio para Elizabeth poder conversar com Jane sobre o
assunto que mais a preocupava naquele momento — a proposta que o
coronel pretendia fazer a Georgiana. Mas, embora não tivesse pedido
segredo, ele certamente devia esperar que Elizabeth falasse primeiro com o
marido e ela sentia que o delicado senso de honra de Jane seria ofendido,
como também seria o dela própria, se desse a notícia à irmã antes de ter tido a
oportunidade de falar com Darcy. No entanto, Elizabeth estava ansiosa para
falar sobre Henry Alveston e cou contente quando a própria Jane tocou no
nome dele, dizendo: “Foi muita gentileza sua ter incluído de novo o sr.
Alveston no seu convite. Sei o quanto significa para ele vir a Pemberley”.
“Ele é um convidado encantador e tanto eu quanto Darcy temos muito
prazer em recebê-lo. É gentil, inteligente e bem-apessoado e é, portanto, um
modelo de rapaz. Como foi mesmo que estreitaram relações? O sr. Bingley o
conheceu no escritório do advogado de vocês em Londres, não foi?”,
perguntou Elizabeth.
“Foi, um ano e meio atrás, quando Charles foi ao escritório do sr. Peck para
discutir alguns investimentos. O sr. Alveston tinha sido chamado ao escritório
para conversar sobre a possibilidade de ele representar um dos clientes do sr.
Peck no tribunal e, como tanto ele quanto Charles chegaram antes da hora,
encontraram-se na sala de espera e depois o sr. Peck os apresentou. Charles
cou muito impressionado com o rapaz e mais tarde os dois almoçaram
juntos. Foi durante esse almoço que o sr. Alveston falou a Charles do desejo
que acalenta de recuperar a fortuna da família e revitalizar a propriedade de
Surrey, que é deles desde 1600 e em relação à qual, como lho único, sente
grande responsabilidade e apego. Eles se encontraram de novo no clube de
Charles e foi então que, espantado com o ar de exaustão do rapaz, Charles
convidou-o em nosso nome a passar alguns dias em Highmarten. Desde então,
o sr. Alveston faz visitas regulares e muito bem-vindas à nossa casa, sempre
que pode se afastar do tribunal. Fomos informados de que Lorde Alveston, o
pai dele, tem oitenta anos e uma saúde frágil e, já faz alguns anos, não tem
condições de dedicar a energia e exercer o comando de que a propriedade
precisa, mas o baronato é um dos mais antigos do país e a família é muito
respeitada. Charles soube pelo sr. Peck e também por outras pessoas que o sr.
Alveston é muito admirado no colégio de advogados Middle Temple, e nós
dois nos afeiçoamos muito ao rapaz. Ele é um herói para o pequeno Charles
Edward e muito querido pelas gêmeas, que sempre o recebem com pulos de
alegria.”
Ser bom para os lhos de Jane era um caminho certo para conquistar seu
coração, e Elizabeth entendia bem a atração que Highmarten exercia em
Alveston. A vida em Londres pouco alívio podia oferecer para um homem
solteiro e sobrecarregado de trabalho e Alveston obviamente encontrava na
beleza, na gentileza e na suavidade da sra. Bingley, e também na alegre
domesticidade de sua casa, um bem-vindo contraste com a competição feroz e
as exigências sociais da capital. Como Darcy, Alveston havia assumido cedo o
fardo e a responsabilidade de ser o herdeiro de uma família ilustre. Sua
determinação de recuperar a fortuna da família era admirável, e o desa o de
vencer no tribunal de Old Bailey provavelmente era o protótipo de uma
batalha mais pessoal.
Depois de alguns instantes de silêncio, Jane disse: “Eu espero que nem você,
minha querida irmã, nem o sr. Darcy quem incomodados com a presença
dele aqui. Tenho de confessar que, observando o óbvio prazer que ele e
Georgiana sentem na presença um do outro, eu tive a impressão de que é
possível que o sr. Alveston esteja se apaixonando, e se isso causar alguma
apreensão ao sr. Darcy ou a Georgiana nós teremos, é claro, de fazer com
que essas visitas cessem. Mas ele é um rapaz admirável e, se estiver certa na
minha suspeita e Georgiana corresponder à afeição dele, tenho certeza de que
poderiam ser muito felizes juntos. Contudo, é possível que o sr. Darcy tenha
outros planos para a irmã e, se for assim, talvez seja não só mais prudente,
mas também mais bondoso evitar que o sr. Alveston continue vindo a
Pemberley. Notei nas minhas visitas mais recentes que houve uma mudança no
comportamento do coronel Fitzwilliam em relação à prima, que ele agora tem
uma vontade maior de conversar com ela e de estar ao seu lado. Seria um
casamento magní co e Georgiana só o engrandeceria, mas não consigo
deixar de me perguntar se ela seria feliz naquele imenso castelo do norte.
Semana passada vi uma gravura dele num livro da nossa biblioteca. Parece
uma fortaleza de granito, com as ondas do Mar do Norte quase quebrando
contra suas muralhas. E ca tão distante de Pemberley. Certamente seria difícil
para Georgiana morar tão longe do irmão e da casa que ela tanto ama”.
“Descon o que tanto para Darcy como para Georgiana Pemberley venha
em primeiro lugar”, disse Elizabeth. “Lembro que, quando estive aqui pela
primeira vez com meus tios e Darcy me perguntou o que eu achava da casa,
meu óbvio encantamento com Pemberley o deixou muito contente. Acho que
se não tivesse cado genuinamente entusiasmada, ele não teria se casado
comigo.”
Jane riu. “Ah, acho que ele teria sim, minha querida. Mas talvez seja melhor
não discutirmos mais esse assunto. Mexericar sobre os sentimentos de outras
pessoas quando não temos como compreendê-los inteiramente e quando até
as próprias pessoas podem não entendê-los gera ansiedade. Talvez tenha sido
um erro tocar no nome do coronel. Eu sei, minha querida Elizabeth, o quanto
você ama Georgiana e, convivendo com você como uma irmã, ela se tornou
uma moça não só mais segura, como também mais bonita. Se de fato tem dois
pretendentes, a escolha tem de ser dela, mas não imagino que ela aceite se
casar com alguém que o irmão não aprove.”
“Talvez essa questão chegue a um desfecho durante o baile, mas admito
que isso me causa ansiedade”, disse Elizabeth. “Desde que vim para cá, eu me
afeiçoei muitíssimo a Georgiana e sinto por ela um amor profundo. Mas vamos
esquecer esse assunto por ora. Ainda temos o jantar em família à nossa espera.
Não posso estragá-lo nem para nós nem para nossos convidados com
preocupações que talvez sejam infundadas.”
Elas não falaram mais sobre o assunto, mas Elizabeth sabia que Jane não via
aquela situação como um problema. Para ela, era muito natural que duas
pessoas jovens e atraentes que obviamente sentiam prazer na companhia uma
da outra se apaixonassem, e Jane acreditava rmemente que essa paixão
deveria resultar num casamento feliz. Além disso, dinheiro jamais seria uma
di culdade: Georgiana era rica e o sr. Alveston estava ascendendo em sua
pro ssão. Mas Jane não dava muita importância a dinheiro; desde que
houvesse o suficiente para uma família viver com conforto, que diferença fazia
que cônjuge tinha trazido dinheiro ao casal? E o fato, que para outras pessoas
seria determinante, de que o coronel era agora um visconde e sua esposa um
dia se tornaria condessa, enquanto o sr. Alveston seria apenas barão, não tinha
importância nenhuma para Jane. Elizabeth decidiu que ia tentar não car
ruminando possíveis di culdades, mas que, depois do baile, precisaria
encontrar o quanto antes uma oportunidade de conversar com o marido.
Ambos andavam tão ocupados que ela mal havia pousado os olhos nele
desde a manhã. Não seria certo especular sobre os sentimentos do sr. Alveston
com Darcy, a menos que o próprio sr. Alveston ou Georgiana tocassem no
assunto, mas ela tinha de informar o marido o mais rápido possível da
intenção do coronel de conversar com ele sobre sua esperança de que
Georgiana aceitasse ser sua esposa. Elizabeth se perguntava por que a ideia
dessa união, magní ca como era, causava-lhe uma inquietação que não
conseguia dissipar com argumentos lógicos, e esforçou-se para esquecer esse
sentimento desconfortável. Belton havia chegado e estava na hora de Jane e
ela se arrumarem para o jantar.
3
Na véspera do baile, o jantar foi servido no horário costumeiro e elegante
das seis e meia, mas, quando os convidados eram poucos, era comum servi-lo
numa pequena sala adjacente à sala de jantar formal, onde até oito pessoas
podiam sentar-se com conforto à mesa redonda. Em anos anteriores, fora
necessário usar a sala maior porque os Gardiner, e ocasionalmente as irmãs de
Bingley, haviam cado hospedados em Pemberley para o baile, mas o sr.
Gardiner sempre relutava em abandonar seus negócios e sua esposa, em
separar-se dos filhos. O que os dois mais gostavam era de visitar Pemberley no
verão, quando o sr. Gardiner podia deleitar-se pescando e o passatempo
preferido de sua esposa era passear pela propriedade com Elizabeth num
faetonte puxado por um único cavalo. Elizabeth tinha uma amizade muito
antiga e íntima com a tia e sempre dera muito valor a seus conselhos. Teria
cado contente agora em poder aconselhar-se com ela sobre determinados
assuntos.
Embora fosse um jantar informal, o grupo naturalmente se dirigiu junto para
a sala de jantar, formando pares. O coronel imediatamente ofereceu o braço a
Elizabeth, Darcy foi para o lado de Jane e Bingley, com uma pequena
exibição de galanteria, ofereceu o braço para Georgiana. Ao ver Alveston
vindo sozinho atrás do último par, Elizabeth se arrependeu de não ter
planejado melhor as coisas, mas sempre era difícil encontrar uma dama
desacompanhada e adequada em cima da hora e as convenções sociais nunca
haviam importado antes nesses jantares da véspera do baile. A última cadeira
vazia estava ao lado de Georgiana e, quando Alveston a ocupou, Elizabeth
notou um passageiro sorriso de prazer no rosto dele.
Quando eles próprios se sentaram, o coronel disse: “Então a sra. Hopkins
não está conosco este ano de novo. Já não é a segunda vez que ela perde o
baile? Sua irmã não gosta de dançar, ou o reverendo Theodore tem razões
teológicas para se opor a bailes?”.
“Mary nunca gostou muito de dançar e pediu que eu a desculpasse”,
respondeu Elizabeth. “Mas o reverendo certamente não se opõe a que ela
participe. Ele me disse na última vez em que jantaram aqui que, na opinião
dele, nenhum baile oferecido em Pemberley a amigos e conhecidos da família
poderia ter qualquer efeito deletério sobre a moral e os bons costumes.”
“O que mostra que ele nunca tomou a sopa com vinho de Pemberley”,
sussurrou Bingley para Georgiana.
O comentário foi entreouvido pelo resto do grupo e provocou sorrisos e
algumas gargalhadas. No entanto, essa atmosfera leve e alegre não duraria. Por
alguma razão, a conversa não uía à mesa com a animação costumeira e
todos pareciam tomados por uma apatia da qual nem a loquacidade bem-
humorada de Bingley parecia capaz de tirá-los. Elizabeth tentava não olhar
para o coronel com muita frequência, mas, quando olhava, percebia que o
olhar dele volta e meia se xava no casal sentado à sua frente. Ela achava que
Georgiana nunca estivera tão linda, com seu vestido simples de musselina
branca e um diadema de pérolas enfeitando o cabelo escuro, mas a expressão
do olhar do coronel era mais de conjectura do que de admiração. Por certo o
casal estava se comportando impecavelmente, Alveston dedicando a
Georgiana apenas a atenção que seria natural e Georgiana virando-se para
dirigir seus comentários igualmente a Alveston e Bingley, como uma jovem
menina seguindo obedientemente a convenção social em seu primeiro jantar
formal. Houve um momento, porém, que Elizabeth esperava que o coronel
não tivesse notado. Alveston estava misturando o vinho com água de
Georgiana e, por alguns instantes, suas mãos se tocaram e Elizabeth viu um
leve rubor surgir no rosto de Georgiana e desaparecer em seguida.
Vendo Alveston vestido com roupas formais, Elizabeth novamente cou
impressionada com a extraordinária beleza do rapaz. Ele com certeza sabia
que não podia entrar numa sala sem que todas as mulheres presentes
voltassem os olhos para ele. Seu viçoso cabelo castanho estava preso com
simplicidade na nuca. Seus olhos eram de um tom mais escuro de castanho, as
sobrancelhas eram retas, o rosto tinha uma expressão franca e forte que o
protegia contra qualquer acusação de ser bonito demais e sua maneira
elegante de se movimentar transmitia con ança e desembaraço. Elizabeth sabia
que ele normalmente era um convidado expansivo e divertido, mas naquela
noite até ele parecia abatido pela atmosfera geral de desconforto. Talvez, ela
pensou, todos estivessem apenas cansados. Bingley e Jane haviam viajado
apenas dezoito milhas para chegar a Pemberley, mas um vento forte tornara a
viagem mais demorada, e para Darcy e Elizabeth a véspera do baile era
sempre um dia excepcionalmente atarefado.
A tempestade lá fora também não contribuía em nada para a atmosfera
interna. Volta e meia o vento uivava na chaminé, o fogo na lareira sibilava e
espirrava como se tivesse vida e, de vez em quando, um pedaço de lenha em
brasa saltava, formando chamas espetaculares e lançando um momentâneo
clarão vermelho no rosto dos comensais, dando a impressão de que estavam
ardendo em febre. Os criados iam e vinham silenciosamente, mas foi um alívio
para Elizabeth quando a refeição nalmente terminou e ela pôde chamar Jane
com o olhar e dirigir-se com ela e Georgiana para a sala de música.
4
Enquanto o jantar era servido na sala de jantar pequena, Thomas Bidwell
estava na copa, polindo a prataria. Era uma tarefa que ficara a cargo dele fazia
quatro anos, desde que a dor em suas costas e seus joelhos passara a impedi-
lo de trabalhar como cocheiro, e que ele cumpria com orgulho,
principalmente na noite anterior ao baile de Lady Anne. Dos sete grandes
candelabros que seriam dispostos ao longo da enorme mesa, cinco já haviam
sido limpos e os últimos dois seriam terminados naquela noite. Era uma tarefa
tediosa, demorada e surpreendentemente cansativa, e Bidwell cava com as
costas, as mãos e os braços doloridos quando nalmente a concluía. Mas não
era um trabalho que pudesse ser feito pelas criadas nem pelos meninos do
estábulo. Stoughton, o mordomo, era o responsável pelo serviço, mas ele
cava ocupado escolhendo os vinhos e comandando a preparação do salão
de baile e considerava sua responsabilidade inspecionar a prataria depois de
limpa, não limpá-la ele próprio, nem mesmo as peças mais valiosas. Na
semana que precedia o baile, esperava-se que Bidwell passasse a maior parte
dos dias, e muitas vezes boa parte da noite, sentado de avental diante da mesa
da copa, com a prataria da família Darcy espalhada à sua frente — facas,
garfos, colheres, candelabros, fruteiras, baixelas em que a comida seria
servida. Enquanto polia, ele imaginava os candelabros, com suas velas altas,
iluminando cabelos adornados de joias, rostos afogueados e trêmulas ores
nos vasos.
Nunca receava deixar sua família sozinha na cabana da oresta, e a família,
por sua vez, também não sentia nenhum temor. A cabana havia cado
abandonada durante anos, até que o pai de Darcy a reformou de modo a
deixá-la em condições de ser usada por um dos empregados. Mas, embora ela
fosse maior do que as casas dos criados costumavam ser e oferecesse paz e
tranquilidade, poucos estavam dispostos a morar lá. Fora construída pelo
bisavô de Darcy, um recluso que passava a maior parte de seus dias sozinho,
acompanhado apenas por seu cachorro, Soldier. Naquela cabana, ele lia,
contemplava os troncos grossos das árvores e o emaranhado de arbustos que
eram seu baluarte contra o mundo e até preparava as próprias refeições, que
eram simples. Então, quando George Darcy tinha sessenta anos, Soldier cou
doente, fraco e tomado de dores. Foi o avô de Bidwell, na época ainda um
menino que ajudava a cuidar dos cavalos, quem foi à cabana para levar leite
fresco e encontrou o patrão morto. George Darcy havia matado Soldier com
um tiro e depois se matado.
Os pais de Bidwell haviam morado na cabana antes dele. A história dela não
lhes causava nenhuma apreensão, como também não causava em Bidwell. A
fama de que a oresta era mal-assombrada surgira por conta de uma tragédia
mais recente, que ocorrera pouco depois de o avô do atual sr. Darcy herdar a
propriedade. Um rapaz que trabalhava como ajudante de jardineiro em
Pemberley e era lho único havia sido julgado e considerado culpado por ter
invadido a propriedade de um magistrado local, Sir Selwyn Hardcastle, para
caçar cervos. Invadir propriedades para caçar animais geralmente não era
considerado uma ofensa capital e a maioria dos magistrados lidava com esses
casos de maneira compassiva quando os tempos andavam difíceis e havia
muita fome, mas roubar de um parque de cervos era um crime punível com
pena de morte, e o pai de Sir Selwyn havia feito questão de que a pena
máxima fosse aplicada. O sr. Darcy havia feito um vigoroso apelo por
clemência que, no entanto, foi rejeitado por Sir Selwyn. Uma semana depois
da execução do rapaz, a mãe se enforcou. O sr. Darcy havia feito tudo o que
podia para evitar a morte do rapaz, mas acreditava-se que a mulher morta o
considerava o principal responsável. Antes de se matar, ela havia amaldiçoado
a família Darcy, e então nasceu a superstição de que quem cometesse a
imprudência de ir à oresta depois do anoitecer veria o fantasma dela
vagando por entre as árvores e carpindo sua dor, e de que essa aparição
vingadora sempre pressagiava uma morte na propriedade.
Bidwell não tinha paciência para essas tolices, mas na semana anterior havia
chegado ao seu conhecimento que duas criadas, Betsy e Joan, andavam
contando aos cochichos no refeitório dos empregados que tinham visto o
fantasma quando se aventuraram a ir à oresta em resposta a um desa o. Ele
havia recomendado às duas que não espalhassem esse disparate, que, se
chegasse aos ouvidos da sra. Reynolds, poderia trazer sérias consequências
para elas. Embora a lha de Bidwell, Louisa, não trabalhasse mais em
Pemberley, pois era necessária em casa para ajudar a cuidar do irmão doente,
ele se perguntava se aquela história teria chegado de alguma forma aos seus
ouvidos. Ela e a mãe sem dúvida andavam tendo mais cuidado do que nunca
para não se esquecer de trancar a porta da cabana à noite e, além disso,
tinham pedido a ele que, quando voltasse tarde de Pemberley, lhes desse um
sinal, batendo três vezes com força na porta e depois quatro vezes mais
suavemente, antes de enfiar a chave na fechadura.
A cabana tinha fama de trazer azar, mas só nos últimos anos a família
Bidwell fora atingida pela desdita. Bidwell ainda se lembrava, tão vividamente
que era como se tivesse sido no dia anterior, da tristeza que o acometera no
momento em que despiu, pela última vez, a admirável libré de cocheiro-chefe
do sr. Darcy de Pemberley e deu adeus aos seus queridos cavalos. Para
completar, no último ano, seu único lho homem, em quem ele depositava
todas as esperanças para o futuro, morria lenta e dolorosamente.
Como se não bastasse, a lha mais velha, que ele e sua esposa jamais
haviam esperado que fosse lhes dar preocupação, causava ansiedade. Tudo
sempre tinha corrido bem para Sarah. Ela se casara com o lho do dono da
estalagem King’s Arms, em Lambton, um rapaz ambicioso que havia se
mudado para Birmingham e aberto uma mercearia com o dinheiro que
herdara do avô. O negócio ia de vento em popa, mas Sarah andava triste e
exausta. Em pouco mais de quatro anos de casamento, já havia um quarto
bebê a caminho, e a labuta de cuidar dos lhos e ajudar a tomar conta da loja
tinha suscitado uma carta desesperada, em que Sarah pedia que sua irmã
Louisa fosse ajudá-la. A mulher de Bidwell entregou a carta a ele sem dizer
nada, mas ele sabia que ela estava tão preocupada quanto ele com o fato de a
lha, uma moça antes tão alegre, saudável e sensata, estar naquela situação.
Bidwell leu a carta e a devolveu à esposa, dizendo apenas: “Will vai sentir
muita falta de Louisa. Eles sempre foram muito chegados. Você vai conseguir
se ajeitar sem ela?”.
“Vou ter de dar um jeito. Sarah não teria escrito essa carta se não estivesse
desesperada. Não é do feitio dela.”
Então, Louisa tinha passado os cinco meses antes do nascimento do bebê
em Birmingham ajudando a cuidar das outras três crianças e ficado por lá mais
três meses depois, enquanto Sarah se recuperava. Havia voltado recentemente
para casa, trazendo consigo o bebê, Georgie, tanto para ajudar a irmã como
para que a mãe e o irmão pudessem conhecê-lo antes que Will morresse.
Bidwell, porém, nunca tinha cado contente com esse arranjo. Estava tão
ansioso quanto a esposa para conhecer o neto, mas achava que uma cabana
onde se cuidava de um homem agonizante não era lugar para se cuidar de um
bebê. Will estava doente demais para conseguir ter muito mais que um vago
interesse pelo recém-chegado e o choro do bebê à noite atrapalhava seu sono
e o deixava a ito. Além disso, Bidwell percebia que Louisa não estava feliz.
Ela andava inquieta e, apesar do ar gelado do outono, parecia preferir
caminhar pela oresta, com o bebê nos braços, a car em casa com a mãe e
Will. Tinha até estado ausente, como que de propósito, quando o reitor, o
idoso e erudito reverendo Percival Oliphant, fez uma de suas frequentes visitas
a Will, o que era estranho, porque Louisa sempre havia gostado do reitor, que
demonstrava interesse por ela desde que era criança, emprestando-lhe livros e
convidando-a para frequentar seu curso de latim, com seu pequeno grupo de
alunos particulares. Bidwell tinha recusado o convite — isso só daria ideias a
Louisa que não condiziam com sua posição social —, mas, mesmo assim, o
convite fora feito. Claro que era comum as moças carem nervosas e ansiosas
quando estavam prestes a se casar, mas, agora que Louisa voltara para casa,
por que Joseph Billings não fazia mais visitas à cabana com a regularidade de
antes? Eles mal o viam. Bidwell se perguntava se os cuidados com o bebê
teriam feito tanto Louisa quanto Joseph atentarem para as responsabilidades e
os riscos da vida conjugal e reconsiderarem sua decisão. Ele esperava que
não. Joseph era sério e ambicioso e, na opinião de alguns, aos trinta e quatro
anos, velho demais para Louisa, mas ela parecia gostar dele. Os dois iam
morar em Highmarten, a dezessete milhas dele e de Martha, e trabalhariam
numa residência que tinha um ambiente doméstico tranquilo, com uma patroa
compassiva e um patrão generoso, com o futuro garantido e uma longa vida
pela frente, previsível, segura, respeitável. Com tudo isso à sua espera, que
serventia tinha para uma moça o estudo e o latim?
Talvez tudo se acertasse depois que Georgie voltasse para perto da mãe.
Louisa ia viajar com ele no dia seguinte, tendo sido resolvido que ela e o bebê
iriam de caleche até a estalagem King’s Arms, em Lambton, e de lá seguiriam
na diligência postal até Birmingham, onde o marido de Sarah, Michael
Simpkins, ia pegá-los de cabriolé. No mesmo dia, Louisa voltaria de diligência
para Pemberley. A vida seria mais fácil para a mulher de Bidwell e para Will
depois que o bebê tivesse sido levado de volta para casa, mas quando
Bidwell voltasse para a cabana no domingo, depois de ajudar a arrumar a
casa após o baile, seria estranho não ver Georgie estender as mãozinhas
rechonchudas para lhe dar boas-vindas.
Esses pensamentos inquietantes não tinham impedido Bidwell de continuar a
trabalhar, mas, quase sem perceber, ele havia diminuído seu ritmo e, pela
primeira vez, se permitido perguntar se a limpeza da prataria não havia se
tornado uma tarefa cansativa demais para ele cumprir sozinho. Mas admitir
isso seria uma humilhante derrota. Puxando com determinação o último
candelabro para perto de si, pegou um pano limpo e, relaxando os músculos
doloridos sobre a cadeira, debruçou-se de novo sobre sua tarefa.
5
Na sala de música, os cavalheiros não deixaram as senhoras esperando por
muito tempo, e a atmosfera cou mais leve depois que todos se acomodaram
confortavelmente no sofá e nas poltronas. Darcy abriu o piano e as velas que
iluminavam o instrumento foram acesas. Assim que eles se sentaram, Darcy se
virou para Georgiana e, de um jeito quase formal, como se ela fosse uma
convidada, disse que seria um prazer para eles todos se ela pudesse tocar e
cantar. Olhando rapidamente para Henry Alveston, Georgiana se levantou e ele
a acompanhou até o piano. Virando-se para o grupo, ela disse: “Como temos
um tenor conosco, achei que seria agradável cantar alguns duetos”.
“Sim!”, exclamou Bingley com entusiasmo. “Ótima ideia. Vamos ouvir os
dois. Semana passada eu e Jane tentamos cantar duetos juntos, não foi, meu
amor? Mas não vou sugerir que repitamos a experiência esta noite. Fui um
desastre, não fui, Jane?”
Jane riu. “Não, você se saiu muito bem. Mas, infelizmente, não tenho
praticado muito desde que Charles Edward nasceu. Não vamos impingir
nossos esforços musicais aos nossos amigos, quando temos à disposição a
srta. Georgiana, que tem um talento musical que nem eu nem você podemos
ter qualquer esperança de um dia vir a ter.”
Elizabeth tentou se entregar à música, mas seus olhos e seus pensamentos
teimavam em se voltar para o casal ao piano. Depois das duas primeiras
músicas, uma terceira foi solicitada e então houve uma pausa enquanto
Georgiana pegava uma nova partitura e a mostrava a Alveston. Ele folheou a
partitura e apontou para trechos que talvez tenham lhe parecido difíceis, ou
talvez apenas estivesse em dúvida quanto à pronúncia do italiano. Georgiana
levantou a cabeça para olhar para Alveston, depois tocou algumas notas com
a mão direita e então ele sorriu e aquiesceu. Ambos pareciam esquecidos da
plateia que os aguardava. Foi um momento de intimidade que os isolou num
mundo só deles, mas que deu lugar a um momento em que suas
individualidades foram apagadas pelo amor que ambos tinham pela música.
Vendo seus rostos enlevados iluminados pelas velas e os sorrisos que os dois
abriram quando a dúvida foi dissolvida e Georgiana se sentou para tocar,
Elizabeth sentiu que o que havia entre eles não era uma atração passageira
derivada da proximidade física ou mesmo de um amor comum pela música.
Certamente estavam apaixonados, ou prestes a se apaixonar, aquele período
encantador de descoberta mútua, expectativa e esperança.
Era um encantamento que Elizabeth nunca tinha conhecido. Ainda lhe
causava surpresa pensar que, entre a primeira e insultante proposta de Darcy e
sua segunda, penitente e bem-sucedida súplica de amor, eles só haviam cado
a sós durante menos de meia hora: quando ela e os Gardiner estavam
visitando Pemberley e Darcy voltou inesperadamente e os dois caminharam
juntos pelos jardins; e no dia seguinte, quando Darcy foi até a estalagem de
Lambton onde ela estava hospedada e a encontrou às lágrimas, segurando nas
mãos a carta em que Jane dava a notícia da fuga de Lydia. Darcy tinha ido
embora logo depois e ela pensou que nunca mais fosse vê-lo. Se fosse cção,
será que mesmo o romancista mais brilhante conseguiria tornar crível uma
história em que o orgulho fosse vencido e o preconceito superado num
período tão curto? E mais tarde, quando Darcy e Bingley voltaram para
Nether eld e ela já havia aceitado o pedido dele, o noivado, longe de ser um
período de alegria, tinha sido um dos mais a itivos e embaraçosos de sua vida
enquanto ela se esforçava para desviar a atenção de Darcy das ruidosas e
exuberantes felicitações de sua mãe, que quase chegara a agradecer a enorme
condescendência por ele demonstrada ao pedir a mão de sua lha em
casamento. Nem Jane nem Bingley haviam sofrido da mesma forma. Sendo um
homem de bom gênio e estando obcecado por seu amor, Bingley ou não
notava ou tolerava a vulgaridade da futura sogra. E será que ela própria teria
se casado com Darcy se ele fosse um pároco pobre ou um advogado em
início de carreira? Era difícil imaginar o sr. Fitzwilliam Darcy em qualquer das
duas posições, mas a honestidade exigia uma resposta. Elizabeth sabia que
não era talhada para os tristes expedientes da pobreza.
O vento continuava soprando forte e as duas vozes eram acompanhadas
pelos gemidos e uivos na chaminé e pela crepitação intermitente do fogo, de
modo que o tumulto do lado de fora parecia ser o contraponto da natureza
para a beleza das duas vozes mescladas e um acompanhamento adequado
para o turbilhão que se instalara na cabeça de Elizabeth. Ela nunca havia
sentido medo de ventanias antes e costumava saborear a segurança e o
conforto de estar dentro de casa enquanto o vento varria a oresta de
Pemberley, esbravejando inutilmente. Agora, porém, ele lhe parecia uma força
maligna, que buscava cada chaminé, cada fresta para in ltrar-se na casa.
Elizabeth não era de deixar-se dominar pela imaginação e tentou tirar da
cabeça essas fantasias mórbidas, mas mesmo assim persistia dentro dela uma
emoção que nunca sentira antes. Pensou: Aqui estamos nós, no início de um
novo século, cidadãos do país mais civilizado da Europa, cercados do esplendor
que é fruto do engenho e da arte da nação e dos livros que são o relicário de sua
literatura, enquanto lá fora existe outro mundo do qual a riqueza, a educação e
o privilégio podem nos resguardar, um mundo em que os homens são tão
violentos e destrutivos quanto no mundo animal. Mas talvez nem mesmo o mais
afortunado de nós consiga ignorá-lo e mantê-lo à distância para sempre.
Ela tentava recuperar a tranquilidade concentrando-se no amálgama das
duas vozes, mas cou aliviada quando a música terminou e chegou a hora de
tocar o sino e pedir o chá.
A bandeja foi trazida por Billings, um dos lacaios. Elizabeth sabia que ele
estava destinado a ir embora de Pemberley na primavera, quando, se tudo
corresse bem, ocuparia o lugar do mordomo dos Bingley, quando o velho
nalmente se aposentasse. A mudança representava uma ascensão em
importância e prestígio, e tornara-se ainda mais bem-vinda para Billings
quando, na Páscoa retrasada, ele cou noivo de Louisa, a lha de Thomas
Bidwell, que se mudaria com ele para Highmarten e assumiria a posição de
copeira-chefe. Em seus primeiros meses em Pemberley, Elizabeth tinha cado
surpresa com o modo como a família se envolvia na vida de seus empregados.
Nas raras visitas que faziam a Londres, ela e Darcy cavam hospedados na
residência que eles mantinham na cidade ou então na casa da irmã de Bingley,
a sra. Hurst, e do marido, que viviam com certa opulência. Naquele mundo, os
empregados levavam vidas tão apartadas da família que se percebia que
raramente a sra. Hurst sabia sequer o nome daqueles que a serviam. Em
Pemberley, no entanto, embora o sr. e a sra. Darcy fossem cuidadosamente
protegidos dos problemas domésticos, havia acontecimentos — como
casamentos, noivados, mudanças de emprego, doenças ou aposentadorias —
que se erguiam acima da incessante vida de atividade que garantia o bom
funcionamento da casa, e era importante tanto para Darcy quanto para
Elizabeth que esses ritos de passagem, elementos daquela vida ainda em
grande parte secreta da qual o conforto deles tanto dependia, fossem
reconhecidos e celebrados.
Billings pousou a bandeja do chá diante de Elizabeth com uma espécie de
elegância estudada, como que para mostrar a Jane o quanto ele era digno da
honra que o aguardava. Seria, Elizabeth imaginava, uma situação confortável
tanto para ele quanto para sua nova esposa. Como o pai de Louisa antevia, os
Bingley eram patrões generosos, compreensivos, tolerantes e rigorosos apenas
no cuidado um com o outro e com os filhos.
Mal havia Billings se retirado quando o coronel Fitzwilliam se levantou de
sua cadeira e foi até Elizabeth. “A senhora se incomodaria, sra. Darcy, se eu
saísse um pouco para fazer meus exercícios noturnos? Tenho a intenção de
cavalgar com Talbot à beira do rio. Peço desculpas por interromper uma
reunião familiar tão alegre, mas durmo mal se não pego um pouco de ar
fresco antes de me deitar.”
Elizabeth garantiu ao coronel que não era preciso pedir desculpas. Ele levou
a mão dela brevemente aos lábios, um gesto incomum para ele, e foi andando
em direção à porta.
Henry Alveston, que estava sentado com Georgiana no sofá, levantou a
cabeça e disse: “O luar no rio é algo mágico, coronel, embora talvez seja mais
bem apreciado quando temos companhia. Mas o senhor e Talbot têm uma
cavalgada difícil pela frente. Não invejo a batalha que terão de travar contra
esse vento”.
Da porta, o coronel virou para trás e olhou para Alveston. Havia uma frieza
em sua voz quando ele respondeu: “Então ainda bem que não é preciso que o
senhor me acompanhe”. Despedindo-se do grupo com uma mesura, ele se
retirou.
Houve um momento de silêncio em que as palavras ditas pelo coronel ao
sair e a estranheza daquele seu passeio noturno a cavalo caram na cabeça de
todos, mas em que o constrangimento inibiu qualquer comentário. Henry
Alveston era o único que não parecia desconcertado, embora, olhando de
relance para o rosto dele, Elizabeth não tivera dúvida de que captara a crítica
implícita.
Foi Bingley quem quebrou o silêncio. “Por gentileza, srta. Georgiana, toque
mais algumas músicas para nós, se não estiver muito cansada. Mas, por favor,
termine seu chá antes. Não podemos abusar da sua gentileza. Que tal aquelas
canções folclóricas irlandesas que a senhorita tocou quando jantamos aqui no
verão passado? Não é preciso cantar, basta a música. A senhorita precisa
poupar sua voz. Lembro que até dançamos um pouco, não foi? Mas naquele
dia os Gardiner estavam aqui, e o sr. e a sra. Hurst também, de modo que
éramos cinco casais, e Mary tocou para nós.”
Georgiana voltou para o piano, Alveston cou perto dela para virar as
páginas da partitura e, por algum tempo, as canções alegres surtiram efeito.
Depois, quando a música terminou, eles conversaram sobre assuntos a esmo,
trocando opiniões que já haviam sido expressas várias vezes antes e notícias
familiares que já não eram novidade. Meia hora depois, Georgiana foi a
primeira a tomar a iniciativa de se recolher, dando boa-noite a todos. Quando
ela tocou o sino para chamar sua criada, Alveston acendeu e lhe entregou uma
vela e a acompanhou até a porta. Depois que Georgiana se foi, Elizabeth teve
a impressão de que o resto do grupo estava também cansado, mas sem
energia para se levantar e dar boa-noite. Foi Jane quem tomou a iniciativa em
seguida e, olhando para o marido, murmurou que estava na hora de ir para a
cama. Grata, Elizabeth seguiu o exemplo da irmã logo em seguida. Um lacaio
foi convocado para trazer e acender as velas noturnas, as velas que
iluminavam o piano foram apagadas e todos estavam se dirigindo à porta
quando Darcy, em pé em frente à janela, exclamou de repente:
“Meu Deus! O que aquele cocheiro tolo está fazendo? Desse jeito a caleche
vai tombar! Que loucura! E quem são aquelas pessoas? Elizabeth, estamos
esperando mais alguém hoje à noite?”
“Não, ninguém.”
Elizabeth e o resto do grupo correram para a janela e viram ao longe uma
caleche avançando aos bordos e em disparada pela estrada que cortava a
floresta em direção à casa, as duas lanternas laterais cintilando como pequenas
chamas. A imaginação completava o que estava distante demais para ser visto
— as crinas dos cavalos se agitando ao vento, seus olhos desatinados e
ombros tensos, o cocheiro sacudindo as rédeas com violência. A caleche
estava longe demais para que fosse possível ouvir o barulho de suas rodas, e
Elizabeth tinha a impressão de estar vendo a carruagem espectral das lendas, o
temido arauto da morte, voando silenciosamente pela noite enluarada.
“Bingley, que aqui com as senhoras que vou ver do que se trata”, disse
Darcy.
Mas suas palavras foram abafadas por mais um longo uivo do vento na
chaminé e o grupo inteiro saiu da sala de música atrás dele e desceu a escada
principal rumo ao saguão. Stoughton e a sra. Reynolds já estavam lá. A um
gesto de Darcy, Stoughton abriu a porta. Na mesma hora, o vento irrompeu
porta adentro, uma força fria e irresistível que pareceu tomar posse da casa
inteira, apagando com um único sopro todas as velas, salvo as do candelabro
do teto.
O coche continuava avançando em disparada, descrevendo instavelmente a
curva ao m da estrada da oresta para se aproximar da casa. Vinha tão
rápido que Elizabeth achou que passaria direto pela porta, mas pouco depois
ouviu os gritos do cocheiro e o viu puxando as rédeas para trás com toda a
força. Os cavalos pararam por m e ali caram, relinchando, inquietos.
Imediatamente e antes que o cocheiro pudesse desmontar, a porta do coche
se abriu e, no raio de luz que vinha de dentro da casa, eles viram uma mulher
quase cair para fora, berrando ao vento. Com o chapéu pendurado pela ta
em volta de seu pescoço, parecia uma criatura selvagem da noite ou uma
louca fugida do cativeiro. Por um momento, Elizabeth cou paralisada,
incapaz de agir ou de pensar. Depois, reconheceu aquela aparição selvagem e
histérica como Lydia e correu para ajudá-la. Mas Lydia a empurrou para o
lado e, ainda aos berros, se atirou nos braços de Jane, quase a derrubando.
Bingley acudiu a esposa e, juntos, eles levaram Lydia para dentro, quase a
carregando. Ela continuava gritando e lutando, como se não tivesse
consciência de quem a estava segurando, mas, uma vez do lado de dentro,
protegidos do vento, eles conseguiram ouvir suas palavras roucas e
soluçantes.
“Wickham morreu! Denny deu um tiro nele! Por que vocês não vão procurá-
lo? Eles estão lá na oresta. Por que vocês não fazem alguma coisa? Ai, meu
Deus, eu sei que ele morreu!”
E, então, os soluços viraram gemidos e ela desabou nos braços de Jane e
Bingley, enquanto, juntos, eles tentavam conduzi-la delicadamente em direção
à cadeira mais próxima.
livro dois
O CORPO NA FLORESTA
1
Instintivamente, Elizabeth havia se aproximado para ajudar, mas Lydia a
empurrou para o lado com uma força surpreendente, bradando: “Você não,
você não”. Jane tomou a dianteira e, ajoelhando-se ao lado da cadeira e
segurando as duas mãos de Lydia entre as suas, procurou acalmá-la com
palavras suaves e compreensivas, enquanto Bingley, a ito, observava
impotente. Então, as lágrimas de Lydia se transformaram em arquejos
estranhos e ruidosos, como se ela estivesse lutando para conseguir respirar,
um som perturbador que não parecia humano.
Stoughton havia deixado a porta da frente entreaberta. Parado ao lado dos
cavalos, o cocheiro parecia abalado demais para conseguir se mover, e então
Alveston e Stoughton tiraram a mala de Lydia de dentro da caleche e a
carregaram até o saguão. Stoughton se virou para Darcy. “E quanto às duas
outras malas, senhor?”
“Deixe-as na caleche. O sr. Wickham e o capitão Denny provavelmente vão
seguir viagem depois que os encontrarmos, então não faz sentido trazer a
bagagem deles para cá. Chame Wilkinson, sim, Stoughton? Acorde-o se ele
estiver na cama. Diga-lhe para ir buscar o dr. McFee. É melhor ele ir de coche;
não quero que o doutor ande a cavalo nessa ventania. Diga a Wilkinson para
mandar meus cumprimentos ao dr. McFee e explicar que a sra. Wickham está
aqui em Pemberley e precisa da atenção dele.”
Deixando Lydia aos cuidados das mulheres, Darcy se dirigiu rapidamente
ao lugar onde se encontrava o cocheiro, junto aos cavalos. Ele olhava
ansiosamente para a porta, mas, ao ver Darcy se aproximar, endireitou o
corpo e cou parado rigidamente em posição de sentido. Seu alívio ao ver o
senhor da casa era quase palpável. Ele tinha feito o melhor que podia numa
emergência e, agora que a normalidade fora restabelecida, cumpria seu dever:
postava-se ao lado de seus cavalos e aguardava ordens.
“Quem é você? Já o conheço?”, Darcy perguntou.
“Sou George Pratt, senhor, da estalagem Green Man.”
“Claro. Você é o cocheiro do sr. Piggott. Conte-me o que aconteceu na
oresta. Fale de forma clara e breve, mas quero saber a história toda, e
rápido.”
Pratt estava claramente ansioso para contar o que havia acontecido e pôs-se
a falar com enorme pressa. “O sr. Wickham, a esposa e o capitão Denny
foram para a estalagem hoje à tarde, mas eu não estava lá quando chegaram.
Umas oito horas da noite, o sr. Piggott me mandou trazer o sr. e a sra.
Wickham e o capitão aqui para Pemberley, quando a senhora casse pronta,
pela estrada da oresta. Era para eu deixar a sra. Wickham aqui para que
pudesse ir ao baile, ou pelo menos foi isso o que ela disse antes para a sra.
Piggott. Depois disso, minhas ordens eram levar os dois cavalheiros para a
King’s Arms, em Lambton, e voltar para a estalagem com a caleche. Ouvi a sra.
Wickham dizer para a sra. Piggott que os dois cavalheiros seguiriam viagem
para Londres no dia seguinte e que o sr. Wickham tinha esperanças de
conseguir um trabalho lá.”
“Onde estão o sr. Wickham e o capitão Denny?”
“Não sei, senhor. Quando estávamos no meio da oresta, o capitão Denny
bateu na porta para mandar a caleche parar e desceu. Ele gritou alguma coisa
como ‘Não quero mais saber disso e não quero mais saber de você. Não vou
tomar parte nisso’, depois correu para o meio da oresta. Então, o sr.
Wickham saiu correndo atrás dele, gritando para que voltasse e deixasse de
tolices. Aí a sra. Wickham começou a berrar, pedindo para ele não a deixar
sozinha. Ela quase foi atrás dele, mas depois que desceu da caleche pensou
melhor e voltou para dentro. A sra. Wickham berrava de um jeito medonho e
deixava os cavalos tão nervosos que eu mal conseguia segurar os bichos, e
então ouvimos os tiros.”
“Quantos tiros?”
“Não sei dizer com certeza, senhor, porque foi uma confusão danada, com
o capitão fugindo, o sr. Wickham correndo atrás e a sra. Wickham gritando
sem parar, mas ouvi um tiro com certeza, senhor, e talvez mais um ou dois.”
“Quanto tempo fazia que os cavalheiros tinham saído da caleche quando
você ouviu os tiros?”
“Acho que uns quinze minutos, senhor, mas pode ter sido mais. Sei que
camos lá parados um bocado de tempo, esperando os cavalheiros voltar.
Mas ouvi tiros, sim, senhor. Foi então que a sra. Wickham começou a gritar
que nós todos íamos morrer e me mandou tocar para Pemberley a toda
pressa. Parecia ser a melhor coisa a fazer, senhor, já que os cavalheiros não
estavam lá para dar ordens. Achei que eles deviam ter se perdido na oresta,
mas eu não podia sair para procurar os dois, senhor. Não com a sra. Wickham
gritando que íamos morrer e com os cavalos nervosos daquele jeito.”
“Não, claro que não. Os tiros vieram de perto?”
“Vieram bem de perto, sim, senhor. Acho que a pessoa devia estar atirando
a uns cem passos de distância de nós, mais ou menos.”
“Sei. Bem, vou precisar que você nos leve ao lugar em que os dois
cavalheiros se embrenharam na oresta. Vou montar um grupo para procurar
os dois.”
Esse plano desagradou Pratt de tal forma que ele até se arriscou a fazer uma
objeção. “Recebi ordens para ir até a King’s Arms em Lambton, senhor, e
depois voltar para a Green Man. Foram ordens muito claras. E os cavalos vão
ficar com um medo danado de voltar para a floresta.”
“Obviamente não faz sentido ir até Lambton sem o sr. Wickham e o capitão
Denny. De agora em diante você segue minhas ordens. Elas serão bem claras.
Sua tarefa é controlar os cavalos. Espere aqui e mantenha-os quietos. Depois
converso com o sr. Piggott. Você não vai ser repreendido se zer o que eu
mandar.”
Dentro da casa, Elizabeth se virou para a sra. Reynolds e disse em voz baixa:
“Precisamos levar a sra. Wickham para a cama. A do quarto de hóspedes da
ala sul no segundo andar já está feita?”.
“Já, senhora, e a lareira também já foi acesa. Sempre preparamos esse
quarto e mais dois outros na véspera do baile de Lady Anne, para o caso de
termos outra noite de outubro como aquela de 97, quando as estradas caram
cobertas por um palmo de neve e alguns convidados que tinham vindo de
longe não puderam voltar para casa. É para lá que devemos levar a sra.
Wickham?”
“Sim, seria melhor, mas, no estado em que ela se encontra, não podemos
deixá-la sozinha. Alguém terá de dormir no mesmo quarto”, respondeu
Elizabeth.
“Há um sofá confortável e também uma cama de solteiro no quarto de vestir
que ca ao lado, senhora”, disse a sra. Reynolds. “Posso mandar transferir o
sofá para o quarto e levar cobertas e travesseiros. Imagino que Belton ainda
esteja lá em cima, esperando a senhora. Ela deve desconfiar de que há algo de
errado acontecendo e é uma moça extremamente discreta. Sugiro que eu e ela
nos revezemos para dormir no sofá no quarto da sra. Wickham.”
“A senhora e Belton precisam descansar esta noite. A sra. Bingley e eu
devemos conseguir nos arranjar.”
Voltando para o saguão, Darcy viu Lydia sendo quase carregada escada
acima por Bingley e Jane, enquanto a sra. Reynolds seguia na frente
mostrando o caminho. Os ruidosos arquejos tinham cedido lugar a soluços
mais silenciosos, mas, naquele momento, ela se desvencilhou dos braços de
Jane e, virando-se, cravou um olhar furioso em Darcy. “Por que o senhor
ainda está aqui? Por que não sai e vai procurá-lo? Eu disse que ouvi tiros. Ah,
meu Deus, ele pode estar ferido ou morto! Meu marido pode estar morrendo e
o senhor fica aí parado. Pelo amor de Deus, vá!”
Darcy respondeu com calma: “Estamos nos preparando para sair agora. Eu
lhe trarei notícias assim que soubermos de alguma coisa. Não há razão para
esperar o pior. O sr. Wickham e o capitão Denny podem já estar vindo para
cá a pé. Agora tente descansar”.
Murmurando palavras tranquilizadoras para Lydia, Jane e Bingley nalmente
chegaram ao último degrau da escada e, conduzidos pela sra. Reynolds,
seguiram pelo corredor e desapareceram de vista.
“Temo que Lydia acabe passando mal se continuar nervosa assim.
Precisamos chamar o dr. McFee; ele pode lhe dar alguma coisa para que que
mais calma”, disse Elizabeth.
“Já mandei que fossem buscá-lo de caleche, e agora temos de procurar
Wickham e Denny na floresta. Lydia conseguiu lhe contar o que aconteceu?”
“Ela conseguiu controlar o choro por tempo su ciente para contar os fatos
principais e exigir que a mala dela fosse trazida para cá destrancada. Quase
acreditei que ela ainda está com esperança de ir ao baile.”
Darcy tinha a sensação de que o magní co saguão de Pemberley, com seus
móveis elegantes, retratos de família e a linda escadaria que subia em curva até
a galeria, havia se tornado tão estranho de repente que era como se ele
estivesse entrando ali pela primeira vez. A ordem natural que dava segurança a
Darcy desde menino tinha sido subvertida e, por um momento, ele se sentiu
tão impotente como se não fosse mais o senhor de sua casa, um sentimento
absurdo que extravasava irritando-se com detalhes. Não era dever de
Stoughton, muito menos de Alveston, carregar malas, e Wilkinson, por longa
tradição, era o único membro da criadagem que, além de Stoughton, recebia
ordens diretamente do patrão. Mas pelo menos algo estava sendo feito. A
bagagem de Lydia fora levada para dentro de casa e Wilkinson iria buscar o
dr. McFee com a caleche de Pemberley. Instintivamente, Darcy procurou sua
esposa e segurou-lhe a mão delicadamente. A mão de Elizabeth estava fria
como a de um cadáver, mas ele sentiu sua pressão carinhosa e tranquilizadora
e isso o reconfortou.
Bingley vinha descendo a escada e, em seguida, chegaram Alveston e
Stoughton. Darcy relatou brevemente o que soubera através de Pratt, mas ficou
claro que Lydia, mesmo tão a ita, havia de fato conseguido contar os
elementos essenciais da história entre um arquejo e outro.
“Pratt terá de nos mostrar o lugar em que Denny e Wickham desceram do
coche, então iremos até lá na caleche de Piggott”, disse Darcy. “É melhor você
car aqui com as senhoras, Charles, e Stoughton pode vigiar a porta. Se quiser
ir também, Alveston, acho que nós três conseguiremos nos arranjar”.
“Por favor, senhor, conte com minha ajuda para o que for preciso”, disse
Alveston.
Darcy se virou para Stoughton. “É possível que precisemos de uma maca.
Há uma guardada no cômodo ao lado da sala das armas, não?”
“Sim, senhor, a que foi usada quando Lorde Instone quebrou a perna numa
caçada.”
“Então vá buscá-la, sim? Também vamos precisar de lençóis, uma garrafa de
conhaque, água e lanternas.”
“Eu posso ajudar a trazer essas coisas”, disse Alveston, e então os dois
imediatamente se retiraram.
Darcy tinha a impressão de que haviam passado tempo demais falando e
fazendo preparativos, mas, olhando para seu relógio, viu que apenas quinze
minutos haviam transcorrido desde a dramática chegada de Lydia. Foi então
que ouviu o barulho de cascos de cavalo lá fora e, virando-se, viu um
cavaleiro galopando no relvado à beira do rio. O coronel Fitzwilliam havia
voltado. Antes que tivesse tido tempo de desmontar, Stoughton surgiu de trás
de um dos cantos da casa trazendo uma maca no ombro, seguido por
Alveston e por um empregado, que vinham com os braços carregados com
dois lençóis dobrados, uma garrafa de conhaque e outra de água e três
lanternas. Darcy foi até o coronel e rapidamente lhe fez um relato conciso dos
acontecimentos da noite e contou o que eles pretendiam fazer.
Fitzwilliam ouviu em silêncio e depois disse: “Você está montando uma
expedição e tanto para satisfazer uma mulher histérica. Aposto que aqueles
dois tontos se perderam na floresta, ou um deles tropeçou numa raiz de árvore
e torceu o tornozelo. É provável que estejam agora mesmo mancando rumo a
Pemberley ou à King’s Arms, mas se o cocheiro também ouviu tiros é melhor
irmos armados. Vou buscar minha pistola e me encontro com vocês na
caleche. Se for necessário usar a maca, seria bom contar com mais um
homem, e um cavalo vai ser um transtorno se tivermos de nos embrenhar na
oresta, o que é muito provável. Vou trazer também minha bússola de bolso.
Dois homens adultos perdidos na oresta feito crianças já é estúpido o
bastante, cinco seria ridículo”.
Então, ele montou em seu cavalo e foi trotando rapidamente em direção aos
estábulos. Não havia oferecido nenhuma explicação para sua ausência e
Darcy, abalado pelos acontecimentos da noite, não tinha sequer se lembrado
dele. Re etiu que, por onde quer que o coronel tivesse andado, sua volta seria
inoportuna se atrasasse a partida do grupo ou exigisse informações e
explicações que nenhum deles podia ainda fornecer, mas era verdade que
seria bom poder contar com mais um homem. Bingley caria na casa para
cuidar das mulheres e Darcy podia, como sempre, contar com Stoughton e
com a sra. Reynolds para garantir que todas as portas e janelas
permanecessem trancadas e para lidar com empregados curiosos. No entanto,
não houve nenhum atraso signi cativo. Seu primo voltou depois de poucos
minutos e ele e Alveston amarraram a maca à caleche. Em seguida, os três
homens subiram na caleche e Pratt montou num dos cavalos.
Foi então que Elizabeth apareceu e correu até a caleche. “Estamos
esquecendo Bidwell. Se houver algum problema na oresta, seria bom que ele
estivesse com a família. Talvez até já esteja lá. O senhor sabe se ele já foi para
casa, Stoughton?”
“Não foi, não, senhora. Ainda está polindo a prataria e só previa voltar para
casa no domingo. Alguns dos empregados domésticos continuam trabalhando,
senhora.”
Antes que Elizabeth pudesse responder, o coronel desceu rapidamente da
caleche, dizendo: “Vou buscá-lo. Sei onde ele deve estar: na copa”. E se foi.
Olhando para o marido, Elizabeth viu que ele franzira o cenho e concluiu
que estava tão surpreso quanto ela. Agora que o coronel havia chegado, cou
claro que ele estava determinado a assumir o controle da expedição em todos
os aspectos, mas Elizabeth disse a si mesma que isso talvez não fosse de
espantar; a nal, o coronel estava acostumado a assumir o comando em
momentos de crise.
Ele voltou logo depois, mas sem Bidwell, e disse: “Ele cou tão a ito com a
ideia de abandonar seu trabalho inacabado que achei melhor não insistir.
Como sempre faz na véspera do baile, Stoughton já tomou as providências
para que Bidwell passe a noite aqui. Ele vai trabalhar o dia inteiro amanhã, e
sua mulher só está contando que volte para casa no domingo. Eu disse a ele
que passaríamos na cabana para ver se está tudo bem por lá. Espero não ter
excedido minha autoridade”.
Como o coronel não tinha autoridade alguma sobre os empregados de
Pemberley para poder excedê-la, não havia nada que Elizabeth pudesse dizer.
Então, eles se foram por m, observados da porta por um pequeno grupo
formado por Elizabeth, Jane, Bingley e os dois empregados. Ninguém disse
nada e, quando Darcy olhou para trás minutos depois, a grande porta da
frente de Pemberley já estava fechada e a casa parecia deserta, serena e linda
sob o luar.
2
Nenhuma parte do terreno de Pemberley era negligenciada, mas, ao
contrário do arboreto, a oresta a noroeste nem recebia nem exigia muita
atenção. De vez em quando, uma árvore era derrubada para fornecer lenha
durante o inverno ou tábuas para fazer consertos estruturais nos chalés,
arbustos inconvenientemente próximos da estrada eram podados ou uma
árvore morta era cortada e seu tronco retirado. Uma senda estreita, sulcada
pelas rodas das carroças que entregavam provisões pela entrada de serviço,
ligava a casa do porteiro a um pátio amplo nos fundos de Pemberley, atrás do
qual cavam os estábulos. Do pátio, uma porta nos fundos da casa dava para
um corredor que levava à sala das armas e ao escritório do administrador.
Sobrecarregada com três passageiros, maca e duas malas, uma de Wickham
e outra do capitão Denny, a caleche avançava lentamente, enquanto os três
passageiros se mantinham num silêncio absoluto, que, no caso de Darcy,
beirava uma inexplicável letargia. De repente, a caleche estremeceu e parou.
Levantando-se, Darcy olhou para o lado de fora e sentiu os primeiros pingos
de uma chuva forte espetarem seu rosto. Parecia-lhe que um imenso e gretado
paredão de rocha, soturno e impenetrável, pairava sobre eles, oscilando como
se estivesse prestes a cair. Então, sua mente tomou pé da realidade, as gretas
na rocha foram se alargando e se transformando em brechas entre árvores
muito próximas umas das outras, e ele ouviu Pratt incitando os relutantes
cavalos a entrar na estrada que atravessava a floresta.
Lentamente, foram penetrando naquela escuridão com cheiro de terra
molhada. Viajavam sob a luz sinistra da lua cheia, que parecia planar diante
deles como uma fantasmagórica companheira, ora sumindo, ora
reaparecendo. Depois que avançaram alguns metros pela trilha, o coronel
disse a Darcy: “É melhor seguirmos a pé daqui em diante. Pratt pode não ter
uma lembrança muito precisa e precisamos procurar com muito cuidado pistas
que indiquem o lugar em que Wickham e Denny entraram na oresta e onde
podem ter saído. Vamos conseguir ver e ouvir melhor fora da caleche”.
Desceram carregando suas lanternas e, como Darcy já esperava, o coronel
tomou a dianteira. Folhas caídas deixavam o chão macio e abafavam o ruído
de seus passos, e Darcy pouca coisa ouvia além do rangido da caleche, da
respiração áspera dos cavalos e dos estalos das rédeas. Em alguns lugares, os
galhos das árvores que ladeavam a estrada se encontravam lá no alto,
formando um denso túnel abobadado por entre o qual só de vez em quando
Darcy conseguia avistar a lua. Nessa escuridão enclausurada, só o que ele
conseguia ouvir do vento era um leve farfalhar nos galhos mais altos e nos,
como se eles ainda fossem a morada dos melodiosos passarinhos da
primavera.
Como sempre acontecia quando caminhava pela oresta, Darcy pensou em
seu bisavô. O encanto da oresta para o falecido George Darcy devia residir
em parte em sua diversidade, suas trilhas secretas e vistas inesperadas. Ali,
naquele refúgio guardado por árvores, onde pássaros e pequenos animais
tinham total liberdade para entrar em sua casa, George Darcy podia acreditar
que ele e a natureza eram uma coisa só, respiravam o mesmo ar, eram guiados
pelo mesmo espírito. Quando era menino e brincava na oresta, Darcy sempre
sentia uma a nidade com seu bisavô, mas bem cedo havia percebido que
aquele Darcy raramente mencionado, que havia abdicado de sua
responsabilidade para com as terras e a mansão, era motivo de embaraço para
sua família. Antes de dar um tiro em seu cachorro, Soldier, e em si próprio, ele
havia escrito um bilhete pedindo para ser enterrado junto com o animal, mas
esse pedido ímpio fora ignorado pela família e George Darcy jazia com seus
ancestrais na parte cercada do cemitério da aldeia que era reservada à família,
enquanto Soldier tinha um túmulo só seu na oresta, com uma lápide de
granito inscrita apenas com seu nome e a data de sua morte. Desde pequeno
Darcy tinha consciência de que seu pai temia que pudesse haver um traço
hereditário de fraqueza na família, o que o zera inculcar desde cedo no lho
as enormes responsabilidades que recairiam sobre seus ombros quando ele o
sucedesse, responsabilidades tanto para com o patrimônio familiar quanto
para com aqueles que serviam a família e dela dependiam, e das quais
nenhum primogênito podia eximir-se.
O coronel Fitzwilliam imprimiu um ritmo lento ao avanço do grupo,
balançando sua lanterna de um lado para o outro e parando de vez em
quando para examinar mais de perto a folhagem cerrada, em busca de algum
sinal de que alguém a tivesse atravessado. Mesmo consciente de que isso era
um pensamento mesquinho, Darcy re etiu que o coronel, exercendo sua
prerrogativa de assumir o comando, provavelmente estava se divertindo.
Caminhando penosamente na frente de Alveston, Darcy seguia adiante com o
espírito tomado por uma amargura que só era interrompida de tempos em
tempos por ondas de raiva, como as que precedem a maré alta. Será que ele
nunca se livraria de George Wickham? Aquela era a oresta em que os dois
brincavam quando crianças. Era uma época da qual ele um dia já se lembrara
como um tempo feliz e sem inquietações, mas será que aquela amizade infantil
tinha mesmo sido genuína? Será que o jovem Wickham já naquela época
alimentava invejas, rancores e sentimentos de hostilidade? Aquelas brincadeiras
brutas de menino e brigas de mentira, que às vezes deixavam Darcy
machucado... será que Wickham era violento de propósito? Os comentários
maldosos e ofensivos que Wickham às vezes fazia vieram agora à consciência
de Darcy, sob a qual haviam jazido sem perturbá-lo durante anos. Desde
quando viria Wickham planejando sua vingança? Pensar que a irmã só havia
escapado da desonra social e da ignomínia porque ele era rico o bastante
para comprar o silêncio do homem que tentara seduzi-la lhe causou tamanha
dor que quase gemeu alto. Tinha tentado tirar esse sentimento de humilhação
da cabeça concentrando-se na felicidade de seu casamento, mas agora o
sentimento voltava, fortalecido pelos anos de repressão, um fardo insuportável
de vergonha e raiva de si mesmo, que se tornara ainda mais doloroso por ter
consciência de que fora apenas o seu dinheiro que induzira Wickham a se
casar com Lydia Bennet. Tinha sido uma generosidade nascida de seu amor
por Elizabeth, mas fora seu casamento com Elizabeth que trouxera Wickham
para sua família, dera a ele o direito de chamar Darcy de cunhado e o tornara
tio de Fitzwilliam e Charles. Darcy podia ter conseguido manter Wickham
longe de Pemberley, mas nunca conseguiria bani-lo de sua cabeça.
Passados cinco minutos, eles chegaram à trilha que ligava a estrada à
cabana da oresta. Usada regularmente por pessoas a pé ao longo dos anos,
ela era estreita, mas não era difícil de achar. Antes que Darcy tivesse tempo de
falar, o coronel se dirigiu na mesma hora até ela, de lanterna na mão.
Entregando sua pistola para Darcy, ele disse: “É melhor você car com isso.
Não creio que eu vá ter problemas daqui até a cabana, e a arma só assustaria
a sra. Bidwell e a lha. Vou ver se estão bem e recomendar à sra. Bidwell que
mantenha a porta trancada e em hipótese nenhuma a abra para ninguém. Acho
que é melhor informar à sra. Bidwell que os dois cavalheiros podem estar
perdidos na oresta e que estamos à procura deles. Não há razão para lhe
dizer mais nada além disso”.
Então, entrando na trilha, ele imediatamente sumiu de vista, o ruído de seus
passos abafado pela mata densa. Darcy e Alveston caram esperando em
silêncio. Achando a espera longa, Darcy consultou seu relógio e viu que já
haviam se passado quase vinte minutos quando eles nalmente ouviram o
farfalhar de galhos sendo afastados e o coronel reapareceu.
Pegando de volta sua pistola da mão de Darcy, ele disse, sucinto: “Está tudo
bem. A sra. Bidwell e a lha ouviram ruídos de tiros, que acharam ter vindo de
perto, mas não das cercanias imediatas da cabana. Trancaram a porta na
mesma hora e não ouviram mais nada. A moça — Louisa, não é? — cou à
beira da histeria, mas a mãe conseguiu acalmá-la. É uma pena que justo nesta
noite Bidwell não esteja em casa”. Virando-se para o cocheiro, acrescentou:
“Aguce os olhos e pare quando tivermos chegado ao lugar em que o capitão
Denny e o sr. Wickham desceram da caleche”.
Novamente, ele assumiu seu lugar à frente da pequena procissão e seguiram
adiante devagar. De vez em quando, Darcy e Alveston erguiam as lanternas no
alto, procurando alguma marca na vegetação, tentando ouvir algum ruído.
Cerca de cinco minutos depois, a caleche parou.
“Acho que foi mais ou menos por aqui, senhor”, disse Pratt. “Eu me lembro
desse carvalho do lado esquerdo e daquelas frutinhas vermelhas.”
Antes que o coronel pudesse dizer qualquer coisa, Darcy perguntou: “Em
que direção o capitão Denny foi?”.
“Para a esquerda, senhor. Não tinha nenhuma trilha, pelo menos não que eu
conseguisse ver, mas ele foi se en ando na mata como se os arbustos não
estivessem lá.”
“Quanto tempo depois o sr. Wickham saiu atrás dele?”
“Acho que um ou dois segundos depois, se tanto. Como eu disse, senhor, a
sra. Wickham segurou o marido e tentou impedir que fosse, depois cou
gritando para ele voltar. Mas, como o sr. Wickham não voltou e ela ouviu os
tirou, a sra. Wickham me disse para tocar para Pemberley o mais rápido
possível. Ela cou berrando o tempo inteiro, senhor, dizendo que íamos todos
morrer.”
“Espere aqui e não saia da caleche”, Darcy ordenou ao cocheiro. Em
seguida, virou-se para Alveston. “É melhor levarmos a maca. Vamos parecer
idiotas se os dois tiverem apenas se perdido e estiverem vagando ilesos pela
mata, mas esses tiros são preocupantes.”
Alveston desatou a maca, tirou-a de cima da caleche e disse para Darcy: “E
mais idiotas ainda se nós próprios nos perdermos. Mas imagino que o senhor
conheça bem essa floresta, não?”.
“Bem o bastante para encontrar uma maneira de sair dela, espero”,
respondeu Darcy.
Não ia ser fácil manobrar a maca por entre os arbustos, mas, depois de
discutir o problema com Darcy e o coronel, Alveston pôs a lona enrolada
sobre os ombros e eles se embrenharam mata adentro.
Pratt não dissera nada quando Darcy mandou que casse na caleche, mas
estava claro que não havia cado nada contente em ser deixado sozinho, e
seu medo acabou passando para os cavalos, cujos relinchos e trancos
pareceram a Darcy um acompanhamento condizente para uma empreitada que
ele estava começando a achar que era insensata. Abrindo caminho por entre
os arbustos quase impenetráveis, iam andando em la, o coronel na frente,
movendo lentamente suas lanternas de um lado para o outro e parando
sempre que encontravam um sinal de que alguém pudesse ter passado por ali
recentemente, enquanto Alveston manobrava com di culdade as varas
compridas da maca sob os galhos baixos das árvores. A cada poucos passos
eles paravam, chamavam e então cavam ouvindo em silêncio, mas ninguém
respondia. O vento, tão suave que mal o ouviam, cessou de repente e,
naquela quietude, parecia que a vida secreta da oresta fora silenciada pela
presença inusitada dos três.
A princípio, vendo galhos partidos e dependurados em alguns dos arbustos
e marcas no chão que poderiam ser de pegadas, eles acalentaram a esperança
de estar no rastro certo, mas depois de cinco minutos de caminhada as árvores
e os arbustos foram cando mais espaçados, seus chamados continuavam sem
resposta e eles pararam para re etir sobre qual seria a melhor forma de
proceder. Temendo perder contato caso algum deles se perdesse, eles haviam
se mantido a poucos metros de distância uns dos outros, seguindo para oeste.
Agora, decidiram voltar para a caleche seguindo para leste em direção a
Pemberley. Era impossível para três homens cobrir toda a extensa oresta; se
essa mudança de direção não surtisse resultado, eles voltariam para a casa e,
se até o amanhecer Wickham e Denny ainda não tivessem voltado,
convocariam empregados e talvez a polícia para fazer uma busca mais
completa.
Continuaram andando, até que de repente a barreira de arbustos
emaranhados se tornou menos densa e eles avistaram uma clareira enluarada,
formada por um círculo de esguias bétulas prateadas. Seguiram em frente com
energia renovada, atropelando moitas, ansiosos para sair daquela prisão de
arbustos e troncos grossos e in exíveis rumo à luz e à liberdade. Ali não havia
nenhum dossel de galhos tapando o céu, e o luar, prateando os troncos
delicados, fazia daquilo uma visão de beleza, mais quimera do que realidade.
E agora a clareira estava bem à frente deles. Passando devagar, quase
reverentemente, entre dois dos troncos esguios, eles estacaram e ali caram,
como que enraizados no chão, emudecidos de horror. Diante deles, em cores
vívidas em brutal contraste com a luz branda, encontrava-se uma cena de
morte. Ninguém disse nada. Eles se aproximaram lentamente, ao mesmo
tempo, os três segurando suas lanternas no alto; a luz forte das lanternas,
sobrepujando a suave claridade da lua, intensi cou o vermelho vivo do
casaco de um o cial, o medonho rosto manchado de sangue e os olhos
ferozes e desvairados voltados para eles.
O capitão Denny estava estendido de costas no chão, seu olho direito
coberto de sangue coagulado, o esquerdo, vitri cado, xo na lua distante,
sem enxergá-la. Ajoelhado ao lado dele, Wickham tinha as mãos
ensanguentadas e o rosto respingado, imóvel como uma máscara. Sua voz saiu
rouca e gutural, mas as palavras foram claras. “Ele está morto! Ah, meu Deus,
Denny está morto! Ele era meu amigo, meu único amigo, e eu o matei! Eu o
matei! Foi culpa minha.”
Antes que eles pudessem responder, Wickham abaixou a cabeça e caiu num
pranto desesperado, os soluços arranhando sua garganta, depois desabou
sobre o corpo de Denny, os dois rostos ensanguentados quase se encostando.
O coronel se abaixou em direção a Wickham, depois se levantou. “Ele está
bêbado”, disse.
“E Denny?”, perguntou Darcy.
“Morto. Não, é melhor não tocar nele. Sei quando estou diante de um
cadáver. Vamos botar o corpo na maca e eu ajudo a carregá-lo. Alveston,
você provavelmente é o mais forte de nós três. Acha que consegue levar
Wickham até a caleche?”
“Acho que sim, coronel. Ele não é um homem pesado.”
Em silêncio, Darcy e o coronel levantaram o corpo de Denny e o puseram
na maca de lona. Depois, o coronel foi ajudar Alveston a pôr Wickham de pé.
O homem estava trôpego, mas não impôs resistência. Arfando e soluçando,
contaminava o ar da clareira com seu bafo de uísque. Alveston era mais alto
que ele e, depois que conseguiu levantar o braço de Wickham e botá-lo em
volta de seu ombro, não teve grandes di culdades para sustentar seu peso
inerte e arrastá-lo alguns passos.
O coronel tinha se abaixado de novo e logo se levantara. Havia uma pistola
em sua mão. Cheirando a boca do cano, ele disse: “Presumo que esta seja a
arma que disparou os tiros”. Em seguida, ele e Darcy seguraram as varas da
maca e, com certo esforço, a ergueram. A triste procissão iniciou sua penosa
marcha rumo à caleche, a maca seguindo na frente e Alveston, sobrecarregado
com Wickham, alguns passos atrás. A passagem dos três pela mata havia
deixado marcas claras na vegetação e eles não tiveram di culdade para
encontrar o caminho de volta, mas foi uma caminhada lenta e tediosa. Darcy
seguia atrás do coronel num desalento angustiado em que uma dezena de
temores e ansiedades diferentes se embatiam em sua cabeça, tornando
impossível qualquer pensamento racional. Ele nunca tinha se permitido cogitar
que grau de proximidade teria existido entre Elizabeth e Wickham na época
em que os dois travaram amizade em Longbourn, mas agora dúvidas
ciumentas, que ele reconhecia serem injusti cadas e deploráveis, enchiam sua
cabeça. Por um terrível momento, sentindo o peso lhe forçar os ombros,
desejou estar carregando o corpo de Wickham, e a consciência de ser capaz
de desejar, ainda que por um segundo, que seu inimigo estivesse morto o
horrorizou.
A volta dos três gerou um evidente alívio em Pratt, mas, ao ver a maca, ele
começou a tremer de medo e foi só depois de ouvir a ordem ríspida do
coronel que ele procurou controlar os cavalos, os quais, sentindo cheiro de
sangue, estavam cando indômitos. Darcy e o coronel pousaram a maca no
chão e, em seguida, Darcy foi buscar um lençol na caleche e cobriu o corpo
de Denny. Embora não tivesse causado problemas durante a caminhada pela
oresta, Wickham agora estava cando exaltado, e foi com alívio que
Alveston, ajudado pelo coronel, en ou-o dentro da caleche e se sentou a seu
lado. Mais uma vez, Darcy e o coronel seguraram as varas da maca e, com os
ombros doloridos, levantaram seu fardo. Pratt nalmente tinha os cavalos sob
controle e, em silêncio e com um grande cansaço no corpo e no espírito,
Darcy e o coronel, seguindo a caleche, iniciaram a longa e árdua marcha de
volta a Pemberley.
3
Assim que conseguiu convencer Lydia, já mais calma, a ir para a cama, Jane
achou que podia deixá-la aos cuidados de Belton e foi à procura de Elizabeth.
Juntas, correram até a porta da frente para ver a partida do grupo de busca.
Bingley, Stoughton e a sra. Reynolds já estavam lá, e os cinco caram olhando
xamente em direção à escuridão até a caleche se transformar em duas luzes
longínquas e bruxuleantes. Depois que todos entraram, Stoughton fechou e
trancou a porta.
Virando-se para Elizabeth, a sra. Reynolds disse: “Vou car com a sra.
Wickham até o dr. McFee chegar, senhora. Imagino que ele vá dar alguma
coisa para ela se acalmar e dormir. Sugiro que a senhora e a sra. Bingley
voltem para a sala de música para esperar; já mandei que botassem mais lenha
na lareira e as senhoras vão car confortáveis lá. Stoughton vai car de vigia
na porta e avisará à senhora assim que vir a caleche chegando. E se o sr.
Wickham e o capitão Denny forem encontrados na estrada, haverá lugar
su ciente para todos na caleche, embora talvez não vá ser uma viagem muito
confortável. Suponho que os cavalheiros queiram fazer uma refeição quente
ao voltar, mas acho pouco provável que o sr. Wickham e o capitão Denny
queiram car para comer. Assim que o sr. Wickham souber que a esposa está
bem, ele e o amigo com certeza vão querer seguir viagem. Acho que Pratt
disse que eles estavam a caminho da estalagem King’s Arms, em Lambton”.
Isso era exatamente o que Elizabeth queria ouvir e ela cou se perguntando
se a sra. Reynolds teria dito aquilo só para tranquilizá-la. A ideia de que
Wickham ou o capitão Denny pudessem ter quebrado ou torcido um
tornozelo andando pela oresta e fosse necessário acolhê-los em Pemberley,
talvez até para passar a noite, deixava-a muito a ita. Seu marido jamais
recusaria acolhida a um homem ferido, mas ter Wickham sob o teto de
Pemberley seria algo abominável para ele e poderia ter consequências que
Elizabeth temia cogitar.
“Vou veri car se todos os empregados que estão trabalhando nos
preparativos para o baile já se recolheram, senhora. Sei que Belton cará
acordada de bom grado caso a ajuda dela seja necessária, e Bidwell ainda
está trabalhando na copa, mas ele é absolutamente discreto. Não há
necessidade, por ora, de informar ninguém do incidente desta noite. Amanhã
de manhã contaremos, e só o que for necessário”, disse a sra. Reynolds.
Elas estavam começando a subir a escada quando Stoughton anunciou que
a caleche que fora buscar o dr. McFee estava chegando, e então Elizabeth
ficou esperando para recebê-lo e explicar brevemente o que havia acontecido.
Sempre que ia a Pemberley, o dr. McFee era recebido com calorosas boas-
vindas. Era um viúvo de meia-idade cuja esposa havia morrido cedo,
deixando para ele uma considerável fortuna; embora tivesse recursos para
usar sua própria carruagem, preferia fazer suas visitas a cavalo. Com sua pasta
de couro quadrada presa à cela com uma correia, ele era uma gura familiar
nas estradas e sendas de Lambton e Pemberley. Anos andando a cavalo em
todo tipo de tempo haviam deixado suas feições ásperas, mas, embora não
fosse considerado um homem bonito, tinha um rosto franco e inteligente no
qual autoridade e benevolência estavam tão unidas que ele parecia
predestinado por natureza a ser um médico do interior. Sua loso a médica
era que o corpo humano tendia a curar-se naturalmente se pacientes e
médicos não conspirassem para interferir em seus processos benignos, mas,
reconhecendo que a natureza humana necessita de pílulas e poções, ele
recorria a remédios preparados por ele próprio, nos quais seus pacientes
depositavam uma fé absoluta. Tinha aprendido cedo que parentes de
pacientes atrapalham menos quando são mantidos ocupados com tarefas em
benefício do doente e inventara poções cuja e cácia era proporcional ao
tempo que se levava para prepará-las. Ele já era conhecido de sua paciente,
pois a sra. Bingley costumava chamá-lo sempre que marido, lhos, amigos em
visita ou empregados mostravam o mínimo sinal de indisposição, o que zera
com que ele se tornasse um amigo da família. Foi um imenso alívio para
Elizabeth levá-lo até Lydia, que o recebeu com um novo acesso de lamúrias e
recriminações, mas se acalmou quase no mesmo instante em que ele se
aproximou da cama.
Elizabeth e Jane agora estavam livres para começar sua vigília na sala de
música, de cujas janelas se tinha uma vista desobstruída da estrada que
atravessava a oresta. Embora ambas estivessem tentando repousar no sofá,
nenhuma das duas conseguia resistir ao impulso de ir constantemente até a
janela ou andar de um lado para o outro pela sala. Elizabeth sabia que as duas
estavam fazendo os mesmos cálculos silenciosos e, por m, Jane os pôs em
palavras.
“Minha querida Elizabeth, não podemos esperar que eles voltem muito
rápido. Suponhamos que Pratt leve quinze minutos para identi car o lugar em
que o capitão Denny e o sr. Wickham se embrenharam na oresta. Depois, se
os dois cavalheiros de fato se perderam, eles teriam de procurá-los pela mata,
o que pode levar mais quinze minutos ou mais, e temos de considerar também
o tempo que vão levar para voltar para a caleche e depois para chegar até
aqui. E não podemos esquecer que um deles vai precisar ir até a cabana da
floresta para verificar se a sra. Bidwell e Louisa estão bem. Há tantos incidentes
que podem atrasar o retorno deles. Temos de tentar ser pacientes; calculo que
possa levar uma hora até avistarmos a caleche. E claro que é possível que o sr.
Wickham e o capitão Denny tenham conseguido por m encontrar o caminho
de volta para a estrada e decidido voltar para a estalagem a pé.”
“Não creio que fariam isso”, disse Elizabeth. “Seria uma longa caminhada, e
eles disseram a Pratt que, depois de deixar Lydia aqui em Pemberley,
seguiriam viagem até a estalagem King’s Arms, em Lambton. Além disso,
precisariam de suas malas. E com certeza Wickham ia querer veri car se Lydia
chegou aqui sã e salva. Mas não temos como saber de nada até que a caleche
volte. Tenho muita esperança de que encontrem os dois na estrada e nós logo
avistemos a caleche. Enquanto isso, o melhor que temos a fazer é descansar
como pudermos.”
No entanto, descansar lhes era impossível, e a toda hora elas se pegavam
indo até a janela e voltando. Depois de meia hora, perderam a esperança de
que o grupo de busca voltasse rápido, mas continuaram mergulhadas numa
silenciosa agonia de apreensão. Lembrando-se dos tiros, temiam acima de
tudo ver a caleche se aproximando com a lentidão de um carro fúnebre, com
Darcy e o coronel seguindo a pé atrás, carregando a maca cheia. Na melhor
das hipóteses, Wickham ou Denny poderia estar sendo trazido de maca não
por ter sofrido um ferimento grave, mas apenas por estar machucado e não
conseguir suportar os solavancos da caleche. Ambas se esforçavam ao
máximo para tirar da cabeça a imagem de um corpo amortalhado e a
aterradora perspectiva de ter de contar a uma nervosa Lydia que seus piores
temores haviam se concretizado e seu marido estava morto.
Esperavam fazia uma hora e vinte minutos e, cansadas de car em pé, já
haviam até saído de perto da janela, quando Bingley apareceu com o dr.
McFee.
“A sra. Wickham estava exausta de tensão e de tanto chorar, e eu lhe dei um
sedativo”, disse o médico. “Daqui a pouco já deve estar dormindo
tranquilamente, e espero que durma por algumas horas. A criada Belton e a
sra. Reynolds estão com ela. Posso me acomodar na biblioteca e voltar lá mais
tarde para ver como está. Não é preciso que ninguém se preocupe comigo.”
Elizabeth agradeceu afetuosamente ao médico e aceitou sua oferta. Quando
o dr. McFee saiu da sala acompanhado por Jane, Elizabeth e Bingley foram de
novo para perto da janela.
“Não devemos perder a esperança de que tudo esteja bem”, disse Bingley.
“Os tiros podem ter sido disparados por algum invasor à caça de coelhos, ou
talvez o próprio Denny tenha dado tiros para afugentar alguém que estava de
tocaia na mata. Não podemos deixar que nossa imaginação nos faça ter visões
que a razão com certeza nos diria que são fantasiosas. Não é possível que haja
nada na oresta que atraia alguém com más intenções contra Wickham ou
Denny.”
Elizabeth não respondeu. Agora, até a paisagem que ela conhecia tão bem e
tanto amava lhe parecia estranha, o rio serpenteando como prata derretida sob
a lua; uma súbita lufada de vento o fez tremer como se tivesse vida. A estrada
se estendia no que parecia ser um vazio eterno numa paisagem espectral,
misteriosa e sinistra, onde nada humano poderia viver. E foi justo quando Jane
voltou que, por m, a caleche surgiu ao longe, a princípio não mais que uma
forma em movimento, de nida pelo brilho tênue e tremeluzente de luzes
distantes. Resistindo à tentação de correr para a porta, eles esperaram, com os
olhos fixos na estrada.
Sem conseguir ocultar o desespero em sua voz, Elizabeth disse: “Eles estão
vindo devagar. Se estivesse tudo bem, viriam depressa”.
Ao pensar nisso, não conseguiu mais car esperando na janela e desceu a
escada correndo, com Jane e Bingley a seu lado. Stoughton devia ter visto a
caleche da janela do primeiro andar, pois a porta da frente já estava
entreaberta.
“Não seria melhor voltar para a sala de música, senhora?”, ele perguntou. “O
sr. Darcy lhe levará notícias assim que eles chegarem. Está frio demais para
esperar lá fora e não há nada que nenhum de nós possa fazer até que a
caleche chegue.”
“Eu e a sra. Bingley preferimos esperar na porta, Stoughton”, disse Elizabeth.
“Como quiser, senhora.”
Com Bingley, as duas saíram para o ar da noite e caram esperando.
Ninguém disse nada. Quando a caleche chegou mais perto, viram o que
temiam: um volume coberto por uma mortalha na maca. Uma súbita rajada de
vento agitou o cabelo de Elizabeth, lançando-o contra seu rosto. Ela teve a
impressão de que ia cair, mas conseguiu se segurar em Bingley, que pôs o
braço em volta de seus ombros, amparando-a. Nesse momento, o vento
levantou uma ponta do lençol e eles viram o vermelho do casaco de um
oficial.
O coronel Fitzwilliam falou diretamente com Bingley. “Você pode dizer à
sra. Wickham que o marido dela está vivo. Vivo, mas sem condições de ver
ninguém. O capitão Denny está morto.”
“Morto a tiros?”, Bingley perguntou.
Foi Darcy quem respondeu. “Não, não foi a tiros.” Virando-se para
Stoughton, ele disse: “Vá buscar as chaves da porta externa e da porta interna
da sala das armas. Eu e o coronel Fitzwilliam vamos carregar o corpo até lá
pelo pátio dos fundos e botá-lo na mesa da sala das armas”. Virou-se de novo
para Bingley. “Por favor, leve Elizabeth e a sra. Bingley lá para dentro. Não há
nada que elas possam fazer e precisamos tirar Wickham da caleche. Seria
perturbador para elas vê-lo no estado em que está. Temos de levá-lo para
algum quarto e botá-lo na cama.”
Elizabeth se perguntava por que seu marido e o coronel pareciam não
querer pousar a maca no chão. Eles caram parados ali, como que
paralisados, até Stoughton voltar com as chaves, minutos depois. Então, quase
cerimoniosamente, seguindo atrás de Stoughton como se ele fosse um agente
funerário, contornaram a casa em direção ao pátio dos fundos e à sala das
armas.
A caleche agora balançava violentamente e, entre uma rajada de vento e
outra, Elizabeth ouvia os gritos desvairados e incoerentes de Wickham, que
esbravejava contra Darcy e o coronel, chamando-os de covardes. Por que eles
não tinham ido atrás do assassino? Eles tinham uma arma e sabiam usá-la. Ele,
pelo menos, havia tentado acertar um ou dois tiros e ainda estaria lá agora, se
não o tivessem arrastado até a caleche. Depois, veio uma torrente de
impropérios, os piores deles dissipados pelo vento, seguida de um ataque de
choro.
Elizabeth e Jane entraram. Ao descer da caleche, Wickham caiu no chão,
mas Bingley e Alveston conseguiram, juntos, botá-lo de pé e, segurando-o um
de cada lado, levaram-no para o saguão. Elizabeth viu de relance o rosto sujo
de sangue e os olhos desvairados e logo se afastou, enquanto Wickham se
debatia, tentando se desvencilhar de Alveston.
“Precisamos de um quarto que tenha uma porta forte e que possa ser
trancada a chave. Qual você sugere?”, perguntou Bingley.
A sra. Reynolds, que acabara de voltar, olhou para Elizabeth e disse: “O
quarto azul, senhora, no nal do corredor da ala norte, é o mais seguro. Ele
só tem duas janelas pequenas e é o que ca mais distante do quarto das
crianças”.
Enquanto ajudava Alveston a segurar Wickham, Bingley gritou para a sra.
Reynolds: “O dr. McFee está na biblioteca. Diga-lhe que precisamos dele
agora. No estado em que o sr. Wickham está, não temos como controlá-lo.
Avise ao doutor que estaremos no quarto azul”.
Bingley e Alveston seguraram os braços de Wickham com rmeza e
começaram a puxá-lo escada acima. Ele estava mais calmo agora, mas
continuava chorando. Quando os três chegaram ao último degrau, Wickham
conseguiu se soltar e, olhando para baixo com uma expressão furiosa,
vociferou suas últimas maldições.
Jane virou-se para Elizabeth e disse: “É melhor eu voltar para perto de Lydia.
Belton já está lá faz bastante tempo e pode estar precisando de um descanso.
Espero que Lydia esteja dormindo profundamente agora, mas temos de contar
a ela que o marido está vivo assim que despertar. Pelo menos, temos alguma
coisa pela qual nos sentir gratas. Lizzy, querida, como eu queria poder poupar
você disso tudo!”.
As duas irmãs se abraçaram por um momento e então Jane se foi. O saguão
cou em silêncio. Elizabeth estava tremendo e, sentindo uma súbita fraqueza,
sentou-se na cadeira mais próxima. Sentia-se desconsolada, ansiosa para que
Darcy voltasse, e pouco depois ele apareceu, vindo da sala das armas pelos
fundos da casa. Foi imediatamente até ela e, levantando-a, puxou-a
delicadamente para junto de si.
“Minha querida, vamos sair daqui e eu lhe explico o que aconteceu. Você
viu Wickham?”
“Sim, eu o vi sendo trazido aqui para dentro. Ele estava com uma aparência
horrenda. Graças a Deus Lydia não o viu.”
“Como ela está?”
“Dormindo, espero. O dr. McFee lhe deu um remédio para acalmá-la e
agora foi ver Wickham, acompanhado pela sra. Reynolds. O sr. Alveston e
Charles o levaram para o quarto azul, no corredor da ala norte. Parecia o
melhor lugar para ele ficar.”
“E Jane?”
“Ela está com Lydia e Belton. Vai passar a noite no quarto onde Lydia está, e
o sr. Bingley cará no quarto de vestir ao lado. Lydia não me quer perto dela.
Tem de ser Jane.”
“Então vamos para a sala de música. Preciso de alguns minutos a sós com
você. Mal nos vimos hoje. Vou lhe contar tudo o que sei, mas o que tenho
para dizer não é nada bom. Depois terei de ir à casa de Sir Selwyn Hardcastle
para noti cá-lo da morte do capitão Denny. Ele é o magistrado mais próximo.
Não posso participar da investigação; Hardcastle é quem deve assumir a
responsabilidade daqui para frente.”
“Mas isso não pode car para amanhã, Fitzwilliam? Você deve estar exausto.
E até que Sir Selwyn venha para cá com a polícia, já vai ser mais de meia-
noite. É pouco provável que ele consiga fazer alguma coisa antes que
amanheça.”
“O correto a fazer é avisar Sir Selwyn o quanto antes. Com certeza é isso
que ele espera, e eu não lhe tiro a razão. É provável que queira remover o
corpo de Denny e falar com Wickham, se estiver sóbrio o bastante para ser
interrogado. De qualquer forma, meu amor, é melhor que o corpo do capitão
Denny seja retirado daqui o mais rápido possível. Não quero parecer
insensível nem desrespeitoso, mas seria conveniente tirá-lo da casa antes que
os empregados acordem. Teremos de contar a eles o que aconteceu, mas será
mais fácil para todos nós, principalmente para os empregados, se o corpo já
não estiver mais aqui.”
“Mas você poderia pelo menos comer e beber alguma coisa antes de ir. Já
faz horas que jantamos.”
“Vou car mais cinco minutos para tomar um café e pôr Bingley a par do
que pretendo fazer, mas depois tenho de ir.”
“E o capitão Denny? Conte-me o que aconteceu. Qualquer coisa é melhor
do que essa incerteza. Charles falou em acidente. Foi um acidente?”
“Meu amor, vamos ter de esperar até que os médicos tenham examinado o
corpo e possam nos dizer como o capitão Denny morreu. Até lá, tudo não
passa de conjectura”, respondeu Darcy num tom amável.
“Então pode ter sido um acidente?”
“É reconfortante ter essa esperança, mas eu ainda acho o que achei quando
vi o corpo. Para mim, o capitão Denny foi assassinado.”
4
Cinco minutos depois, Elizabeth estava na porta da frente com Darcy,
esperando que o cavalo dele fosse trazido, e só tornou a entrar na casa depois
que viu o marido disparar num galope e desaparecer na escuridão atenuada
apenas pelo luar. Seria uma viagem desconfortável. O vento, que já havia
perdido o pior de sua fúria, fora sucedido por uma chuva forte e oblíqua,
mas Elizabeth sabia que aquela viagem era necessária. Darcy era um dos três
magistrados que atuavam em Pemberley e Lambton, mas, como ele não podia
tomar parte naquela investigação, era preciso informar um de seus colegas da
morte de Denny o quanto antes. Ela também preferia que o corpo fosse
removido de Pemberley antes da chegada da manhã, quando Darcy e ela
teriam de contar aos empregados pelo menos parte do que havia acontecido.
A presença da sra. Wickham na casa teria de ser explicada, e era pouco
provável que Lydia fosse discreta. Darcy era um cavaleiro habilidoso e,
mesmo no mau tempo, uma cavalgada noturna não lhe causaria medo algum,
mas, aguçando a vista para divisar um último lampejo da imagem do cavalo a
galope, Elizabeth teve de lutar para combater um medo irracional de que algo
terrível ia acontecer antes que Darcy chegasse à propriedade de Hardcastle e
de que ela estava fadada a nunca mais vê-lo.
A Darcy, a galopada noturna proporcionou uma sensação temporária de
liberdade. Embora seus ombros ainda estivessem doloridos por causa do peso
da maca e ele soubesse que estava exausto física e mentalmente, as
vergastadas do vento e as ferroadas da chuva fria em seu rosto foram uma
libertação. Conhecido por raramente sair de casa, Sir Selwyn Hardcastle era o
único magistrado que morava num raio de oito milhas de Pemberley que
poderia assumir o caso e, na verdade, o faria de bom grado, mas não era o
colega que Darcy teria escolhido. Infelizmente, Josiah Clitheroe, o terceiro dos
magistrados locais, sofria de gota, uma doença tão dolorosa quanto
imerecida, já que o doutor, embora famoso por ser um bom garfo, jamais
tomava vinho do Porto, tido comumente como a principal causa dessa
enfermidade incapacitante. O dr. Clitheroe era um advogado ilustre, muito
respeitado não só em Derbyshire, seu condado natal, como fora dele, sendo,
portanto, considerado um grande trunfo para a magistratura, apesar de sua
garrulice, que advinha da crença de que a validade de uma sentença era
proporcional ao tempo gasto para chegar a ela. Ao julgar um caso, ele
esquadrinhava em meticulosos detalhes cada nuance das circunstâncias,
pesquisava e discutia casos anteriores e apresentava a lei relevante. E se
achasse que os ensinamentos de um lósofo antigo — principalmente Platão
ou Sócrates — podiam dar peso à argumentação, recorria a eles também. Mas,
apesar da sinuosidade do percurso, as decisões a que ele por m chegava
eram invariavelmente sensatas, e eram poucos os réus que não se sentiriam
injustamente discriminados se o dr. Clitheroe não lhes concedesse a honra de
discorrer incompreensivelmente durante pelo menos uma hora ao pronunciar
suas sentenças.
Para Darcy, a doença do dr. Clitheroe era particularmente inconveniente. Ele
e Sir Selwyn Hardcastle, embora se respeitassem mutuamente como
magistrados, não se sentiam muito à vontade um com o outro e, até o pai de
Darcy herdar Pemberley, existia uma hostilidade entre as duas casas. A
desavença remontava ao tempo do avô de Darcy, quando um jovem
empregado de Pemberley chamado Patrick Reilly fora condenado e depois
enforcado por roubar um cervo do parque do Sir Selwyn de então.
O enforcamento havia gerado indignação entre os aldeões de Pemberley,
mas todos reconheciam que o sr. Darcy tinha tentado salvar o rapaz, o que
acabou fazendo com que ele e Sir Selwyn cassem assentados em seus papéis
publicamente atribuídos de magistrado compassivo e rigoroso defensor da lei,
uma distinção fomentada ainda pelo sobrenome aparentemente condizente de
Hardcastle. Os empregados seguiram o exemplo dos patrões e o ressentimento
e a hostilidade entre as duas casas foram passando de pai para lho. Só
depois que o pai de Darcy se tornou o senhor de Pemberley é que foi feita
uma tentativa de reconciliação e, mesmo assim, só quando ele já estava em seu
leito de morte. Ele pediu ao lho que zesse tudo o que estivesse ao seu
alcance para restaurar a harmonia, argumentando que não era do interesse da
lei, nem das boas relações entre as duas casas, que a hostilidade continuasse.
Darcy, inibido por seu temperamento reservado e pela crença de que discutir
um con ito abertamente poderia apenas con rmar sua existência, adotou uma
estratégia mais sutil. Convites para caçadas e, de vez em quando, para jantares
familiares foram enviados e aceitos por Hardcastle. Talvez ele também
receasse os riscos que a prolongada inimizade poderia representar, mas a
reaproximação nunca havia se transformado em intimidade. Darcy sabia que,
no trato do atual problema, encontraria em Hardcastle um magistrado
consciencioso e honesto, mas não um amigo.
O cavalo parecia estar tão grato pelo ar fresco e pelo exercício quanto seu
cavaleiro e, meia hora depois, Darcy apeou na propriedade de Hardcastle. O
ancestral de Sir Selwyn havia recebido seu título de baronete no tempo de
Jaime I, quando a casa da família fora construída. Era uma edi cação enorme,
irregular e labiríntica, suas sete chaminés altas um marco na paisagem,
elevando-se acima dos grandes olmos que cercavam a casa como uma
barricada. Do lado de dentro, as janelas pequenas e os tetos baixos tornavam
o ambiente escuro. O pai do atual baronete, impressionado com algumas das
construções feitas pelos vizinhos, havia adicionado uma ala elegante, porém
destoante, agora raramente usada salvo como acomodação para empregados,
já que Sir Selwyn preferia a parte antiga da casa, apesar de suas várias
inconveniências.
O puxão que Darcy deu na alça de ferro da campainha produziu um
estrondo alto o bastante para acordar a casa inteira, e a porta foi aberta
segundos depois por Buckle, o idoso mordomo de Sir Selwyn, que, como o
patrão, aparentemente não precisava dormir, sendo famoso por estar sempre a
postos não importava que horas fossem. Sir Selwyn e Buckle eram
inseparáveis e o posto de mordomo da família Hardcastle era visto de modo
geral como um cargo hereditário, uma vez que tanto o pai como o avô de
Buckle o haviam ocupado antes dele. A semelhança familiar entre as gerações
era espantosa: os três Buckle eram atarracados e robustos, tinham braços
compridos e cara de buldogue bonzinho. Buckle pegou o chapéu e o casaco
de Darcy e, embora soubesse muito bem quem era o visitante, perguntou o
nome dele, pedindo em seguida, como era seu invariável costume, que ele
esperasse enquanto sua chegada era anunciada. Depois de uma espera que
pareceu interminável, Darcy por m ouviu os passos pesados do mordomo se
aproximando e, então, o velho anunciou: “Sir Selwyn está na sala de fumar,
senhor. Queira por gentileza me acompanhar”.
Eles atravessaram o enorme saguão, que tinha um teto alto e abobadado e
uma janela de várias folhas e abrigava uma impressionante coleção de
armaduras e uma cabeça de veado empalhada, já um tanto ou quanto
embolorada. Abrigava também os retratos de família, que, ao longo das
gerações, haviam feito os Hardcastle ganhar uma reputação entre as famílias
da vizinhança em virtude do tamanho e do número impressionante de retratos,
uma reputação mais fundada na quantidade do que na qualidade. Cada
baronete havia legado pelo menos um forte preconceito ou opinião para
instruir ou apoquentar seus sucessores, entre os quais se incluía a crença,
nascida com um Sir Selwyn do século xvii, de que era um desperdício de
dinheiro contratar um artista caro para pintar as mulheres da família. Só o que
era preciso para satisfazer as pretensões dos maridos e a vaidade das esposas
era que o pintor tornasse bonito um rosto sem graça, tornasse lindo um rosto
bonito e gastasse mais tempo e tinta nas roupas da retratada do que em suas
feições. Como os homens da família Hardcastle tinham uma tendência a
admirar o mesmo tipo de beleza feminina, o candelabro de três braços que
Buckle segurava no alto iluminava uma leira de lábios franzidos e
desaprovadores praticamente idênticos e olhos protuberantes e hostis
igualmente mal pintados, enquanto trajes de cetim e renda sucediam trajes de
veludo, trajes de seda substituíam os de cetim e trajes de seda cediam lugar a
trajes de musselina. Já o lado masculino da família havia se saído melhor nos
retratos. Uma sucessão de rostos de nariz ligeiramente adunco, sobrancelhas
hirsutas bem mais escuras do que o cabelo e boca larga com lábios quase
exangues olhava para Darcy com ar con ante. Tinha-se a impressão de que ali
estava o atual Sir Selwyn, imortalizado ao longo dos séculos por pintores
ilustres, em seus vários papéis: o responsável proprietário de terras e patrão, o
pai de família, o benfeitor dos pobres, o capitão dos Voluntários de
Derbyshire, ricamente uniformizado e com sua faixa de o cial, e por m o
magistrado, severo e meticuloso, mas justo. Poucos eram os visitantes mais
humildes que, depois de passar por todos aqueles retratos, não cassem
profundamente impressionados e devidamente intimidados quando en m se
viam na presença do homem de carne e osso.
Darcy agora seguiu Buckle por um estreito corredor que se estendia em
direção aos fundos da casa, no nal do qual Buckle, sem bater, abriu uma
pesada porta de carvalho e anunciou com uma voz estentórica: “O sr. Darcy
de Pemberley está aqui para vê-lo, Sir Selwyn”.
Selwyn Hardcastle não se levantou. Sentado numa poltrona de encosto alto
ao pé da lareira, ele usava um boné de fumar e sua peruca estava pousada
numa mesa redonda a seu lado, na qual também havia uma garrafa de vinho
do Porto e uma taça semicheia. Lia um livro grosso, aberto em seu colo, e
fechou-o agora com óbvia contrariedade, depois de botar um marcador
cuidadosamente sobre a página aberta. A cena era quase uma reprodução viva
de seu retrato como magistrado, e Darcy imaginou entrever o pintor saindo
discretamente pela porta, terminada a sessão de pose. O fogo obviamente
havia sido alimentado fazia pouco e ardia com fúria; ao som das pequenas
explosões das chamas e dos estalidos da lenha, Darcy se desculpou por estar
fazendo aquela visita tão tarde da noite.
“Não tem importância. Raramente encerro minha leitura do dia antes de uma
da manhã”, disse Sir Selwyn. “O senhor parece agitado. Imagino que seja uma
emergência. Que mal está a igindo a paróquia agora — alguma invasão,
sedição, insurreição em massa? As tropas de Bonaparte en m desembarcaram,
ou as galinhas da sra. Phillimore foram atacadas de novo? Por favor, sente-se.
Aquela cadeira de encosto talhado é confortável, dizem, e deve aguentar seu
peso.”
Como era a cadeira em que ele geralmente se sentava quando ia à casa de
Sir Selwyn, Darcy tinha certeza de que ela aguentaria. Sentou-se e contou sua
história integral mas sucintamente, relatando os fatos relevantes sem tecer
comentários. Sir Selwyn ouviu em silêncio, depois disse: “Deixe-me ver se
entendi tudo corretamente. O sr. e a sra. George Wickham e o capitão Denny
seguiam numa caleche alugada para Pemberley, onde a sra. Wickham ia
passar a noite para no dia seguinte ir ao baile de Lady Anne. Num
determinado momento, quando estavam atravessando a oresta de Pemberley,
o capitão Denny desceu da caleche, aparentemente por causa de um
desentendimento, e então Wickham foi atrás dele, gritando para que voltasse.
Os dois sumiram de vista e o fato de nenhum deles reaparecer gerou
nervosismo. A sra. Wickham e Pratt, o cocheiro, disseram ter ouvido tiros cerca
de quinze minutos depois e, temendo naturalmente sofrer alguma violência, a
sra. Wickham, a ita, pediu ao cocheiro que tocasse a toda velocidade para
Pemberley. Depois que ela chegou em considerável pânico, o senhor iniciou
uma busca pela oresta, acompanhado pelo coronel visconde Hartlep e pelo
honorável Henry Alveston, e juntos os senhores encontraram o corpo do
capitão Denny e Wickham ajoelhado ao lado dele, chorando e aparentemente
bêbado, com o rosto e as mãos ensanguentados”. Depois de realizar essa
proeza de memória, Sir Selwyn se calou, tomou alguns goles de vinho do
Porto e, em seguida, perguntou: “A sra. Wickham havia sido convidada para o
baile?”.
A mudança na linha do interrogatório foi inesperada, mas Darcy reagiu com
tranquilidade. “Não. Mas claro que seria recebida em Pemberley a qualquer
hora, se chegasse inesperadamente.”
“Não é convidada, mas é recebida, ao contrário do marido. É de
conhecimento geral que George Wickham nunca é recebido em Pemberley.”
“Não existe proximidade entre nós para tanto”, disse Darcy.
Sir Selwyn pousou seu livro sobre a mesa com certa afetação e disse: “O
caráter dele é bem conhecido na região. Teve um começo promissor na
infância, mas depois descambou para o desregramento e a licenciosidade, um
resultado natural para um rapaz que foi exposto a um estilo de vida que jamais
poderia ter esperança de atingir pelos próprios esforços e que teve
companheiros de uma classe à qual jamais poderia aspirar pertencer. Há
rumores de que poderia existir outra razão para o antagonismo entre vocês,
algo a ver com o casamento dele com a irmã da sua esposa?”.
“Sempre há rumores”, disse Darcy. “A ingratidão e a falta de respeito dele
pela memória do meu pai e nossos temperamentos e interesses tão diferentes
são su cientes para explicar a falta de intimidade entre nós dois. Mas será que
não estamos nos esquecendo do motivo da minha vinda aqui? Não pode
existir ligação alguma entre minha relação com George Wickham e a morte do
capitão Denny.”
“Perdoe-me, Darcy, mas eu discordo. Existem ligações, sim. O assassinato
do capitão Denny, se é que foi assassinato, aconteceu na sua propriedade e é
possível que o responsável por ele seja um homem que é seu cunhado e com
quem todos sabem que o senhor tem uma desavença. Quando questões
importantes me vêm à cabeça, tendo a expressá-las. Sua posição é um tanto ou
quanto delicada. O senhor tem consciência de que não pode tomar parte
nessa investigação, não tem?”
“É por isso que estou aqui.”
“O chefe dos delegados terá de ser informado, é claro. Suponho que isso
ainda não tenha sido feito.”
“Achei que era mais importante notificar o senhor imediatamente.”
“O senhor agiu certo. Eu mesmo vou comunicar o ocorrido a Sir Miles
Culpepper e logicamente vou mantê-lo a par de todo o desenrolar da
investigação. Duvido, porém, que se interesse a fundo pelo caso. Desde que
se casou com a nova e jovem esposa, parece passar mais tempo gozando as
várias distrações de Londres do que cuidando de assuntos locais. Não se trata
de uma censura de minha parte. O posto de chefe dos delegados é, de certa
forma, detestável. É dever dele, como o senhor sabe, garantir a obediência
aos estatutos, cumprir as decisões executivas dos juízes e dirigir os
subdelegados sob sua jurisdição. Como não tem nenhuma autoridade formal
sobre eles, é difícil imaginar como poderia fazer isso com e cácia, mas, como
tantas outras coisas no nosso país, o sistema funciona satisfatoriamente desde
que seja deixado a cargo dos moradores locais. O senhor deve se lembrar de
Sir Miles, claro. O senhor e eu fomos dois dos juízes que o empossamos dois
anos atrás, numa das sessões trimestrais do tribunal. Vou entrar em contato
também com o dr. Clitheroe. Talvez ele não possa participar de forma ativa,
mas costuma dar contribuições inestimáveis em questões de lei e estou
relutante em assumir toda a responsabilidade sozinho. Sim, acho que nós dois
juntos vamos conseguir nos arranjar muito bem. Agora vou acompanhá-lo de
volta a Pemberley na minha carruagem. Será preciso buscar o dr. Belcher antes
que o corpo seja removido, e vou chamar também o carro fúnebre e dois
subdelegados. O senhor conhece os dois: Thomas Brownrigg, que gosta de
ser chamado bailio para deixar claro que é o o cial mais antigo, e o jovem
William Mason.”
Sem esperar por um comentário de Darcy, ele se levantou e, dirigindo-se à
campainha, deu um vigoroso puxão na corda.
Buckle chegou com uma ligeireza que fez Darcy pensar que devia estar
esperando atrás da porta. Sir Selwyn disse: “Meu sobretudo e meu chapéu,
Buckle, e acorde Postgate, se ele estiver na cama, o que eu duvido. Quero que
ele me leve de carruagem até Pemberley, mas vou parar no caminho para
apanhar dois subdelegados e o dr. Belcher. O sr. Darcy vai nos acompanhar”.
Buckle saiu para a penumbra do corredor, fechando a pesada porta com
uma força que pareceu desnecessária.
“Temo que minha esposa não possa recebê-lo”, disse Darcy. “Imagino que
ela e a sra. Bingley já tenham se recolhido a essa altura, mas o mordomo e a
governanta ainda estão a postos e o dr. McFee também está lá. A sra. Wickham
estava bastante nervosa quando chegou a Pemberley e eu e a sra. Darcy
achamos que ela devia receber atenção médica imediata.”
“E eu acho que o dr. Belcher, sendo o médico que costuma ser chamado
para orientar a polícia em questões médicas, deve se envolver já nesta fase
inicial”, disse Sir Selwyn. “Ele está acostumado a ter seu sono interrompido. O
dr. McFee também ia examinar seu prisioneiro? Suponho que George Wickham
esteja preso em algum lugar da casa.”
“Não exatamente preso, mas sob vigilância constante. Quando saí,
Stoughton, meu mordomo, e o sr. Alveston estavam com ele. O sr. Wickham
também foi atendido pelo dr. McFee e é possível que esteja dormindo e só vá
acordar daqui a algumas horas. Talvez fosse mais conveniente se o senhor
chegasse depois do amanhecer.”
“Mais conveniente para quem?”, perguntou Sir Selwyn. “A maior
inconveniência quem vai passar sou eu, mas isso não importa quando se trata
de um dever. E o dr. McFee mexeu de alguma forma no corpo do capitão
Denny? Imagino que o senhor tenha tomado providências para que ninguém
tivesse acesso ao corpo até minha chegada.”
“O corpo do capitão Denny está estendido numa mesa da sala das armas e a
sala está trancada à chave. Achei que não deveria ser feita nenhuma tentativa
de determinar a causa da morte antes da chegada do senhor.”
“O senhor agiu certo. Seria lastimável se alguém pudesse insinuar que o
corpo sofreu algum tipo de manipulação. Claro que o ideal era que o corpo
tivesse sido deixado na oresta onde estava até ser examinado pela polícia,
mas eu entendo que isso possa ter parecido impraticável na hora.”
Darcy cou tentado a dizer que em nenhum momento lhe passara pela
cabeça deixar o corpo onde estava, mas achou mais prudente falar o menos
possível.
Buckle havia voltado. Sir Selwyn pôs a peruca, que invariavelmente usava
quando estava em alguma missão o cial como juiz de paz, depois vestiu o
sobretudo com a ajuda do mordomo e recebeu o chapéu das mãos dele.
Assim trajado e obviamente imbuído da autoridade para executar qualquer
ação que lhe coubesse, ele parecia não só mais alto, mas também mais
imponente, a personificação da lei.
Buckle conduziu os dois até a porta da frente e, enquanto esperavam no
escuro pela carruagem, Darcy ouviu o ruído de três pesados ferrolhos sendo
abertos. Sir Selwyn não demonstrou nenhuma impaciência com a demora.
Perguntou: “George Wickham disse alguma coisa quando os senhores o
encontraram ajoelhado, como o senhor disse, ao lado do corpo?”.
Darcy sabia que aquela pergunta seria feita mais cedo ou mais tarde, e não
só a ele. Respondeu: “Ele estava extremamente agitado, chorando até, e dizia
coisas sem muita coerência. Estava claro que tinha bebido e é possível que
estivesse embriagado. Parecia acreditar que tinha sido responsável por aquela
tragédia de alguma forma, presumo que por não ter dissuadido o amigo a sair
da caleche. A oresta é densa o bastante para oferecer esconderijo a qualquer
fugitivo desesperado, e nenhum homem prudente andaria por ali sozinho
depois do anoitecer”.
“Preferiria, Darcy, que o senhor me dissesse quais foram as palavras exatas
dele. Imagino que tenham ficado gravadas na sua memória.”
Elas tinham de fato, e Darcy repetiu o que se lembrava. “Ele disse: ‘Eu matei
meu amigo, meu único amigo. Foi culpa minha’. Posso estar enganado quanto
à ordem das palavras, mas esse foi o sentido do que ouvi.”
“Então nós temos uma confissão?”, perguntou Hardcastle.
“De forma alguma. Não podemos ter certeza do que exatamente ele estava
admitindo, nem das condições em que estava na hora.”
A carruagem de Hardcastle, que era velha e pesada embora impressionante,
vinha agora contornando ruidosamente o canto da casa em direção a eles.
Virando-se para fazer um último comentário antes de entrar na carruagem, Sir
Selwyn disse: “Não tenho o hábito de procurar complicações. O senhor e eu
já trabalhamos juntos como magistrados faz alguns anos e acho que nos
entendemos. Tenho toda a con ança de que o senhor sabe seu dever, como
sei o meu. Sou um homem simples, Darcy. Quando uma pessoa confessa um
crime sem estar sob nenhum tipo de coação, tendo a acreditar nela. Mas
vamos ver, vamos ver. Não devo tecer teorias antecipadas sobre os fatos”.
Assim que seu cavalo foi levado até ele, Darcy montou e, rangendo e
estalando, a carruagem pôs-se em movimento. Eles estavam a caminho.
5
Já passava de onze horas. Elizabeth não tinha dúvida de que Sir Selwyn viria
para Pemberley assim que fosse informado a respeito do assassinato e, então,
ela achou que deveria veri car como Wickham estava. Era extremamente
improvável que se mantivesse acordado, mas ela permanecia ansiosa para
certificar-se de que tudo estava bem.
No entanto, quando chegou a cerca de quatro passos da porta, Elizabeth
hesitou, detida por um instante de franqueza íntima que a honestidade a
impelia a aceitar. A razão pela qual estava ali era mais complexa e premente
do que sua responsabilidade como an triã e, talvez, mais difícil de justi car.
Ela tinha certeza de que Sir Selwyn Hardcastle levaria Wickham preso e não
tinha a menor intenção de ver o cunhado ser retirado da casa sob o jugo da
polícia e possivelmente algemado. Pelo menos dessa humilhação ele poderia
ser poupado. Depois que tivesse sido levado, era improvável que ela tornasse
a vê-lo um dia; o que agora lhe parecia insuportável era a ideia de car com
aquela última imagem dele gravada em sua memória para sempre, o belo,
agradável e galante George Wickham reduzido a um bêbado sujo de sangue,
bradando impropérios enquanto era praticamente arrastado pelo saguão de
Pemberley adentro.
Determinada, foi em frente e bateu na porta. Quem abriu foi Bingley, e
Elizabeth viu com surpresa que Jane e a sra. Reynolds estavam no quarto, de
pé perto da cama. Numa cadeira, havia uma bacia com água, rosada de
sangue e, enquanto Elizabeth observava, a sra. Reynolds terminou de secar as
mãos numa toalha e a pendurou na beira da bacia.
“Lydia ainda está dormindo, mas sei que ela vai exigir que a deixemos vir
para perto do sr. Wickham assim que acordar e não queria que ela o visse no
estado em que chegou aqui”, disse Jane. “Ela tem todo o direito de ver o
marido mesmo que ele esteja inconsciente, mas seria terrível demais se seu
rosto ainda estivesse manchado do sangue do capitão Denny. Talvez parte do
sangue fosse do próprio sr. Wickham; há dois arranhões na testa dele e outros
em suas mãos, mas são leves e provavelmente causados por espinhos quando
estava tentando passar por entre os arbustos.”
Elizabeth se perguntava se teria sido sensato lavar o rosto de Wickham. Será
que Sir Selwyn, quando chegasse, não esperaria ver Wickham no estado em
que se encontrava quando fora descoberto debruçado sobre o corpo? Mas ela
não estava surpresa com a atitude que Jane tomara, nem com o fato de
Bingley estar presente para demonstrar apoio. Apesar de toda a sua gentileza e
doçura, Jane também era muito determinada e, uma vez que tivesse decidido
que era correto tomar determinada atitude, era pouco provável que algum
argumento a fizesse mudar de ideia.
“O dr. McFee o examinou?”, perguntou Elizabeth.
“Sim, ele veio aqui meia hora atrás e virá de novo quando o sr. Wickham
acordar. Esperamos que já esteja mais calmo até lá e consiga comer alguma
coisa antes de Sir Selwyn chegar, mas o dr. McFee acha que isso é pouco
provável. Ele só conseguiu convencer o sr. Wickham a tomar alguns poucos
goles do remédio, mas, como era bastante forte, o dr. McFee acha que já vai
ser suficiente para garantir algumas horas de sono restaurador.”
Elizabeth se aproximou da cama e cou olhando para Wickham. O remédio
do dr. McFee certamente havia sido e caz; Wickham já não soltava mais
aqueles arquejos ruidosos e fedendo a bebida e dormia tão profundamente
quanto uma criança, sua respiração tão suave que se tinha a impressão de que
ele estava morto. Com o rosto limpo, o cabelo escuro caído sobre o
travesseiro e a camisa aberta deixando à mostra a linha delicada do pescoço,
Wickham parecia um jovem cavaleiro medieval ferido e exausto depois de
uma batalha. Enquanto o observava, Elizabeth foi invadida por uma enxurrada
de emoções. Contra a sua vontade, sua cabeça foi assaltada por lembranças
tão dolorosas que a zeram sentir uma verdadeira repulsa por si mesma. Ela
tinha chegado tão perto de se apaixonar por Wickham. Será que teria se
casado com ele se fosse rico e não pobre? Certamente que não; sabia agora
que o que sentira na época jamais havia sido amor. Wickham, o queridinho de
Meryton, o belo forasteiro que deixara encantadas todas as moças da cidade,
tinha cortejado Elizabeth como se ela fosse sua predileta. Fora tudo vaidade,
um jogo perigoso que ambos haviam jogado. Ela havia aceitado e — pior —
repassado para Jane as alegações que ele zera a respeito da perfídia do sr.
Darcy, de como todas as chances que ele tinha na vida haviam sido
arruinadas, de como Darcy traíra a amizade que existia entre os dois e
negligenciara descaradamente as responsabilidades para com Wickham que o
pai lhe transmitira. Só muito mais tarde Elizabeth havia se dado conta de como
essas revelações, feitas a uma relativa estranha, eram inapropriadas.
Olhando para Wickham agora, ela sentiu uma nova onda de vergonha e
humilhação por ter demonstrado tamanha falta de bom senso e de
discernimento e também por ter lhe faltado a sensibilidade para julgar o
caráter das pessoas da qual sempre havia se orgulhado. Mas ainda restava
algo, uma emoção próxima da pena que fazia com que fosse aterrador
imaginar que m levaria Wickham, e mesmo agora, quando já sabia o que de
pior ele era capaz, ela não conseguia acreditar que ele fosse um assassino.
Qualquer que fosse o desfecho, contudo, o casamento de Wickham com
Lydia o havia tornado parte da família e da vida de Elizabeth, assim como o
casamento dela o tornara parte da família e da vida de Darcy. E agora sempre
que pensava em Wickham vinham-lhe à cabeça imagens aterrorizantes: uma
multidão aos gritos que se silenciava de repente ao ver a gura algemada
emergir da prisão, o patíbulo, a forca, o laço. Ela queria Wickham longe da
vida deles, mas não assim — santo Deus, não assim.
livro três
A POLÍCIA EM PEMBERLEY
1
Quando a carruagem de Sir Selwyn e o carro fúnebre chegaram a
Pemberley pela entrada principal, a porta foi imediatamente aberta por
Stoughton. Houve uma pequena espera até que um dos cavalariços chegasse
para pegar o cavalo de Darcy e, depois de uma breve discussão, ele e
Stoughton concordaram que a carruagem de Sir Selwyn e o carro fúnebre
cariam menos à vista de quem olhasse das janelas se fossem retirados da
frente da casa e levados para o pátio dos fundos, de onde o corpo de Denny
poderia mais tarde ser removido de maneira rápida e, esperava-se, discreta.
Elizabeth achara que o correto a fazer seria receber formalmente aquele
visitante tardio e nada bem-vindo, mas Sir Selwyn logo deixou claro que
estava ansioso para começar a trabalhar imediatamente. Parou apenas para as
costumeiras mesuras e para desculpar-se pelo adiantado da hora e pela
inconveniência de sua visita antes de anunciar que começaria indo ver
Wickham e que seria acompanhado pelo dr. Belcher e por dois policiais, o
bailio Thomas Brownrigg e o subdelegado Mason.
Wickham estava sendo vigiado por Bingley e Alveston, que foi quem abriu a
porta quando Darcy bateu. O quarto lembrava de fato uma cela. Os móveis
eram simples e poucos: uma cama de solteiro sob uma das janelas altas, uma
pia, um pequeno guarda-roupa e duas cadeiras de madeira de encosto reto.
Duas cadeiras mais cômodas haviam sido trazidas para o quarto e postas uma
de cada lado da porta, para oferecer algum conforto para quem quer que
fosse montar guarda durante a noite. O dr. McFee, que estava sentado à direita
da cama, se levantou ao ver Hardcastle entrar. Sir Selwyn havia sido
apresentado a Alveston num dos jantares oferecidos em Highmarten e, claro, já
conhecia o dr. McFee. Cumprimentou os dois homens com uma breve mesura
e depois foi para perto da cama. Entreolhando-se, Alveston e Bingley
reconheceram que a presença deles ali não era mais desejada e se retiraram
em silêncio, enquanto Darcy permaneceu no quarto, mantendo-se a certa
distância. Brownrigg e Mason se postaram um de cada lado da porta e caram
olhando xamente para a frente, como que para demonstrar que, embora não
fosse apropriado por ora assumirem uma participação mais ativa na
investigação, o quarto e a guarda de seu ocupante seriam agora de
responsabilidade deles.
O dr. Obadiah Belcher era o conselheiro médico que costumava ser
convocado pelo chefe dos delegados ou pelo magistrado para prestar auxílio
nos inquéritos. Havia adquirido — o que não era de surpreender em se
tratando de um homem mais acostumado a dissecar mortos do que a tratar
vivos — uma reputação sinistra, alimentada ainda por sua malfadada
aparência. Seu cabelo, quase tão no quanto o de uma criança, era claro a
ponto de parecer praticamente branco e, penteado para trás, deixava à mostra
uma testa amarelada. Ele mirava o mundo com olhos descon ados, encimados
por sobrancelhas que formavam uma linha na. Seus dedos eram compridos,
as unhas muito bem cuidadas, e a reação que ele despertava na população
fora bem resumida pela cozinheira de Highmarten: “Nunca vou deixar esse tal
de dr. Belcher botar as mãos em mim. Sabe lá por onde elas andaram antes”.
Sua fama de homem excêntrico e sinistro também era fomentada pelo fato
de ter um quarto equipado como um laboratório no último andar de sua casa,
onde, segundo rumores, realizava experiências com o intuito de descobrir
quanto tempo o sangue levava para coagular sob diferentes condições e a
velocidade das alterações por que um corpo passava após a morte. Embora
nominalmente fosse um clínico geral, ele só tinha dois pacientes, o chefe dos
delegados e Sir Selwyn Hardcastle, e como até onde se sabia nenhum dos dois
jamais havia adoecido, tê-los sob seus cuidados não contribuiu em nada para
sua reputação como médico. Era, porém, extremamente respeitado por Sir
Selwyn e outros cavalheiros que se preocupavam com a aplicação da lei, pois
emitia sua opinião médica no tribunal com grande autoridade. Sabia-se que
mantinha contato com a Royal Society e trocava cartas com outros cavalheiros
que se dedicavam a experiências cientí cas. De modo geral, seus vizinhos
mais esclarecidos sentiam mais orgulho de sua reputação pública do que
medo das pequenas explosões que de vez em quando chacoalhavam seu
laboratório. Ele raramente falava sem antes re etir profundamente, e quando
entrou se aproximou da cama e cou observando em silêncio o homem
adormecido.
A respiração de Wickham era tão suave que mal dava para ouvi-la. Deitado
de barriga para cima, ele tinha os lábios ligeiramente entreabertos, seu braço
esquerdo estava estendido para fora da cama e o direito dobrado por cima do
travesseiro.
Hardcastle se virou para Darcy. “Ele obviamente não está mais no estado em
que o senhor me disse que tinha sido trazido para cá. Alguém lavou seu rosto.”
Depois de alguns segundos de silêncio, Darcy olhou nos olhos de
Hardcastle e disse: “Assumo total responsabilidade por tudo o que aconteceu
desde que o sr. Wickham foi trazido para minha casa”.
A resposta de Hardcastle foi surpreendente. Sua boca larga se contorceu por
um momento no que, em qualquer outro homem, poderia ser tomado por um
sorriso indulgente e, em seguida, ele disse: “É muito cavalheiresco da sua
parte, Darcy, mas acho que nós podemos deduzir que as senhoras foram
responsáveis por isso. Não é isso que entendem como sua função, arrumar a
desordem que criamos em nossos quartos e, às vezes, em nossas vidas? Não
tem importância; o testemunho dos criados já vai ser su ciente para atestar o
estado em que Wickham foi trazido para cá. Não parece haver nenhum sinal
óbvio de ferimento no corpo dele, a não ser esses pequenos arranhões no
rosto e nas mãos. A maior parte do sangue que estava no rosto e nas mãos
dele devia ser do capitão Denny”.
Ele se virou para o dr. Belcher. “Imagino, Belcher, que seus colegas
cientistas, apesar de tão inteligentes, ainda não tenham descoberto uma
maneira de distinguir o sangue de um homem do sangue de outro.
Aceitaríamos de bom grado uma ajuda assim, embora, é claro, se ela fosse
possível, eu ficaria sem função e Brownrigg e Mason sem emprego.”
“Infelizmente, não, Sir Selwyn. Não pretendemos ser deuses.”
“Não? Fico contente em saber. Achei que tivessem.” Como que se dando
conta de que a conversa adquirira um tom frívolo inadequado, Hardcastle
virou-se para o dr. McFee com ar imponente e perguntou com voz severa: “O
que o senhor deu a ele? Não sabia que esse homem pode ser o principal
suspeito de um caso de homicídio e que eu ia querer interrogá-lo?”.
McFee respondeu num tom calmo: “Para mim, Sir Selwyn, ele é um paciente.
Quando entrei aqui pela primeira vez, ele estava claramente bêbado,
comportava-se de modo violento e estava fora de controle. Antes que a
medicação que lhe dei surtisse pleno efeito, ele começou a car incoerente de
medo, gritando apavorado, mas nada que zesse sentido. Ao que parecia,
teve uma visão de corpos pendendo de forcas, com os pescoços esticados.
Era como se estivesse dentro de um pesadelo antes mesmo de adormecer”.
“Forcas?”, perguntou Hardcastle. “Não surpreende, dada a situação dele.
Que medicação foi essa? Imagino que tenha sido algum tipo de sedativo.”
“É uma medicação que eu mesmo preparo e já utilizei em várias ocasiões.
Eu o convenci a tomá-la para aliviar a aflição em que se encontrava. No estado
em que o sr. Wickham estava, o senhor não poderia ter esperança de obter
dele nenhuma declaração que fizesse sentido.”
“Nem no estado em que ele está agora. Quanto tempo o senhor calcula que
vá demorar para estar desperto e sóbrio o bastante para ser interrogado?”
“É difícil dizer. Às vezes, depois de um choque, a mente se refugia no torpor
e o sono é profundo e prolongado. A julgar pela dose que ministrei, ele
deveria voltar à consciência por volta das nove da manhã, talvez antes, mas
não posso dar certeza. Só consegui convencê-lo a tomar alguns poucos goles
da medicação. Se o sr. Darcy consentir, eu me proponho a car aqui até que
meu paciente acorde. A sra. Wickham também está sob meus cuidados.”
“E com certeza também sob efeito de sedativo e sem condições de
responder a perguntas.”
“A sra. Wickham estava histérica de pânico. Tinha se convencido de que o
marido havia morrido. Atendi uma mulher profundamente abalada, que
precisava do alívio do sono. O senhor não teria conseguido extrair nada dela
até que tivesse ficado mais calma.”
“Eu poderia ter extraído a verdade. Acho que o senhor e eu nos
entendemos, doutor. O senhor tem suas responsabilidades e eu tenho as
minhas. Não sou um homem insensato. Não tenho nenhuma intenção de
incomodar a sra. Wickham antes que amanheça.” Ele se voltou para o dr.
Belcher. “Alguma observação, Belcher?”
“Nenhuma, Sir Selwyn, salvo que concordo com a decisão do dr. McFee de
administrar sedativo a Wickham. Ele não poderia ter dado nenhuma
declaração útil se fosse interrogado no estado descrito e, se mais tarde fosse
levado a julgamento, a validade de qualquer coisa que tivesse dito poderia ser
posta em dúvida no tribunal.”
Hardcastle se virou para Darcy. “Então volto amanhã, às nove da manhã. Até
lá, o bailio Brownrigg e o subdelegado Mason carão de guarda e tomarão
posse da chave. Se Wickham precisar da atenção do dr. McFee, eles vão
chamá-lo. Caso contrário, ninguém tem permissão para entrar neste quarto até
que eu volte. Os delegados vão precisar de cobertas e de algo para comer e
beber que os sustenha ao longo da noite — carne fria, pão, o de praxe.”
“Tudo o que for necessário será providenciado”, disse Darcy brevemente.
Foi então que Hardcastle pareceu notar pela primeira vez o sobretudo de
Wickham pendurado numa das cadeiras e a bolsa de couro no chão ao lado
dela. “Era só essa a bagagem que estava na caleche?”
Darcy respondeu: “Além de uma mala, uma caixa de chapéu e uma bolsa
que pertencem à sra. Wickham, havia duas outras bolsas, uma marcada com as
iniciais GW e outra com o nome do capitão Denny. Como fui informado por
Pratt de que a caleche havia sido alugada para levar os cavalheiros à
estalagem King’s Arms, em Lambton, as bolsas caram na caleche até
voltarmos com o corpo do capitão Denny, quando então foram trazidas aqui
para dentro”.
“Elas terão de me ser entregues, obviamente”, disse Hardcastle. “Vou levar
todas as bolsas, salvo as da sra. Wickham. Enquanto isso, vejamos o que
Wickham trazia consigo.”
Hardcastle pegou nas mãos o pesado sobretudo e o sacudiu vigorosamente.
Três folhas secas que tinham cado presas no sobretudo caíram no chão, e
Darcy viu que havia outras grudadas nas mangas. Entregando o sobretudo a
Mason para que o segurasse, o próprio Hardcastle meteu as mãos nos bolsos.
Do bolso esquerdo, retirou os costumeiros pequenos pertences que se poderia
esperar que um viajante carregasse: um lápis, um pequeno caderno, sem
nenhuma anotação, dois lenços e um cantil que Hardcastle, depois de
desatarraxar a tampa, disse conter uísque. O bolso direito continha um objeto
mais interessante: uma carteira de couro. Abrindo-a, Hardcastle puxou de
dentro dela um maço de notas, cuidadosamente dobradas, e as contou.
“Trinta libras exatas. Em notas novas ou, pelo menos, emitidas não faz muito
tempo. Vou lhe dar um recibo por elas, Darcy, até que possamos descobrir a
quem elas pertencem legalmente. Assim que chegar em casa, guardo esse
dinheiro no meu cofre. Amanhã de manhã talvez consiga extrair de Wickham
uma explicação sobre como obteve esse dinheiro. É possível que ele o tenha
retirado do corpo do capitão Denny e, se foi assim, talvez tenhamos
descoberto o motivo do crime.”
Darcy abriu a boca para protestar, mas, achando que só ia piorar as coisas,
não disse nada.
“E agora sugiro que vejamos o corpo”, disse Hardcastle. “O cadáver está
sendo mantido sob vigilância, suponho.”
“Não sob vigilância”, respondeu Darcy. “O corpo do capitão Denny está na
sala das armas e a porta da sala está trancada. A mesa que temos lá me
pareceu adequada. Tenho aqui comigo tanto a chave da sala, quanto a chave
do armário onde estão guardadas as armas e a munição; pareceu-me
desnecessário tomar outras precauções. Podemos ir até lá agora. Se o senhor
não fizer objeção, gostaria que o dr. McFee nos acompanhasse. Talvez seja útil
ter uma segunda opinião sobre o estado do corpo.”
Depois de alguns instantes de hesitação, Hardcastle disse: “Não vejo motivo
para objeções. O senhor mesmo, sem dúvida, vai querer estar presente e eu
vou precisar do dr. Belcher e do bailio Brownrigg comigo, mas não será
necessário mais ninguém. Não vamos fazer do morto um espetáculo público.
Vamos precisar, é claro, de muitas velas”.
“Eu já havia previsto isso”, disse Darcy. “Velas extras foram levadas para lá e
estão prontas para serem acesas. Creio que o senhor vai achar a luz na sala tão
adequada quanto é possível à noite.”
“Preciso que alguém que de guarda com Mason enquanto Brownrigg
estiver conosco. Stoughton seria uma escolha apropriada. O senhor pode
chamá-lo de volta, Darcy?”
Como se já previsse ser convocado, Stoughton estava esperando perto da
porta. Entrou na sala e postou-se em silêncio ao lado de Mason. Pegando suas
velas, Hardcastle e o resto do grupo se retiraram, e Darcy ouviu a chave sendo
girada na fechadura depois que eles saíram.
A casa estava tão silenciosa que era como se estivesse deserta. A sra.
Reynolds havia ordenado que todos os empregados que ainda estavam
preparando comida para o baile do dia seguinte fossem para a cama e, de
toda a criadagem, só ela, Stoughton e Belton continuavam a postos. A sra.
Reynolds aguardava no saguão, ao lado de uma mesa onde estavam pousadas
várias velas novas em castiçais de prata altos. Quatro delas tinham sido acesas
e as chamas, que ardiam intensamente, pareciam enfatizar em vez de iluminar
a escuridão que dominava boa parte do enorme saguão ao redor.
“Talvez não sejam necessárias tantas velas, mas achei que os senhores iam
precisar de muita luz”, disse a sra. Reynolds.
Cada um dos homens pegou e acendeu uma das novas velas.
“Deixe as outras aí onde estão. O subdelegado virá buscá-las se for
preciso”, disse Hardcastle. Virando-se para Darcy, perguntou: “O senhor disse
que está com a chave da sala das armas e que velas em quantidade su ciente
já foram levadas para lá?”.
“Já há catorze velas na sala, Sir Selwyn. Eu mesmo as levei com Stoughton.
Salvo por essa vez, ninguém mais entrou na sala das armas desde que o corpo
do capitão Denny foi posto lá.”
“Então vamos ao trabalho. Quanto antes examinarmos o corpo, melhor.”
Darcy cou aliviado quando Hardcastle aceitou que ele tinha o direito de
tomar parte no grupo. Denny fora levado para Pemberley e era justo que o
dono da casa estivesse presente quando seu corpo fosse examinado, embora
Darcy não visse como sua presença pudesse ser muito útil. Ele conduziu a
procissão à luz de velas rumo aos fundos da casa e, tirando do bolso um
chaveiro com duas chaves, usou a maior para abrir a porta da sala das armas.
Surpreendentemente grande, a sala tinha nas paredes quadros de velhos
grupos de caça com seus butins e uma prateleira onde se viam as lustrosas
lombadas de couro de livros de registro que remontavam no mínimo ao
século anterior. Havia também uma escrivaninha e uma cadeira de mogno e
um armário trancado contendo armas e munição. A mesa estreita fora
obviamente afastada da parede e agora estava no meio da sala, com o corpo
coberto por um lençol limpo.
Antes de sair para informar Sir Selwyn da morte de Denny, Darcy havia
instruído Stoughton a separar castiçais de tamanho igual e velas altas, as
melhores da casa — uma extravagância que, Darcy imaginava, faria Stoughton
e a sra. Reynolds trocarem cochichos de reprovação. Essas eram as velas
normalmente reservadas para a sala de jantar. Juntos, ele e Stoughton as
tinham disposto em duas leiras sobre a escrivaninha, deixando à mão o
longo cordão revestido de cera que era usado para acender velas. Darcy as
acendeu e, conforme o cordão ia encontrando o pavio de cada uma das
velas, a sala foi se iluminando, inundando os rostos expectantes com um
brilho cálido e suavizando até mesmo as feições severas e ossudas de
Hardcastle, enquanto cada o de fumaça se espalhava no ar feito incenso, seu
aroma doce e efêmero engolido pelo cheiro de cera de abelha. Darcy tinha a
sensação de que a escrivaninha, com suas cintilantes leiras de luz, havia se
transformado num altar excessivamente decorado e a sala das armas, tão
funcional, numa capela, e de que eles cinco estavam realizando secretamente
os ritos fúnebres de alguma religião estranha, mas exigente.
Depois que eles se postaram em volta do corpo como acólitos trajados de
forma inadequada, Hardcastle puxou o lençol para baixo. O olho direito de
Denny estava coberto de um sangue negro, que havia se espalhado por boa
parte do rosto, mas o esquerdo estava bem aberto e com a pupila voltada
para cima, de modo que Darcy, parado atrás da cabeça de Denny, teve a
impressão de que o olho estava xo nele, não com a expressão vazia da
morte, mas transmitindo com seu olhar viscoso rancores acumulados durante
toda uma vida.
O dr. Belcher tocou com as mãos o rosto, os braços e as pernas de Denny e
depois disse: “O rigor mortis já está presente no rosto. Numa estimativa
preliminar, eu diria que ele morreu há cerca de cinco horas”.
Hardcastle fez um breve cálculo mental e então disse: “Isso con rma o que
já tínhamos inferido, ou seja, que ele morreu pouco depois de descer da
caleche e aproximadamente na mesma hora em que os tiros foram ouvidos. O
capitão Denny foi morto por volta das nove horas da noite de ontem. E
quanto ao ferimento?”.
O dr. Belcher e o dr. McFee se aproximaram do corpo, entregando suas
velas a Brownrigg, que, pousando sua própria vela em cima da mesa,
levantou-as no alto, enquanto os dois médicos examinavam de perto o
coágulo de sangue escuro. “Precisamos lavar esse sangue para poder avaliar a
profundidade da ferida, mas, antes disso, quero chamar atenção para o
fragmento de folha morta e para a pequena mancha de terra logo acima da
efusão de sangue”, disse o dr. Belcher. “Algum momento depois de sofrer o
ferimento, ele deve ter caído e batido com o rosto no chão. Onde está a
água?”, perguntou, como se esperasse que se materializasse do nada.
Darcy pôs a cabeça para fora da porta e pediu à sra. Reynolds que fosse
buscar uma bacia com água e algumas toalhas pequenas. Ela trouxe tudo com
tanta rapidez que Darcy achou que a mulher já devia ter previsto aquele
pedido e deixado tudo preparado perto da torneira do quarto de banho
adjacente; entregou a bacia e as toalhas a Darcy sem entrar na sala. O dr.
Belcher foi até sua pasta de instrumentos, tirou de dentro dela alguns
chumaços de lã branca, limpou com rmeza a pele suja, depois jogou a lã
avermelhada na água. Um de cada vez, ele e o dr. McFee examinaram o
ferimento de perto e novamente tatearam a pele em volta.
Foi o dr. Belcher quem por m falou. “Ele foi atingido com algum objeto
duro, possivelmente redondo, mas, como a pele se rompeu, não tenho como
determinar com exatidão o formato e o tamanho da arma. O que posso dizer
com certeza é que esse golpe não o matou, embora tenha provocado um
escoamento de sangue considerável, como ferimentos na cabeça com
frequência provocam. Mas não foi um golpe fatal. Não sei se meu colega
concorda.”
Sem pressa, o dr. McFee apalpou a pele em volta da ferida e, depois de
cerca de um minuto, disse: “Concordo. O ferimento é superficial”.
A voz enérgica de Hardcastle quebrou o silêncio. “Então virem o corpo.”
Denny era um homem pesado, mas Brownrigg, com a ajuda do dr. McFee,
conseguiu virá-lo num único movimento.
“Mais luz, por favor”, disse Hardcastle.
Darcy e Brownrigg se aproximaram, depois cada qual pegou uma das velas
que estavam em cima da mesa e, segurando uma vela em cada mão, chegaram
bem perto do corpo. Fez-se um momento de silêncio, como se nenhum dos
presentes quisesse dizer o óbvio. Então, Hardcastle declarou: “Aí está,
senhores, a causa da morte”.
Eles viram um talho horizontal de cerca de quatro polegadas de
comprimento na base do crânio, mas sua extensão total estava oculta por
mechas de cabelo, algumas das quais haviam penetrado na ferida. O dr.
Belcher foi até sua pasta e, voltando com o que parecia ser uma pequena faca
de prata, levantou cuidadosamente as mechas que cobriam o ferimento,
revelando um talho de cerca de um quarto de polegada de espessura. O
cabelo abaixo do talho estava duro e emaranhado, mas era difícil saber se era
porque estava sujo de sangue ou de outro líquido que escorrera da ferida.
Darcy se forçou a olhar o ferimento de perto, mas uma mistura de horror e
pena fez um engulho lhe subir à garganta. Ouviu um gemido involuntário e
ficou se perguntando se tinha sido ele que o soltara.
Os dois médicos se inclinaram sobre o corpo. O dr. Belcher mais uma vez
fez um exame demorado e depois disse: “Ele foi atingido por um golpe
vigoroso, mas a ferida tem bordas lisas, o que sugere que a arma era pesada,
mas não era cortante. A marca tem as características de ferimentos graves
sofridos na cabeça, em que os de cabelo, fragmentos de tecido e vasos
sanguíneos são empurrados de encontro ao osso, mas mesmo que o crânio
tenha permanecido intacto, o rompimento dos vasos sanguíneos sob o osso
resultaria numa hemorragia interna entre o crânio e a membrana que cobre o
cérebro. A pancada foi desferida com uma força extraordinária, por alguém
mais alto que a vítima ou do mesmo tamanho. Acredito que o agressor seja
destro e que a arma utilizada tenha sido algo como as costas de um machado,
ou seja, era pesada mas não tinha gume. Se o golpe tivesse sido desferido
com uma espada ou com o lado cortante de um machado, a ferida seria mais
funda e ele teria sido quase decapitado”.
“Então o assassino atacou primeiro pela frente, incapacitando a vítima, e
depois, quando Denny tentou se afastar, trôpego e cegado pelo sangue, que
ele instintivamente tentou limpar esfregando os olhos, o assassino atacou de
novo, desta vez por trás. A arma poderia ter sido uma pedra grande e
pontiaguda?”, perguntou Hardcastle.
“Pontiaguda não, pois o ferimento não é recortado”, respondeu Belcher.
“Certamente poderia ter sido uma pedra pesada, mas com bordas
arredondadas, e sem dúvida deve haver algumas espalhadas pela oresta. As
pedras e tábuas usadas para fazer consertos na propriedade não são trazidas
por aquela estrada? Algumas pedras podem ter caído de uma carroça e depois
ter sido empurradas a pontapés para o meio da vegetação, talvez cando
escondidas entre os arbustos durante anos. Mas se a arma foi uma pedra, seria
preciso um homem excepcionalmente forte para desferir um golpe como esse.
É bem mais provável que a vítima tenha caído de rosto no chão e a pedra
tenha sido atirada com força enquanto ele estava estirado de bruços e
indefeso.”
“Por quanto tempo pode ter sobrevivido depois de sofrer esse ferimento?”,
perguntou Hardcastle.
“É difícil dizer. Ele pode ter morrido numa questão de segundos. Se
sobreviveu mais um pouco, certamente não foi por muito tempo.”
Ele se virou para o dr. McFee, que disse: “Sei de casos em que uma pancada
na cabeça produziu poucos sintomas além de uma dor de cabeça e o paciente
continuou a tocar a vida normalmente, vindo a morrer algumas horas depois.
Mas isso não poderia ter acontecido nesse caso. O ferimento é grave demais
para que ele possa ter sobrevivido mais que um período muito curto, se é que
sobreviveu”.
O dr. Belcher abaixou a cabeça, chegando ainda mais perto do ferimento, e
disse: “Devo poder dar informações a respeito do dano causado ao cérebro
depois que tiver feito a autópsia”.
Darcy sabia que Hardcastle detestava autópsias e, embora o dr. Belcher
invariavelmente ganhasse as discussões quando por avam sobre o assunto,
Hardcastle disse: “Isso é realmente necessário, Belcher? A causa da morte não
está clara para todos nós? Ao que tudo indica, o que aconteceu foi que o
agressor desferiu um primeiro golpe na testa quando estava diante da vítima.
O capitão Denny, cegado pelo sangue, tentou fugir, mas levou outro golpe,
desta vez fatal e pelas costas. Nós sabemos pelos detritos em sua testa que ele
caiu de rosto no chão. Se não me engano, Darcy, quando me noti cou do
crime, o senhor disse que o encontraram estendido de costas no chão”.
“Encontramos, sim, Sir Selwyn, e foi assim que ele foi posto na maca. Essa é
a primeira vez que estou vendo esse ferimento.”
De novo houve um momento de silêncio e, então, Hardcastle se dirigiu a
Belcher. “Obrigado, doutor. O senhor pode, é claro, realizar qualquer outro
exame no corpo que achar necessário. Não tenho nenhuma intenção de
atrapalhar o progresso do conhecimento cientí co. Bem, já zemos tudo o
que podíamos aqui. Agora vamos remover o corpo.” Virou-se para Darcy.
“Deixamos acertado, então, que estarei de volta aqui amanhã, às nove da
manhã, quando espero poder falar com George Wickham e com membros da
família e da criadagem, para poder estabelecer álibis para a hora estimada da
morte. Tenho certeza de que o senhor entende por que isso é necessário.
Como já determinei, o bailio Brownrigg e o delegado Mason vão permanecer
aqui e carão responsáveis por vigiar Wickham. O quarto será mantido
trancado por dentro e só será aberto em caso de necessidade. Deverá haver
sempre dois homens de guarda. Gostaria que o senhor me desse sua garantia
de que essas instruções serão cumpridas.”
“Naturalmente que serão”, respondeu Darcy. “O senhor e o dr. Belcher
gostariam de beber ou comer alguma coisa antes de ir?”
“Não, obrigado.” Como que consciente de que algo mais precisava ser dito,
Hardcastle acrescentou: “Lamento que essa tragédia tenha acontecido nas suas
terras. Inevitavelmente, será uma fonte de inquietação, principalmente para as
senhoras da família. O fato de que o senhor e Wickham não mantinham boas
relações, infelizmente, não vai tornar as coisas mais toleráveis. Como
magistrado, o senhor com certeza compreende minha responsabilidade nessa
questão. Vou mandar uma mensagem ao juiz de instrução e espero que o
inquérito seja realizado em Lambton nos próximos dias. Será montado um júri
local. O senhor, é claro, terá de estar presente, assim como as outras
testemunhas que encontraram o corpo”.
“Estarei lá, Sir Selwyn.”
“Vou precisar de ajuda para carregar a maca até o carro fúnebre”, disse
Hardcastle, virando-se em seguida para Brownrigg. “O senhor pode assumir a
tarefa de vigiar Wickham para que Stoughton possa ir conosco? E, dr. McFee,
já que está aqui e sem dúvida deseja ser útil, talvez o senhor pudesse ajudar a
transportar o corpo.”
O corpo de Denny foi então retirado da sala das armas, ao som dos
arquejos do dr. McFee, e cinco minutos depois já estava no carro fúnebre. O
cocheiro, que tinha pegado sono, foi acordado, Sir Selwyn e o dr. Belcher
entraram na carruagem, e Darcy e Stoughton caram observando da porta
aberta até os dois veículos desaparecerem de vista.
Quando Stoughton se virou para entrar de volta na casa, Darcy disse:
“Entregue-me as chaves, Stoughton. Eu tranco as portas. Quero tomar um
pouco de ar fresco”.
O vento havia amainado, mas agora grossas gotas de chuva espetavam a
superfície do rio sob a lua cheia. Quantas vezes Darcy não havia cado ali
sozinho, fugindo por alguns minutos da música e do murmurinho do salão de
baile? Agora, atrás dele, a casa estava escura e silenciosa, e a beleza que
sempre o havia reconfortado desta vez não tocou seu espírito. Elizabeth já
devia estar na cama, mas duvidava que estivesse dormindo. Ele precisava do
conforto da presença dela, mas sabia que sua mulher devia estar exausta, e
mesmo ansiando por ouvir sua voz, sentir seu carinho tranquilizador e seu
amor, ele não teria coragem de perturbá-la. No entanto, depois que entrou e
girou a chave, empurrando os pesados ferrolhos de volta para o lugar, ele
percebeu uma tênue luz atrás de si e, virando-se, viu Elizabeth, de vela na
mão, descendo a escada e indo para seus braços.
Após alguns minutos de abençoado silêncio, Elizabeth se desvencilhou
delicadamente e disse: “Meu amor, você não comeu nada desde o jantar e
parece exausto. Precisa se alimentar um pouco antes de ir descansar. A sra.
Reynolds serviu uma sopa quente na sala de jantar pequena. Charles e o
coronel já estão lá”.
O conforto de uma cama compartilhada e de se aninhar nos braços
amorosos de Elizabeth lhe foi negado. Entrando na sala de jantar pequena, ele
descobriu que Bingley e o coronel já haviam terminado de comer e que o
coronel estava de novo determinado a assumir o comando.
“Eu me proponho, Darcy, a passar a noite na biblioteca, que ca perto o
bastante da porta da frente, para oferecer alguma garantia de que a casa estará
segura. Tomei a liberdade de instruir a sra. Reynolds a providenciar
travesseiros e algumas cobertas. Não é necessário que se junte a mim, se
precisar do maior conforto da sua cama.”
Darcy achava desnecessária a precaução de passar a noite perto da porta da
frente trancada e aferrolhada, mas não podia permitir que um hóspede
dormisse com certo desconforto enquanto ele próprio dormia na cama.
Sentindo que não tinha escolha, disse: “Não creio que quem matou Denny
teria a audácia de atacar Pemberley, mas claro que vou me juntar a você”.
“A sra. Bingley está dormindo num sofá no quarto da sra. Wickham, e
Belton cará à disposição para o que for necessário, assim como eu”, disse
Elizabeth. “Vou veri car se está tudo bem lá antes de me recolher. Só posso
desejar aos senhores uma noite sem incidentes e, espero, algumas horas de
sono. Como Sir Selwyn virá para cá às nove, vou pedir que o café da manhã
seja servido cedo. Por ora, eu lhes desejo uma boa noite.”
2
Entrando na biblioteca, Darcy viu que Stoughton e a sra. Reynolds haviam
feito tudo o que podiam para garantir que ele e o coronel tivessem o máximo
de conforto possível. O fogo havia sido realimentado, torrões de carvão
tinham sido embrulhados com papel para não fazer barulho, uma boa
quantidade de lenha fora empilhada na cesta ao lado da lareira caso fosse
necessária e travesseiros e cobertas em número su ciente haviam sido
deixados à disposição. Numa mesa redonda a certa distância da lareira havia
uma travessa com tortas salgadas coberta com uma campânula, uma jarra de
água e outra de vinho e pratos, copos e guardanapos.
No íntimo, Darcy achava a vigília desnecessária. A porta da frente de
Pemberley estava bem protegida, com duas trancas e dois ferrolhos, e mesmo
que Denny tivesse sido assassinado por um estranho, talvez um desertor do
Exército que tivesse sido desa ado e reagido com violência letal, o tal homem
di cilmente poderia representar uma ameaça física à casa em si ou a qualquer
pessoa dentro dela. Darcy estava cansado e agitado ao mesmo tempo, um
estado a itivo em que era quase impossível mergulhar num sono profundo,
algo que, mesmo que fosse possível, pareceria uma abdicação de suas
responsabilidades. Estava atormentado pelo pressentimento de que algum
perigo ameaçava Pemberley, sem conseguir conceber qualquer ideia lógica de
que perigo poderia ser esse. Cochilar numa das poltronas da biblioteca na
companhia do coronel provavelmente lhe proporcionaria tanto descanso
quanto poderia esperar obter nas horas que ainda restavam até a manhã
seguinte.
Enquanto eles se acomodavam nas duas poltronas de encosto alto e bem
acolchoadas, o coronel na que cava ao pé da lareira e Darcy na outra um
pouco mais distante, ocorreu a ele que o primo poderia ter sugerido aquela
vigília por ter alguma con dência a fazer. Ninguém perguntara nada ao
coronel a respeito do passeio a cavalo que zera pouco antes das nove, mas
Darcy sabia que, como ele, Elizabeth, Bingley e Jane deviam estar esperando
que o coronel oferecesse alguma explicação. Como o assunto ainda não tinha
vindo à baila, certa delicadeza os impedia de fazer perguntas, mas Hardcastle
não teria essa delicadeza quando voltasse. Fitzwilliam devia saber que era o
único membro da família que ainda não apresentara um álibi. Em nenhum
momento passara pela cabeça de Darcy que o primo estivesse envolvido de
alguma forma na morte de Denny, mas o silêncio dele era preocupante e, o
que era ainda mais surpreendente num homem de modos tão formais, tinha
um quê de descortesia.
Para seu espanto, Darcy sentiu que estava caindo no sono mais rápido do
que esperava, e foi um esforço até mesmo responder a alguns comentários
banais, que ele tinha a impressão de estarem vindo de muito longe. Houve
breves momentos de semiconsciência, quando se remexia na poltrona e se
lembrava vagamente de onde estava. Num desses momentos, olhou
brevemente para o coronel estendido na outra poltrona, seu rosto bonito
avermelhado pelo fogo, sua respiração profunda e regular, depois cou
observando por um momento as chamas moribundas lambendo a lenha
enegrecida. Forçou suas pernas enrijecidas a se erguerem da poltrona e, com
extremo cuidado, pôs mais lenha e mais alguns torrões de carvão na lareira e
esperou até que se acendessem. Depois, voltou para a poltrona, cobriu-se e
dormiu.
A vez seguinte em que acordou foi curiosa. Foi uma volta súbita e completa
à consciência, em que todos os seus sentidos caram num estado tão agudo
de alerta que era como se já estivesse esperando aquele momento. Estava
encolhido de lado na poltrona e, levantando muito ligeiramente as pálpebras,
viu o coronel se movendo na frente da lareira, bloqueando por um momento
a claridade do fogo, que era a única fonte de luz no cômodo. Darcy se
perguntou se teria sido essa mudança na intensidade da luz que o acordara.
Não teve di culdade para ngir que estava dormindo, espiando com os olhos
quase fechados. O casaco do coronel estava pendurado no encosto da
poltrona da qual se levantara, e ele en ou a mão num dos bolsos e puxou um
envelope. Ainda de pé, tirou um documento de dentro do envelope e passou
algum tempo o examinando. Depois, só o que Darcy conseguiu ver foram as
costas do coronel, um movimento súbito de seu braço e uma chama mais
intensa se avolumando na lareira; o papel queimava. Darcy soltou um leve
grunhido e virou o rosto mais para o lado. Em circunstâncias normais, ele teria
deixado claro para o primo que estava acordado e perguntado se ele havia
conseguido dormir um pouco, de modo que aquela pequena farsa lhe
pareceu vil. Contudo, o horror do momento em que ele vira pela primeira vez
o corpo de Denny sob o luar desorientador o havia abalado como um
terremoto mental, e ele tinha a sensação de que não pisava mais em terra rme
e de que todas as confortáveis convenções e pressuposições que desde que
era menino regiam sua vida estavam em ruínas à sua volta. Comparado àquele
momento perturbador, o estranho comportamento do coronel, seu passeio
noturno ainda não explicado e agora aquela queima aparentemente sub-
reptícia de um documento eram pequenos temores, mas mesmo assim eram
inquietantes.
Conhecia o primo desde criança e o coronel sempre parecera ser o homem
mais descomplicado que poderia existir, o menos dado a subterfúgios ou
ngimentos. Mas ele tinha mudado desde que se tornara o lho mais velho e
herdeiro de um conde. O que era feito daquele jovem coronel galante e bem-
humorado, daquela sua sociabilidade espontânea e con ante, tão diferente da
timidez às vezes paralisante de Darcy? O coronel parecia o mais afável e
popular dos homens. Mas mesmo naquela época tinha consciência de suas
responsabilidades familiares, do que se esperava de um lho mais novo.
Jamais teria se casado com Elizabeth Bennet, e Darcy às vezes sentia que o
primo havia perdido um pouco do respeito que tinha por ele, porque Darcy
tinha posto seu desejo por uma mulher acima de suas responsabilidades para
com sua família e sua classe. Elizabeth certamente parecia ter sentido uma
mudança, embora nunca tivesse comentado nada com ele a respeito do
coronel, a não ser para avisá-lo que o coronel pretendia conversar com ele
para pedir a mão de Georgiana em casamento. Elizabeth achara justo preparar
o marido para essa conversa, que obviamente não havia se dado e agora
jamais ia se dar; Darcy sabia desde o momento em que Wickham, bêbado,
fora quase carregado pela porta de Pemberley adentro que o visconde Hartlep
procuraria sua futura condessa em outro lugar. O que lhe causava surpresa
agora não era que o pedido jamais seria feito, mas que ele, que sempre nutrira
grandes ambições para sua irmã, estava contente com a ideia de que ao
menos aquele pedido ela jamais ficaria tentada a aceitar.
Não era de surpreender que seu primo se sentisse oprimido com o peso de
suas futuras responsabilidades. Darcy pensou no castelo imenso e ancestral, na
in nidade de bocas de minas que se abriam para o ouro negro das jazidas de
carvão da família, na mansão senhorial de Warwickshire com sua vasta
extensão de terra fértil, na possibilidade de que o coronel, quando sucedesse
ao pai, sentisse que teria de abrir mão da carreira que ele amava e assumir sua
cadeira na Câmara dos Lordes. Era como se Fitzwilliam estivesse fazendo uma
tentativa disciplinada de mudar a própria essência de sua personalidade, e
Darcy se perguntava se isso era sensato ou até mesmo possível. Estaria ele
enfrentando alguma obrigação ou problema particular sem ligação com as
responsabilidades da herança? Darcy pensou de novo em como era estranho
que o primo tivesse feito tanta questão de passar a noite na biblioteca. Se o
que ele queria era destruir uma carta, havia lareiras acesas su cientes na casa
para que encontrasse uma oportunidade de queimá-la sem que ninguém visse.
E por que destruí-la naquele momento e às escondidas? Teria acontecido
alguma coisa que tornava a destruição do documento imperativa? Tentando
encontrar uma posição confortável o bastante para dormir, Darcy disse a si
mesmo que já havia mistérios su cientes sem que precisasse criar outros e,
passado um tempo, pegou no sono de novo.
Foi acordado pelo movimento do coronel, que abriu ruidosamente as
cortinas e, depois de olhar rapidamente para fora, tornou a fechá-las, dizendo:
“Ainda mal clareou. Você dormiu bem, creio”.
“Não exatamente bem, mas razoavelmente.” Darcy consultou seu relógio de
bolso.
“Que horas são?”
“Sete em ponto.”
“Acho melhor veri car se Wickham já acordou. Nesse caso, vai precisar
comer e beber alguma coisa e é provável que os dois subdelegados também.
Não podemos rendê-los. As instruções de Hardcastle foram categóricas. Mas
acho que alguém deveria ver como está a situação naquele quarto. Se
Wickham estiver acordado e ainda no mesmo estado em que chegou aqui,
como descreveu o dr. McFee, Brownrigg e Mason podem ter di culdade para
controlá-lo.”
Darcy se levantou. “Eu vou. Você toca a campainha e pede o café da
manhã. Os criados só vão servi-lo na sala de jantar às oito.”
O coronel, porém, já estava na porta. Virando-se, disse: “É melhor que eu
vá. Quanto menos você tiver contato com Wickham, melhor. Hardcastle está
atento a qualquer interferência sua e é ele que está no comando. Não pode
correr o risco de contrariá-lo”.
Intimamente, Darcy admitiu que o coronel tinha razão. Ainda estava
determinado a encarar Wickham como um hóspede em sua casa, mas seria
tolice ignorar a realidade. Wickham era o principal suspeito numa investigação
criminal e Hardcastle tinha o direito de esperar que Darcy mantivesse distância
dele, pelo menos até que o homem tivesse sido interrogado.
O coronel mal havia saído da biblioteca quando Stoughton chegou trazendo
café, seguido de uma criada para cuidar da lareira e da sra. Reynolds, que
fora perguntar se Darcy queria que o café da manhã fosse servido. Uma acha
de lenha que queimava lentamente no borralho acre estalou de repente e se
in amou quando a criada botou mais carvão, as chamas tremeluzentes
iluminando os cantos da biblioteca, mas realçando ao mesmo tempo o tom
sombrio da manhã de outono. O dia, que para Darcy só pressagiava desgraça,
havia começado.
O coronel voltou dez minutos depois, quando a sra. Reynolds estava
saindo, e foi direto para a mesa servir-se de café. Acomodando-se de novo na
poltrona, disse: “Wickham está inquieto e gemendo, mas ainda dorme e é
provável que demore algum tempo a acordar. Tenho a intenção de ir até lá de
novo antes das nove para prepará-lo para a chegada de Hardcastle. Brownrigg
e Mason foram bem servidos de comida e bebida durante a noite. Brownrigg
está cochilando na cadeira dele e Mason se queixou de que suas pernas
estavam dormentes e disse que precisava exercitá-las. O mais provável era que
estivesse precisando fazer uma visita ao quartinho com descarga d’água,
aquela engenhoca nova que você mandou instalar aqui e que, pelo que eu
soube, despertou muito interesse e muitas zombarias chulas na vizinhança.
Então, expliquei como chegar lá e quei de guarda até ele voltar. Até onde
posso julgar, às nove horas Wickham já deve estar su cientemente acordado
para ser interrogado por Hardcastle. Você pretende estar presente?”.
“Wickham está na minha casa e Denny foi assassinado na minha
propriedade. Obviamente, não seria correto que eu participasse da
investigação, que, é claro, cará sob a direção do primeiro delegado quando
Hardcastle noti cá-lo do crime; é pouco provável que ele participe ativamente.
Receio que isso tudo possa ser um transtorno para você também; Hardcastle
vai querer que o inquérito seja realizado assim que possível. Por sorte, o juiz
de instrução está em Lambton, então não deve levar muito tempo para que
sejam escolhidos os vinte e três membros que vão compor o júri. Serão todos
homens aqui da região, mas não sei se isso será uma vantagem. A população
da área sabe que Wickham não é recebido em Pemberley e não tenho dúvida
de que os mexeriqueiros locais passam bastante tempo especulando por quê.
Logicamente, nós dois vamos precisar prestar depoimento, o que suponho vá
ter de assumir prioridade sobre seu retorno ao serviço.”
“Nada pode assumir prioridade sobre isso, mas se o inquérito for realizado
em breve não deverá haver problema”, disse o coronel Fitzwilliam. “O jovem
Alveston está em melhor posição; ele parece não ter di culdade de se afastar
do que dizem ser uma carreira muito ocupada em Londres para tirar proveito
da hospitalidade de Highmarten e de Pemberley.”
Darcy não respondeu. Depois de um breve silêncio, o coronel Fitzwilliam
disse: “Quais são seus planos para hoje? Suponho que a criadagem tenha de
ser informada do que está acontecendo e preparada para o interrogatório de
Hardcastle”.
“Agora vou ver se Elizabeth já está acordada, como imagino que esteja, e
juntos vamos falar com todos os empregados. Se Wickham estiver consciente,
Lydia vai exigir vê-lo, como é direito dela de fato. Depois, claro, nós todos
teremos de nos preparar para ser interrogados. Seria conveniente que todos
tivéssemos álibis, para que Hardcastle não precise perder muito tempo com
ninguém que estava em Pemberley ontem à noite. Ele sem dúvida vai querer
saber a que horas você saiu para cavalgar e a que horas voltou.”
“Espero poder satisfazê-lo”, respondeu o coronel brevemente.
“Quando a sra. Reynolds voltar, por favor diga a ela que estou com a sra.
Darcy e vou tomar o café da manhã na sala de jantar pequena, como de
costume”, disse Darcy, retirando-se em seguida. Tinha sido uma noite
desconfortável em mais de um sentido e ele estava aliviado que tivesse
acabado.
3
Jane, que nunca havia dormido uma única noite longe do marido desde que
se casara, passou horas inquietas no sofá ao lado da cama de Lydia, seus
curtos períodos de sono interrompidos pela necessidade de veri car se a irmã
estava dormindo. O sedativo do dr. McFee tinha sido e caz e Lydia dormiu
profundamente, mas às cinco e meia da manhã despertou por completo e
exigiu ser levada imediatamente para junto do marido. Jane achou que era um
pedido razoável e natural, mas entendeu por bem avisar a Lydia que era
pouco provável que Wickham já estivesse acordado. Como Lydia não estava
disposta a esperar, Jane a ajudou a se vestir — um processo demorado, já que
Lydia fez questão de car o mais bonita possível e gastou um tempo
considerável revirando sua mala e exibindo diferentes vestidos para exigir a
opinião de Jane, atirando os que não queria usar numa pilha no chão, e
depois ajeitando o cabelo. Jane se perguntava se devia acordar Bingley, mas,
chegando perto da porta, não conseguiu ouvir nenhum ruído vindo do quarto
ao lado e relutou em atrapalhar o sono do marido. Certamente acompanhar
Lydia quando ela visse o marido pela primeira vez depois da provação por
que ele passara era trabalho para uma mulher, e ela não devia abusar da
infalível boa vontade do marido pelo bem de seu próprio conforto. Por m
Lydia cou satisfeita com sua aparência e as duas, pegando suas velas acesas,
seguiram por corredores escuros rumo ao quarto em que Wick ham estava.
Foi Brownrigg quem abriu a porta e, quando elas entraram, Mason, que
estava dormindo em sua cadeira, acordou sobressaltado. Depois disso, foi o
caos. Lydia correu para a cama, onde Wickham ainda dormia, atirou-se em
cima dele como se estivesse morto e começou a chorar, aparentemente
tomada por uma grande angústia. Foram necessários alguns minutos para que
Jane conseguisse arrancá-la delicadamente da cama e convencê-la de que seria
melhor que ela voltasse mais tarde, quando o marido estivesse acordado e em
condições de falar com ela. Depois de um último acesso de choro, Lydia se
deixou conduzir de volta para seu quarto, onde Jane nalmente conseguiu
acalmá-la e, em seguida, tocou a campainha para pedir que o café da manhã
das duas fosse servido no quarto. A refeição foi prontamente trazida não pela
criada de costume, mas pela sra. Reynolds, e Lydia, olhando com evidente
satisfação para as iguarias cuidadosamente escolhidas, descobriu que a
angústia havia lhe dado fome e pôs-se a comer com avidez. Jane cou
surpresa com o fato de Lydia não demonstrar nenhuma preocupação com o
capitão Denny, que era o o cial de que ela mais gostava entre os que haviam
cado aquartelados em Meryton com Wickham. E mais surpresa ainda quando
a notícia da morte brutal de que ele fora vítima, que Jane lhe deu da forma
mais cuidadosa possível, pareceu mal penetrar sua compreensão.
Terminado o café da manhã, o humor de Lydia tornou a car instável, e ela
alternava crises de choro com rompantes de autopiedade, de pavor pelo
futuro dela e de seu amado Wickham, e de ressentimento contra Elizabeth. Se
ela e o marido tivessem sido convidados para o baile, como deveriam, teriam
chegado na manhã seguinte pelo devido caminho. Eles só tinham ido pela
oresta porque sua chegada tinha de ser uma surpresa, caso contrário
Elizabeth provavelmente não a deixaria entrar. Fora por culpa de Elizabeth que
eles tinham sido forçados a contratar uma caleche de aluguel e a passar a
noite na estalagem Green Man, que não era de forma alguma o tipo de
hospedaria de que ela e Wickham gostavam. Se Elizabeth lhes desse um
auxílio mais generoso, talvez tivessem dinheiro para passar a noite de sexta-
feira na estalagem King’s Arms, em Lambton, e então uma das carruagens de
Pemberley poderia ter ido buscá-los lá no dia seguinte, Denny não teria
viajado com eles e nada daquilo teria acontecido. Jane teve de ouvir aquilo
tudo, o que fez com grande pesar; como sempre, tentou aplacar o
ressentimento, aconselhar paciência e instilar esperança, mas Lydia estava
deliciando-se demais com sua mágoa para dar ouvidos à razão ou aceitar
conselhos.
Nada disso era de surpreender. Lydia tinha birra de Elizabeth desde
pequena, e jamais poderia haver grande a nidade ou proximidade entre irmãs
de temperamentos tão diferentes. Lydia, indiscreta e impulsiva, vulgar no jeito
de falar e no comportamento, avessa a qualquer tentativa de controlá-la,
sempre fora um embaraço para as duas irmãs mais velhas. Era a lha predileta
da mãe e, na verdade, era muito parecida com ela, mas havia outros motivos
para o antagonismo entre Elizabeth e a irmã mais nova. Lydia descon ava, e
com razão, que Elizabeth havia tentado convencer o pai a proibi-la de visitar
Brighton. Kitty contara ter visto Elizabeth bater na porta da biblioteca e receber
permissão para entrar naquele santuário, o que era um privilégio raro já que o
sr. Bennet defendia ferrenhamente a ideia de que a biblioteca era o único
cômodo da casa em que ele tinha a chance de car sozinho e em paz. Tentar
tirar de Lydia qualquer prazer que ela estivesse decida a desfrutar era
considerado por ela uma das piores traições que uma irmã poderia cometer
contra outra, e era questão de princípio para ela jamais perdoar nem esquecer
tal coisa.
Havia ainda outro motivo para essa birra que beirava a inimizade: Lydia
sabia que Wickham havia cortejado Elizabeth antes de voltar suas atenções
para ela. Numa das visitas que Lydia zera a Highmarten, Jane ouvira uma
conversa dela com a governanta. Era a mesma Lydia de sempre, indiscreta,
egoísta e sem consideração. “Claro que o sr. Wickham e eu jamais vamos ser
convidados para ir a Pemberley. A sra. Darcy tem ciúme de mim e todo
mundo em Meryton sabe por quê. Ela era louca por Wickham quando ele
estava aquartelado em Meryton e o teria sgado se pudesse. Mas ele escolheu
outra pessoa — sorte minha! E, de qualquer forma, Elizabeth jamais teria se
casado com Wickham, já que ele não tem dinheiro. Se tivesse, ela teria
aceitado um pedido de casamento dele sem pensar duas vezes. Ela só se
casou com Darcy — um homem arrogante, mal-humorado, detestável — por
causa de Pemberley e de todo o dinheiro que ele tem. Todo mundo em
Meryton sabe disso também.”
A impropriedade de comentar com a governanta questões íntimas da família
e a mistura de inverdades e vulgaridades com que Lydia passou adiante sua
maledicência zeram Jane se perguntar se seria sensato continuar aceitando
tão prontamente as visitas em geral não anunciadas da irmã, e ela decidiu
desestimulá-las no futuro pelo bem de Bingley, de seus lhos e dela própria.
Mas ainda teria de tolerar mais uma visita. Prometera levar Lydia para
Highmarten quando, conforme combinado, ela e Bingley fossem embora de
Pemberley no domingo à tarde, e Jane sabia o quanto as di culdades de
Elizabeth seriam atenuadas se Lydia não estivesse lá, a exigir a toda hora
atenção e comiseração, a ter ruidosos ataques de choro e a des ar mágoas.
Jane havia se sentido impotente diante da tragédia que se abatera sobre
Pemberley, mas esse pequeno favor era o mínimo que podia fazer por sua
querida Elizabeth.
4
Elizabeth dormiu um sono intermitente, com curtos períodos de abençoada
inconsciência interrompidos por pesadelos que a faziam despertar
sobressaltada e acordar para o horror real que pairava sobre Pemberley como
um manto mortuário. Instintivamente ela esticava o braço para tocar no
marido, mas logo se lembrava de que ele estava passando a noite na
biblioteca com o coronel Fitzwilliam. O impulso de levantar da cama e andar
pelo quarto era quase incontrolável, mas tentou pegar no sono de novo. Os
lençóis de linho, em geral tão frescos e acolhedores, estavam retorcidos e a
atavam como uma corda, enquanto os travesseiros, recheados de penas muito
nas e macias, pareciam duros e quentes, exigindo que ela os sacudisse e os
virasse constantemente para torná-los confortáveis.
Seus pensamentos se voltaram para Darcy e o coronel. Era absurdo que eles
estivessem dormindo, ou tentando dormir, no que só podia ser um grande
desconforto, principalmente depois de um dia tão terrível. E qual seria a
intenção do coronel Fitzwilliam ao propor tal arranjo? Ela sabia que havia sido
ideia dele. Será que tinha alguma coisa importante a comunicar a Darcy e
precisava conversar com ele sem interrupções? Estaria dando alguma
explicação para aquele misterioso passeio noturno a cavalo, ou será que o
que tinha a dizer estava relacionado a Georgiana? Então, ocorreu a Elizabeth
que o motivo que levara o coronel a propor que os dois dormissem na
biblioteca poderia ter sido impedir que ela e Darcy passassem algumas horas a
sós. Desde que o grupo de busca voltara com o corpo de Denny, ela e o
marido mal haviam tido a chance de conversar reservadamente por mais do
que alguns minutos. Achando a ideia ridícula, Elizabeth a pôs de lado e tentou
novamente pegar no sono.
Embora soubesse que seu corpo estava exausto, sua cabeça nunca estivera
mais ativa. Pensava em tudo o que seria preciso fazer antes que Sir Selwyn
Hardcastle chegasse. Cinquenta famílias teriam de ser noti cadas do
cancelamento do baile. Teria sido inútil enviar cartas na noite anterior, quando
a maioria dos convidados com certeza já estaria na cama, mas talvez ela
devesse ter cado acordada até mais tarde ainda e pelo menos iniciado a
tarefa de escrevê-las. No entanto, havia outra responsabilidade mais imediata
que Elizabeth sabia que tinha de ser a primeira a ser enfrentada. Georgiana
havia se recolhido cedo e não sabia nada a respeito da tragédia que se dera
naquela noite. Desde que tentara seduzir Georgiana sete anos antes, Wickham
nunca mais fora recebido em Pemberley nem seu nome mencionado. Todos
haviam feito de conta que aquilo nunca havia acontecido. Elizabeth sabia que
a morte de Denny aumentaria a dor do presente e reavivaria a infelicidade do
passado. Será que Georgiana ainda conservava alguma afeição por Wickham?
Como ela ia reagir ao revê-lo, principalmente com dois pretendentes na casa e
naquela situação cheia de horror e de suspeitas? Assim que terminasse o
horário do café da manhã dos empregados, Elizabeth e Darcy planejavam se
reunir com todos eles para dar a notícia da tragédia, mas seria impossível
esconder a presença de Lydia e de Wickham das criadas que começavam a
limpar e arrumar os quartos e a acender as lareiras a partir das cinco horas da
manhã. Elizabeth sabia que Georgiana acordava cedo e que a criada dela ia
abrir as cortinas do quarto e lhe levar o chá da manhã pontualmente às sete.
Era ela, Elizabeth, quem tinha de falar com Georgiana primeiro, antes que
outra pessoa inadvertidamente lhe revelasse o que havia acontecido.
Elizabeth olhou para o pequeno relógio dourado que cava em sua
mesinha de cabeceira e viu que eram seis e quinze. Agora que era importante
não adormecer, ela sentia que poderia nalmente cair no sono, mas precisava
estar totalmente desperta antes das sete e então, quando faltavam dez minutos,
acendeu sua vela e atravessou silenciosamente o corredor em direção ao
quarto de Georgiana. Elizabeth sempre acordava cedo, com os ruídos
familiares da casa ganhando vida, saudando cada dia com uma expectativa
otimista de felicidade, as horas preenchidas com as tarefas e os prazeres de
uma comunidade em paz consigo mesma. Naquele dia, ela ouvia ruídos
suaves e distantes, como os de camundongos arranhando o chão com suas
pequenas garras, o que signi cava que as criadas domésticas já estavam em
atividade. Era pouco provável que encontrasse alguma delas naquele andar,
mas, se encontrasse, elas sorririam e se encostariam à parede para deixá-la
passar.
Elizabeth bateu delicadamente na porta do quarto de Georgiana e, ao
entrar, encontrou-a já de penhoar, parada diante da janela e olhando para a
escuridão vazia lá fora. Quase na mesma hora, a criada de Georgiana chegou;
Elizabeth pegou a bandeja das mãos dela e pousou-a na mesa do quarto.
Georgiana pareceu pressentir que havia alguma coisa errada. Assim que a
criada saiu do quarto, foi rapidamente para perto de Elizabeth e disse, num
tom preo cupado: “Você parece cansada, Elizabeth, querida. Está indisposta?”.
“Indisposta não, mas preocupada. Vamos nos sentar, Georgiana. Há uma
coisa que preciso lhe contar.”
“Não é nada com o sr. Alveston?”
“Não, não é nada com o sr. Alveston.”
Então, Elizabeth fez um breve relato do que havia acontecido na noite
anterior. Contou que, quando o capitão Denny foi encontrado, Wickham
estava ajoelhado ao lado do corpo e profundamente abalado, mas não
revelou o que Darcy lhe contara que Wickham havia dito. Georgiana ouviu
tudo em silêncio, com as mãos pousadas no colo. Olhando para ela, Elizabeth
viu duas lágrimas brilhando em seus olhos e depois escorrendo por suas
faces. Estendeu a mão e segurou a de Georgiana.
Depois de alguns instantes, Georgiana secou os olhos e disse com voz
calma: “Você deve achar estranho, minha querida Elizabeth, que eu esteja
chorando por um rapaz que nunca sequer conheci, mas não consigo deixar
de pensar em como todos nós estávamos alegres na sala de música e que,
enquanto eu tocava piano e cantava com o sr. Alveston, o capitão Denny
estava sendo morto dessa maneira brutal a menos de duas milhas de distância.
Como os pais dele vão suportar essa notícia terrível? Que perda, que dor para
os amigos dele!”. Depois, talvez vendo a surpresa no rosto de Elizabeth,
acrescentou: “Minha querida cunhada, achou que eu estava chorando pelo sr.
Wickham? Mas ele está vivo, e Lydia e ele logo vão estar reunidos novamente.
Estou contente pelos dois. Não me espanta que o sr. Wickham tenha ficado tão
abalado com a morte do amigo e por não ter podido salvá-lo, mas, querida
Elizabeth, por favor não pense que o fato de ele ter voltado para nossas vidas
me causa angústia. A época em que eu pensava estar apaixonada por ele já
passou faz muito tempo e sei agora que era só a lembrança do carinho que
me dedicava quando eu era criança e a gratidão que sentia pelo afeto dele, e
talvez também a solidão, que me faziam acreditar estar apaixonada, mas o que
eu sentia nunca fora amor. E sei também que jamais teria fugido com ele.
Mesmo naquela época, aquilo tudo para mim parecia mais uma aventura
infantil do que realidade”.
“Georgiana, o sr. Wickham realmente pretendia se casar com você. Ele
nunca negou.”
“Ah, sim, ele estava absolutamente determinado.” Ela corou e acrescentou:
“Mas prometeu que viveríamos apenas como irmãos até que nos casássemos”.
“E você acreditou nele?”
Havia uma ponta de tristeza na voz de Georgiana. “Ah, sim, eu acreditei
nele. Sabe, ele nunca me amou. Era só dinheiro que ele queria, sempre foi só
o dinheiro. Não guardo mágoa dele, a não ser pelo sofrimento e pela
preocupação que causou ao meu irmão, mas prefiro não vê-lo.”
“Sim, é melhor mesmo e não há necessidade”, disse Elizabeth. Não
mencionou, porém, que a menos que George Wickham tivesse muita sorte,
muito provavelmente deixaria Pemberley mais tarde acompanhado pela
polícia.
Elas tomaram o chá juntas e quase o tempo todo em silêncio. Quando
Elizabeth se levantou para sair, Georgiana disse: “Fitzwilliam nunca vai falar
nada sobre o sr. Wickham nem sobre o que aconteceu já faz tantos anos. Seria
mais fácil se ele falasse. Por certo é importante que pessoas que se amam
possam conversar de modo aberto e sincero sobre assuntos que as tocam”.
“Acho que sim, mas às vezes é difícil”, disse Elizabeth. “É preciso encontrar
o momento certo.”
“Nunca vamos encontrar o momento certo. A única coisa que me dói é a
vergonha por ter desapontado o irmão que tanto amo e o fato de que ele com
certeza nunca mais vai con ar na minha capacidade de discernimento. Mas,
Elizabeth, o sr. Wickham não é um homem mau.”
“Só, talvez, um homem perigoso e extremamente tolo”, disse Elizabeth.
“Falei com o sr. Alveston sobre o que aconteceu e ele acha que é possível
que o sr. Wickham estivesse apaixonado por mim, embora sempre tenha agido
movido pela necessidade que sente de enriquecer. Posso conversar com
liberdade com o sr. Alveston. Por que não com meu irmão?”
“Então o sr. Alveston sabe do segredo”, Elizabeth comentou.
“Claro que sabe, somos muito amigos. Mas, como eu, o sr. Alveston vai
compreender que não podemos ser mais do que isso enquanto esse mistério
terrível pairar sobre Pemberley. Ele não me fez nenhuma proposta e não há
nenhum noivado secreto. Nunca esconderia um segredo como esse de você,
minha querida Elizabeth, nem do meu irmão, mas tanto eu quanto o sr.
Alveston sabemos o que se passa nos nossos corações e estamos dispostos a
esperar.”
Então havia outro segredo na família. Elizabeth achava que sabia por que
Henry Alveston não pretendia ainda pedir a mão de Georgiana em casamento
nem deixar suas intenções claras. Poderia parecer que ele estava querendo
tirar vantagem de qualquer ajuda que ele desse a Darcy, e tanto Alveston
quanto Georgiana eram sensíveis o bastante para saber que a grande
felicidade de um amor bem-sucedido não pode ser celebrada sob a sombra
de uma forca. Não havia outra coisa que Elizabeth pudesse fazer senão beijar
Georgiana, dizer o quanto gostava do sr. Alveston e expressar seus votos de
felicidade pelos dois.
Então, Elizabeth achou que já estava na hora de trocar de roupa e dar início
às tarefas do dia. Pensar em tudo que precisava ser feito antes que Sir Selwyn
Hardcastle chegasse, às nove horas, estava deixando-a a ita. O mais
importante era enviar as cartas aos convidados explicando, sem dar muitos
detalhes, por que o baile teria de ser cancelado. Georgiana disse que havia
pedido que lhe levassem o café da manhã no quarto, mas que se juntaria ao
resto do grupo depois na sala onde a refeição matinal era servida e que
gostaria muito de ajudar. O café da manhã de Lydia fora servido no quarto
dela, e Jane lhe zera companhia enquanto comia. Depois que as duas se
vestiram e o quarto foi arrumado, Bingley, ansioso como sempre para estar
perto da esposa, juntou-se a elas.
Assim que Elizabeth cou pronta e Belton saiu do quarto para ver se Jane
precisava de alguma ajuda, Elizabeth foi ao encontro de Darcy e, juntos, os
dois se dirigiram ao quarto das crianças. Normalmente essa visita diária era
feita depois do café da manhã, mas ambos estavam atormentados por um
medo quase supersticioso de que o mal que anuviava Pemberley pudesse
contaminar até mesmo o quarto delas e precisavam certi car-se de que tudo
estava bem. Mas nada havia mudado naquele mundinho seguro e
independente. Os meninos caram felicíssimos de ver os pais tão
inesperadamente cedo e, depois que se abraçaram, a sra. Donovan chamou
Elizabeth para um canto e disse em voz baixa: “A sra. Reynolds fez a gentileza
de vir até aqui assim que amanheceu para me informar da morte do capitão
Denny. É um enorme choque para todos nós, mas a senhora pode car
tranquila que cuidarei para que o sr. Fitzwilliam não tome conhecimento de
nada, até que o sr. Darcy entenda por bem conversar com ele e lhe contar o
que julgar necessário uma criança saber. Não se preocupe, senhora; nenhuma
criada vai trazer boatos para o quarto das crianças”.
Depois que saíram do quarto, Darcy expressou seu alívio e gratidão por
Elizabeth ter dado a notícia a Georgiana e pelo fato de a irmã não ter cado
mais a ita do que era natural, mas Elizabeth sentiu que as antigas dúvidas e
preocupações do marido tinham vindo à tona novamente e que ele caria
mais contente se Georgiana pudesse ser poupada de qualquer notícia que a
fizesse se lembrar do passado.
Um pouco antes das oito, Elizabeth e Darcy entraram na sala onde era
servido o café da manhã e descobriram que o único hóspede sentado à mesa
era Henry Alveston e que a refeição estava praticamente intacta. Embora todos
tenham tomado muito café, os costumeiros ovos, fatias de toucinho defumado
caseiro, linguiças e rins pousados no aparador sob cúpulas de prata
continuaram quase intocados.
Foi uma refeição dominada pelo constrangimento, e o ar de desconforto,
tão incomum quando estavam todos reunidos, só se agravou com a chegada
do coronel e, minutos depois, de Georgiana. Ela se sentou entre Alveston e o
coronel e, enquanto Alveston a servia de café, disse: “Talvez depois do café,
Elizabeth, possamos começar a cuidar das cartas. Quando você tiver decidido
qual vai ser a mensagem, posso redigir as cópias. A carta pode ser igual para
todos os convidados e certamente não precisa ser longa”.
Depois de um momento de silêncio que pareceu desconfortável para todos,
o coronel se dirigiu a Darcy. “Por certo a srta. Darcy não pode permanecer em
Pemberley. É bom que ela parta o mais rápido possível. Não convém que
tome parte nessa situação ou seja submetida, de qualquer forma, ao
interrogatório impertinente de Sir Selwyn e dos delegados.”
Georgiana cou muito pálida, mas disse com voz rme: “Eu gostaria de
ajudar”. Virou-se para Elizabeth. “Você terá de resolver tantas coisas esta
manhã, mas, se me disser que mensagem quer pôr nas cartas, posso escrevê-
las e depois só precisará assinar.”
Alveston intercedeu. “Excelente plano. Uma mensagem curta já será
su ciente.” Dirigindo-se a Darcy, acrescentou: “Permita que eu seja útil,
senhor. Se pudesse me ceder um cavalo rápido e outro sobressalente, eu
poderia ajudar a entregar as cartas. Sendo um estranho para a maioria dos
convidados, teria mais facilidade de evitar dar explicações, o que atrasaria um
membro da família. Se a srta. Darcy e eu pudéssemos examinar juntos um
mapa da região, poderíamos traçar a rota mais rápida e racional. Famílias que
tenham vizinhos próximos que também foram convidados para o baile
poderiam assumir a responsabilidade de espalhar a notícia”.
Elizabeth pensou consigo que algumas delas sem dúvida se encarregariam
com prazer da tarefa. Se alguma coisa podia compensar a perda do baile seria
comentar com os vizinhos o drama que transcorria em Pemberley. Alguns de
seus amigos certamente se compadeceriam da angústia que todos em
Pemberley deviam estar sentindo e logo tratariam de escrever mensagens de
condolência e apoio, e Elizabeth disse a si mesma com rmeza que muitas
dessas mensagens seriam inspiradas por uma preocupação e um afeto
genuínos. Ela não podia permitir que o ceticismo a zesse descrer dos
impulsos da compaixão e do amor.
Darcy, porém, estava falando, e com uma voz carregada de frieza. “Minha
irmã não vai tomar parte nisso. Ela não está envolvida em nada disso e seria
totalmente inapropriado que se envolvesse.”
Georgiana objetou com voz suave, mas igualmente rme: “Mas, Fitzwilliam,
eu estou envolvida. Todos nós estamos”.
Antes que ele pudesse responder, o coronel se interpôs. “É importante, srta.
Georgiana, que passe um tempo fora de Pemberley até que esse caso seja
investigado e solucionado. Vou enviar uma carta expressa a Lady Catherine
mais tarde e não tenho dúvida de que ela vai convidá-la imediatamente para se
hospedar em Rosings. Sei que a senhorita não gosta particularmente de lá e
que o convite será de certa forma indesejável, mas é desejo do seu irmão que
vá para um lugar onde não corra nenhum perigo e onde nem o sr. nem a sra.
Darcy precisem car preocupados com sua segurança e seu bem-estar. Tenho
certeza de que, com seu bom senso, a senhorita entenderá que o que está
sendo proposto é o mais prudente e adequado a fazer.”
Ignorando-o, Georgiana virou-se para Darcy. “Não precisa car
preocupado. Por favor, não me peça para sair daqui. Só quero ajudar
Elizabeth e acho que posso de fato ser útil. Não consigo ver nada de
inapropriado nisso.”
Foi então que Alveston interveio. “Perdoe-me, senhor, mas não posso car
calado. Os senhores estão discutindo o que a srta. Darcy deve fazer como se
ela fosse uma criança. Já entramos no século xix; não precisamos ser
discípulos da sra. Wollstonecraft* para crer que as mulheres tenham direito a
voz em assuntos que lhes dizem respeito. Já faz alguns séculos que aceitamos
que as mulheres têm alma. Já não é hora de aceitarmos que elas também têm
cérebro?”
O coronel fez uma pausa para se controlar e depois disse: “Sugiro que o
senhor guarde as suas diatribes para o tribunal”.
Darcy virou-se para Georgiana. “Eu só estava pensando no seu bem-estar e
na sua felicidade. Claro que, se é essa sua vontade, você deve car. Sei que
Elizabeth vai ficar contente em poder contar com sua ajuda.”
Elizabeth estava em silêncio, pensando se haveria um jeito de dizer o que
pensava sem piorar a situação. Mas então disse: “Muito contente mesmo. Vou
precisar car à disposição de Sir Selwyn Hardcastle depois que ele chegar e
não sei como seria possível enviar as cartas necessárias a tempo, a menos que
tenha ajuda. Então vamos começar?”.
Empurrando sua cadeira para trás com certa força, o coronel fez uma rígida
mesura para Elizabeth e Georgiana e em seguida se retirou.
Alveston se levantou e disse a Darcy: “Tenho de pedir desculpas, senhor,
por me intrometer num assunto de família que não me diz respeito. Falei de
modo inconveniente e com mais veemência do que seria gentil ou sensato”.
“É ao coronel que o senhor deve desculpas, não a mim”, disse Darcy. “Seus
comentários podem ter sido inapropriados e atrevidos, mas isso não signi ca
que não sejam verdadeiros.” Virou-se para Elizabeth. “Se puder resolver a
questão das cartas agora, meu amor, acho que está na hora de falarmos com
os empregados, tanto com os domésticos quanto com os que possam estar
trabalhando na casa. A sra. Reynolds e Stoughton caram de informar a eles
apenas que houve um acidente e que o baile foi cancelado, e com certeza
todos devem estar consideravelmente tensos e ansiosos. Vou chamar a sra.
Reynolds agora para dizer que vamos falar com todos no refeitório dos
empregados assim que você tiver terminado de rascunhar a carta para
Georgiana copiar.”
* Mary Wollstonecraft (1759-1797), escritora e lósofa inglesa, autora de A Vindication of the Rights of
Woman [Uma defesa dos direitos da mulher]. (N. T.)
5
Meia hora depois, Darcy e Elizabeth entraram no refeitório dos empregados
ao som de dezesseis cadeiras sendo empurradas para trás e de um suave “Bom
dia, senhor” em resposta à saudação de Darcy, dito em uníssono em voz tão
baixa que mal foi possível ouvi-lo. Elizabeth cou surpresa com a quantidade
de aventais e toucas recém-engomados e muito brancos, até que lembrou que,
conforme as instruções da sra. Reynolds, todos os criados vestiam uniformes
impecáveis na manhã do baile de Lady Anne. Havia no ar um aroma
penetrante e delicioso de massas assando; na ausência de ordens em
contrário, algumas das tortas e dos salgados já deviam ter sido levados aos
fornos. Ao passar pela porta aberta do jardim de inverno, Elizabeth tinha
cado quase nauseada com o cheiro enjoativo das ores cortadas;
indesejadas agora, quantas delas, Elizabeth se perguntava, ainda estariam vivas
na segunda-feira? Pegou-se pensando no que seria melhor fazer com as
inúmeras aves que haviam sido depenadas, com os enormes cortes de carne,
com as frutas trazidas das estufas, com a sopa branca e os doces. A maior
parte das comidas ainda não devia ter sido preparada, mas, com o
cancelamento tão perto do baile, haveria inevitavelmente um excedente que
Elizabeth não podia permitir que fosse desperdiçado. Parecia uma
preocupação despropositada num momento como aquele, mas se misturou a
uma in nidade de outras preocupações. Por que o coronel Fitzwilliam não
havia dito nada sobre o fato de ter saído a cavalo na noite anterior e para
onde teria ido? Era difícil acreditar que tivesse saído apenas para cavalgar na
beira do rio e tomar ar fresco. E se Wickham fosse preso, uma possibilidade
que ninguém mencionava mas que todos deviam saber que era quase certa, o
que aconteceria com Lydia? Era improvável que quisesse permanecer em
Pemberley, mas precisaria ser acolhida em algum lugar que fosse próximo de
onde o marido estivesse. Talvez o melhor plano e certamente a opção mais
conveniente fosse Lydia ir para Highmarten com Jane e Bingley, mas isso seria
justo com Jane?
Com essas preocupações ocupando por completo sua cabeça, Elizabeth mal
conseguiu prestar atenção nas palavras do marido, que foram ouvidas em
absoluto silêncio, e só as últimas frases penetraram de fato em sua
consciência. Sir Selwyn Hardcastle havia sido chamado durante a noite e o
corpo do capitão Denny fora levado para Lambton. Sir Selwyn voltaria às
nove horas e precisaria conversar com todas as pessoas que estavam em
Pemberley na noite anterior. Ele e a sra. Darcy estariam presentes quando isso
acontecesse. Não havia nenhum tipo de suspeita contra nenhum dos
empregados, mas era importante que eles respondessem as perguntas de Sir
Selwyn com honestidade. Enquanto isso, deveriam continuar a cumprir seus
deveres, sem discutir a tragédia nem cochichar uns com os outros. Todos
estavam proibidos de ir à floresta, salvo o sr. e a sra. Bidwell e seus familiares.
A declaração foi recebida com um grande silêncio, que Elizabeth se sentiu
no dever de quebrar. Quando se levantou, deu-se conta de que havia
dezesseis pares de olhos xos nela, de pessoas preocupadas e a itas que
esperavam ouvir que tudo acabaria bem, que eles não tinham nada a temer e
que Pemberley continuaria a ser o que sempre fora, o lar e a segurança de
todos eles.
“Obviamente não será mais possível realizar o baile. Cartas serão enviadas a
todos os convidados, explicando brevemente o que aconteceu. Uma grande
tragédia se abateu sobre Pemberley, mas sei que vocês vão continuar a cuidar
de suas tarefas, manter a calma e cooperar com Sir Selwyn Hardcastle e com a
investigação, como todos nós temos de fazer. Se alguma coisa em particular
estiver lhes causando inquietação ou se tiverem alguma informação a dar,
devem falar primeiro com o sr. Stoughton ou com a sra. Reynolds. Eu gostaria
de agradecer a todos pelas muitas horas que, como sempre, dedicaram aos
preparativos para o baile de Lady Anne. O sr. Darcy e eu lamentamos
profundamente que, por uma razão tão trágica, todo esse trabalho tenha sido
em vão. Como sempre, seja nos bons ou nos maus momentos, contamos com
a lealdade e a dedicação mútuas que são a base da nossa vida em Pemberley.
Não temam pela sua segurança nem pelo seu futuro. Pemberley já resistiu a
muitas tempestades em sua longa história, e esta também vai passar”.
A declaração de Elizabeth foi seguida de um breve aplauso, rapidamente
reprimido por Stoughton, e então ele e a sra. Reynolds disseram algumas
palavras, expressando solidariedade e prometendo cumprir as instruções do
sr. Darcy. Depois, dispensaram a plateia, ordenando a todos que voltassem
para suas tarefas e informando que seriam novamente convocados quando Sir
Selwyn Hardcastle chegasse. Quando Darcy e Elizabeth voltaram para a parte
principal da casa, ele disse: “Talvez eu tenha falado de menos e você, meu
amor, um pouco demais, mas juntos, como sempre, acho que acertamos a
medida. E agora precisamos nos preparar para a soberania da lei na pessoa de
Sir Selwyn Hardcastle”.
6
A visita de Sir Selwyn acabou sendo menos tensa e mais curta do que os
Darcy temiam. O primeiro delegado, Sir Miles Culpepper, havia enviado uma
mensagem a seu mordomo na quinta-feira anterior para dizer que voltaria para
Derbyshire a tempo de jantar na segunda-feira, e o mordomo achara prudente
passar essa informação a Sir Selwyn. Nenhuma explicação para essa mudança
de planos foi dada, mas Sir Selwyn não teve muita di culdade de adivinhar a
verdade. A viagem de Sir Miles e Lady Culpepper a Londres, com suas lojas
esplêndidas e sedutora variedade de divertimentos, havia agravado uma
divergência comum a casamentos em que um marido mais velho acredita que
o dinheiro deve ser usado para ganhar mais dinheiro e uma esposa jovem e
bonita tem a rme opinião de que o dinheiro existe para ser gasto. De que
outra forma, ela indagava com frequência, as pessoas saberiam que você tem
dinheiro? Depois de receber as primeiras contas dos extravagantes gastos da
esposa na capital, o grão delegado havia descoberto em si próprio um
renovado compromisso para com as responsabilidades da vida pública e
informara à esposa que era imperativo que voltassem para casa. Embora
achasse improvável que a carta expressa que ele enviara com a notícia do
assassinato já tivesse chegado às mãos de Sir Miles, Hardcastle sabia que o
primeiro delegado ia querer um relatório completo do progresso da
investigação assim que tomasse conhecimento da tragédia. Era ridículo
considerar que o coronel e visconde Hartlep ou qualquer membro da
comunidade de Pemberley pudesse ter qualquer participação na morte de
Denny e, portanto, Sir Selwyn não tinha nenhuma intenção de passar mais
tempo lá do que fosse necessário. O bailio Brownrigg já havia veri cado, ao
chegar, que nenhum cavalo nem carruagem deixara os estábulos de
Pemberley depois que o coronel Fitzwilliam saiu para cavalgar. O suspeito que
Sir Selwyn estava ansioso para interrogar, e urgentemente, era Wickham, e
trouxera consigo o carro da prisão e dois o ciais com a intenção de
transportá-lo para acomodações mais adequadas, na prisão de Lambton, onde
poderia obter todas as informações necessárias para oferecer ao primeiro
delegado um relato completo e impressionante das atividades realizadas por
ele e pelos subdelegados.
Os Darcy receberam um Sir Selwyn anormalmente afável, que até aceitou
fazer uma breve refeição antes de interrogar a família. O magistrado reuniu os
Darcy, Alveston e o coronel na biblioteca e interrogou-os juntos. Apenas o
depoimento do coronel, relatando suas atividades na hora aproximada do
crime, despertou algum interesse. O coronel começou pedindo desculpas aos
Darcy por seu silêncio até então. Em seguida, declarou que fora à estalagem
King’s Arms para encontrar-se com uma senhora que queria seus conselhos e
sua ajuda numa questão delicada relativa ao irmão dela, um o cial que já
estivera sob seu comando. Como ela estava na cidade para visitar um parente,
o coronel sugeriu que um encontro na estalagem chamaria menos atenção do
que no escritório dele em Londres. Ele não havia mencionado esse encontro
antes porque estava ansioso para que a senhora em questão pudesse ir
embora de Lambton antes que a notícia da presença dela na estalagem se
espalhasse e ela virasse alvo da curiosidade da população local. Ele poderia
fornecer o nome e o endereço dela em Londres, caso fosse necessário fazer
uma veri cação; estava con ante, porém, de que o depoimento do
estalajadeiro e dos fregueses que estavam bebendo na hora em que ele
chegou e na hora em que saiu confirmaria seu álibi.
Com certo ar de quem está orgulhoso de si mesmo, Hardcastle disse: “Isso
não será necessário, Lorde Hartlep. No caminho para cá, como era
conveniente para mim, passei na King’s Arms para saber se alguma pessoa
estranha havia estado lá na sexta-feira e me falaram dessa senhora. Sua amiga
causou uma impressão e tanto na estalagem; chegou numa carruagem muito
bonita, segundo me disseram, e acompanhada de uma criada e de um
empregado. Imagino que tenha gastado bastante dinheiro lá, pois o
estalajadeiro ficou triste de vê-la partir”.
Era hora, então, de Hardcastle interrogar os empregados, que estavam
reunidos no refeitório como antes, salvo pela sra. Donovan, que não tinha a
menor intenção de deixar o quarto das crianças desprotegido. Como a culpa é
mais frequentemente sentida por inocentes do que por quem de fato tem
culpa, a atmosfera era mais de tensão do que de expectativa. Hardcastle havia
resolvido fazer o discurso mais tranquilizador e curto possível, uma intenção
em parte prejudicada por suas advertências severas habituais a respeito das
consequências terríveis a que estavam sujeitas as pessoas que se recusavam a
cooperar com a polícia ou omitiam informações. Num tom mais suave, ele
continuou: “Não tenho dúvida de que todos vocês tinham coisas melhores a
fazer na véspera do baile de Lady Anne do que sair de casa numa noite de
tempestade com o intuito de matar um completo estranho na oresta. Agora
vou pedir a todos os que tenham alguma informação a dar, ou que tenham
saído de Pemberley entre as sete da noite de ontem e as sete da manhã de
hoje, que levantem a mão”.
Só uma pessoa levantou a mão. A sra. Reynolds sussurrou para o
magistrado: “Betsy Collard, senhor, uma das criadas domésticas”.
Hardcastle ordenou que ela se levantasse, o que Betsy fez imediatamente e
sem dar nenhum sinal de relutância. Ela era uma moça decidida e con ante e
falou com clareza: “Fui à oresta com a Joan Miller na quarta-feira, senhor, e
vimos o fantasma da sra. Reilly tão bem como estou vendo o senhor agora. Ela
estava lá, escondida no meio das árvores, com uma capa preta e um capuz,
mas deu para ver direitinho a cara dela por causa do luar. Eu e Joan camos
com medo e fugimos de lá correndo, mas ela não veio atrás de nós. Mas nós a
vimos, senhor, eu juro por Deus que vimos”.
Joan Miller foi instruída a pôr-se de pé e, nitidamente apavorada, con rmou
a história de Betsy com um resmungo tímido. Hardcastle sentiu claramente que
estava adentrando um terreno feminino e incerto. Olhou para a sra. Reynolds,
que tomou a palavra. “Vocês sabem muito bem, Betsy e Joan, que não têm
permissão para sair de Pemberley desacompanhadas depois do anoitecer. E é
não só uma grande tolice, mas também indigno de pessoas cristãs, acreditar
que os mortos vagam pela terra. É uma vergonha que tenham deixado uma
fantasia ridícula dessas entrar na cabeça de vocês. Quero conversar com as
duas na minha sala assim que Sir Selwyn Hardcastle tiver terminado de fazer
perguntas.”
Ficou patente para Sir Selwyn que nada do que ele pudesse dizer seria mais
intimidante do que aquele prospecto. As duas moças murmuraram “Sim, sra.
Reynolds” e prontamente se sentaram.
Hardcastle, impressionado com o efeito imediato das palavras da
governanta, decidiu que convinha impor sua autoridade com uma advertência
nal. “Estou surpreso que moças que têm o privilégio de trabalhar em
Pemberley deem ouvidos a uma superstição tão ignorante. Não aprenderam as
lições do catecismo?”, ele perguntou. Um murmurado “Aprendemos, sim,
senhor” foi a única resposta.
Então Hardcastle voltou para a parte principal da casa e se juntou a Darcy e
Elizabeth, aparentemente aliviado porque só o que restava era a tarefa mais
fácil de transportar Wickham. O prisioneiro, agora agrilhoado, fora poupado
da humilhação de ser levado embora à vista de todos, e apenas Darcy
testemunhou sua partida, achando que era seu dever estar lá para lhe desejar
boa sorte e vê-lo ser posto no carro da prisão pelo bailio Brownrigg e pelo
subdelegado Mason. Hardcastle entrou em sua carruagem, mas, antes que o
cocheiro agitasse as rédeas, o magistrado pôs a cabeça para fora da janela e
perguntou a Darcy: “O catecismo contém um preceito contra alimentar crenças
supersticiosas e idólatras, não contém?”.
Darcy lembrava que a mãe havia lhe ensinado o catecismo, mas apenas uma
lei continuava gravada em sua memória, a de que ele não devia permitir que
suas mãos roubassem nem se apossassem do que não lhe pertencia, o qual
costumava lhe vir à cabeça com embaraçosa frequência quando ele e George
Wickham, ainda meninos, iam em seus pôneis até Lambton e os galhos
carregados de maçãs maduras das árvores do Sir Selwyn de então
debruçavam-se, convidativos, sobre o muro do jardim. Com ar grave, Darcy
disse: “Acho, Sir Selwyn, que podemos inferir que o catecismo não contém
nada que seja contrário aos preceitos e práticas da Igreja da Inglaterra”.
“Tem razão, tem razão. Exatamente como pensei. Mocinhas tolas.”
Satisfeito com o sucesso de sua visita, Sir Selwyn ordenou ao cocheiro que
tocasse e, então, a carruagem começou a descer a larga ladeira fazendo seu
ribombo característico, seguida pelo carro da prisão, ambos sendo
observados por Darcy até desaparecer de vista. Ocorreu a Darcy que observar
visitantes indo e vindo estava se tornando quase um hábito, mas a partida do
carro da prisão com Wickham livraria Pemberley de uma nuvem negra de
recordações de horror e a ição, e ele tinha esperança de que não fosse
necessário ver Sir Selwyn Hardcastle de novo até o inquérito.
livro quatro
O INQUÉRITO
1
Tanto a família quanto os membros da paróquia contavam como certo que
o sr. e a sra. Darcy, bem como seus empregados, seriam vistos na igreja de St.
Mary às onze horas da manhã de domingo. A notícia do assassinato do
capitão Denny havia se espalhado com extraordinária rapidez e o não
comparecimento dos Darcy à cerimônia dominical seria interpretado como
uma admissão de envolvimento no crime ou de que eles estavam convictos da
culpa do sr. Wickham. O ofício divino era visto por todos como uma
oportunidade legítima para a congregação avaliar não só a aparência, a
conduta, a elegância e a possível riqueza de pessoas recém-chegadas à
paróquia, mas também o aspecto de qualquer vizinho que estivesse
atravessando uma situação interessante, como uma gravidez ou uma falência.
Um assassinato brutal cometido na propriedade de um homem por seu
cunhado, com quem todos sabiam que ele não mantinha boas relações,
inevitavelmente atrairia um grande número de pessoas à igreja, incluindo
alguns notórios inválidos cuja prolongada indisposição os vinha impedindo de
enfrentar os rigores do ofício dominical fazia muitos anos. Ninguém, é claro,
era indelicado a ponto de deixar sua curiosidade transparecer, mas há muita
coisa que se pode descobrir separando-se discretamente os dedos ao erguer
as mãos para rezar, ou lançando-se um olhar de soslaio sob a proteção de um
toucado durante um cântico. O reverendo Percival Oliphant, que antes da
cerimônia tinha ido visitar Pemberley para expressar condolências e oferecer
apoio, havia feito tudo o que podia para mitigar a provação da família,
primeiro pregando um sermão excepcionalmente longo e quase
incompreensível sobre a conversão de São Paulo, depois detendo o sr. e a sra.
Darcy quando estavam saindo da igreja com uma conversa tão demorada que
as pessoas que esperavam para cumprimentá-los, impacientes para ir almoçar,
acabaram por contentar-se em fazer apenas uma mesura para o casal antes de
se dirigir a suas carruagens ou caleches.
Lydia não foi à igreja, e os Bingley caram em Pemberley não só para lhe
fazer companhia, como também para se preparar para a viagem de volta para
casa naquela tarde. Com a barafunda que Lydia havia feito com suas roupas
desde que chegara, guardar seus vestidos de volta na mala a seu contento
levou um tempo consideravelmente maior do que arrumar as malas dos
Bingley. Mas tudo já estava pronto quando Darcy e Elizabeth voltaram para
almoçar, e às duas e vinte da tarde os Bingley já estavam instalados em sua
carruagem e prontos para partir. Depois que todos deram um último adeus, o
cocheiro agitou as rédeas e a carruagem se pôs em movimento, seguindo
rumo ao caminho largo à margem do rio, descendo a longa ladeira e por m
desaparecendo de vista. Por alguns instantes, Elizabeth cou olhando na
direção em que a carruagem seguira como se pudesse fazê-la reaparecer, mas
depois o pequeno grupo entrou de volta na casa.
No saguão, Darcy parou e disse para Fitzwilliam e Alveston: “Ficaria grato se
pudessem se encontrar comigo na biblioteca daqui a meia hora. Fomos nós
três que encontramos o corpo de Denny e é provável que tenhamos de prestar
depoimento no inquérito. Sir Selwyn enviou um mensageiro esta manhã para
dizer que o juiz de instrução marcou o inquérito para as onze da manhã de
quarta-feira. Eu gostaria de saber se lembramos da mesma forma o que houve
naquela noite, principalmente o que foi dito quando encontramos o corpo do
capitão Denny, e pode ser útil discutir de modo geral como devemos
proceder em relação a esse assunto. A memória do que vimos e ouvimos é tão
estranha, a luz da lua é tão enganosa, que às vezes preciso lembrar a mim
mesmo que aquilo de fato aconteceu”.
Os dois concordaram com um murmúrio e, mais tarde, entraram quase ao
mesmo tempo na biblioteca, onde Darcy já os aguardava. Havia três cadeiras
dispostas em torno de uma mesa retangular e duas poltronas de encosto alto,
uma de cada lado da lareira. Depois de hesitar por um momento, Darcy fez
um gesto para que Alveston e o coronel Fitzwilliam se sentassem nas poltronas;
em seguida, foi buscar uma das cadeiras próximas da mesa e sentou-se entre
os dois. Teve a impressão de que Alveston, sentado na beira de sua poltrona,
estava pouco à vontade, quase constrangido, uma emoção tão diferente de
sua costumeira autocon ança que Darcy cou surpreso quando o rapaz
tomou a iniciativa de falar, dirigindo-se a ele.
“O senhor obviamente vai chamar seu advogado, mas se eu puder ajudar de
alguma forma enquanto ele não chega, se ele estiver longe daqui, gostaria de
dizer que estou à sua disposição, senhor. Como testemunha, não posso, é
claro, representar nem o sr. Wickham nem Pemberley, mas se achar que posso
ser útil, eu poderia tirar proveito da hospitalidade da sra. Bingley por mais
alguns dias. Ela e o sr. Bingley tiveram a gentileza de sugerir que eu zesse
isso.”
Alveston falou de maneira hesitante, o jovem advogado, tão inteligente e
bem-sucedido, talvez até arrogante, transformado por um momento num rapaz
inseguro e acanhado. Darcy sabia por quê. Alveston temia que sua oferta
pudesse ser interpretada, principalmente pelo coronel Fitzwilliam, como uma
manobra para fortalecer sua posição como pretendente à mão de Georgiana.
Darcy hesitou apenas alguns segundos, mas isso deu a Alveston a chance de
acrescentar mais que depressa: “O coronel Fitzwilliam por certo tem
experiência com cortes marciais, e talvez o senhor ache que qualquer
conselho que eu possa oferecer seja redundante, principalmente considerando
que o coronel conhece bem os costumes locais, e eu não”.
Darcy se voltou para o coronel. “Acho que você vai concordar, Fitzwilliam,
que devemos aceitar qualquer ajuda jurídica que esteja à nossa disposição.”
Num tom neutro, o coronel disse: “Não sou nem nunca fui magistrado, e
não posso dizer de forma alguma que minhas ocasionais participações em
cortes marciais sejam motivo para que me considere um perito em direito
criminal civil. Como não sou parente de George Wickham, como Darcy, não
tenho o direito de assumir qualquer posição nesse assunto, a não ser como
testemunha. Cabe a você, Darcy, decidir que conselhos podem ser úteis.
Como ele próprio admite, é difícil perceber como o sr. Alveston poderia
oferecer auxílio nessa questão”.
Virando-se para Alveston, Darcy disse: “Parece-me que o senhor perderia
um tempo desnecessário se tivesse de fazer diariamente a viagem de ida e
volta entre Highmarten e Pemberley. A sra. Darcy já conversou com a irmã
dela e todos esperamos que o senhor aceite nosso convite para permanecer
aqui em Pemberley. É possível que Sir Selwyn Hardcastle lhe peça para adiar
seu retorno a Londres até que a investigação policial seja concluída, embora
eu não creia que ele tenha motivo para isso depois que o senhor tiver
prestado depoimento ao juiz de instrução. Mas seu trabalho não será
prejudicado se car aqui mais tempo? Todos sabemos que é um advogado
extremamente ocupado. Não seria certo aceitar sua ajuda se isso for prejudicá-
lo”.
“Não tenho nenhum caso que exija minha atenção pessoal nos próximos
oito dias, e meu sócio, que é um pro ssional bastante experiente, poderá
cuidar das questões de rotina até lá sem nenhuma di culdade”, respondeu
Alveston.
“Então eu caria muito grato em poder contar com seus conselhos, quando
o senhor julgar que é adequado dá-los. Nossos advogados estão mais
acostumados a tratar de questões familiares, principalmente testamentos,
compra e venda de propriedades, contendas locais, e até onde sei têm pouca
experiência com casos de homicídio, se é que têm alguma. Certamente nunca
tiveram de lidar com nenhum em Pemberley. Já lhes escrevi para contar o que
aconteceu e agora vou enviar outra mensagem expressa para informá-los de
que o senhor vai nos prestar auxílio. Preciso avisá-lo que é pouco provável
que Sir Selwyn Hardcastle seja cooperativo. Ele é um magistrado experiente e
justo, que se interessa por todas as minúcias dos processos investigativos que
normalmente cam a cargo dos delegados locais e é muito cioso de seus
poderes.”
O coronel não fez mais nenhum comentário.
“Seria de grande valia — pelo menos para mim — se pudéssemos discutir
primeiro a percepção que nós três temos do crime, principalmente no que se
refere à aparente con ssão do réu”, disse Alveston. “Todos acreditamos que o
que Wickham quis dizer com suas palavras foi que, se ele não tivesse brigado
com o capitão Denny, ele não teria saído da caleche e sido assassinado? Ou
teria ele seguido Denny com a intenção de matá-lo? É uma questão que diz
respeito em grande parte a caráter. Eu não conhecia o sr. Wickham, mas sei
que é lho do antigo administrador do seu falecido pai e que o senhor o
conhecia bem na infância. O senhor e o coronel acreditam que ele seria capaz
de cometer um ato como esse?”
Ele olhou para Darcy, que, depois de alguns instantes de hesitação,
respondeu: “Passei muitos anos praticamente sem me encontrar com Wickham.
Depois que ele se casou com a irmã mais nova da minha mulher, nunca mais o
vi. No passado, eu o achava ingrato, invejoso, desonesto e mentiroso. Ele tem
um rosto bonito e é muito afável em reuniões sociais, principalmente com as
senhoras, o que faz com que conquiste a estima de todos; se essa estima
resiste a um convívio mais prolongado é outra questão, mas nunca o vi ser
violento nem ouvi falar de nenhuma ocasião em que tivesse sido. As ofensas
que cometeu são de um tipo mais mesquinho e pre ro não falar sobre elas;
todos temos a capacidade de mudar. Só posso dizer que não acredito que o
Wickham que um dia conheci, apesar de todos os seus defeitos, seria capaz
de assassinar brutalmente um ex-colega e amigo. Eu diria que ele era um
homem avesso à violência e a evitaria se possível”.
“Ele lutou contra rebeldes na Irlanda e a bravura que demonstrou foi
reconhecida”, disse o coronel Fitzwilliam. “Coragem física temos de admitir
que ele possui.”
“Sem dúvida, se tivesse de escolher entre matar ou morrer, Wickham seria
implacável”, disse Alveston. “Não quero desmerecer a bravura dele, mas será
que a guerra e a experiência direta das realidades da batalha não seriam
capazes de corromper a sensibilidade até mesmo de um homem normalmente
pací co, de modo que a violência passasse a lhe parecer menos abominável?
Será que não devemos considerar essa possibilidade?”
Darcy percebeu que o coronel estava tendo di culdade para controlar a
raiva. “Ninguém é corrompido por cumprir seu dever para com seu rei e seu
país. Se alguma vez na vida tivesse tomado parte numa guerra, meu jovem,
tenho certeza de que o senhor teria muito menos desdém por atos de
extraordinária bravura”, disse o coronel.
Darcy achou por bem intervir. “Li alguns artigos sobre a rebelião irlandesa
de 1798 nos periódicos, mas eram textos muito breves. É provável que tenha
perdido a maioria das notícias. Não foi nessa época que Wickham foi ferido e
ganhou uma medalha? Que participação exatamente ele teve?”
“Ele participou, como eu, da batalha de 21 de junho em Enniscorthy,
quando tomamos a colina de assalto e forçamos os rebeldes a bater em
retirada. Depois, no dia 8 de agosto, o general Jean Humbert desembarcou
com uma tropa de mil soldados franceses e marchou para o sul, rumo a
Castlebar. O general francês incitou seus aliados rebeldes a fundar a chamada
República de Connaught e, em 27 de agosto, desbaratou as forças do general
Lake em Castlebar, no que foi uma derrota humilhante para o Exército
britânico. Foi então que Lorde Cornwallis pediu reforços. Cornwallis manteve
suas forças entre os invasores franceses e Dublin, encurralando a tropa de
Humbert entre a sua e a do general Lake, o que foi fatal para os franceses. A
cavalaria britânica atacou o anco irlandês e foi então que Humbert se rendeu.
Wickham participou desse ataque e depois do cerco aos rebeldes e da
derrubada da República de Connaught. Foi um trabalho sangrento, pois os
rebeldes foram perseguidos e punidos.”
Ficou claro para Darcy que o coronel já havia dado esse relato detalhado
várias vezes e sentia certo prazer em repeti-lo.
“E George Wickham tomou parte nisso?”, perguntou Alveston. “Sabemos o
que é necessário fazer para debelar uma rebelião. Será que não é o bastante
para dar a um homem, se não um gosto pela violência, ao menos uma
familiaridade com ela? A nal, o que estamos tentando fazer é chegar a alguma
conclusão a respeito do tipo de homem que George Wickham se tornou.”
“Ele se tornou um homem bom e bravo. Concordo com Darcy. Não consigo
imaginar Wickham como um assassino. Alguém sabe como ele e a mulher
viviam desde que saiu do Exército, em 1800?”, perguntou o coronel.
Darcy respondeu: “Já faz anos que ele não é mais recebido em Pemberley e
nunca nos comunicamos, mas a sra. Wickham costuma ser recebida em
Highmarten. Eles não prosperaram. Wickham conquistou certa fama de herói
nacional depois da campanha irlandesa e isso garantiu que em geral tivesse
facilidade para conseguir empregos, mas não para mantê-los. Ao que parece,
o casal costumava ir para Longbourn quando Wickham estava desempregado
e o dinheiro andava escasso, e sem dúvida a sra. Wickham gostava de rever
velhas amigas e de se vangloriar das conquistas do marido, mas essas visitas
raramente duravam mais que três semanas. Alguém devia estar ajudando o
casal nanceiramente e com regularidade, mas a sra. Wickham nunca deu
maiores explicações a esse respeito, nem, é claro, a sra. Bingley perguntou.
Isso é tudo o que sei e, na verdade, tudo o que quero saber”.
“Como eu nunca tinha visto o sr. Wickham antes da noite de sexta-feira”,
disse Alveston, “minha opinião a respeito de sua culpa ou inocência se baseia
não na personalidade ou no passado dele, mas apenas na minha análise dos
indícios de que dispomos até o momento. Acho que ele tem excelentes
argumentos de defesa. A suposta con ssão pode não representar nada além
da culpa que estava sentindo por ter feito com que o amigo saísse da caleche.
Ele tinha bebido, e esse tipo de sentimentalismo choroso depois de um
choque não é incomum quando um homem está embriagado. Mas vamos
examinar os indícios concretos. O grande mistério do caso é por que o
capitão Denny resolveu se embrenhar na oresta. O que temia que Wickham
zesse? Denny era maior e mais forte que Wickham e estava armado. Se tinha
a intenção de voltar a pé para a estalagem, por que não foi pela estrada? Claro
que se fosse pela estrada a caleche poderia alcançá-lo, mas, como eu disse,
ele não corria perigo nenhum. Wickham não ia atacá-lo com a sra. Wickham
na caleche. É provável que se argumente que Denny possa ter se sentido
impelido a sair imediatamente da caleche por ser contrário ao plano de
Wickham de deixar a esposa em Pemberley sem que ela tivesse sido
convidada para o baile e sem avisar à sra. Darcy. O plano certamente
demonstrava uma grande falta de educação e de consideração da parte deles,
mas não era motivo para que Denny fugisse daquela maneira tão dramática. A
oresta estava escura e ele não tinha nada para iluminar o caminho. Para mim,
sua atitude é incompreensível.
“E há ainda indícios mais fortes”, continuou Alveston. “Onde estão as armas?
Com certeza foram usadas duas. O primeiro golpe produziu pouco mais que
um pequeno sangramento, que impediu Denny de enxergar onde estava e o
deixou trôpego. O ferimento na nuca foi feito com uma arma diferente, algo
pesado e sem gume, talvez uma pedra. E, segundo o relato dos que viram o
ferimento, incluindo o senhor, sr. Darcy, é uma ferida tão funda e longa que
um homem supersticioso poderia dizer que não foi feita por mão humana, e
certamente não pela mão de Wickham. Duvido que ele conseguisse erguer
com facilidade uma pedra tão pesada alto o bastante para poder atirá-la
exatamente no alvo. E devemos supor que a pedra estava lá,
convenientemente à mão, por puro acaso? E há também aqueles arranhões na
testa e nas mãos de Wickham. Por certo sugerem que Wickham pode ter se
perdido na oresta depois de se deparar pela primeira vez com o corpo do
capitão Denny.”
“Então o senhor acha que, se o caso for a julgamento, Wickham vai ser
absolvido?”, perguntou o coronel Fitzwilliam.
“Com base nos indícios que temos até agora, acredito que ele deva ser, mas
sempre existe o risco, em casos em que não há outro suspeito, de que os
jurados se perguntem: se não foi ele, então quem foi? É difícil para um juiz ou
para um advogado de defesa recomendar aos jurados que não adotem essa
visão, sem ao mesmo tempo botar essa ideia na cabeça deles. Wickham vai
precisar de um bom advogado.”
“Isso é responsabilidade minha”, disse Darcy.
“Sugiro que o senhor tente contratar Jeremiah Mickledore. Ele é brilhante
nesse tipo de caso e com júris da capital, mas só aceita casos em que está
interessado e detesta sair de Londres.”
“Há alguma chance de o caso ser transferido para Londres?”, perguntou
Darcy. “Caso contrário, ele só será julgado na próxima sessão do tribunal de
Derby, na Quaresma ou no verão”. Olhou para Alveston. “Lembre-me de como
é o procedimento.”
“Em geral, o Estado prefere que os réus sejam julgados no tribunal local. O
argumento é de que a população pode ver com seus próprios olhos que a
justiça foi feita. Quando casos são transferidos, normalmente a transferência é
feita apenas para o tribunal do condado mais próximo, e tem de haver uma
boa razão, algo tão sério que impeça que se chegue a um julgamento justo na
própria localidade, como dúvidas quanto à imparcialidade dos participantes,
jurados que possam ter sofrido ameaças, juízes que possam ter sido
subornados. Ou, então, quando a população local é tão hostil ao réu que não
há como realizar uma audiência justa. É o procurador-geral que tem o poder
de assumir o controle e interromper processos criminais, o que signi ca, no
que concerne a nós, que julgamentos podem ser transferidos para outro lugar
por determinação dele.”
“Então a decisão caberá a Spencer Perceval?”, perguntou Darcy.
“Exatamente. Talvez se possa argumentar que, como o crime foi cometido
nas terras de um magistrado local, ele e a família poderiam se envolver no
caso de maneira imprópria, ou que poderiam correr boatos e insinuações
acerca da relação entre Pemberley e o acusado que prejudicariam a causa da
justiça. Não creio que seria fácil conseguir fazer com que o caso seja
transferido, mas o fato de Wickham ser parente por casamento tanto do
senhor quanto do sr. Bingley é um fator complicador que o procurador-geral
pode considerar relevante. Se decidir transferir o caso, não vai ser para
satisfazer a vontade de ninguém, mas por acreditar que uma transferência seria
a melhor forma de garantir justiça. Onde quer que o julgamento venha a se
realizar, acredito que vale a pena tentar contratar Jeremiah Mickledore para a
defesa. Trabalhei com ele até cerca de dois anos atrás e acho que posso ter
algum poder de in uência. Sugiro que o senhor lhe envie uma mensagem
expressa relatando os fatos e depois eu converse sobre o caso com ele
quando voltar para Londres, o que terei de fazer após o inquérito.”
Darcy aceitou a sugestão e agradeceu. Em seguida, Alveston disse: “Creio,
senhores, que deveríamos pensar sobre o testemunho que daremos quando
nos perguntarem o que Wickham disse quando o encontramos ajoelhado ao
lado do corpo. Isso será sem dúvida crucial para o caso. Obviamente, diremos
a verdade, mas seria interessante saber se a lembrança que temos das palavras
exatas dele coincide”.
Sem esperar que qualquer um dos outros dois se manifestasse, o coronel
Fitzwilliam disse: “Como é natural, elas deixaram uma forte impressão em mim
e creio que possa repeti-las com exatidão. Wickham disse: ‘Ele está morto! Ah,
meu Deus, Denny está morto! Ele era meu amigo, meu único amigo, e eu o
matei! Foi culpa minha’. Claro que o que ele quis dizer quando falou que a
morte de Denny tinha sido culpa dele é uma questão de opinião”.
“A lembrança que guardo das palavras de Wickham é exatamente igual à do
coronel, mas, como ele, não creio que possa interpretá-las. Até aqui
concordamos”, disse Alveston.
Foi a vez de Darcy. “Não tenho uma lembrança tão precisa da ordem exata
das palavras, mas posso a rmar com con ança que Wickham disse que tinha
matado o amigo, o único amigo que ele tinha, e que havia sido culpa dele.
Também acho ambíguas as últimas palavras e não pretendo tentar explicá-las,
a menos que seja forçado, e talvez nem mesmo assim.”
“É improvável que o juiz de instrução nos force a explicá-las”, disse
Alveston. “Se a pergunta for feita, ele pode observar que ninguém pode ter
certeza do que se passa na cabeça de outra pessoa. Na minha opinião, que é
puramente conjectural, Wickham quis dizer que Denny não teria se
embrenhado na oresta e sido atacado pelo assassino se os dois não tivessem
discutido e que ele assumia a responsabilidade pelo que quer que tenha feito
Denny se sentir impelido a sair da caleche. O caso sem dúvida vai car na
dependência do que Wickham quis dizer com essas poucas palavras.”
Ao que parecia, aquela conversa podia ser dada por encerrada, mas, antes
que eles se levantassem, Darcy disse: “Então o destino de Wickham, viver ou
morrer, vai depender da opinião de doze homens, in uenciados como
necessariamente são por seus próprios preconceitos, da força do depoimento
do acusado e da eloquência do promotor”.
“De que outra forma isso poderia ser resolvido?”, perguntou o coronel.
“Wickham vai estar nas mãos de seus compatriotas e não pode haver maior
garantia de justiça do que o veredicto de doze ingleses honestos.”
“E sem apelação”, disse Darcy.
“Como poderia haver apelação? A decisão do júri sempre foi sacrossanta. O
que você está propondo, Darcy, que seja convocado um segundo júri para
concordar ou discordar do primeiro e depois outro e mais outro? Seria o
cúmulo da imbecilidade e, se isso fosse levado adiante ad in nitum, pode-se
presumir que casos ingleses acabariam por ser julgados por tribunais
estrangeiros. E isso seria o m não só do nosso sistema jurídico, mas de muitas
outras coisas também.”
“Não seria possível existir uma corte de apelação que consistisse em três ou
talvez cinco juízes e fosse convocada quando houvesse discordância a
respeito de uma questão de direito complexa?”
Foi então que Alveston interveio. “Posso bem imaginar a reação de um júri
inglês diante da proposta de que a decisão a que os jurados chegassem
pudesse ser posta em dúvida por três juízes. É o juiz que preside o julgamento
que deve resolver as questões de lei e, se não for capaz de fazer isso, então
ele não tem direito de ser juiz. E de certa forma existe, sim, uma corte de
apelação. O juiz que preside um julgamento pode iniciar um processo para a
concessão de um perdão quando não car satisfeito com o resultado, e um
veredicto que pareça injusto para a população sempre acaba gerando um
clamor público e, às vezes, protestos violentos. Posso garantir ao senhor que
não há nada mais poderoso que o povo inglês quando tomado de justa
indignação. Mas, como talvez saiba, faço parte de um grupo de advogados
que estão preocupados em examinar a e cácia do nosso sistema jurídico
criminal, e há uma reforma que gostaríamos que fosse posta em prática:
achamos que o direito que o promotor tem de fazer um discurso final antes do
veredicto deveria ser estendido também ao advogado de defesa. Não vejo
nenhuma razão contrária a essa mudança e temos esperança de que ela venha
a ser feita antes do final deste século.”
“Que objeção há contra ela?”, perguntou Darcy.
“A principal objeção é o tempo. Os tribunais londrinos já estão
sobrecarregados e inúmeros casos são despachados com uma pressa
indecente. Os ingleses não gostam tanto de advogados a ponto de querer
ouvi-los discursar ainda mais horas do que já ouvem. Muitos acham que o fato
de o réu poder falar por si próprio e de os advogados de defesa poderem
interrogar as testemunhas já é su ciente para garantir justiça. Não acho que
esses argumentos sejam inteiramente convincentes, mas são defendidos com
sinceridade.”
“Você parece um radical, Darcy. Não sabia que tinha tanto interesse por leis
nem que estava tão empenhado em modificá-las”, disse o coronel.
“Nem eu, mas quando nos confrontamos, como agora, com a realidade do
que aguarda George Wickham e quando vemos como é estreita a lacuna entre
a vida e a morte, talvez seja natural car interessado e preocupado.” Ele cou
alguns instantes em silêncio e então disse: “Se ninguém tem mais nada a
acrescentar, talvez possamos nos unir às senhoras para jantar”.
2
A manhã de terça-feira prometia que o dia seria agradável, estimulando até a
esperança de que o sol do outono aparecesse. Wilkinson, o cocheiro, tinha a
merecida fama de saber prever o tempo e, dois dias antes, profetizara que o
vento e o tempo chuvoso seriam seguidos por um pouco de sol e chuvas
ocasionais. Era o dia em que Darcy iria encontrar-se com seu administrador,
John Wooler, que almoçaria em Pemberley, e à tarde iria até Lambton para ver
Wickham, um dever que ele podia estar certo de que não traria satisfação a
nenhum dos dois.
Enquanto Darcy estivesse ausente, Elizabeth planejava fazer uma visita à
cabana da oresta com Georgiana e o sr. Alveston, para perguntar pela saúde
de Will e levar vinho e iguarias delicadas, que ela e a sra. Reynolds esperavam
que abrissem o apetite do rapaz. Também queria veri car se a sra. Bidwell e a
lha não temiam car sozinhas na cabana enquanto Bidwell trabalhava em
Pemberley. Georgiana havia dito que acompanharia Elizabeth com prazer, e
Henry Alveston imediatamente se oferecera para ir também, a m de
proporcionar-lhes a companhia masculina que Darcy achava essencial e com a
qual Alveston sabia que as duas damas se sentiriam mais tranquilas. Elizabeth
havia pedido que o almoço fosse servido cedo e estava ansiosa para pôr-se a
caminho tão logo terminassem a refeição; o sol do outono era uma bênção
que não se poderia esperar que durasse muito, e Darcy havia insistido para
que o grupo deixasse a floresta antes que a luz da tarde começasse a diminuir.
Antes, porém, Elizabeth tinha cartas a escrever. Tomou o café da manhã
cedo e sentou-se diante de sua escrivaninha para dedicar algumas horas à
tarefa. Ainda não conseguira responder a todos os amigos que haviam
mandado cartas expressando pesar e pedindo notícias em resposta à sua
mensagem sobre o cancelamento do baile, e sabia que sua família em
Longbourn, que fora informada do ocorrido por Darcy por correio expresso,
estaria esperando boletins quase diários. Também era preciso manter a sra.
Hurst e a srta. Bingley, irmãs de Bingley, a par do andamento das coisas, mas
isso pelo menos ela podia deixar a cargo do cunhado. As duas visitavam o
irmão e Jane duas vezes por ano, mas estavam tão imersas nos encantos de
Londres que achavam intolerável passar mais de um mês no campo. Enquanto
estavam hospedadas em Highmarten, aceitavam convites para ir a Pemberley.
Poder gabar-se de visitar Pemberley, de manter relações de amizade com o sr.
Darcy e de desfrutar dos esplendores de sua casa era um prazer valioso
demais para ser sacri cado por causa de esperanças frustradas ou de
ressentimentos, muito embora ver Elizabeth na posição de senhora de
Pemberley continuasse a ser uma afronta que as duas irmãs só conseguiam
tolerar graças a um doloroso exercício de autocontrole. Então, para alívio de
Elizabeth, as visitas não eram frequentes.
Ela sabia que Bingley devia ter lhes recomendado delicadamente que não
fossem a Pemberley durante a presente crise e não tinha dúvida de que as
duas se manteriam afastadas. Um assassinato na família pode causar frisson em
jantares elegantes, mas pouca vantagem social se poderia tirar do
aniquilamento brutal de um capitão de infantaria sem importância, sem
dinheiro e sem berço. Como até as pessoas mais escrupulosas raramente
conseguem esquivar-se de ouvir mexericos maliciosos, é preferível aproveitar
o que não pode ser evitado, e era de conhecimento geral tanto em Londres
quanto em Derbyshire que a srta. Bingley andava particularmente preocupada
em não ausentar-se da capital. O cerco amoroso que ela vinha fazendo a um
viúvo nobre e extremamente rico estava entrando numa fase muito promissora.
Como ela própria admitia, se não tivesse o título de nobreza nem tanto
dinheiro ele seria considerado o homem mais enfadonho de Londres, mas não
se pode esperar ser chamada de “sua excelência” sem alguma inconveniência,
e a concorrência pela riqueza, pelo título e por tudo mais que o viúvo se
dispusesse a conceder era compreensivelmente acirrada. Havia um par de
mães gananciosas, muito experientes nos jogos matrimoniais, que vinha
trabalhando assiduamente cada qual por sua respectiva lha, de modo que a
srta. Bingley não tinha a menor intenção de sair de Londres num estágio tão
delicado da competição.
Elizabeth havia acabado de escrever uma carta para sua família em
Longbourn e outra para sua tia Gardiner quando Darcy chegou trazendo uma
carta expressa que fora entregue no nal da tarde do dia anterior e que ele só
abrira havia pouco.
Entregando-a para Elizabeth, ele disse: “Lady Catherine, como era de
esperar, repassou a notícia para o sr. Collins e Charlotte e enviou uma carta
deles junto com a dela. Imagino que nenhuma das duas cartas vá lhe causar
surpresa nem satisfação. Vou estar no gabinete com John Wooller, mas espero
vê-la no almoço, antes de eu ir para Lambton”.
Lady Catherine havia escrito:
Meu querido sobrinho
Sua carta expressa, como você deve imaginar, causou-me um considerável
choque, mas, felizmente, posso garantir a você e a Elizabeth que não sucumbi.
Mesmo assim, tive de chamar o dr. Everidge, que me deu os parabéns por estar
sendo tão forte. Vocês podem car seguros de que estou tão bem quanto seria de
esperar. A morte desse desafortunado rapaz — que eu, é claro, nunca conheci —
vai inevitavelmente provocar uma comoção nacional da qual, dada a
importância de Pemberley, não há como escapar. O sr. Wickham, que a polícia
fez muito bem em prender, parece ter um enorme talento para causar problemas
e embaraços a pessoas respeitáveis, e não consigo deixar de pensar que a
indulgência com que seus pais o trataram na infância, contra a qual eu diversas
vezes me manifestei com veemência para Lady Anne, foi responsável por muitos
dos comportamentos delinquentes que ele adotou mais tarde. Contudo, pre ro
acreditar que pelo menos dessa atrocidade o sr. Wickham seja inocente e, como o
lastimável fato de ele ter se casado com a irmã de sua mulher fez dele seu
cunhado, você sem dúvida vai querer responsabilizar-se pelas despesas da defesa
dele. Vamos torcer para que isso não deixe você e seus lhos na ruína. Vai
precisar de um bom advogado. Em hipótese alguma contrate um advogado local,
ou vai acabar cando nas mãos de uma nulidade que combinará ine ciência
com expectativas absurdas no que diz respeito a remuneração. Eu ofereceria
meu próprio advogado, o sr. Pegworthy, mas preciso dele aqui. Aquela antiga
querela com meu vizinho acerca das fronteiras das nossas terras está chegando a
um estágio crítico e houve um lamentável aumento do número de invasões de
caçadores nos últimos meses. Iria até aí eu mesma para lhe prestar
aconselhamento — o sr. Pegworthy disse que, se eu fosse homem e tivesse
abraçado a advocacia, abrilhantaria o tribunal inglês — mas minha presença é
necessária aqui. Se fosse a todas as pessoas que se bene ciariam com meus
conselhos, eu não pararia em casa. Sugiro que contrate um advogado do Inner
Temple. Dizem que todos lá são muito cavalheiros e civilizados. Mencione meu
nome e será bem atendido.
Transmitirei a notícia ao sr. Collins, já que não há como escondê-la por muito
tempo. Como sacerdote, ele vai querer lhe enviar suas costumeiras e depressivas
palavras de consolo e pretendo anexar sua carta à minha, mas vou limitar a
extensão da mensagem.
Mando a você e à sra. Darcy minhas condolências. Se o caso vier a tomar um
rumo adverso, não hesite em me chamar, que enfrentarei as neblinas do outono
para estar com você.
Elizabeth não contava em tirar nada de interessante da carta do sr. Collins, a
não ser o repreensível prazer de apreciar a mistura única de pompa e tolice
que caracterizava o discurso do pároco. A carta era mais longa do que ela
esperava. Apesar do que proclamara, Lady Catherine havia sido indulgente
quanto à extensão da mensagem. O sr. Collins começava declarando que não
conseguia encontrar palavras para expressar o choque e o horror que a
notícia lhe causara e, em seguida, encontrava um número enorme delas,
poucas apropriadas e nenhuma que ajudasse de forma alguma. Como zera
na ocasião do noivado de Lydia, ele atribuía todo aquele medonho incidente
ao fato de o sr. e a sra. Bennet não exercerem o devido controle sobre a lha;
depois, congratulava-se por ter retirado um pedido de casamento que o teria
ligado inescapavelmente à desgraça da família. Então, profetizava todo um
catálogo de tragédias que estaria à espera dos Bennet, indo da pior — o
desagrado de Lady Catherine, que a faria banir os Bennet permanentemente
de Rosings — até chegar à ignomínia pública, à bancarrota e à morte. Ele
concluía a carta mencionando que, dali a alguns meses, sua querida Charlotte
o brindaria com o quarto lho do casal. O presbitério de Hunsford estava
cando um pouco pequeno para sua crescente família, mas ele tinha
con ança de que a Providência lhe concederia, no devido tempo,
grati cações de valor considerável e uma casa maior. Elizabeth pensou
consigo que aquilo era uma clara tentativa — e já não era a primeira — de
despertar o interesse do sr. Darcy pela situação dele, e receberia a mesma
resposta. Até ali, a Providência não havia dado nenhum sinal de estar inclinada
a ajudar e Darcy certamente não ajudaria.
A carta de Charlotte, que viera sem lacre junto das outras duas, era o que
Elizabeth já esperava: nada além de algumas frases breves e convencionais de
pesar e condolências, seguidas da asseveração de que ela e o marido estavam
rezando pelo bem-estar de toda a família Darcy. Sem dúvida o sr. Collins teria
lido a carta da esposa e, portanto, não seria mesmo de esperar que a
mensagem contivesse nada mais íntimo ou afetuoso. Charlotte Lucas era amiga
de infância de Elizabeth e continuara a ser sua amiga quando as duas se
tornaram moças, sendo a única mulher além de Jane com quem Elizabeth
acreditava ser possível ter uma conversa racional. Elizabeth ainda lamentava
que boa parte da proximidade que havia entre as duas tivesse se perdido,
substituída por um vago bem-querer e uma correspondência regular, mas
desprovida de revelações íntimas. Nas duas vezes em que ela e Darcy haviam
cado hospedados na casa de Lady Catherine desde que se casaram, fora
necessário fazer uma visita formal ao presbitério, da qual Elizabeth se
encarregara sozinha por não querer expor o marido às impertinentes
civilidades do sr. Collins. Ela havia procurado entender o que levara Charlotte
a aceitar o pedido de casamento do sr. Collins — um pedido que ele fizera um
dia depois de ter sua proposta rejeitada por Elizabeth —, mas era pouco
provável que Charlotte tivesse esquecido ou perdoado a reação de espanto da
amiga ao saber da notícia.
Elizabeth suspeitava que, numa ocasião, Charlotte havia perpetrado sua
vingança. Elizabeth já se perguntara muitas vezes como Lady Catherine teria
descoberto que ela e o sr. Darcy provavelmente cariam noivos. Ela nunca
havia falado da primeira e desastrosa proposta de Darcy para ninguém, a não
ser para Jane, e acabara chegando à conclusão de que só poderia ter sido
Charlotte quem a havia traído. Recordando a noite em que Darcy e os Bingley
haviam ido pela primeira vez a um baile público em Meryton, Elizabeth
lembrava que Charlotte, de algum modo, havia descon ado que Darcy
poderia estar interessado em Elizabeth e a aconselhado a não permitir que sua
predileção por Wickham a zesse menosprezar um homem da importância de
Darcy. E mais tarde, quando Elizabeth estava passando algumas semanas no
presbitério com Sir William Lucas e a lha mais nova, Charlotte zera um
comentário a respeito da frequência das visitas do sr. Darcy e do coronel
Fitzwilliam durante a estadia dos hóspedes, dizendo que aquelas visitas todas
só podiam ser por causa de Elizabeth. E, depois, houve a proposta em si.
Assim que Darcy foi embora, Elizabeth saiu para caminhar sozinha para tentar
se acalmar e aplacar sua raiva. Quando voltou, porém, Charlotte devia ter
percebido pelo jeito da amiga que alguma coisa desagradável havia
acontecido durante sua ausência.
Charlotte era a única pessoa que poderia ter deduzido o motivo da agitação
de Elizabeth e, num momento de intriga conjugal, devia ter comunicado suas
suspeitas ao marido. O sr. Collins, obviamente, teria tratado mais que depressa
de avisar Lady Catherine e provavelmente exagerara o perigo, transformando
o que era apenas suspeita em certeza. Curiosos sentimentos con itantes
deviam ter tomado conta do pároco naquele momento. Se o casamento
acontecesse, ele poderia ter esperança de bene ciar-se de uma relação tão
próxima com o sr. Darcy: que grati cações um homem tão rico não poderia
conceder? Mas a prudência e o desejo de vingança provavelmente haviam
sido estímulos mais fortes e sedutores. Ele nunca perdoara Elizabeth por ter
recusado seu pedido de casamento. Ela devia ter cado solteirona, solitária e
pobre como punição, não ter recebido pouco depois uma proposta tão
magní ca que nem a lha de um conde teria rejeitado. A nal, Lady Anne não
havia se casado com o pai de Darcy? Charlotte também poderia ter tido outras
razões, mais justi cáveis, para guardar ressentimento. Ela estava convencida,
como aliás Meryton inteira estava, de que Elizabeth odiava Darcy; ela, sua
única amiga, que a condenara por ter feito um casamento por prudência e
pela necessidade de ter um lar, havia aceitado a proposta de um homem que
todos sabiam que detestava porque não conseguira resistir ao prêmio que era
tornar-se a senhora de Pemberley. Nunca é mais difícil felicitar uma amiga por
sua boa sorte do que quando essa sorte parece imerecida.
O casamento de Charlotte poderia ser considerado um sucesso, como talvez
possam todos os casamentos em que os dois membros do casal obtêm da
união exatamente o que a união prometia. O sr. Collins ganhara uma esposa e
dona de casa competente, uma mãe para seus lhos e a aprovação de sua
protetora, enquanto Charlotte tomara o único caminho por meio do qual uma
mulher solteira que não era nem bonita nem rica poderia esperar conquistar
independência. Elizabeth lembrava que Jane, gentil e tolerante como sempre,
recomendara-lhe que, antes de condenar Charlotte por ter cado noiva do sr.
Collins, procurasse lembrar o que ela estava deixando para trás. Elizabeth
nunca havia gostado dos irmãos de Charlotte. Mesmo ainda jovens, eles eram
turbulentos, cruéis e desagradáveis, e Elizabeth não tinha dúvida de que,
quando cassem adultos, teriam sentido desprezo e rancor de uma irmã
solteirona, vendo-a como um motivo de vergonha e uma fonte de despesas, e
deixado patente o que sentiam. Desde o início, Charlotte havia lidado com o
marido com a mesma habilidade com que lidava com criados e galinheiros. Já
na primeira visita que zera a Hunsford, na companhia de Sir William e da
lha dele, Elizabeth notara os arranjos que Charlotte zera para atenuar as
desvantagens de sua situação. Ela havia, por exemplo, reservado para o sr.
Collins um dos quartos da frente, onde o prospecto de ver as pessoas que
passavam, incluindo Lady Catherine em sua carruagem, o mantinha sentado
alegremente diante da janela. Com o incentivo de Charlotte, ele passara a
dedicar a maior parte de suas horas vagas à horticultura, uma atividade para a
qual demonstrava entusiasmo e talento. Cultivar a terra costuma ser
considerada de modo geral uma atividade virtuosa, e ver um horticultor
trabalhando diligentemente sempre desperta sentimentos de admiração e
aprovação, ainda que seja apenas em virtude da perspectiva de em breve
poder saborear batatas recém-tiradas da terra e ervilhas frescas. Elizabeth
descon ava que o sr. Collins nunca havia parecido um marido mais aceitável
do que quando Charlotte o via, ao longe, debruçado sobre sua horta.
Sendo a lha mais velha de uma grande família, Charlotte havia adquirido
certa habilidade para lidar com os delitos masculinos, e o método que usava
com o marido era engenhoso. Felicitava-o constantemente por qualidades de
que ele não dispunha na esperança de que, lisonjeado com os elogios e a
aprovação dela, o marido as adquirisse. Elizabeth vira o sistema em operação
quando, atendendo a um insistente pedido de Charlotte, zera sozinha uma
breve visita à amiga cerca de um ano e meio depois de ela ter se casado. O
grupo estava sendo levado de volta à residência paroquial numa das
carruagens de Lady Catherine quando o assunto da conversa se voltou para
um dos convidados, um sacerdote de uma paróquia vizinha que fora
ordenado havia pouco tempo e era parente distante de Lady Catherine.
Charlotte tinha dito: “O sr. Thompson é sem dúvida um excelente rapaz, mas
fala demais para o meu gosto. Tecer elogios a todos os pratos foi um exagero
e o fez parecer um glutão. Uma ou duas vezes, quando estava no auge de um
daqueles seus discursos de louvor, olhei para Lady Catherine e percebi que
ela não estava gostando muito daquilo. É uma pena que ele não tenha tomado
você como exemplo, meu amor. Ele teria falado menos e dito coisas mais
relevantes”.
O sr. Collins não tinha uma inteligência sutil o bastante para captar a ironia
nem descon ar de que aquilo fosse um estratagema. Sua vaidade fez com que
se aferrasse ao elogio e, na vez seguinte em que eles foram jantar em Rosings,
ele passou a maior parte da refeição num silêncio tão antinatural que Elizabeth
cou com receio de que Lady Catherine batesse com a colher na mesa e
perguntasse por que ele estava tão calado.
Elizabeth havia pousado sua caneta e passado os últimos dez minutos
pensando nos tempos em que morava em Longbourn, em Charlotte e na longa
amizade das duas. Agora estava na hora de guardar seus papéis e ver o que a
sra. Reynolds havia preparado para que ela levasse para os Bidwell. No
caminho até os aposentos da governanta, Elizabeth lembrou que Lady
Catherine, numa das visitas que zera a Pemberley no ano anterior, havia lhe
feito companhia quando ela foi até a cabana da oresta levando alimentos
adequados ao rapaz muito doente. Lady Catherine não havia sido convidada a
entrar no quarto do enfermo nem demonstrara de forma alguma estar
inclinada a entrar lá, limitando-se a dizer no caminho de volta: “O diagnóstico
do dr. McFee deve ser considerado altamente suspeito. Nunca aprovei mortes
demoradas. Na aristocracia, uma longa agonia é uma afetação; nas classes
baixas é apenas uma desculpa para não trabalhar. O segundo lho do ferreiro
supostamente está morrendo há quatro anos e, no entanto, quando passo por
lá de carruagem, sempre o vejo ajudando o pai com uma aparência de quem
goza de perfeita saúde. Os De Bourgh nunca gostaram de mortes prolongadas.
As pessoas deviam decidir se querem viver ou morrer e fazer uma coisa ou
outra causando o mínimo de transtorno para os outros”.
Elizabeth tinha cado espantada e chocada demais com essas declarações
para fazer qualquer comentário. Como Lady Catherine podia falar com tanta
calma de mortes demoradas quando sua única lha falecera meros três anos
antes, depois de padecer durante anos de problemas de saúde? No entanto,
passadas as primeiras manifestações da dor do luto, que foram contidas mas
certamente genuínas, Lady Catherine recuperou sua equanimidade — e, com
ela, boa parte da intolerância de antes — com espantosa rapidez. Delicada,
insossa e muito calada, a srta. De Bourgh havia causado um impacto
insigni cante no mundo quando viva e outro menor ainda ao morrer.
Elizabeth, que já era mãe na época, tinha feito tudo o que podia para dar
apoio a Lady Catherine nas primeiras semanas de luto, convidando-a
afetuosamente para visitar Pemberley e indo ela própria passar alguns dias em
Rosings, e tanto os convites quanto o afeto, que talvez tenham sido uma
surpresa para a grande dama, haviam surtido efeito. Lady Catherine
continuava sendo essencialmente a mesma mulher que sempre fora, mas agora
as sombras de Pemberley pareciam menos maculadas quando Elizabeth fazia
sua caminhada diária sob as árvores, e Lady Catherine passara a gostar tanto
de visitar Pemberley que ia para lá com mais frequência do que tanto Darcy
quanto Elizabeth de fato gostariam.
3
A cada dia havia novas obrigações a cumprir, e Elizabeth encontrou em suas
responsabilidades para com Pemberley, para com sua família e para com os
empregados ao menos um antídoto contra os piores horrores que sua
imaginação fabulava. Aquele seria um dia de deveres tanto para ela quanto
para o marido. Ela sabia que não podia mais adiar sua ida à cabana da
oresta. Ouvir os tiros no silêncio da noite e saber que um assassinato brutal
fora cometido a uma pequena distância da cabana enquanto Bidwell estava
em Pemberley deviam ter deixado um legado de consternação e terror para a
sra. Bidwell, que ia somar-se à sua carga já pesada de tristezas. Elizabeth sabia
que Darcy havia feito uma visita na quinta-feira para dizer que fazia questão
de liberar Bidwell de suas tarefas na véspera do baile para que ele pudesse
car com a família naquele momento difícil, mas tanto o marido quanto a
esposa tinham dito com toda a rmeza que isso não era necessário, e Darcy
havia percebido que sua insistência só estava deixando-os nervosos. Bidwell
sempre resistia a qualquer proposta que sugerisse que ele não era
indispensável, ainda que temporariamente, para Pemberley e para o patrão;
desde que renunciara à sua posição de cocheiro-chefe, sempre polia a
prataria na véspera do baile de Lady Anne e, em sua opinião, não havia mais
ninguém em Pemberley a quem se pudesse confiar a tarefa.
No ano anterior, quando o jovem Will começou a enfraquecer e a
esperança de que ele se recuperasse foi aos poucos desvanecendo, Elizabeth
passou a fazer visitas regulares à cabana da oresta, sendo a princípio
conduzida ao pequeno quarto da frente onde o rapaz cava. Nos últimos
tempos, porém, ela havia percebido que, ao entrar no quarto junto com a sra.
Bidwell, sua presença ao lado do leito causava mais constrangimento ao rapaz
do que prazer, podendo mesmo ser vista como uma imposição, e passou a
limitar-se a car na sala de estar, consolando da melhor forma que podia a
mãe a ita. Quando os Bingley estavam em Pemberley, Jane invariavelmente a
acompanhava nessa visita, junto com Bingley, e Elizabeth se deu conta de
como sentiria falta da irmã naquele dia e que enorme conforto sempre havia
sido tê-la como uma preciosa companheira, a quem podia con denciar até
seus pensamentos mais sombrios e cuja generosidade e gentileza amenizavam
qualquer angústia. Na ausência de Jane, Georgiana e um dos empregados
costumavam acompanhá-la, mas Georgiana, sensível à possibilidade de que a
sra. Bidwell se sentisse mais reconfortada conversando a sós com a sra. Darcy,
em geral prestava seus respeitos à família brevemente e depois ia sentar-se do
lado de fora, num banco de madeira construído pelo jovem Will antes de
adoecer. Darcy raramente a acompanhava nessas visitas de rotina, já que
presentear famílias com uma cesta de iguarias delicadas preparadas pela
cozinheira de Pemberley era uma tarefa considerada essencialmente feminina.
Naquele dia, salvo pela visita que faria a Wickham, Darcy pretendia evitar
ausentar-se de Pemberley, para o caso de acontecer algum imprevisto que
exigisse sua atenção, e então foi acertado durante o café da manhã que um
empregado acompanharia Elizabeth e Georgiana. Foi aí que Alveston,
dirigindo-se a Darcy, disse em voz baixa que seria uma honra para ele
acompanhar a sra. Darcy e a srta. Georgiana, se a sugestão lhes agradasse, e a
oferta foi aceita com gratidão. Elizabeth olhou rapidamente para Georgiana e
viu uma expressão de prazer em seu rosto, logo reprimida, o que deixou
ainda mais patente o quanto aquela oferta a deixava feliz.
Elizabeth e Georgiana foram levadas até a oresta num pequeno landau,
enquanto Alveston seguia ao lado em seu cavalo, Pompeu. Uma neblina
matutina havia se dissipado depois de uma noite sem chuva e a manhã estava
gloriosa, fria mas ensolarada, o ar impregnado do perfume familiar do outono
— um cheiro doce de folhas e terra fresca, com um laivo de madeira
queimada. Até os cavalos pareciam estar radiantes com aquele lindo dia,
balançando a cabeça de um lado para o outro e puxando o freio. O vento
havia cessado, mas a estrada estava coberta de detritos da tempestade, as
folhas secas crepitando sob as rodas ou esvoaçando e rodopiando na esteira
do landau. As árvores ainda não estavam totalmente desfolhadas, e os tons
vivos de vermelho e dourado do outono pareciam mais intensos sob o céu
azul. Um dia como aquele sempre contagiava o coração de Elizabeth de
alegria e, pela primeira vez desde que acordara, ela sentiu uma pontinha de
esperança. Quem visse o grupo, pensou Elizabeth — os cavalos agitando as
crinas, o cocheiro de libré, o cesto de provisões, o jovem e belo rapaz
cavalgando ao lado —, acharia que estavam a caminho de um piquenique.
Eles adentraram a oresta e as copas escuras e cerradas das árvores, que ao
anoitecer tinham a força crua de um telhado de prisão, deixavam passar raios
de sol, que se derramavam sobre o caminho coberto de folhas e
transformavam o verde-escuro dos arbustos num verde primaveril.
Por m, o landau parou, o cocheiro foi instruído a voltar dali a exatamente
uma hora e os três foram andando por entre os troncos lustrosos das árvores
pela trilha estreita que levava à cabana, com Alveston puxando Pompeu e
carregando o cesto. Não era por caridade que eles estavam levando comida
para o rapaz doente — nenhum dos empregados de Pemberley carecia de
abrigo, alimentos nem roupas. O que o cesto continha eram manjares especiais
elaborados pela cozinheira na esperança de que pudessem estimular o apetite
de Will: consomês preparados com carne de primeira qualidade e temperados
com um pouco de xerez, de acordo com uma receita criada pelo dr. McFee,
pequenas tortas salgadas que se desmanchavam na boca, geleias de fruta,
peras e pêssegos maduros cultivados na estufa. Will, no entanto, raramente
tolerava ingerir até mesmo coisas tão apetitosas, mas elas eram recebidas com
gratidão e, se o rapaz não conseguisse comê-las, a mãe e a irmã sem dúvida
comeriam.
Apesar de os três estarem caminhando com passos suaves, a sra. Bidwell
deve tê-los ouvido, pois estava parada em frente à porta da cabana para lhes
dar as boas-vindas. Era uma mulher magra e franzina, cujo rosto, como uma
aquarela desbotada, ainda evocava a beleza frágil e a promessa da juventude,
mas a preocupação e a angústia de ver o lho morrendo a tinham
transformado numa velhinha. Elizabeth apresentou Alveston, que, sem referir-
se diretamente a Will, conseguiu expressar uma compaixão genuína, disse ter
muito prazer em conhecê-la e sugeriu que seria melhor ele esperar pela
senhorita e pela sra. Darcy no banco de madeira do lado de fora.
“Foi meu lho, William, que fez esse banco, senhor”, disse a sra. Bidwell.
“Ele terminou de fazê-lo uma semana antes de car doente. Meu lho era um
bom carpinteiro, como o senhor pode ver, e gostava de fazer móveis, que ele
mesmo criava. No Natal depois que o pequeno sr. Fitzwilliam nasceu, Will fez
uma poltrona para a sra. Darcy se sentar no quarto das crianças quando fosse
cuidar do bebê, não foi, senhora?”
“Foi sim”, disse Elizabeth. “Gostamos muito daquela poltrona e sempre
pensamos em Will quando as crianças sobem nela.”
Alveston fez uma mesura e, em seguida, foi andando em direção ao banco,
que cava na beira da oresta, mas podia ser avistado da cabana, enquanto
Elizabeth e Georgiana entravam na sala de estar e se sentavam nos lugares que
lhes foram indicados. A sala era mobiliada de maneira simples, com uma mesa
retangular no meio e quatro cadeiras, uma poltrona de cada lado da lareira e
um consolo largo, repleto de recordações de família. A janela da frente estava
ligeiramente aberta, mas mesmo assim a sala estava muito abafada e, embora o
quarto de Will Bidwell casse no andar de cima, a cabana inteira parecia
impregnada do cheiro azedo que uma doença de longa duração provoca.
Perto da janela havia um berço de balanço com uma poltrona ao lado e, a
convite da sra. Bidwell, Elizabeth foi até lá ver o bebê, que estava dormindo, e
parabenizou a avó pela saúde e beleza do novo membro da família. Não havia
sinal de Louisa. Georgiana sabia que a sra. Bidwell caria grata pela
oportunidade de conversar a sós com Elizabeth e, depois de perguntar por
Will e admirar o bebê, saiu da cabana para juntar-se a Alveston, como ela e
Elizabeth já haviam combinado antes. O cesto de vime logo foi esvaziado, seu
conteúdo recebido com gratidão e, então, as duas mulheres se sentaram nas
poltronas ao pé da lareira.
“Ele agora não consegue mais comer quase nada, mas gosta muito daquele
caldo de carne, e eu sempre procuro tentá-lo com os doces e, claro, o vinho.
Foi muita bondade sua vir até aqui, mas não vou pedir que vá ao quarto dele.
Isso só deixaria a senhora triste e ele não tem mais forças para dizer muita
coisa”, disse a sra. Bidwell.
“O dr. McFee vem visitá-lo com regularidade? Consegue lhe dar algum
alívio?”, perguntou Elizabeth.
“Ele vem dia sim, dia não, senhora, mesmo sendo tão ocupado, e nunca nos
cobra nada. Disse que o Will não deve conseguir resistir por muito mais
tempo. Ah, a senhora conheceu meu lho querido quando se mudou para cá.
Por que isso tinha de acontecer com ele, senhora? Se houvesse alguma razão
ou propósito, talvez eu conseguisse me conformar.”
Elizabeth estendeu a mão e disse amavelmente: “Essa é uma pergunta que
sempre fazemos e para a qual nunca recebemos resposta. O reverendo
Oliphant costuma vir aqui? Ele disse alguma coisa no domingo, depois do
ofício, sobre visitar Will”.
“Ah, ele vem, sim, senhora, e a visita dele nos conforta muito, sem dúvida.
Mas há pouco tempo Will me pediu que não o levasse mais até o quarto, então
dou alguma desculpa, espero que sem ofender.”
“Tenho certeza de que ele não se ofende, sra. Bidwell. O sr. Oliphant é um
homem sensível e compreensivo. O sr. Darcy tem muita con ança nele”, disse
Elizabeth.
“Todos nós temos, senhora.”
Elas caram em silêncio durante alguns minutos e então a sra. Bidwell disse:
“Não falei da morte daquele pobre rapaz, senhora. Will caria muito a ito se
soubesse que uma coisa dessas aconteceu tão perto da nossa casa, logo ali na
floresta, e ele sem poder nos proteger”.
“Mas vocês não se sentiram em perigo, espero, sra. Bidwell. Disseram-me
que não ouviram nada.”
“Só ouvimos os disparos de pistola, senhora, mas isso fez Will perceber o
quanto está indefeso e como é pesado o fardo que o pai dele tem de suportar.
Mas sei como essa tragédia é terrível para a senhora e para o patrão e acho
melhor não falar sobre coisas de que nada sei.”
“Mas a senhora conheceu o sr. Wickham quando ele era criança, não
conheceu?”
“Conheci, sim, senhora. Ele e o patrão costumavam brincar juntos na floresta
quando eram meninos. Eram travessos e barulhentos, como todos os meninos,
mas o patrão era o mais quieto dos dois. Sei que o sr. Wickham cou muito
rebelde depois que cresceu e causou muita tristeza ao patrão, mas ninguém
mais tocou no nome dele depois que a senhora e o patrão se casaram e, sem
dúvida, é melhor assim. Só não consigo acreditar que o menino que conheci
virou um assassino.”
Por um momento, as duas caram em silêncio. Elizabeth tinha vindo até ali
com a intenção de fazer uma proposta delicada e agora estava se perguntando
qual seria a melhor maneira de entrar no assunto. Ela e Darcy temiam que,
depois do ataque, os Bidwell se sentissem em perigo, morando isolados na
cabana da oresta, principalmente com um rapaz gravemente doente em casa
e Bidwell passando tanto tempo em Pemberley. Seria compreensível que eles
cassem nervosos, e Elizabeth e Darcy haviam achado por bem que ela
sugerisse à sra. Bidwell que a família inteira se mudasse para Pemberley, pelo
menos até que o mistério fosse solucionado. Isso só seria praticável, é claro,
se Will conseguisse suportar a viagem até lá, mas ele seria transportado numa
maca ao longo do caminho inteiro para evitar os solavancos de uma
carruagem e receberia zelosos cuidados depois de instalado num quarto
tranquilo em Pemberley. Quando fez a proposta, no entanto, Elizabeth cou
espantada com a reação da sra. Bidwell. Pela primeira vez, a mulher pareceu
genuinamente assustada, e foi com uma expressão quase de pavor que ela
disse:
“Ah, não, senhora! Por favor, não nos peça isso. Will não caria bem longe
da cabana. Não sentimos nenhum receio aqui. Mesmo quando Bidwell não
está, Louisa e eu não camos com medo. Depois que o coronel Fitzwilliam
teve a bondade de vir até aqui para ver se estávamos bem, zemos como ele
recomendou. Trancamos a porta e as janelas do primeiro andar, e ninguém
chegou perto daqui. Foi só um caçador, senhora. Ele deve ter sido pego
desprevenido e agido por impulso, mas não tinha nada contra nós. E tenho
certeza de que o dr. McFee diria que Will não aguentaria a viagem. Por favor,
diga ao sr. Darcy com todo o nosso respeito que estamos muito gratos, mas
gostaríamos de ficar aqui.”
Os olhos da sra. Bidwell e suas mãos estendidas eram uma súplica. Elizabeth
disse num tom amável: “Se é esse o desejo de vocês, nós aceitamos, mas
podemos pelo menos garantir que seu marido que em casa a maior parte do
tempo. Ele vai nos fazer muita falta, mas outros empregados podem se
encarregar das tarefas dele, já que Will está tão doente e precisa dos cuidados
de vocês”.
“Ele não vai querer, senhora. Vai ser uma tristeza para ele pensar que outras
pessoas podem assumir seu trabalho.”
Elizabeth cou tentada a dizer que, se era assim, ele teria de suportar a
tristeza, mas sentiu que havia algo mais sério ali do que o desejo de Bidwell
de sentir-se perpetuamente indispensável. Então, resolveu não insistir mais por
ora; sem dúvida a sra. Bidwell ia discutir o assunto com o marido e talvez
mudasse de ideia. Ela obviamente tinha razão; se o dr. McFee fosse da opinião
de que Will não aguentaria a viagem, seria loucura tentar fazê-la.
As duas se despediram e estavam se levantando quando dois pezinhos
rechonchudos apareceram acima da beira do berço e o bebê começou a
chorar. Lançando um olhar a ito em direção ao quarto do lho no andar de
cima, a sra. Bidwell foi às pressas para perto do berço e pegou a criança no
colo. Naquele momento, ouviram-se ruídos de passos na escada e, então,
Louisa Bidwell desceu. Por um instante, Elizabeth não conseguiu reconhecer a
moça que, desde que ela começara a visitar a cabana da oresta como
senhora de Pemberley, era o retrato da saúde e da alegria da juventude, com
bochechas coradas, olhos cheios de brilho e uma aparência fresca como a de
uma manhã de primavera, com suas roupas de trabalho recém-passadas. A
moça parecia dez anos mais velha, pálida e abatida, o cabelo despenteado
preso na nuca, revelando um rosto marcado por rugas de cansaço e
preocupação, o vestido manchado de leite. Cumprimentou Elizabeth com uma
rápida reverência e, sem dizer nada, quase arrancou o bebê dos braços da
mãe. Em seguida, disse: “Vou levá-lo para a cozinha para que não acorde Will,
mãe. Vou botar o leite para esquentar e ver se ele quer um pouco daquele
mingau gostoso”.
E, então, a moça se foi. Para quebrar o silêncio, Elizabeth disse: “Deve ser
uma alegria ter um netinho recém-nascido em casa, mas também uma
responsabilidade. Quanto tempo ele vai car aqui? Imagino que a mãe esteja
sentindo falta dele”.
“Ela está, sim, senhora. Foi um grande prazer para Will conhecer o novo
sobrinho, mas ele não gosta de ouvi-lo chorar, embora seja mais que natural
um bebê chorar quando está com fome.”
“Quando ele vai para casa?”, perguntou Elizabeth.
“Semana que vem, senhora. O marido da minha lha mais velha, Michael
Simpkins — um bom homem, como a senhora sabe — vai se encontrar com
eles na parada da diligência, em Birmingham, e levá-lo para casa. Estamos
esperando que ele nos diga que dia é conveniente. É um homem ocupado e
não é fácil sair da loja, mas ele e minha lha estão ansiosos para que Georgie
volte para casa.” Era impossível não notar a tensão na voz dela.
Elizabeth percebeu que estava na hora de ir embora. Despediu-se, ouviu de
novo os agradecimentos da sra. Bidwell, saiu e imediatamente a porta da
cabana se fechou atrás dela. Seu ânimo cou abatido pela óbvia infelicidade
que testemunhara, e ela se sentia confusa. Por que a sugestão de que os
Bidwell se mudassem para Pemberley havia sido recebida de modo tão a ito?
Teria sido uma falta de tato fazê-la, como se a oferta deixasse implícito que o
rapaz moribundo receberia melhores cuidados em Pemberley do que uma
mãe amorosa poderia lhe dar em casa? Nada poderia estar mais distante da
intenção de Elizabeth. Será que a sra. Bidwell realmente acreditava que a
viagem mataria seu lho? Mas haveria mesmo algum risco se o rapaz fosse
transportado numa maca, muito bem agasalhado e sob a atenta vigilância do
dr. McFee durante a viagem inteira? Ninguém pretendia fazer nada além disso.
A sra. Bidwell parecia ter cado mais nervosa com a ideia da mudança do que
com a possibilidade de haver um assassino vagando pela oresta. Então,
Elizabeth sentiu-se invadida por uma descon ança, tão forte que quase
beirava uma certeza; mas era uma suspeita que não podia discutir com
Georgiana e Alveston e, na verdade, tinha dúvidas se seria certo comentá-la
com quem quer que fosse. Pensou novamente em como gostaria que Jane
ainda estivesse em Pemberley; sabia, porém, que era mais do que justo que os
Bingley tivessem voltado para casa. O lugar de Jane era perto dos lhos e,
além disso, em Highmarten Lydia estaria mais perto da prisão local, onde
poderia ao menos visitar o marido. Para complicar ainda mais os sentimentos
de Elizabeth, ela tinha de admitir que a atmosfera em Pemberley cara bem
mais tranquila sem as violentas oscilações de humor, as queixas e as lamúrias
constantes de Lydia.
Imersa nessa mixórdia de pensamentos e emoções, por um momento
Elizabeth mal prestara atenção em seus companheiros. Agora, no entanto, ela
via que os dois caminhavam lado a lado ao longo da margem da clareira e
olhavam para ela como que se perguntando por que estaria ali parada.
Procurando esquecer suas preocupações, Elizabeth foi para perto deles. Viu as
horas em seu relógio e disse: “O landau só vai voltar daqui a vinte minutos. O
sol apareceu, ainda que brevemente, então vamos nos sentar um pouco antes
de voltar?”.
O banco cava de costas para a cabana e de frente para um declive distante
que descia rumo ao rio. Elizabeth e Georgiana se sentaram num dos lados do
banco e Alveston no outro, com as pernas esticadas para a frente e as mãos
entrelaçadas na nuca. Os ventos do outono haviam desfolhado boa parte das
árvores, e era possível avistar ao longe a linha na e suavemente luminosa que
separava o rio do céu. Teria sido aquela vista da água que zera o bisavô de
Georgiana escolher o lugar para pôr um banco? O antigo banco já não existia
fazia muito tempo, mas o novo construído por Will era resistente e confortável.
Ao lado dele, como uma espécie de escudo, havia uma moita carregada de
frutinhas vermelhas e um arbusto de cujo nome Elizabeth não se lembrava,
com folhas grossas e flores brancas.
Depois de alguns minutos, Alveston se virou para Georgiana. “Seu bisavô
morava na cabana o tempo todo ou só se refugiava aqui de vez em quando,
para escapar dos assuntos da mansão?”
“Ah, ele morava aqui o tempo todo. Mandou construir a cabana e depois se
mudou para cá sozinho, sem nenhum criado nem ninguém para cozinhar para
ele. Os empregados traziam mantimentos para cá regularmente, mas ele e o
cachorro, Soldier, não queriam a companhia de ninguém a não ser um do
outro. A maneira como ele vivia causou um grande escândalo na época, e até
a família o condenava por isso. Parecia uma abdicação de responsabilidade
um Darcy morar em qualquer outro lugar que não fosse a mansão de
Pemberley. E mais tarde, quando Soldier cou velho e doente, meu bisavô
deu um tiro nele e depois se matou, deixando um bilhete em que dizia que
queria que os dois fossem enterrados juntos, no mesmo túmulo. Há uma
lápide e um túmulo na oresta, mas só do cachorro. A família cou
horrorizada com a ideia de um Darcy querer ser enterrado num lugar não
abençoado, e o senhor bem pode imaginar o que o pároco achou disso.
Então, meu bisavô está enterrado na parte do cemitério reservada para a
família, e Soldier, na oresta. Sempre senti pena do meu bisavô e, quando era
criança, às vezes ia com a minha preceptora ao túmulo da oresta para deixar
ores ou frutinhas. Era só uma fantasia infantil, mas eu imaginava que meu
bisavô estava lá com Soldier. Quando a minha mãe descobriu o que estava
acontecendo, a preceptora foi mandada embora e fui proibida de ir à
floresta.”
“Você, mas não seu irmão”, disse Elizabeth.
“Não, não Fitzwilliam. Mas ele é dez anos mais velho que eu e já era adulto.
E acho que não sentia o mesmo que eu em relação ao nosso bisavô.”
Depois de alguns instantes de silêncio, Alveston disse: “O túmulo ainda está
lá? A senhorita poderia botar ores nele agora, se quiser, já que não é mais
criança”.
Elizabeth teve a impressão de que a sugestão tinha uma implicação mais
profunda do que uma visita ao túmulo de um cachorro.
“Quero sim”, respondeu Georgiana. “Não vou lá desde que tinha onze anos.
Gostaria de ver se alguma coisa mudou, embora não creia que tenha mudado.
Conheço o caminho e o túmulo não ca longe da trilha, então acho que dá
tempo de voltar antes de o landau chegar.”
Eles se levantaram e puseram-se a caminho. Georgiana apontava na direção
que tinham de seguir e Alveston ia na frente, puxando Pompeu, para afastar as
urtigas da trilha com o pé e segurar qualquer galho que estivesse atrapalhando
o caminho das duas. Georgiana segurava um ramalhete que Alveston havia
feito para ela. Era surpreendente quanta alegria e quantas lembranças
primaveris aquele pequeno arranjo de ores, colhidas num dia ensolarado de
outubro, podia trazer. Alveston havia encontrado um ramo carregado de ores
brancas de outono, um pequeno galho repleto de frutinhas bem vermelhas,
mas ainda não maduras o bastante para cair, e uma ou duas folhas grandes
com nervuras douradas. Os três caminhavam sem dizer nada. Elizabeth, com a
cabeça já cheia de preocupações, imaginava se fazer aquela pequena
expedição seria prudente, sem saber exatamente de que maneira o passeio
poderia ser considerado desaconselhável. Era um dia em que qualquer coisa
fora do normal parecia envolta em apreensão e perigo em potencial.
Foi então que ela começou a notar que alguém devia ter passado por
aquela trilha havia pouco tempo. Em alguns lugares, os galhos e ramos mais
frágeis estavam quebrados e, num ponto em que havia um leve declive no
terreno e as folhas no chão estavam úmidas e amolecidas, teve a impressão de
ver sinais de que elas haviam sido calcadas por pés pesados. Ficou se
perguntando se Alveston teria notado o mesmo, mas ele não disse nada e,
passados alguns minutos, eles deixaram os arbustos para trás e se viram diante
de uma pequena clareira cercada de faias. No meio dela havia uma lápide de
cerca de três palmos de altura levemente arredondada na parte de cima. Não
havia nenhuma elevação sobre o túmulo e a lápide, que brilhava na frágil luz
do sol, parecia ter brotado espontaneamente da terra. Leram a inscrição em
silêncio. Soldier. Fiel até o m. Morreu aqui com seu dono, em 3 de novembro de
1735.
Ainda sem dizer nada, Georgiana se aproximou para pôr o ramalhete ao pé
da lápide. Enquanto os três contemplavam a pedra tumular, ela disse: “Coitado
do meu bisavô. Gostaria de tê-lo conhecido. Ninguém falava sobre ele quando
eu era criança, nem aqueles que ainda se lembravam dele. Era o fracassado da
família, o Darcy que desonrou o nome porque botou a felicidade pessoal à
frente das responsabilidades públicas. Mas não virei mais visitar este túmulo.
Afinal, o corpo do meu bisavô não está aqui; foi só uma fantasia infantil minha
imaginar que, se viesse aqui, ele saberia de alguma forma que eu gostava dele.
Espero que tenha sido feliz na vida solitária que escolheu. Pelo menos ele
conseguiu escapar”.
Escapar do quê?, pensou Elizabeth. Ela estava ansiosa para ver se o landau já
havia chegado para buscá-los. “Acho que está na hora de voltar para casa. O
sr. Darcy deve chegar da prisão daqui a pouco e vai car preocupado se
ainda estivermos na floresta”, disse.
Eles seguiram pela trilha estreita e coberta de folhas em direção ao lugar
onde o landau ia esperá-los. Embora tivessem passado menos de uma hora na
oresta, a claridade da tarde já havia perdido a intensidade e o ar promissor e
Elizabeth, que nunca gostara de andar em espaços con nados, tinha a
sensação de que os arbustos e as árvores a esmagavam como um peso físico.
Ainda sentia cheiro de doença em suas narinas e seu coração estava oprimido
pela infelicidade da sra. Bidwell e por não haver mais esperança de que Will
se recuperasse. Depois que chegaram à trilha principal, passaram a andar lado
a lado quando a largura da trilha permitia e, se a trilha se estreitava, Alveston
tomava a dianteira e seguia com Pompeu alguns passos à frente, olhando para
o chão e em seguida para a direita e para a esquerda, como que à procura de
pistas. Elizabeth sabia que ele teria preferido dar o braço para Georgiana, mas
jamais deixaria nenhuma das duas caminhar sozinha. Georgiana também
estava calada, talvez oprimida pela mesma sensação de mau agouro e ameaça.
De repente, Alveston parou e, em seguida, foi andando rapidamente em
direção a um carvalho. Alguma coisa obviamente havia chamado sua atenção.
Elas se aproximaram e viram as letras f. d—y entalhadas no tronco do
carvalho, cerca de oito palmos acima do chão.
Olhando ao redor, Georgiana disse: “Não há um entalhe parecido naquele
azevinho ali?”.
Um rápido exame con rmou que as mesmas iniciais tinham sido entalhadas
em dois outros troncos.
“Não parece ser o entalhe costumeiro que uma pessoa apaixonada faz. Em
geral, enamorados entalham apenas as iniciais da pessoa amada. Quem quer
que tenha feito esse entalhe estava preocupado em não deixar dúvida de que
essas iniciais são de Fitzwilliam Darcy”, disse Alveston.
“Quando será que isso foi feito? Parece ser tão recente”, disse Elizabeth.
“Certamente não tem mais de um mês, e foi feito por duas pessoas. O f e o
d são super ciais e podem ter sido feitos por uma mulher, mas o traço e o y
que vêm depois são muito fundos e com quase toda a certeza foram
entalhados com um instrumento mais afiado.”
“Não acredito que tenha sido uma pessoa apaixonada que fez isso. Acho
que essas letras foram entalhadas por um inimigo e que a intenção era
maligna. Elas foram entalhadas com ódio, não com amor”, concluiu Elizabeth.
Assim que terminou de dizer essas palavras, ela cou se perguntando se não
havia sido inépcia sua preocupar Georgiana, mas Alveston disse: “Suponho
que seja possível que sejam as iniciais de Denny. Alguém sabe qual era o
nome de batismo dele?”.
Elizabeth tentou lembrar se alguma vez tinha ouvido alguém chamá-lo pelo
primeiro nome em Meryton. Por m, disse: “Acho que era Martin, ou talvez
Matthew, mas imagino que a polícia saiba. Devem ter entrado em contato com
os parentes dele, se é que tinha algum. Mas, até onde sei, o capitão Denny
nunca havia estado nesta oresta antes de sexta-feira e certamente nunca
visitara Pemberley”.
Alveston se virou para ir embora e disse: “Vamos contar o que vimos
quando voltarmos para casa. A polícia terá de ser informada. Se zeram a
busca meticulosa que deviam ter feito, os delegados talvez já tenham visto esse
entalhe e chegado a alguma conclusão a respeito do que signi ca. Enquanto
isso, espero que as senhoras não se preocupem demais com essa tolice. Pode
ter sido só uma travessura, sem intenção de fazer nenhum mal. Talvez uma
moça de uma das cabanas que estivesse apaixonada, ou algum empregado
que quis pregar uma peça tola, mas inofensiva em alguém”.
Elizabeth, no entanto, não cou convencida. Sem dizer nada, ela saiu
andando, afastando-se da árvore. Georgiana e Alveston foram atrás. Num
silêncio que nenhum dos três estava disposto a quebrar, Elizabeth e Georgiana
seguiram atrás de Alveston pela trilha da oresta em direção ao landau, que já
os esperava. O ânimo sombrio de Elizabeth parecia ter contagiado seus
companheiros. Depois de ajudar as duas senhoras a subir na carruagem,
Alveston fechou a porta, montou em seu cavalo e eles tomaram o rumo de
casa.
4
A prisão local, em Lambton, ao contrário da prisão do condado, situada em
Derby, era mais intimidadora do lado de fora do que em seu interior,
presumivelmente por ter sido construída com a crença de que, a m de
poupar verbas públicas, era mais inteligente desestimular futuros criminosos
do que abater-lhes o ânimo depois de encarcerados. Darcy já conhecia a
prisão, tendo-a visitado algumas vezes na qualidade de magistrado,
notavelmente numa ocasião, oito anos antes, em que um prisioneiro que sofria
de distúrbios mentais havia se enforcado em sua cela, o que zera o
carcereiro-chefe chamar o único magistrado que estava à disposição naquele
momento para examinar o corpo. Tinha sido uma experiência tão
perturbadora que imprimira em Darcy um horror permanente a
enforcamentos, e não havia uma única vez em que ele visitasse a prisão sem
que uma imagem vívida daquele corpo pendurado, com o pescoço esticado,
lhe viesse à cabeça. Naquele dia, a imagem lhe surgira de uma forma mais
intensa do que o normal. O diretor da prisão e seu assistente eram homens
compassivos e, embora nenhuma das celas pudesse ser considerada espaçosa,
percebia-se que os prisioneiros não eram submetidos a maus-tratos, e os que
tinham condições de pagar bem para que lhes levassem comida e bebida
podiam receber visitas com algum conforto e tinham poucos motivos de
queixa.
Como Hardcastle havia desaconselhado Darcy com rmeza a encontrar-se
com Wickham antes do inquérito, Bingley, com sua costumeira generosidade,
oferecera-se para a tarefa e o havia visitado na manhã de segunda-feira,
cuidando das necessidades imediatas do prisioneiro e deixando uma quantia
su ciente em dinheiro para que pudesse comprar alimentos e outros confortos
que ajudassem a tornar o encarceramento tolerável. Contudo, ao re etir um
pouco mais, Darcy chegara à conclusão de que tinha o dever de visitar
Wickham ao menos uma vez antes do inquérito. Não fazê-lo poderia ser
interpretado pela população de Lambton e da aldeia de Pemberley como um
claro sinal de que Darcy acreditava que o cunhado fosse culpado, e os
jurados que participariam do inquérito seriam escolhidos justamente entre os
habitantes de Lambton e de Pemberley. Ele podia não ter escolha quanto a
prestar depoimento como uma testemunha da acusação, mas pelo menos
podia tentar demonstrar discretamente que acreditava que Wickham fosse
inocente. Havia também uma razão mais pessoal para fazer a visita: ele estava
extremamente preocupado em evitar que as pessoas começassem a
conjecturar abertamente a respeito do motivo da desavença familiar, o que
poderia fazer com que a proposta de fuga feita por Wickham a Georgiana
acabasse sendo descoberta. Era não só justo mas também prudente que Darcy
fosse à prisão.
Bingley relatara que encontrara Wickham taciturno, contrariado e inclinado
a bradar insultos contra o magistrado e a polícia, exigindo que redobrassem
os esforços para descobrir quem havia matado seu melhor — senão único —
amigo. Por que ele apodrecia na prisão, enquanto o verdadeiro culpado
continuava livre, sem que ninguém o incomodasse? Por que a polícia a toda
hora interrompia seu descanso para importuná-lo com perguntas idiotas e
desnecessárias? Por que eles tinham perguntado o motivo de ter virado Denny
de barriga para cima? Para ver o rosto dele, é claro; tinha sido uma atitude
perfeitamente natural. Não, ele não havia notado o ferimento na cabeça de
Denny, provavelmente porque o cabelo do amigo tapava o corte e, de
qualquer forma, ele estava nervoso demais para reparar em detalhes. E o que,
perguntavam, ele havia feito no espaço de tempo decorrido entre o momento
em que os tiros foram ouvidos e a hora em que o grupo de busca encontrou o
corpo de Denny? Ora, mesmo trôpego, ele tinha vagado pela oresta à
procura do assassino, que era o que eles deveriam estar fazendo, em vez de
perder tempo atormentando um homem inocente.
Naquele dia, Darcy encontrou um homem diferente. Vestido com roupas
limpas, barbeado e de cabelo penteado, Wickham o recebeu como se
estivesse em sua própria casa, procurando ser afável com um visitante que não
era particularmente bem-vindo. Darcy lembrou que Wickham sempre fora uma
criatura de humor instável e reconheceu naquele momento o velho Wickham,
bonito, con ante e mais inclinado a saborear sua notoriedade do que a vê-la
como uma desonra. Bingley havia levado os artigos que ele pedira: tabaco,
algumas camisas e gravatas, um par de sapatos macios e confortáveis, tortas
salgadas feitas em Highmarten, para reforçar a comida que era comprada para
ele na padaria local, papel e tinta, com os quais pretendia escrever um relato
não só de sua participação na campanha irlandesa, mas também da enorme
injustiça que era seu atual encarceramento — um testemunho pessoal que
estava certo de que encontraria leitores ávidos. Nenhum dos dois falou do
passado. Embora Darcy não conseguisse se libertar do poder do passado,
Wickham vivia para o momento, era otimista em relação ao futuro e
reinventava o passado ao sabor de sua plateia. Ouvindo-o falar, Darcy quase
conseguiu acreditar que, por ora, Wickham havia conseguido tirar inteiramente
da cabeça o que de pior havia acontecido em sua vida.
Wickham contou que os Bingley haviam levado Lydia de Highmarten na
tarde anterior para visitá-lo, mas que ela estava tão descontrolada, tão
queixosa e chorosa, que ele achara sua presença desalentadora demais e
instruíra os guardas a, no futuro, só permitir que ela o visitasse quando ele
solicitasse e a não deixar que permanecesse mais do que quinze minutos. Ele
esperava, no entanto, que nenhuma outra visita fosse ser necessária; o
inquérito fora marcado para as onze horas da manhã de quarta-feira, e ele
tinha con ança de que seria solto depois. Livre, ele se imaginava voltando de
maneira triunfal para Longbourn com Lydia, onde seria calorosamente
recebido por seus antigos amigos de Meryton. Nenhuma menção foi feita a
Pemberley, talvez porque, mesmo em sua euforia, Wickham não acalentasse
qualquer esperança de voltar a ser recebido lá, nem o desejasse. Sem dúvida,
pensou Darcy, na feliz eventualidade de Wickham vir a ser solto, ele iria
primeiro para Highmarten para juntar-se a Lydia, seguindo depois para
Hertfordshire. Parecia injusto que Jane e Bingley tivessem de tolerar a presença
de Lydia por mais um dia que fosse, mas tudo isso poderia ser decidido
quando — e se — Wickham de fato fosse solto. Darcy gostaria de partilhar da
confiança do outro.
Ele cou com Wickham apenas por meia hora, recebeu dele uma lista de
itens para lhe serem levados no dia seguinte e suas recomendações à sra. e à
srta. Darcy. Ao sair da prisão, Darcy re etiu que fora um alívio ver que
Wickham já não estava mais mergulhado em pessimismo e rancor, mas a visita
tinha sido desconfortável para ele e profundamente deprimente.
Sabia que, se o julgamento corresse bem, ele teria de sustentar Wickham e
Lydia ao menos durante algum tempo e isso lhe causava ressentimento. Os
gastos dos dois sempre haviam excedido a renda de que dispunham, e Darcy
imaginava que dependiam de contribuições feitas secretamente por Elizabeth e
Jane para aumentar uma renda insu ciente. Jane de vez em quando ainda
convidava Lydia para passar alguns dias em Highmarten, enquanto Wickham,
queixando-se ruidosamente na intimidade, hospedava-se e divertia-se numa
variedade de estalagens locais, e era através de Jane que Elizabeth recebia
notícias do casal. Wickham não havia tido sucesso em nenhum dos empregos
temporários que arranjara desde que pedira dispensa do Exército. Sua última
tentativa de ganhar um ordenado fora trabalhando para Sir Walter Elliot, um
baronete que, em virtude de seus hábitos perdulários, havia sido forçado a
alugar sua mansão para estranhos e se mudara para Bath com as duas lhas. A
mais nova, Anne, casara-se pouco depois com um capitão naval, agora um
respeitado almirante, e tinha um casamento feliz e próspero, mas a mais velha,
Elizabeth, ainda não havia encontrado um marido. Desencantado com Bath, o
baronete havia decidido que já estava numa situação nanceira confortável o
bastante para voltar para casa, dera um prazo ao inquilino para sair da
mansão e contratara Wickham como secretário para auxiliá-lo nas
providências necessárias para realizar a mudança. Wickham tinha sido
demitido seis meses depois. Quando tomava conhecimento de notícias
desalentadoras sobre desavenças públicas ou, pior, de desentendimentos
familiares, Jane sempre assumia a tarefa apaziguadora de achar que nenhum
dos envolvidos havia feito nada de muito errado. Mas quando as
circunstâncias do último fracasso de Wickham foram transmitidas à sua irmã
mais cética, Elizabeth descon ou que a srta. Elliot tivesse cado preocupada
com a reação do pai diante do flerte descarado de Lydia e que as tentativas de
Wickham de conquistar as boas graças da moça, embora provavelmente
tivessem sido recebidas a princípio com uma satisfação nascida do tédio e da
vaidade, deviam ter acabado por causar repulsa.
Uma vez fora de Lambton, Darcy sentiu um grande prazer de respirar
fundo, de inalar o ar fresco e perfumado, de se ver livre do inconfundível
cheiro de prisão — uma mistura de odores de corpos, comida e sabão barato
— e dos ruídos de chaves girando nas fechaduras. E foi com uma enorme
sensação de alívio e a impressão de que ele próprio havia escapado do
cárcere que virou a cabeça de seu cavalo na direção de Pemberley.
5
Pemberley estava tão silenciosa que parecia desabitada. Era óbvio que
Elizabeth e Georgiana ainda não tinham voltado. Darcy mal havia apeado
quando um dos meninos que trabalhavam no estábulo surgiu de trás da casa e
foi andando em sua direção para buscar o cavalo, mas Darcy devia ter
chegado mais cedo do que se esperava, pois não havia ninguém o
aguardando à porta. Entrou no saguão silencioso e seguiu rumo à biblioteca,
onde imaginava que fosse encontrar o coronel ávido por notícias. Mas, para
sua surpresa, encontrou lá o sr. Bennet, sozinho, refestelado numa poltrona de
encosto alto ao pé da lareira, lendo o Edinburgh Review. Estava claro pela
xícara vazia e pelo prato sujo pousados na mesinha ao seu lado que os
empregados já haviam lhe oferecido uma refeição ligeira para ajudá-lo a
recuperar-se da viagem. Depois de um instante de imobilidade ocasionado
pela surpresa, Darcy percebeu que estava extremamente feliz em encontrar
aquele visitante inesperado e, quando o sr. Bennet se levantou da poltrona,
apertou sua mão calorosamente.
“Por favor, senhor, não se incomode comigo. É um prazer tão grande vê-lo
aqui. Já foi servido, espero?”
“Fui, como o senhor pode ver. Stoughton me recebeu com a e ciência de
sempre, e eu encontrei o coronel Fitzwilliam. Depois de me cumprimentar, ele
disse que ia aproveitar minha presença aqui para levar seu cavalo para se
exercitar; tive a impressão de que ele estava um pouco aborrecido por estar
con nado em casa. Também recebi as boas-vindas da admirável sra.
Reynolds, que me garantiu que o quarto onde costumo car está sempre
preparado para mim.”
“Quanto tempo faz que o senhor chegou?”
“Cerca de quarenta minutos. Aluguei uma caleche, embora não seja o
veículo mais confortável para se fazer uma viagem longa. Minha intenção era
vir de carruagem, mas a sra. Bennet se queixou, dizendo que precisava dela
para levar as últimas notícias acerca da triste situação de Wickham para a sra.
Phillips, os Lucas e várias outras partes interessadas em Meryton. Usar uma
caleche de aluguel seria aviltante, não só para ela, mas para toda a família.
Tendo decidido abandoná-la neste momento de a ição, não podia privá-la de
um conforto mais precioso. Então, a carruagem cou com a sra. Bennet. Não
quero de forma alguma lhe dar mais trabalho chegando assim, sem avisar, mas
achei que o senhor caria contente em poder contar com mais um homem na
casa, quando estivesse dando atenção à polícia ou a Wickham. Elizabeth disse
na carta que me escreveu que é provável que o coronel seja convocado em
breve a reassumir suas obrigações militares e que o jovem Alveston tenha de
voltar para Londres.”
“Eles vão partir depois do inquérito, que, segundo fui informado no
domingo, será realizado amanhã. Sua presença aqui, senhor, será um conforto
para as senhoras e uma tranquilidade para mim. O coronel Fitzwilliam já deve
ter lhe contado como foi a prisão de Wickham”, disse Darcy.
“Sucintamente, mas sem dúvida com exatidão. Ele parecia estar me dando
um relatório militar. Quase me senti obrigado a bater continência. Creio que
‘bater continência’ seja a expressão correta; não tenho experiência em
assuntos militares. O marido de Lydia parece ter se superado nessa última
façanha dele, conseguindo ao mesmo tempo oferecer diversão para as massas
e causar o máximo de vergonha possível para a família. O coronel me disse
que o senhor tinha ido a Lambton fazer uma visita ao prisioneiro. Como ele
estava?”
“Bem disposto. O contraste entre sua aparência hoje e no dia seguinte ao
ataque contra Denny é espantoso, mas claro que naquele dia ele estava
embriagado e profundamente abalado. Agora, porém, já recuperou tanto a
coragem quanto a boa aparência. Estava também extremamente otimista em
relação ao resultado do inquérito, e Alveston acha que ele tem razão para
tanto. O fato de nenhuma arma ter sido encontrada certamente pesa a favor
dele.”
Os dois homens se sentaram. Darcy viu que os olhos do sogro se desviavam
em direção ao Edinburgh Review, mas o sr. Bennet resistiu à tentação de
retomar a leitura. Em seguida, disse: “Queria que Wickham decidisse de uma
vez por todas como quer ser visto pelo mundo. Na época em que se casou
com Lydia, ele era tenente da milícia e irresponsável, mas sedutor; cortejava a
todos nós, sorrindo com ar satisfeito, como se tivesse trazido para o
casamento uma renda de três mil libras por ano e uma residência desejável.
Mais tarde, depois que assumiu o cargo no Exército, ele se metamorfoseou
num homem de ação e num herói público, o que certamente foi uma mudança
para melhor e agradou muitíssimo a sra. Bennet. Será possível que agora
tenhamos de passar a vê-lo como um vilão abjeto, que corre o risco, embora
eu espere que remoto, de terminar a vida como um espetáculo público? Ele
sempre buscou a notoriedade, mas não, acho, ao preço dessa aparição nal
que agora corre o risco de ser obrigado a fazer. Não consigo acreditar que
tenha cometido um assassinato. Os malfeitos dele, por mais nocivos que
tenham sido para as vítimas, não envolveram, até onde sei, nenhuma violência
contra outras pessoas nem contra si próprio”.
“Não temos como saber o que há na cabeça de outra pessoa, mas acredito
que ele seja inocente e vou providenciar para que tenha o melhor advogado
possível.”
“É muita generosidade sua, e acho — embora não tenha nenhuma
con rmação — que não é o primeiro ato de generosidade que minha família
deve ao senhor.” Sem esperar resposta, o sr. Bennet acrescentou rapidamente:
“Soube pelo coronel que Elizabeth e a srta. Darcy foram cumprir uma missão
de caridade, levando um cesto de mantimentos para uma família que sofre.
Quando devem voltar?”.
Darcy tirou seu relógio do bolso. “Já devem estar para chegar. Se estiver
inclinado a fazer um pouco de exercício, senhor, poderíamos caminhar em
direção à floresta e encontrá-las no caminho.”
Ficou claro que o sr. Bennet, embora sabidamente sedentário, estava
disposto a abrir mão do Review e do conforto quente da biblioteca em troca
do prazer de surpreender a lha. Foi então que Stoughton apareceu, pediu
desculpas por não estar à porta quando o patrão chegou e foi mais que
depressa buscar os chapéus e os sobretudos dos dois cavalheiros. Darcy
estava tão ansioso quanto o sogro para avistar o landau vindo pelo caminho.
Não teria deixado que as duas mulheres zessem aquela excursão se achasse
que correriam algum tipo de perigo e sabia que Alveston era digno de
con ança e saberia lidar bem com qualquer tipo de di culdade, mas, desde
que Denny fora assassinado, Darcy vinha sendo consumido por uma
ansiedade vaga e talvez irracional sempre que sua esposa não estava à vista, e
foi com alívio que viu o pequeno landau reduzir a velocidade e parar a uma
pequena distância de Pemberley. Ele não havia se dado conta do quanto
cara feliz com a vinda do sr. Bennet até ver Elizabeth sair às pressas do
Landau, correr em direção ao pai e exclamar cheia de alegria, enquanto se
atirava em seus braços: “Ah, pai, que bom que o senhor veio!”.
6
O inquérito foi realizado na estalagem King’s Arms, num salão construído
nos fundos do prédio cerca de oito anos antes com o intuito de abrigar
reuniões locais, incluindo ocasionais festas para dançar que, mesmo sem fazer
jus ao nome, sempre eram chamadas de bailes. O entusiasmo inicial e o
orgulho regional haviam garantido a princípio o sucesso do salão, mas
naqueles tempos difíceis de guerra e carência não havia nem dinheiro nem
ânimo para futilidades, e o salão, agora usado basicamente para reuniões
oficiais, raras vezes ficava cheio e tinha a atmosfera um pouco desalentadora e
abandonada de qualquer lugar um dia destinado a atividades públicas. O
dono da estalagem, Thomas Simpkins, e sua mulher, Mary, tinham feito os
costumeiros preparativos para um evento que sabiam que atrairia uma grande
plateia e, posteriormente, lucros para o bar. À direita da porta havia um
tablado grande o bastante para acomodar uma pequena orquestra e sobre ele
fora posta uma impressionante cadeira de braços de madeira e quatro cadeiras
menores, duas de cada lado, para juízes de paz e outras guras locais
importantes que decidissem comparecer. Todas as outras cadeiras disponíveis
na hospedaria tinham sido levadas para o salão, e a heterogênea coleção
sugeria que os vizinhos também haviam feito contribuições. Quem chegasse
atrasado teria de ficar em pé.
Darcy sabia que o juiz de instrução tinha em alta conta sua própria posição
e suas responsabilidades e caria contente em ver o proprietário de Pemberley
chegar com pompa de carruagem. Darcy teria preferido ir a cavalo, como o
coronel e Alveston pretendiam fazer, mas adotou uma solução intermediária
indo de caleche. Ao entrar no salão, viu que o lugar já estava bastante cheio e
tomado pelo murmurinho que costuma anteceder eventos que geram alguma
expectativa, embora Darcy tivesse a impressão de que as pessoas conversavam
de forma mais contida do que ansiosa. Ao vê-lo, todos se calaram e muitos
levaram a mão à testa e murmuraram saudações. Ninguém, nem mesmo
qualquer dos arrendatários de Pemberley, foi até ele para cumprimentá-lo,
como Darcy sabia que teriam feito em circunstâncias normais, mas julgou que
isso, longe de ser uma afronta da parte deles, devia-se a um sentimento de que
era seu privilégio tomar a iniciativa de dirigir-se a eles.
Olhou ao redor para ver se encontrava alguma cadeira desocupada no
fundo do salão, preferencialmente ao lado de outras que pudesse reservar
para o coronel e Alveston, mas naquele momento houve um rebuliço perto da
porta e uma grande cadeira de vime, com uma pequena roda na frente e duas
bem maiores atrás, foi empurrada porta adentro, sendo manobrada com
di culdade. Nela, encontrava-se sentado com certa imponência o dr. Josiah
Clitheroe, a perna direita apoiada numa tábua saliente, o pé enrolado de
maneira intrincada com uma atadura de linho branco. Os que estavam
sentados na frente do salão desapareceram mais que depressa e o dr.
Clitheroe foi empurrado até lá, o que foi uma tarefa um pouco árdua pois a
rodinha da frente, ziguezagueando freneticamente, mostrava-se recalcitrante.
As cadeiras dos dois lados dele foram imediatamente desocupadas e, numa
delas, ele pousou sua cartola. Em seguida, fez sinal para Darcy, chamando-o
para sentar-se do outro lado. O círculo de cadeiras em volta deles agora
estava vazio, oferecendo-lhes ao menos alguma chance de conversar
reservadamente.
“Não creio que isso vá tomar o dia inteiro”, disse o dr. Clitheroe. “Jonah
Makepeace vai manter tudo sob controle. É uma situação difícil para você,
Darcy, e claro que também para a sra. Darcy. Espero que ela esteja bem.”
“Ela está sim, senhor, felizmente.”
“É claro que você não pode participar de forma alguma da investigação
desse crime, mas sem dúvida Hardcastle o mantém a par das novidades.”
“Ele me revelou tudo o que achou prudente revelar. A posição dele também
é um pouco difícil”, disse Darcy.
“Bem, ele não precisa exagerar na cautela. Vai manter o primeiro delegado
informado de tudo, como é seu dever, e me consultar quando for necessário,
embora eu não creia que possa ajudar muito. Ele, o bailio Brownrigg e o
subdelegado Mason parecem estar mantendo tudo sob controle. Soube que já
conversaram com todos os moradores de Pemberley e caram satisfeitos com
o fato de todos vocês terem álibis, o que não é de surpreender: na noite da
véspera do baile de Lady Anne, todos por certo tinham coisa melhor a fazer
do que se embrenhar na oresta de Pemberley para cometer um assassinato.
Fui informado de que Lorde Hartlep também tem um álibi, então pelo menos
você e ele estão livres dessa preocupação. Como ele ainda não é um lorde,
não seria necessário, caso fosse acusado, realizar o julgamento na Câmara dos
Lordes, um procedimento pitoresco, mas dispendioso. Você também vai car
aliviado em saber que Hardcastle conseguiu encontrar um parente do capitão
Denny através do coronel do regimento dele. Parece que só tinha um parente
vivo, uma tia idosa que reside em Kensington e que ele raramente visitava, mas
que lhe dava regularmente ajuda nanceira. Ela agora tem quase noventa anos
e está velha e frágil demais para se interessar pelo desenrolar do caso, mas
pediu que o corpo de Denny, que já foi liberado pelo juiz de instrução, fosse
transportado para Kensington para ser enterrado lá.”
“Se Denny tivesse morrido na oresta por acidente, ou se nós soubéssemos
quem o matou, seria adequado que eu ou a sra. Darcy lhe enviássemos uma
carta de condolências, mas, nas atuais circunstâncias, isso pode ser
imprudente e até mal recebido”, disse Darcy. “É estranho como até os
acontecimentos mais terríveis e insólitos têm implicações sociais, e foi
bondade sua me passar essa informação, que sei que deixará a sra. Darcy
aliviada. E quanto aos arrendatários que vivem nas minhas terras? Não gostaria
de perguntar diretamente a Hardcastle, mas queria saber se todos foram
inocentados.”
“Pelo que eu soube, sim. A maioria estava em casa, e os que nunca
conseguem resistir à tentação de sair para fortalecer o ânimo na estalagem
local, mesmo numa noite de tempestade, foram vistos por várias testemunhas,
algumas das quais estavam sóbrias quando interrogadas e podem ser
consideradas con áveis. Ao que parece, ninguém viu nem ouviu nenhuma
pessoa estranha na vizinhança. Você já deve saber, claro, que quando
Hardcastle foi a Pemberley duas mocinhas que trabalham como empregadas
domésticas vieram com a história de que tinham visto o fantasma da sra. Reilly
vagando pela oresta. Como é apropriado, ela prefere se manifestar nas noites
de lua cheia.”
“É uma velha superstição”, disse Darcy. “Aparentemente, segundo nos foi
dito depois, as duas moças foram até a oresta por causa de um desa o, e
Hardcastle não levou a história a sério. Achei na ocasião que estavam dizendo
a verdade e podiam mesmo ter visto uma mulher na floresta naquela noite.”
“O bailio Brownrigg conversou com elas na presença da sra. Reynolds”,
disse Clitheroe. “Elas a rmaram com espantosa rmeza que tinham visto o
sombrio de uma mulher na oresta dois dias antes do assassinato, e que ela
fez um gesto ameaçador, depois se en ou no meio das árvores e sumiu.
Também disseram com toda a certeza que a mulher que viram não era
nenhuma das duas que moram na cabana da oresta, embora seja difícil saber
como podem ter tanta certeza disso se a mulher estava de preto e desapareceu
assim que uma das moças gritou. Mas, mesmo se houvesse uma mulher na
oresta, isso não tem muita importância. Não foi uma mulher que cometeu
aquele crime.”
“Wickham está cooperando com Hardcastle e com a polícia?”, perguntou
Darcy.
“Pelo que eu soube, o comportamento dele é instável. Às vezes responde as
perguntas de modo razoável e, outras vezes, começa a vociferar que ele, um
homem inocente, está sendo atormentado pela polícia. Você obviamente já
sabe que um maço de notas no valor de trinta libras foi encontrado no bolso
do casaco dele. Pois bem, Wickham continua se negando terminantemente a
dizer de onde veio esse dinheiro, limitando-se apenas a declarar que foi um
empréstimo que contraiu para pagar uma dívida de honra e que havia feito um
juramento solene de que nada revelaria sobre isso. Hardcastle, como seria de
esperar, achou que Wickham poderia ter tirado o dinheiro do corpo do
capitão Denny, mas nesse caso certamente haveria alguma mancha de sangue
nas notas, considerando que as mãos de Wickham estavam ensanguentadas. E
o dinheiro não estaria tão bem arrumado dentro da carteira de Wickham,
imagino. Vi as notas e elas estavam novas em folha. Além disso, ao que
parece, o capitão Denny disse ao dono da estalagem que não tinha dinheiro.”
Os dois caram calados por um momento e então Clitheroe disse: “Entendo
que Hardcastle relute em partilhar informações com você, tanto para a
proteção dele quanto para a sua, mas, já que ele acredita que toda a família,
todas as visitas e todos os empregados de Pemberley têm álibis satisfatórios,
me parece uma cautela desnecessária omitir de você descobertas importantes.
Tenho de lhe dizer, então, que ele acha que a polícia descobriu a arma do
crime: uma pedra grande, achatada e de bordas arredondadas que foi
encontrada debaixo de algumas folhas a cerca de cinquenta jardas da clareira
onde o corpo de Denny estava”.
Darcy conseguiu disfarçar sua surpresa e, olhando bem para a frente,
perguntou em voz baixa: “Que indícios existem de que essa de fato foi a arma
do crime?”.
“Nenhum indício de nitivo, já que não havia nenhum vestígio de sangue
nem de cabelo na pedra, mas isso não é surpresa. Como você deve se
lembrar, naquela noite, depois da ventania, caiu uma chuva forte, de modo
que as folhas deviam estar encharcadas. Mas vi a pedra e ela certamente tem o
tamanho e o formato necessários para causar um ferimento como aquele.”
Darcy manteve a voz baixa. “Todas as pessoas que moram nas terras de
Pemberley foram proibidas de ir à oresta, mas sei que a polícia tem feito
buscas constantes lá à procura das armas. O senhor sabe qual dos o ciais fez
a descoberta?”
“Não foi Brownrigg nem Mason. Como estavam precisando de mais
homens, chamaram subdelegados da paróquia vizinha, entre eles Joseph
Joseph. Aparentemente, os pais dele gostavam tanto do próprio sobrenome
que o deram ao lho também como nome de batismo. Ele parece ser um
homem consciencioso e con ável, mas acho que não muito inteligente. Ele
devia ter deixado a pedra no lugar onde estava e chamado os outros o ciais
como testemunhas. Em vez disso, ele a levou com ar vitorioso para o bailio
Brownrigg.”
“Então não há como provar que ela estava onde ele disse que a encontrou?”
“Imagino que não. Segundo fui informado, havia outras pedras de
diferentes tamanhos no local, todas parcialmente enterradas e cobertas de
folhas, mas não existem provas de que aquela pedra especí ca estava entre
elas. Alguém pode ter despejado o conteúdo de um carrinho de mão ali, ou
ter derrubado o carrinho por acidente, anos atrás, provavelmente na época em
que seu bisavô mandou construir a cabana, quando o material para a
construção foi transportado pela floresta.”
“Hardcastle e a polícia vão apresentar essa pedra agora durante o
inquérito?”
“Parece que não. Makepeace é da rme opinião de que, como não há
como provar que aquela pedra foi a arma do crime, não se pode considerá-la
um indício. O júri será apenas informado de que uma pedra foi encontrada,
talvez nem isso. Makepeace está preocupado em não deixar que o inquérito
acabe se transformando num julgamento. Vai deixar claro os deveres dos
jurados e explicar que não se pode usurpar os poderes do tribunal do
condado.”
“Então o senhor acha que vão levar Wickham a julgamento?”
“Sem dúvida, já que entenderão o que ele disse como uma con ssão. Seria
espantoso se não levassem. Ah, vejo que o sr. Wickham já chegou e parece
surpreendentemente tranquilo para alguém na situação abominável em que ele
se encontra.”
Darcy tinha notado que havia três cadeiras vazias perto do tablado sendo
vigiadas por subdelegados. Wickham, algemado e acompanhado por dois
guardas da prisão, foi conduzido até a cadeira do meio, e então os dois
guardas se sentaram nas outras duas. A postura de Wickham beirava a
impassibilidade, enquanto examinava sua potencial plateia com aparente
pouco interesse, sem xar os olhos em rosto algum. A mala contendo suas
roupas tinha sido levada para a prisão depois que Hardcastle a liberou, e
Wickham usava o que obviamente era seu melhor paletó, enquanto o que
podia ser visto de sua camisa atestava o esmero e a habilidade da lavadeira de
Highmarten. Sorrindo, ele se virou para um dos guardas, que respondeu
balançando a cabeça. Observando-o, Darcy acreditou estar vendo algo do
jovem o cial de milícia, belo e sedutor, que tanto havia encantado as moças
de Meryton.
Alguém bradou uma ordem, o murmurinho cessou e o juiz de instrução,
Jonah Makepeace, entrou no salão com Sir Selwyn Hardcastle e, depois de
fazer uma mesura para o júri, se dirigiu à sua cadeira, convidando Sir Selwyn
a sentar-se à sua direita. Makepeace era um homem franzino, com um rosto
pálido que em outros poderia ser visto como um sinal de falta de saúde. Ele
exercia a função de juiz criminal fazia vinte anos e tinha orgulho do fato de,
aos sessenta anos, ter presidido absolutamente todos os inquéritos realizados
durante esse período quer em Lambton, quer na estalagem King’s Arms. Tinha
um nariz no e comprido e uma boca de formato curioso, com um lábio
superior muito carnudo. Seus olhos, sob sobrancelhas nas como linhas
traçadas a lápis, ainda eram tão argutos como quando tinha vinte anos. Era
muito respeitado como advogado e tinha uma carreira de sucesso não só em
Lambton, mas também em outros lugares. Cada vez mais próspero e com
clientes particulares aguardando ansiosos pelos seus serviços, nunca era
indulgente com testemunhas que não fossem capazes de prestar seu
depoimento de modo claro e conciso. Havia um relógio pendurado na parede
do fundo do salão, ao qual dirigiu um olhar demorado e intimidante.
Quando Makepeace entrou, todos os presentes haviam se posto de pé,
tornando a sentar-se apenas depois que ele tomou seu assento. Hardcastle
estava sentado à sua direita e os dois policiais à sua frente, na primeira leira
de cadeiras dispostas diante do tablado. Os jurados, que estavam conversando
uns com os outros numa roda, ocuparam suas cadeiras e depois
imediatamente se levantaram. Como magistrado, Darcy já havia comparecido a
vários inquéritos e viu que o grupo costumeiro de guras notáveis da
comunidade local havia sido convocado para o júri: George Wainwright, o
boticário; Frank Stirling, dono da mercearia de Lambton; Bill Mullins, o
ferreiro da aldeia de Pemberley; e John Simpton, o agente funerário, vestido
como sempre com um fúnebre terno preto, que se dizia que herdara do pai.
Os outros eram todos agricultores e muitos haviam chegado no último minuto,
parecendo esbaforidos e acalorados. Nunca era uma boa hora para que se
ausentassem de suas lavouras.
O juiz criminal voltou-se para o guarda da prisão. “Pode retirar as algemas
do sr. Wickham. Nenhum prisioneiro jamais fugiu da minha jurisdição.”
Isso foi feito em silêncio e Wickham, depois de esfregar os pulsos, cou
quieto, seus olhos percorrendo o salão como se procurassem um rosto
familiar. O juramento foi proferido, durante o qual Makepeace fitou o júri com
a intensidade cética de um homem que está cogitando comprar um cavalo de
qualidade dúbia, fazendo em seguida seu habitual anúncio preliminar.
“Cavalheiros, já nos encontramos antes e acho que os senhores sabem qual
é seu dever. É ouvir atentamente os depoimentos, analisar com cuidado os
indícios e declarar qual foi, na visão dos senhores, a causa da morte do
capitão Martin Denny, cujo corpo foi encontrado na floresta de Pemberley por
volta das dez horas da noite de sexta-feira, dia 14 de outubro. Os senhores
não estão aqui para participar de um julgamento criminal nem para ensinar a
polícia a conduzir uma investigação. Das opções que têm diante de si, podem
considerar descartar morte por acidente e assassinato involuntário, e um
homem não comete suicídio aplicando um golpe violento na própria nuca.
Isso pode logicamente levá-los à conclusão de que essa morte foi um
homicídio voluntário e os senhores terão então dois possíveis veredictos a
considerar. Se acharem que não existem indícios que mostrem quem foi o
responsável, darão o veredicto de homicídio voluntário cometido por uma
pessoa ou por pessoas desconhecidas. Deixei claras as opções que têm, mas
preciso ressaltar que o veredicto acerca da causa morte cabe inteiramente aos
senhores. Se os indícios os levarem à conclusão de que sabem quem foi o
assassino, os senhores devem revelar o nome dele e então, como no caso de
qualquer delito, o acusado será preso e levado a julgamento na próxima
sessão do tribunal de Derby. Se tiverem perguntas a fazer a uma testemunha,
por favor, levantem a mão e falem com clareza. Nós agora vamos começar, e
a primeira pessoa que vou chamar é Nathaniel Piggott, proprietário da
estalagem Green Man, que dará testemunho do início da última viagem desse
desventurado cavalheiro.”
Depois disso, para alívio de Darcy, o inquérito prosseguiu com considerável
ligeireza. O sr. Piggott claramente tinha sido aconselhado a falar o menos
possível no tribunal e, após fazer o juramento, apenas con rmou que o sr. e a
sra. Wickham e o capitão Denny haviam chegado à estalagem numa caleche
alugada na tarde de sexta-feira, um pouco depois das quatro horas, e pedido
para serem levados naquela noite, na caleche que ele mantinha na estalagem,
até Pemberley, onde deixariam a sra. Wickham. Em seguida, os dois
cavalheiros seguiram na caleche até a estalagem King’s Arms, em Lambton. Ele
não tinha ouvido nenhuma discussão entre os três nem no decorrer da tarde,
nem quando entraram na caleche. O capitão Denny havia cado calado a
maior parte do tempo — ele parecia ser um homem calado — e o sr. Wickham
bebera bastante, mas, na sua opinião, não parecia ter cado bêbado nem
incapacitado.
O segundo a testemunhar foi George Pratt, o cocheiro, cujo depoimento
obviamente estava sendo aguardado com ansiedade. Ele descreveu a viagem
de modo bastante detalhado, referindo-se sempre ao comportamento dos
cavalos, que na verdade eram éguas e se chamavam Betty e Millie. Elas vinham
sendo obedientes até que entraram na oresta, quando então caram tão
nervosas que ele teve di culdade de fazer com que seguissem adiante. Os
cavalos sempre detestavam entrar na oresta em noite de lua cheia, por causa
do fantasma da sra. Reilly. Talvez os cavalheiros tivessem discutido dentro da
caleche, mas ele não ouviu porque estava tentando controlar as éguas. Então,
o capitão Denny botou a cabeça para fora da janela, mandou que ele parasse
e depois desceu da caleche. Ele ouviu o capitão dizer que o sr. Wickham ia ter
de se arranjar sozinho e que ele não ia tomar parte naquilo — ou coisa
parecida. Aí o capitão Denny saiu correndo oresta adentro e o sr. Wickham
foi atrás dele. Foi um pouco depois disso que se ouviram tiros, mas não sabia
dizer quanto tempo depois. Então, a sra. Wickham, que estava num estado de
nervos terrível, gritou para que tocasse para Pemberley, e foi isso o que ele
fez. As éguas àquela altura estavam tão apavoradas que saíram em disparada,
enquanto ele penava para segurar as duas, morrendo de medo de que a
caleche virasse antes que chegassem a Pemberley. Em seguida, ele descreveu a
viagem de volta, incluindo a hora em que parou a caleche para que o coronel
Fitzwilliam fosse até a cabana da oresta ver como estava a família que
morava lá. Ele achava que o coronel tinha levado uns dez minutos para voltar.
Darcy cou com a impressão de que o júri e provavelmente Lambton e a
aldeia de Pemberley inteira já conheciam a história de Pratt. Seu testemunho
foi acompanhado por gemidos e suspiros solidários, principalmente quando
ele falava da aflição de Betty e Millie. Ninguém fez nenhuma pergunta.
O coronel Fitzwilliam, visconde Hartlep, foi então chamado e o juramento
prestado com impressionante autoridade. O coronel relatou brevemente, mas
com rmeza, sua participação nos acontecimentos daquela noite, incluindo a
descoberta do corpo, relato que foi repetido, também sem emoção nem
oreios, por Alveston e nalmente por Darcy. O juiz de instrução perguntou
aos três se Wickham havia falado alguma coisa quando eles o encontraram, e
a danosa admissão de Wickham foi repetida pelos três.
Antes que qualquer outra pessoa tivesse chance da falar, Makepeace fez a
pergunta fundamental. “Sr. Wickham, o senhor está decidido a manter a
declaração de que é inocente, de que não assassinou o capitão Denny. Por
que, então, quando foi encontrado ajoelhado ao lado do corpo, disse mais de
uma vez que tinha matado seu amigo e que a morte dele era sua culpa?”
A resposta veio sem hesitação. “Porque, senhor, o capitão Denny saiu da
caleche por estar indignado com meu plano de deixar a sra. Wickham em
Pemberley quando ela não tinha sido convidada nem era esperada. Também
achei que, se não estivesse bêbado, eu teria conseguido evitar que ele saísse
da caleche e se embrenhasse na floresta.”
Clitheroe sussurrou para Darcy: “Isso não foi nem um pouco convincente. O
idiota é con ante demais. Ele vai ter de se sair melhor nas sessões do tribunal,
se quiser salvar o pescoço. E, afinal, ele estava bêbado ou não estava?”.
No entanto, nenhuma outra pergunta foi feita e, ao que pareceu, Makepeace
se contentou em deixar que o júri formasse sua opinião sem a in uência dos
comentários dele e estava receoso de incentivar as testemunhas a especular
sobre o que exatamente Wickham quisera dizer com suas palavras. O bailio
Brownrigg testemunhou em seguida e sentiu um óbvio prazer em descrever
sem pressa as atividades da polícia, incluindo as buscas que haviam sido feitas
na oresta. Não se tinha notícia de que nenhuma pessoa estranha tivesse sido
vista nas cercanias, todos os que estavam em Pemberley e em todos os chalés
da propriedade tinham álibis e a investigação ainda estava em andamento. O
dr. Belcher deu um depoimento recheado de termos médicos, que a plateia
ouviu com respeito e Makepeace com óbvia irritação, antes de expressar em
linguagem clara a opinião de que a causa da morte fora um violento golpe na
nuca e de que o capitão Denny não poderia ter sobrevivido a um ferimento
como aquele por mais do que alguns minutos, se tanto, embora fosse
impossível determinar com precisão a hora da morte. Fora encontrada uma
pedra achatada que poderia ter sido usada pelo agressor e que, na opinião
dele, tinha o tamanho e o peso adequados para produzir tal ferimento se
atirada com força, mas não havia nenhuma prova que ligasse aquela pedra
especí ca ao crime. Apenas uma pessoa levantou a mão antes que o médico
descesse da tribuna das testemunhas.
“Bem, Frank Stirling, eu estava mesmo estranhando o senhor ainda não ter
se manifestado. O que tem a perguntar?”, disse Makepeace.
“Só uma coisa, senhor. Pelo que pudemos entender, a sra. Wickham ia ser
deixada em Pemberley para ir ao baile na noite seguinte, mas sem o marido.
Imagino então que o sr. e a sra. Darcy não queriam receber o cunhado como
convidado.”
“E que relevância quem a sra. Darcy convidou ou deixou de convidar para
o baile de Lady Anne tem em relação à morte do capitão Denny ou ao
testemunho que o dr. Belcher acabou de prestar?”
“É só que, se as coisas entre o sr. Darcy e o sr. Wickham estavam tão ruim
assim e se o sr. Wickham não era tido como uma pessoa decente para ser
recebida em Pemberley, então, no meu entender, isso pode dizer alguma coisa
sobre o caráter dele. É muito estranho um homem proibir o cunhado de ir à
sua casa, a não ser que o cunhado seja um homem violento ou dado a criar
desavença.”
Makepeace pareceu re etir brevemente sobre essa declaração antes de
responder que as relações entre o sr. Darcy e o sr. Wickham, quer fossem ou
não como as que normalmente existem entre cunhados, não poderiam ter
relevância alguma em relação à morte do capitão Denny. O capitão Denny
fora assassinado, e não o sr. Darcy. “Vamos tentar nos ater aos fatos
relevantes. O senhor deveria ter feito essa pergunta quando o sr. Darcy estava
prestando depoimento, se achava que era relevante. No entanto, o sr. Darcy
pode ser chamado de volta à tribuna das testemunhas para responder se o sr.
Wickham era de modo geral um homem violento.”
Isso foi feito imediatamente e, em resposta à pergunta de Makepeace,
Darcy, depois de ser lembrado de que ainda estava sob juramento, declarou
que, até onde ele sabia, o sr. Wickham nunca tivera tal reputação e ele nunca
o vira ser violento. Já fazia alguns anos que os dois não se encontravam, mas
na época em que eram mais próximos o sr. Wickham era tido de modo geral
como um homem pacífico e socialmente afável.
“Suponho que essa resposta o satisfaça, sr. Stirling. Ele era tido como um
homem pací co e afável. Mais alguma pergunta? Não? Então sugiro que agora
o júri delibere sobre o veredicto.”
Depois de uma breve troca de ideias, os jurados decidiram que seria melhor
fazer isso reservadamente e, após serem dissuadidos de irem para o local de
sua escolha, o bar, dirigiram-se ao pátio e lá conversaram em voz baixa
durante dez minutos num canto afastado. Quando voltaram para o salão,
Makepeace lhes perguntou formalmente qual era o veredicto. Frank Stirling
pôs-se de pé e leu o que estava escrito num pequeno caderno, determinado a
proferir a decisão dos jurados com a necessária exatidão e rmeza. “Nós
achamos, senhor, que o que causou a morte do capitão Denny foi um golpe
na nuca e que quem desferiu esse golpe fatal foi George Wickham e que,
portanto, o capitão Denny foi assassinado pelo mencionado George
Wickham.”
“E esse é o veredicto de todos os senhores?”, perguntou Makepeace.
“É sim, senhor.”
Depois de olhar para o relógio na parede, Makepeace tirou os óculos e
guardou-os num estojo. Em seguida, disse: “Após as formalidades necessárias,
o sr. Wickham será levado a julgamento na próxima sessão do tribunal de
Derby. Obrigado, cavalheiros. Os senhores estão dispensados”.
Darcy pensou consigo que o que ele imaginara que fosse ser um processo
repleto de di culdades linguísticas e constrangimentos terminara por ser algo
quase tão rotineiro quanto a reunião mensal dos paroquianos. Todos haviam
se mostrado interessados e empenhados, mas não houvera nenhum rebuliço
nem momentos altamente dramáticos, e Darcy tinha de admitir que Clitheroe
tinha razão, aquele resultado era inevitável. Mesmo que o júri tivesse concluído
que o assassinato fora cometido por uma ou mais pessoas desconhecidas,
Wickham continuaria sendo mantido preso por ser o principal suspeito e a
investigação policial, concentrada nele, teria prosseguido quase certamente
com o mesmo resultado.
O empregado de Clitheroe reapareceu para assumir o comando da cadeira
de rodas. Consultando seu relógio, Clitheroe disse: “Três quartos de hora do
início ao m. Imagino que tudo tenha transcorrido exatamente como
Makepeace planejava, e o veredicto dificilmente poderia ter sido outro”.
“E no tribunal, o senhor acha que o veredito será o mesmo?”
“De forma alguma, Darcy, de forma alguma. Eu poderia montar uma defesa
muito e caz. Sugiro que você arranje um bom advogado para ele e procure
fazer com que o caso seja transferido para Londres. Henry Alveston poderá
orientá-lo acerca do procedimento adequado; meus conhecimentos
provavelmente estão desatualizados. Aquele rapaz é um tanto radical, pelo que
ouço, apesar de ser herdeiro de um baronato muito antigo, mas é sem dúvida
um advogado inteligente e bem-sucedido, embora já esteja mais que na hora
de ele encontrar uma esposa e se aquietar em sua propriedade. É fundamental,
para a paz e a segurança da Inglaterra, que os nobres morem em suas casas
como bons proprietários de terra e patrões, compassivos com seus
empregados, caridosos com os pobres e empenhados, como juízes de paz, a
promover a tranquilidade e a ordem em suas comunidades. Se os aristocratas
da França tivessem feito isso, jamais teria havido uma revolução. Mas esse caso
é interessante e o resultado vai depender das respostas a duas perguntas: por
que o capitão Denny saiu correndo oresta adentro e o que George Wickham
quis dizer quando falou que o que tinha acontecido era culpa dele. Vou
acompanhar os próximos acontecimentos com interesse. Fiat justitia ruat
caelum. Tenha um bom dia, Darcy.”
Então, a cadeira de rodas de Clitheroe foi empurrada rumo à porta,
novamente com certa dificuldade, e ele se foi.
7
Para Darcy e Elizabeth, o inverno de 1803-4 parecia se estender como um
longo charco negro que tinham de encontrar coragem para atravessar,
sabendo que a primavera inevitavelmente traria uma nova provação e talvez
um horror ainda maior, cuja lembrança turvaria o resto de suas vidas. Mas
aqueles meses tinham de ser vividos de alguma forma e sem permitir que a
a ição e a angústia que os dois sentiam contaminassem a vida de Pemberley
nem destruíssem a paz e a con ança dos que dependiam deles. Felizmente,
essa preocupação mostrou-se em grande parte infundada. Apenas Stoughton,
a sra. Reynolds e os Bidwell haviam conhecido Wickham quando menino, e
os empregados mais novos pouca curiosidade tinham pelo que quer que
acontecesse fora de Pemberley. Darcy dera ordens para que ninguém tocasse
no assunto do julgamento, e a aproximação do Natal despertou mais interesse
e alvoroço do que o destino de um homem de quem a maioria dos
empregados nunca ouvira falar.
O sr. Bennet era uma presença silenciosa e tranquilizadora na casa, um
pouco como um fantasma benigno e familiar. Passava parte do tempo
conversando com o genro na biblioteca, quando Darcy conseguia ter algum
tempo livre. Sendo ele próprio inteligente, Darcy valorizava a inteligência em
outras pessoas. De vez em quando, o sr. Bennet fazia uma visita à lha mais
velha em Highmarten para se certi car de que os livros da biblioteca de
Bingley estavam a salvo do excesso de zelo das criadas e para fazer uma nova
lista de livros a serem adquiridos. No entanto, ele cou apenas três semanas
em Pemberley. A sra. Bennet lhe enviou uma carta dizendo andar ouvindo
ruídos de passos furtivos ao redor da casa todas as noites e se queixando de
sentir o coração latejar e sofrer palpitações constantes. O sr. Bennet precisava
voltar para casa imediatamente para lhe oferecer proteção. Por que ele estava
tão preocupado com o assassinato de outras pessoas quando, se ele não
voltasse logo, era muito provável que houvesse outro em Longbourn?
A ausência dele foi sentida por todos em Pemberley, e a sra. Reynolds
comentou com Stoughton: “É estranho, sr. Stoughton, que sintamos tanta falta
do sr. Bennet agora que ele foi embora, quando raramente o víamos quando
ele estava aqui”.
Tanto Elizabeth quanto Darcy buscaram consolo no trabalho, e havia muita
coisa a fazer. Darcy tinha em mãos alguns projetos de reformas de alguns dos
chalés da propriedade e andava mais ocupado do que nunca cuidando dos
problemas da paróquia. A guerra contra a França, que fora declarada no
último mês de maio, já gerava inquietação e pobreza; o preço do pão havia
subido e a colheita fora fraca. Darcy estava muito envolvido no socorro a seus
arrendatários e, diariamente, uma torrente de crianças acorria à cozinha da
mansão para apanhar grandes latas de uma sopa nutritiva, tão grossa e cheia
de carne que mais parecia um guisado. Poucos jantares foram oferecidos em
Pemberley nesse período e apenas para amigos chegados, mas os Bingley
vinham regularmente para lhes dar coragem e auxílio, e o sr. e a sra. Gardiner
enviavam cartas com frequência.
Depois do inquérito, Wickham fora transferido para a nova prisão do
condado, em Derby, onde o sr. Bingley continuou a visitá-lo com
regularidade, relatando que em geral o encontrava bem disposto. Na semana
antes do Natal, eles nalmente tiveram a notícia de que a solicitação para que
o julgamento fosse transferido para Londres fora aceita e Wickham seria
julgado no tribunal de Old Bailey. Elizabeth estava determinada a acompanhar
o marido no dia do julgamento, embora não houvesse hipótese de estar
presente no tribunal. A sra. Gardiner escreveu uma carta carinhosa
convidando-os a carem hospedados em sua casa, na Gracechurch Street,
enquanto estivessem em Londres, e o convite foi aceito com gratidão. Antes do
Ano-Novo, George Wickham foi transferido para a prisão Coldbath, em
Londres, e o sr. Gardiner assumiu a tarefa de visitá-lo regularmente e levar o
dinheiro enviado por Darcy para garantir o conforto de Wickham e seu
prestígio com os carcereiros e os outros prisioneiros. Segundo o sr. Gardiner,
Wickham continuava otimista e um dos capelães da prisão, o reverendo
Samuel Cornbinder, fazia-lhe visitas regulares. O sr. Cornbinder era conhecido
por sua habilidade no xadrez, jogo que havia ensinado a Wickham e ao qual
o prisioneiro vinha dedicando boa parte de seu tempo. O sr. Gardiner achava
que o reverendo era mais bem-vindo como adversário de xadrez do que
como sacerdote, mas Wickham parecia de fato gostar dele, e o xadrez, que
despertara em Wickham um interesse que beirava a obsessão, era um antídoto
eficaz contra seus ocasionais acessos de raiva e desespero.
O Natal chegou e a festa anual das crianças, para a qual todas aquelas que
moravam na propriedade eram convidadas, foi realizada como sempre. Tanto
Darcy quanto Elizabeth acharam que os pequenos não deviam ser privados
dessa alegria, principalmente em tempos tão difíceis. Presentes foram
escolhidos e entregues a todos os arrendatários, bem como a todos os
empregados que trabalhavam dentro e fora da casa, uma tarefa que manteve
Elizabeth e a sra. Reynolds bastante ocupadas. Quando não estava cuidando
desses afazeres, Elizabeth procurava manter a cabeça ocupada seguindo um
programa planejado de leitura e aperfeiçoando sua habilidade ao piano com a
ajuda de Georgiana. Com menos obrigações sociais, Elizabeth tinha mais
tempo para dedicar aos lhos e para visitar os pobres, os idosos e os doentes,
e tanto ela quanto Darcy descobriram que, com dias tão repletos de
atividades, era possível de vez em quando manter afastados até os mais
persistentes pesadelos.
Houve uma boa notícia. Louisa andava muito mais alegre desde que Georgie
voltara para perto da mãe e a sra. Bidwell achava a vida um pouco mais fácil
agora que o choro do menino não estava mais angustiando Will. Depois do
Natal, as semanas pareceram de repente começar a passar bem mais rápido à
medida que a data do julgamento se aproximava.
livro cinco
O JULGAMENTO
1
O julgamento estava marcado para a quinta-feira, dia 22 de março, às onze
horas, no tribunal de Old Bailey. Alveston estaria em seus aposentos perto do
Middle Temple e havia se proposto a ir na véspera à casa dos Gardiner, na
Gracechurch Street, junto com Jeremiah Mickledore, o advogado de defesa de
Wickham, para explicar como seriam os procedimentos do dia seguinte e para
aconselhar Darcy acerca do depoimento que ele teria de prestar. Saber que
teria de passar dois dias na estrada causava ansiedade em Elizabeth e, então,
eles decidiram parar em Banbury para pernoitar, o que signi cava que
chegariam a Londres na tarde de quarta-feira, 21 de março. Quando os Darcy
iam permanecer um tempo fora de Pemberley, normalmente um grupo dos
empregados mais antigos postava-se à porta para lhes dar adeus e desejar boa
viagem, mas aquela partida foi muito diferente das outras e apenas Stoughton
e a sra. Reynolds estavam lá, com expressões graves no rosto, para fazer votos
de que tudo corresse bem e garantir-lhes que a vida em Pemberley continuaria
a transcorrer como deveria enquanto eles estivessem ausentes.
Abrir a residência londrina dos Darcy acarretava um considerável transtorno
doméstico, e quando iam à cidade para passar pouco tempo, fosse para fazer
compras ou para ver uma peça de teatro nova ou uma exposição, fosse
porque Darcy tinha negócios a tratar com seu advogado ou precisava ir ao
alfaiate, eles costumavam hospedar-se na casa dos Hurst, quando então a srta.
Bingley se juntava ao grupo. A sra. Hurst preferia receber qualquer visita a não
receber nenhuma e tinha orgulho de exibir o esplendor de sua casa e a grande
quantidade de carruagens e criados que possuía, enquanto a srta. Bingley
tinha o hábito de mencionar habilmente os nomes de seus amigos ilustres
sempre que podia e de transmitir os últimos boatos sobre escândalos da alta
sociedade. Elizabeth se divertia com isso como costumava se divertir com as
pretensões e os absurdos de seus vizinhos, desde que o caso não fosse digno
de compaixão, enquanto Darcy era da opinião de que se a harmonia familiar
exigia que ele se encontrasse com pessoas com quem pouco tinha em comum,
era melhor que isso se desse à custa dos parentes e não dele. Naquela
ocasião, no entanto, eles não haviam recebido nenhum convite dos Hurst nem
da srta. Bingley. Há certos acontecimentos dramáticos, certa notoriedade, dos
quais é prudente manter distância, e os Darcy não esperavam ver nem os Hurst
nem a srta. Bingley durante o período do julgamento. Mas o convite dos
Gardiner fora feito imediata e calorosamente. Naquela casa de família
confortável e sem ostentações, eles encontrariam a tranquilidade e a segurança
da familiaridade, vozes suaves que não fariam exigências nem pediriam
explicações e uma paz que os ajudaria a se preparar para a provação que
tinham pela frente.
Contudo, quando chegaram ao centro de Londres e as árvores e a extensão
verde do Hyde Park caram para trás, Darcy teve a sensação de estar
entrando num lugar desconhecido, de respirar um ar acre e viciado e de estar
cercado por uma população enorme e ameaçadora. Nunca tinha se sentido
tão estrangeiro em Londres. Era difícil acreditar que o país estava em guerra;
todos pareciam apressados, andavam como se estivessem absortos em suas
próprias preocupações, mas de vez em quando ele notava alguém lançar um
olhar de inveja ou de admiração para sua carruagem. Nem ele nem Elizabeth
estavam dispostos a tecer qualquer comentário quando chegaram às ruas mais
largas e conhecidas, onde o cocheiro avançava com todo o cuidado por entre
as espalhafatosas fachadas das lojas, iluminadas com tochas, e as caleches,
carroças e carruagens particulares que tornavam as vias quase intransitáveis.
Por m, porém, entraram na Gracechurch Street e, quando ainda estavam se
aproximando da casa dos Gardiner, a porta se abriu e o sr. e a sra. Gardiner
foram correndo para fora para lhes dar as boas-vindas e conduzir o cocheiro
ao estábulo, nos fundos. Minutos depois a bagagem foi descarregada e
Elizabeth e Darcy adentraram a paz e a segurança do que seria o refúgio dos
dois até o julgamento terminar.
2
Alveston e Jeremiah Mickledore chegaram depois do jantar para dar breves
instruções e conselhos a Darcy e, tendo expressado suas esperanças e votos
de que tudo corresse bem, foram embora em menos de uma hora. Aquela viria
a ser a pior noite da vida de Darcy. Sendo de uma hospitalidade infalível, a
sra. Gardiner havia providenciado para que o quarto contivesse tudo o que
fosse necessário ao conforto dele e de Elizabeth, não só as duas camas pelas
quais eles tanto ansiavam, mas também uma mesa entre elas com uma jarra de
água, livros e uma lata de biscoitos. A Gracechurch Street nunca cava
complemente silenciosa, mas os ribombos e rangidos de carruagens e os
ocasionais ruídos de vozes normalmente não teriam sido su cientes para
manter Darcy acordado, embora contrastassem com o silêncio total de
Pemberley. Ele tentava tirar da cabeça seus temores em relação à provação do
dia seguinte, mas era invadido por pensamentos ainda mais perturbadores. Era
como se uma imagem dele estivesse parada ao lado da cama, encarando-o
com um olhar acusador e quase desdenhoso, ensaiando argumentos e
recriminações que julgava ter conseguido, com muita disciplina, silenciar fazia
tempo, mas aos quais agora aquela visão indesejada dava voz de novo com
renovada força e razão. Tinham sido as ações dele e de mais ninguém que
haviam tornado Wickham parte de sua família, com direito a chamá-lo de
cunhado. No dia seguinte ele seria obrigado a prestar um depoimento que
poderia levar seu inimigo à forca ou libertá-lo. Mesmo que o veredicto fosse
“inocente”, o julgamento aproximaria Wickham de Pemberley, e se Wickham
fosse condenado e enforcado, Darcy não só passaria a carregar um fardo de
culpa e horror, como o legaria a seus filhos e a futuras gerações.
Ele não podia se arrepender de ter se casado com Elizabeth; seria como se
arrepender de ter nascido. O casamento lhe trouxera uma felicidade que
nunca acreditara ser possível, um amor do qual os dois belos e saudáveis
meninos que dormiam no quarto das crianças em Pemberley eram uma prova
e uma garantia. Mas ele havia se casado em desa o a todos os princípios que,
desde a infância, regeram sua vida, a todas as convicções do que ele devia à
memória de seus pais, a Pemberley e à sua classe social. Por mais forte que
fosse o sentimento que nutria por Elizabeth, poderia ter se afastado, como
suspeitava que o coronel Fitzwilliam havia feito. O preço que pagara ao
subornar Wickham para casar-se com Lydia havia sido o preço de Elizabeth.
Lembrou-se do encontro com a sra. Younge. A casa de cômodos cava
numa parte respeitável de Marylebone e a mulher era a personi cação da
senhoria honrada e zelosa. Lembrou-se também da conversa que os dois
tiveram. “Só hospedo rapazes das mais respeitáveis famílias que tenham saído
de casa para trabalhar na capital e dar início a suas carreiras, em busca de
independência. Os pais sabem que seus lhos serão bem alimentados e bem
tratados e que o comportamento deles será mantido sob judiciosa observação.
Tenho, já faz muitos anos, uma renda mais que adequada. Agora que
expliquei minha situação, podemos fazer negócios. Mas, antes, posso lhe
oferecer alguma bebida?”
Ele havia recusado a bebida sem fazer nenhum esforço para ser cortês, e ela
dissera: “Sou uma mulher de negócios e nunca achei que certa adesão às
regras formais da cortesia atrapalhasse, mas, se o senhor prefere assim, vamos
dispensá-las. Sei o que o senhor quer. O senhor quer saber o paradeiro de
George Wickham e Lydia Bennet. Talvez possa iniciar as negociações
declarando o máximo que está disposto a pagar por essa informação, que, eu
posso lhe garantir, não conseguirá obter com ninguém, a não ser comigo”.
A oferta que ele fez, obviamente, não tinha sido su ciente, mas no m os
dois acertaram um valor e Darcy saíra da casa como se o lugar estivesse
contaminado pela peste. E aquela havia sido a primeira das vultosas somas
que tivera de pagar para que George Wickham se casasse com Lydia Bennet.
Exausta da viagem, Elizabeth se recolheu logo depois do jantar. Já estava
dormindo quando Darcy entrou no quarto e cou alguns minutos parado ao
lado da cama dela, observando com amor seu rosto bonito e tranquilo; pelo
menos por mais algumas horas ela estaria livre de preocupações. Uma vez na
cama, ele pôs-se a virar de um lado para o outro, inquieto, à procura de um
conforto que nem os travesseiros macios podiam proporcionar, mas, passado
algum tempo, sentiu finalmente que estava pegando no sono.
3
Alveston havia saído cedo de seus aposentos rumo ao tribunal de Old Bailey
e Darcy estava sozinho quando, pouco depois das dez e meia, atravessou o
imponente saguão que levava à sala de audiências. A impressão imediata que
teve foi de entrar numa gaiola cheia de gente tagarela no interior de um
hospício. O julgamento só ia começar dali a trinta minutos, mas as primeiras
leiras de cadeiras já estavam tomadas por uma multidão de mulheres
faladeiras vestidas no rigor da moda, enquanto as leiras de trás eram
ocupadas rapidamente. Toda Londres parecia estar lá, os pobres aglomerados
em ruidoso desconforto. Embora Darcy tivesse apresentado a carta de
intimação que recebera ao o cial postado perto da porta, ninguém lhe
mostrou onde deveria se sentar nem, aliás, lhe deu a mínima atenção. A
temperatura estava amena para março e o ar dentro da sala começava a car
quente e úmido, numa enjoativa mistura de perfume e cheiro de suor. Perto da
cadeira do juiz, um grupo de advogados conversava numa roda, tão à
vontade como se estivesse numa sala de estar. Darcy viu que Alveston estava
entre eles. Notando Darcy, o jovem advogado imediatamente se aproximou
para cumprimentá-lo e lhe mostrar os assentos reservados para as testemunhas.
“A acusação vai chamar apenas o coronel e o senhor para depor sobre a
descoberta do corpo de Denny”, ele disse. “Há a habitual pressão do tempo e
esse juiz ca impaciente quando as mesmas informações são repetidas
desnecessariamente. Vou car por perto; talvez tenhamos uma chance de nos
falar durante o julgamento.”
Naquele momento, o murmurinho cessou de súbito, como se ruídos
pudessem ser cortados com uma faca. O juiz Moberley havia entrado na sala.
Ele portava suas insígnias com con ança, mas não era um homem elegante e
seu rosto de feições miúdas, no qual apenas os olhos escuros se destacavam,
quase sumia debaixo de uma enorme peruca comprida, o que fazia com que
parecesse, Darcy achou, um animal curioso espiando o mundo pelo buraco
de sua toca. Grupos de advogados reunidos para trocar ideias se dispersaram
e depois tornaram a se juntar em novos grupos, conforme eles, os jurados e o
escrivão iam tomando os lugares que lhes eram destinados. Com um o cial de
polícia de cada lado, o prisioneiro foi visto de repente postado diante do
banco dos réus. Darcy cou espantado com a aparência de Wickham. Ele
estava mais magro, apesar da comida que lhe era levada de fora regularmente,
e seu rosto tenso estava pálido, não tanto em virtude da a ição do momento,
pareceu a Darcy, e mais pelos longos meses de prisão. Enquanto o observava,
Darcy mal prestou atenção às preliminares do julgamento, que consistiam na
leitura da denúncia em voz clara, na seleção dos jurados e na prestação do
juramento. No banco dos réus, Wickham mantinha-se rigidamente ereto e, ao
lhe perguntarem como se declarava diante da denúncia, pronunciou a palavra
“inocente” com voz firme. Mesmo algemado e pálido, ele continuava bonito.
Então, Darcy viu um rosto familiar. Ela devia ter pagado alguém para
guardar-lhe um lugar na primeira leira de cadeiras, todas ocupadas por
mulheres, e se dirigido até lá rápida e silenciosamente. Estava sentada lá, quase
imóvel, em meio a leques em movimento e cabeças balançantes, enfeitadas
com toucados da moda. A princípio Darcy a viu apenas de per l, mas depois
ela virou o rosto e, embora os dois tenham se entreolhado sem esboçar
nenhum sinal de reconhecimento, ele não teve dúvida de que era a sra.
Younge; na verdade, já tinha quase certeza disso desde que vislumbrara pela
primeira vez seu perfil.
Estava determinado a não deixar que seus olhares se encontrassem de novo,
mas, correndo os olhos pela sala de vez em quando, percebeu que ela usava
roupas caras, mas de uma elegância e simplicidade que contrastavam com a
espalhafatosa ostentação ao seu redor. Seu chapéu, adornado com tas roxas
e verdes, emoldurava um rosto que parecia tão jovem como quando eles se
conheceram. Ela estava trajada com a mesma elegância quando ele e o
coronel Fitzwilliam a convidaram para ir a Pemberley para realizar uma
entrevista como candidata ao posto de acompanhante de Georgiana. Naquela
ocasião, ela se apresentou aos dois jovens cavalheiros como o retrato de uma
senhora bem nascida, bem falante e con ável, com uma compreensão
profunda dos jovens e consciente das responsabilidades com que teria de
arcar. Tinha sido diferente, embora não muito, quando ele fora atrás dela em
seu esconderijo, aquela casa respeitável em Marylebone. Darcy se perguntava
que força mantinha aquela mulher e Wickham unidos, intensa o bastante para
fazer com que ela se juntasse à plateia de mulheres que achavam divertido ver
um ser humano lutar pela própria vida.
4
Enquanto o promotor se preparava para fazer suas considerações iniciais,
Darcy notou uma mudança na sra. Younge. Ela continuava sentada e ereta,
mas olhava em direção ao banco dos réus com extrema intensidade e
concentração, como se por meio de seu silêncio e do encontro dos olhares
dos dois pudesse transmitir uma mensagem ao prisioneiro, talvez de esperança
ou de tenacidade. Durou apenas alguns segundos, mas, para Darcy, foi como
se, naquele momento, todo o pomposo aparato do tribunal, a toga vermelha
do juiz e as cores vivas dos espectadores não existissem mais, e ele estivesse
consciente apenas daquelas duas pessoas, absortas uma na outra.
“Cavalheiros do júri, o caso a ser apresentado perante os senhores é
singularmente perturbador para todos nós: o assassinato brutal cometido por
um ex-o cial do Exército contra um amigo e antigo colega. Ainda que muito
do que aconteceu vá continuar sendo um mistério, já que a única pessoa que
poderia atestar seria a vítima, os fatos conhecidos são claros e não dão
margem a conjecturas. Eles serão apresentados aos senhores por meio de
testemunhos e provas. Acompanhado do capitão Denny e da sra. Wickham, o
réu saiu da estalagem Green Man, na aldeia de Pemberley, em Derbyshire, por
volta das nove horas da sexta-feira, dia 14 de outubro, e foi conduzido de
caleche pela estrada da oresta rumo à casa, onde a sra. Wickham passaria a
noite e lá permaneceria por um período inde nido, enquanto seu marido e o
capitão Denny seriam levados até a estalagem King’s Arms, em Lambton. Os
senhores ouvirão testemunhos de que o réu e o capitão Denny discutiram
enquanto estavam na estalagem e das palavras ditas pelo capitão ao sair da
caleche e se embrenhar na oresta. Wickham então correu atrás dele.
Ouviram-se tiros e, como Wickham demorava a voltar, a sra. Wickham, a ita,
foi levada para Pemberley. Mais tarde, foi feita uma expedição de resgate. Os
senhores ouvirão os depoimentos de duas testemunhas que encontraram o
corpo e guardam uma vívida lembrança desse momento signi cativo. O réu,
sujo de sangue, estava ajoelhado ao lado da vítima e por duas vezes, com
palavras absolutamente claras, confessou ter matado o amigo. Ainda que
possam haver muitas circunstâncias que não estejam claras e permaneçam
misteriosas neste caso, esse fato está no cerne dele; houve uma con ssão, ela
foi repetida e, eu sugiro aos senhores, foi entendida claramente. O grupo de
resgate não foi atrás de outro potencial assassino; o sr. Darcy teve o cuidado
de manter Wickham sob vigilância e de chamar imediatamente o magistrado.
Apesar de uma busca ampla e extremamente meticulosa ter sido realizada, não
há indícios de que qualquer pessoa estranha tenha estado na oresta naquela
noite. Os moradores da cabana da oresta, uma mulher idosa, a lha dela e
um homem à beira da morte, por certo não conseguiriam manejar uma pedra
grande e pesada como a que se acredita ter causado o ferimento fatal. Os
senhores ouvirão testemunhos de que pedras desse tipo podem ser
encontradas na oresta e de que Wickham, que conhecia o lugar desde
criança, teria sabido onde encontrar uma.
“Esse foi um crime particularmente cruel. Um médico con rmará que o
golpe desferido contra a testa da vítima só a deixou atordoada e foi seguido
de um ataque letal, feito quando o capitão Denny tentava fugir, cegado pelo
sangue. É difícil imaginar um assassinato mais covarde e atroz. Não podemos
ressuscitar o capitão, mas podemos lhe fazer justiça, e estou con ante de que
os senhores, cavalheiros do júri, não hesitarão em apresentar o veredicto de
culpado. Vou chamar agora a primeira testemunha da acusação.”
5
Alguém gritou “Nathaniel Piggott” e quase imediatamente o dono da
estalagem Green Man subiu na tribuna das testemunhas; em seguida,
segurando a Bíblia no alto com certa cerimônia, prestou o juramento. Estava
vestido com apuro, com o terno que costumava usar para ir à igreja aos
domingos, mas que trajava com a con ança de um homem que se sente à
vontade em suas roupas. Ficou parado por um minuto, examinando
deliberadamente o júri com o olhar crítico de quem está diante de candidatos
pouco promissores a um emprego na estalagem. Por m, xou os olhos no
promotor como que con ante de ser capaz de lidar com qualquer pergunta
que Sir Simon Cartwright pudesse lhe lançar. Como solicitado, declarou seu
nome e endereço: “Nathaniel Piggott, estalajadeiro da Green Man, aldeia de
Pemberley, Derbyshire”.
Seu depoimento foi simples e direto e tomou muito pouco tempo. Em
resposta às perguntas do promotor, ele disse à corte que George Wickham, a
sra. Wickham e o falecido capitão Denny haviam chegado à estalagem na
sexta-feira, dia 14 de outubro do ano anterior, numa caleche alugada. O sr.
Wickham tinha pedido comida, vinho e uma caleche para levar a sra.
Wickham até Pemberley naquela noite. A sra. Wickham havia lhe dito, quando
ele estava conduzindo o grupo ao bar, que ia passar a noite em Pemberley
para ir ao baile de Lady Anne no dia seguinte. “Ela parecia muito animada.”
Em resposta a outras perguntas, ele disse que o sr. Wickham havia lhe falado
que queria que a caleche, depois de passar por Pemberley, seguisse viagem
até a estalagem King’s Arms, em Lambton, onde ele e o capitão Denny
pretendiam pernoitar para, no dia seguinte, tomar a diligência para Londres.
“Então ninguém disse nada que sugerisse que o sr. Wickham também caria
em Pemberley?”, perguntou Sir Cartwright.
“Não que eu tenha ouvido, senhor. Não era de esperar. O sr. Wickham,
como alguns de nós sabem, nunca é recebido em Pemberley.”
Um murmurinho se espalhou pela sala. Instintivamente, Darcy enrijeceu em
sua cadeira. Eles estavam adentrando um terreno perigoso mais cedo do que
ele esperava. Darcy manteve os olhos no promotor, mas sabia que os do júri
estavam xos nele. Depois de fazer uma pausa, no entanto, Simon Cartwright
mudou o rumo de suas indagações. “O sr. Wickham lhe pagou pela comida,
pelo vinho e pelo aluguel da caleche?”
“Pagou, sim, senhor, quando ainda estavam no bar. O capitão Denny disse
para o sr. Wickham: ‘A conta é sua. É você que vai ter que pagar. O que eu
tenho só dá para o que vou gastar indo a Londres’.”
“O senhor os viu partir na caleche?”
“Vi, sim, senhor. Eram por volta de quinze para as nove.”
“E quando eles estavam de partida o senhor reparou qual era o estado de
espírito deles, como estavam os ânimos entre os dois cavalheiros?”
“Não posso dizer que reparei, senhor. Estava dando instruções para Pratt, o
cocheiro. A sra. Wickham estava falando para ele ter cuidado na hora de botar
a mala dela na caleche, porque o vestido que ia usar no baile estava lá dentro.
Reparei que o capitão Denny estava muito quieto, mas ele também estava
quieto quando os dois bebiam na estalagem.”
“Algum deles tinha bebido demais?”
“O capitão Denny só tomou uma caneca de cerveja. O sr. Wickham tomou
umas duas canecas e depois passou para o uísque. Quando foram embora, ele
estava com a cara vermelha e trançava um pouco as pernas, mas estava
falando até bem claro, e alto, e subiu na caleche sem precisar de ajuda.”
“O senhor ouviu alguma conversa entre os dois quando entraram na
caleche?”
“Não ouvi, não, senhor, pelo que me lembro. Foi a sra. Piggott que ouviu os
cavalheiros discutindo, conforme ela me falou, mas isso foi antes.”
“Vamos ouvir sua esposa daqui a pouco. Já z todas as perguntas que tinha
a lhe fazer, sr. Piggott. Está dispensado, a menos que o sr. Mickledore queira
lhe perguntar alguma coisa.”
Nathaniel Piggott se voltou para o advogado de defesa com con ança,
enquanto o sr. Mickledore se punha de pé. “Então nenhum dos dois
cavalheiros estava com disposição para conversar. O senhor teve a impressão
de que eles estavam satisfeitos em viajar juntos?”
“Nunca disseram que não estavam, senhor, e não estavam discutindo
quando foram embora da estalagem.”
“Não havia nenhum sinal de desentendimento entre eles?”
“Não que eu tenha visto, senhor.”
Mickledore não fez mais perguntas e Nathaniel Piggott saiu da tribuna com o
ar satisfeito de quem está confiante de que causou uma boa impressão.
Martha Piggott foi então chamada e houve uma pequena agitação num canto
da sala, onde uma mulherzinha atarracada abria caminho por entre a multidão,
que lhe dava apoio murmurando palavras de incentivo. De cabeça erguida e
peito estufado, ela foi andando em direção ao tablado. Usava um chapéu
muito enfeitado com tas cor-de-rosa que aparentava ser novo, comprado
sem dúvida em deferência à importância da ocasião. O adereço impressionaria
mais se não estivesse no alto de uma cabeleira loura que parecia uma touceira,
e volta e meia a sra. Piggott levava a mão até ele, como que em dúvida se
ainda estava em sua cabeça. Ela manteve os olhos xos no juiz, até que o
promotor se levantou para dirigir-se a ela, depois que o juiz lhe fez um aceno
de incentivo. Ela declarou seu nome e endereço, prestou o juramento com voz
clara e con rmou o que o marido dissera a respeito da chegada do casal
Wickham e do capitão Denny.
Darcy sussurrou para Alveston: “Ela não foi chamada para testemunhar no
inquérito. Existe alguma informação nova?”.
“Existe e pode ser perigosa”, disse Alveston.
Simon Cartwright perguntou: “Como a sra. descreveria a atmosfera entre o
sr. e a sra. Wickham e o capitão Denny enquanto estavam na estalagem? A
senhora diria que o grupo estava alegre?”.
“Não diria, não, senhor. A sra. Wickham, sim, estava alegre e rindo. Ela é
uma senhora muito simpática e conversadeira, senhor, e foi ela que disse para
mim e para o sr. Piggott quando estávamos no bar que ia para o baile de Lady
Anne e que ia ser muito engraçado, porque o sr. e a sra. Darcy nem sabiam
que ela ia para lá e não iam poder mandá-la embora, não numa noite de
tempestade. O capitão Denny estava muito calado, mas o sr. Wickham estava
agitado como se quisesse ir embora logo.”
“E a senhora ouviu alguma discussão, alguma troca de palavras entre eles?”
O sr. Mickledore imediatamente se levantou para reclamar que o promotor
estava conduzindo a testemunha e a pergunta foi reformulada. “A senhora
ouviu alguma conversa entre o capitão Denny e o sr. Wickham?”
A sra. Piggott entendeu na mesma hora o que ele queria. “Não enquanto eles
estavam na estalagem, senhor, mas depois que comeram a carne fria que
tinham pedido e beberam, a sra. Wickham pediu que levassem a mala dela
para cima para poder trocar de roupa antes de ir para Pemberley. Ela explicou
que não era o vestido do baile que queria botar, mas uma roupa bonita para
chegar lá. Então mandei Sally, minha empregada, para ajudar. Depois disso,
tive a chance de ir à casinha do quintal — a latrina, sabe? E quando abri a
porta de mansinho para sair, vi o sr. Wickham e o capitão Denny
conversando.”
“A senhora ouviu o que eles estavam dizendo?”
“Ouvi, sim, senhor. Eles só estavam a alguns passos de distância de mim.
Reparei que o rosto do capitão Denny estava muito branco, e então ele disse:
‘Foi um embuste do início ao m. Você é muito egoísta. E não faz ideia de
como uma mulher se sente’.”
“A senhora tem certeza de que foram essas as palavras dele?”
A sra. Piggott hesitou. “Bem, senhor, pode ser que eu tenha trocado um
pouco a ordem delas, mas o capitão Denny com certeza disse que o sr.
Wickham era egoísta e não entendia como as mulheres se sentem e que tinha
sido um embuste do início ao fim.”
“E o que aconteceu depois?”
“Bem, como não queria que os cavalheiros me vissem sair da casinha,
encostei a porta e fiquei espiando pela fresta até eles irem embora.”
“E a senhora está disposta a jurar que ouviu essas palavras?”
“Bom, eu já jurei, senhor. Estou testemunhando sob juramento.”
“Exato, sra. Piggott, e co contente que a senhora saiba a importância que
isso tem. O que aconteceu depois que a senhora voltou para a estalagem?”
“Os cavalheiros entraram logo depois, e o sr. Wickham subiu até o quarto
que eu tinha reservado para a mulher dele. A sra. Wickham já devia ter se
trocado àquela altura, porque ele logo desceu e disse que a mala estava
pronta e já podia ser levada para a caleche. Então os cavalheiros botaram os
casacos e os chapéus e o sr. Piggott mandou Pratt levar a caleche até a porta.”
“Em que condições o sr. Wickham estava nessa hora?”
A sra. Piggott cou em silêncio por alguns instantes, como se não tivesse
entendido o que ele queria dizer. Com certa impaciência, Simon Cartwright
disse: “Ele estava sóbrio ou dava sinais de ter bebido demais?”.
“Eu sabia, claro, que ele tinha bebido, senhor, e pelo jeito dele parecia que
tinha bebido bastante. Quando se despediu, eu achei que a voz dele estava
meio engrolada. Mas ele ainda estava se segurando em pé e subiu na caleche
sem ajuda de ninguém, e então eles foram embora.”
Houve um momento de silêncio. O promotor consultou seus papéis e depois
disse: “Obrigado, sra. Piggott. A senhora pode por ora permanecer onde está,
por favor?”.
Jeremiah Mickledore se levantou. “Então, se houve essa conversa hostil entre
o sr. Wickham e o capitão Denny — digamos que foi um desentendimento —,
ela não terminou em gritos nem em violência. Algum dos dois cavalheiros
tocou no outro durante a conversa que a senhora ouviu no pátio?”
“Não, senhor, não que eu tenha visto. Ia ser muita estupidez do sr. Wickham
puxar briga com o capitão Denny. O capitão era uns quatro dedos mais alto
que ele e muito mais pesado.”
“E a senhora viu, quando os dois entraram na caleche, se algum deles estava
armado?”
“O capitão Denny estava, senhor.”
“Até onde a senhora pode dizer, o capitão Denny, fosse qual fosse a
opinião dele sobre o comportamento do companheiro, poderia viajar na
caleche com ele sem receio de sofrer qualquer ataque físico? Ele era mais alto,
mais pesado e estava armado. Pelo que a senhora se lembra, era essa a
situação?”
“Acho que sim, senhor.”
“Não estou perguntando o que a senhora acha, sra. Piggott. A senhora viu
os dois cavalheiros entrarem na caleche e viu o capitão Denny, que era o mais
alto dos dois, com uma arma de fogo?”
“Vi, sim, senhor.”
“Então mesmo que eles tenham discutido, o fato de estarem viajando juntos
não teria lhe causado nenhuma preo cupação?”
“A sra. Wickham estava com eles, senhor. Não iam brigar dentro da caleche
com uma dama ali com eles. E Pratt não é nenhum parvo. Se houvesse algum
problema, na certa ia tocar os cavalos e voltar para a estalagem.”
Jeremiah Mickledore tinha uma última pergunta a fazer. “Por que a senhora
não deu esse testemunho no inquérito, sra. Piggott? A senhora não percebeu
como era importante?”
“Ninguém me perguntou nada, senhor. Só depois do inquérito o sr.
Brownrigg foi até a estalagem e me perguntou se eu tinha visto alguma coisa.”
“Mas com certeza, mesmo antes de falar com o sr. Brownrigg, a senhora
tinha consciência de que havia testemunhado coisas que deviam ser reveladas
no inquérito, não?”
“Eu achei, senhor, que se precisavam que eu falasse, deviam ter me
procurado e perguntado, e eu não queria que o povo inteiro de Lambton
casse rindo de mim. É uma verdadeira desgraça uma dama não poder ir à
latrina sem que as pessoas quem fazendo perguntas sobre isso em público.
Ponha-se no meu lugar, sr. Mickledore.”
A plateia deixou escapar um princípio de riso, mas logo o reprimiu. O sr.
Mickledore disse não ter mais perguntas a fazer, e a sra. Piggott, assentando o
chapéu com mais rmeza na cabeça, voltou para seu lugar com passadas
vigorosas e mal disfarçada satisfação em meio aos sussurros de congratulação
de seus incentivadores.
6
A linha adotada por Simon Cartwright na acusação estava patente e Darcy
reconheceu como era perspicaz. A história seria contada cena a cena,
conferindo tanto coerência como credibilidade à narrativa e produzindo nas
pessoas presentes, à medida que a história ia se desenrolando, algo da
estimulante expectativa gerada por uma peça teatral. Mas o que mais além de
um entretenimento público, Darcy se perguntou, era um julgamento de
assassinato? Os atores vestidos de acordo com os papéis que haviam sido
incumbidos de desempenhar, o murmurinho de animados comentários e
previsões antes que o personagem encarregado da cena seguinte aparecesse
e, então, o momento dramático em que o ator principal ocupava o banco dos
réus, do qual não podia escapar antes de enfrentar a cena final: vida ou morte.
Isso era a legislação inglesa na prática, uma legislação respeitada em toda a
Europa. E de que outra forma uma decisão como aquela poderia ser tomada,
com toda a sua terrível irrevogabilidade, com mais justiça? Darcy havia sido
intimado a estar presente, mas, olhando para a sala repleta ao seu redor, para
as cores vivas e os toucados balançantes daqueles que podiam se dar o luxo
de seguir a moda e para os trajes grosseiros e pardacentos dos pobres, sentiu
vergonha de ser um deles.
George Pratt foi então convocado a prestar testemunho. Na tribuna, parecia
mais velho do que Darcy se lembrava. Suas roupas estavam limpas, mas não
eram novas e seu cabelo claramente fora lavado havia pouco tempo e se
eriçava em tufos pálidos em volta do rosto, dando-lhe o ar petri cado de um
palhaço. Ele prestou o juramento lentamente, com os olhos xos no papel
como se aquela língua lhe fosse estranha, depois olhou para Cartwright com
um ar que lembrava a expressão suplicante de uma criança delinquente.
O promotor obviamente havia decidido que a benevolência seria a
ferramenta mais eficaz para lidar com aquela testemunha.
“O senhor prestou o juramento, sr. Pratt, o que quer dizer que prometeu
dizer a verdade a este tribunal, tanto em resposta às minhas perguntas quanto
no que quer que o senhor venha a dizer”, ele disse. “Quero que conte com
suas próprias palavras a todos aqui presentes o que aconteceu na noite de
sexta-feira, 14 de outubro.”
“Recebi ordens para levar os dois cavalheiros, o sr. Wickham e o capitão
Denny, e a sra. Wickham até Pemberley na caleche do sr. Piggott, deixar a
senhora na casa e depois levar os dois cavalheiros para a King’s Arms, em
Lambton. Mas o sr. Wickham e o capitão não chegaram a ir até Pemberley,
senhor.”
“Sim, sabemos disso. O senhor deveria ir até a mansão de Pemberley por
onde? Por que portão da propriedade deveria entrar?”
“Pelo portão noroeste, senhor, e depois seguir pela estrada da floresta.”
“E o que aconteceu? O senhor teve alguma di culdade para passar pelo
portão?”
“Não tive, não, senhor. Jimmy Morgan foi abrir o portão. Ele disse que tinha
ordens para não deixar ninguém passar, mas me conhece e, quando eu contei
que tinha que levar a sra. Wickham para o baile, ele nos deixou entrar. Já
tínhamos avançado mais ou menos meia milha pela estrada quando um dos
cavalheiros — acho que foi o capitão Denny — bateu na janela para pedir
para parar, então eu parei. Aí ele desceu da caleche e se en ou na oresta,
gritando que não queria mais saber daquilo e que o sr. Wickham ia ter que se
arranjar sozinho.”
“Foram essas as palavras exatas dele?”
Pratt hesitou. “Não tenho certeza, senhor, mas acho que ele falou: ‘Você
agora vai ter que se arranjar sozinho, Wick ham. Não quero mais saber disso’.”
“O que aconteceu depois?”
“O sr. Wickham desceu da caleche e gritou para ele deixar de tolice e voltar,
mas o capitão Denny não voltou. Então o sr. Wickham se meteu na oresta
atrás dele. Logo depois, a sra. Wickham também saiu da caleche, gritando
para ele voltar e não a deixar lá sozinha, mas o marido não deu atenção.
Quando ele sumiu de vista, ela voltou para a caleche e caiu num choro de dar
dó. Então, ficamos lá, senhor.”
“O senhor não pensou em ir procurá-los na floresta?”
“Não, senhor. Não podia abandonar a sra. Wickham nem as éguas, então
quei. Mas um pouco depois ouvimos tiros e a sra. Wickham começou a
berrar e a dizer que todos íamos morrer e que era para eu tocar para
Pemberley o mais rápido que pudesse.”
“Os tiros vieram de perto?”
“Não sei direito, senhor. Mas não devem ter vindo de muito longe, porque
deu para ouvir bem.”
“E quantos tiros o senhor ouviu?”
“Acho que uns três ou quatro. Não tenho certeza, senhor.”
“E depois o que aconteceu?”
“Toquei as éguas e elas saíram correndo a galope até Pemberley. A sra.
Wickham berrou a viagem inteira e, quando paramos na frente da porta, ela
quase caiu para fora da caleche. O sr. Darcy estava perto da porta com outras
pessoas. Não lembro direito quem era, mas acho que era o sr. Darcy e outros
dois cavalheiros e mais duas senhoras. As senhoras levaram a sra. Wickham
para dentro da casa e o sr. Darcy disse que era para eu esperar ali com os
cavalos, porque ele queria que eu o levasse com uns outros cavalheiros até o
lugar onde o capitão Denny e o sr. Wickham tinham se en ado na mata. Então
quei esperando, senhor. Depois, o cavalheiro que agora eu sei que é o
coronel Fitzwilliam chegou a cavalo, subiu muito rápido pela entrada principal
e se juntou aos outros. Umas pessoas foram buscar uma maca, uns lençóis e
algumas lanternas, e então os três cavalheiros — o sr. Darcy, o coronel e outro
homem que eu não conhecia — subiram na caleche e tocamos de volta para a
oresta. Quando chegamos lá, os três cavalheiros desceram e foram andando
na frente da caleche até chegar à trilha que dá na cabana da oresta. O
coronel tomou a trilha e foi ver se a família que mora lá na cabana estava bem
e dizer para trancarem a porta. Então, os três cavalheiros seguiram a pé pela
estrada na minha frente até que vi o lugar onde achei que o capitão Denny e o
sr. Wickham tinham sumido. O sr. Darcy me disse para car esperando lá e
eles entraram na mata.”
“Deve ter sido difícil ficar esperando, sr. Pratt.”
“Foi, sim, senhor. Fiquei com muito medo, sem ninguém lá comigo e sem
arma nenhuma, e demorou muito, senhor. Mas depois ouvi os cavalheiros
chegando. Eles levavam o corpo do capitão Denny na maca, e o terceiro
cavalheiro ajudou o sr. Wickham, que estava com as pernas meio frouxas, a
subir na caleche. Virei as éguas e voltamos para Pemberley devagar, enquanto
o coronel e o sr. Darcy iam atrás carregando a maca. O terceiro cavalheiro
estava na caleche com o sr. Wickham. Depois disso está tudo embaralhado na
minha cabeça, senhor. Só sei que carregaram a maca para algum lugar e
levaram o sr. Wickham, que estava gritando muito e mal conseguia car em
pé, para dentro da casa, e alguém me disse para esperar. Depois de um
tempo, o coronel veio e me disse para seguir viagem até a King’s Arms e avisar
às pessoas da estalagem que os cavalheiros não iam para lá, mas para ir
embora rápido, antes que tivessem tempo de fazer alguma pergunta. Disse
também que, quando eu voltasse para a Green Man, não era para dizer para
ninguém o que tinha acontecido, senão eu podia ter problemas com a polícia,
e que eles iam lá falar comigo no dia seguinte. Eu estava com medo que o sr.
Piggott me perguntasse alguma coisa quando eu voltasse, mas ele e a sra.
Piggott já tinham ido para a cama. Naquela hora a ventania já tinha passado,
mas estava chovendo muito. O sr. Piggott abriu a janela do quarto e gritou de
lá para me perguntar se tinha corrido tudo bem e se eu tinha deixado a sra.
Wickham em Pemberley. Respondi que sim e ele me mandou recolher as éguas
e ir para a cama. Eu estava muito cansado, senhor, e ainda estava dormindo
quando a polícia chegou de manhã, um pouco depois das sete horas. Contei
para eles o que tinha acontecido até onde eu me lembrava e sem esconder
nada, que nem estou contando para o senhor.”
“Obrigado, sr. Pratt. Seu testemunho foi muito claro”, disse Cartwright.
O sr. Mickledore imediatamente se levantou. “Tenho uma ou duas perguntas
para lhe fazer, sr. Pratt. Quando o sr. Piggott o chamou para levar o grupo até
Pemberley, essa foi a primeira vez que viu os dois cavalheiros juntos?”,
perguntou.
“Foi, sim, senhor.”
“E como o senhor achou que estavam as relações entre eles?”
“O capitão Denny estava muito calado e dava para perceber que o sr.
Wickham tinha bebido, mas eles não estavam discutindo nem brigando.”
“Houve alguma relutância da parte do capitão Denny em entrar na caleche?”
“Não, senhor. Ele entrou sem pestanejar.”
“O senhor ouviu alguma conversa entre eles durante a viagem, antes de o
capitão Denny pedir para o senhor parar?”
“Não ouvi, não, senhor. Ia ser difícil, com o barulho do vento e das rodas
no chão esburacado, a não ser que estivessem gritando muito alto.”
“E ninguém gritou?”
“Não, senhor, não que eu tenha ouvido.”
“Então os três, até onde o senhor sabe, estavam se entendendo bem quando
iniciaram a viagem e o senhor não tinha nenhum motivo para esperar que
houvesse algum problema?”
“Não tinha, não, senhor.”
“Tomei conhecimento de que no inquérito o senhor falou ao júri dos
problemas que teve para controlar as éguas na oresta. Deve ter sido uma
viagem difícil para elas.”
“Ah, foi, sim, senhor. Assim que entraram na oresta, elas caram muito
nervosas, relinchando e tentando empinar.”
“Deve ter sido difícil para o senhor controlar as duas.”
“Foi, sim, foi muito difícil, senhor. Nenhum cavalo gosta de entrar na
floresta na lua cheia. E nenhuma pessoa.”
“Então o senhor pode ter absoluta certeza do que o capitão Denny disse
quando saiu da caleche?”
“Bom, senhor, ouvi o capitão dizer que não ia mais ajudar e que o sr.
Wickham ia ter que se arranjar sozinho, ou algo assim.”
“Algo assim. Obrigado, sr. Pratt. Era só isso que eu tinha para perguntar.”
Pratt foi dispensado e desceu da tribuna das testemunhas consideravelmente
mais feliz do que havia subido. Alveston sussurrou para Darcy: “Não há mais
problema. Mickledore conseguiu lançar dúvida sobre o testemunho de Pratt. E
agora, sr. Darcy, o próximo vai ser o senhor ou o coronel”.
7
Quando seu nome foi chamado, Darcy teve um sobressalto de surpresa,
embora já soubesse que sua vez não demoraria a chegar. Atravessou o tribunal
em meio ao que pareciam ser leiras de olhos hostis e procurou manter seus
pensamentos sob controle. Era importante que conseguisse conservar a
compostura e a calma. Estava determinado a não encarar Wickham, a sra.
Younge e um membro do júri que, sempre que ele corria os olhos pela tribuna
dos jurados, tava-o com intensa animosidade. Manteria o olhar xo no
promotor ao responder as perguntas e só se permitiria lançar de vez em
quando rápidos olhares de soslaio em direção ao júri ou ao juiz, que estava
sentado em sua cadeira imóvel como um Buda, as mãos pequenas e
rechonchudas entrelaçadas sobre a mesa, os olhos semicerrados.
A primeira parte do interrogatório foi bastante direta. Em resposta às
perguntas que lhe foram feitas, Darcy descreveu a noite do jantar que fora
oferecido em Pemberley, informando quem estava presente e a hora em que o
coronel Fitzwilliam e a srta. Darcy se retiraram, falando da chegada da caleche
com uma a ita sra. Wickham e, por m, da decisão de levar o veículo de volta
à oresta para tentar descobrir o que havia acontecido e se o sr. Wickham e o
capitão Denny precisavam de ajuda.
“O senhor antevia algum perigo, alguma tragédia talvez?”, perguntou Simon
Cartwright.
“De forma alguma, senhor. Eu imaginava, acreditava mesmo, que o pior que
poderia ter acontecido seria os cavalheiros terem sofrido algum pequeno
acidente na oresta, que di cultasse a locomoção dos dois, e que nós
encontraríamos o sr. Wickham e o capitão Denny no caminho, andando
devagar em direção a Pemberley ou de volta à estalagem, um ajudando o
outro. Foi a notícia dada pela sra. Wickham e depois con rmada por Pratt de
que tinham ouvido tiros que me convenceu de que seria prudente montar uma
expedição de resgate. O coronel Fitzwilliam voltou a tempo de participar e
estava armado.”
“O visconde Hartlep prestará, claro, o testemunho dele depois. Vamos
continuar? Descreva agora, por favor, o itinerário dos senhores até a oresta e
os acontecimentos que levaram à descoberta do corpo do capitão Denny.”
Darcy não precisara ensaiar esse relato, mas havia mesmo assim passado
algum tempo escolhendo as exatas palavras que usaria e o tom em que as
diria. Tinha dito a si mesmo que estaria num tribunal de justiça, e não
relatando uma história para um círculo de amigos. Permitir que o silêncio se
prolongasse, interrompido apenas por ruídos de passos e rangidos de rodas,
seria um luxo perigoso; só era necessário relatar os fatos sem rodeios e de
modo convincente. Declarou então que o coronel havia se afastado
brevemente do grupo a m de avisar à sra. Bidwell, à lha e ao lho doente
que poderiam ocorrer problemas e recomendar-lhes que mantivessem a porta
da cabana trancada.
“O visconde Hartlep, ao ir à cabana, informou qual era a intenção dele?”
“Sim, informou.”
“E por quanto tempo se ausentou?”
“Não mais do que quinze ou vinte minutos, acho, mas na ocasião pareceu
mais tempo.”
“E depois disso os senhores seguiram adiante?”
“Seguimos. Pratt conseguiu indicar com alguma certeza o lugar onde o
capitão Denny havia se embrenhado na oresta, e eu e meus companheiros
zemos o mesmo, tentando descobrir que caminho um deles ou os dois
poderiam ter tomado. Depois de alguns minutos, talvez cerca de dez, nós nos
deparamos com uma clareira e encontramos o corpo do capitão Denny e o sr.
Wickham debruçado sobre ele chorando. Percebi imediatamente que o
capitão Denny estava morto.”
“Qual era o estado do sr. Wickham?”
“Ele estava extremamente nervoso e eu achei, pelo modo como falava e
pelo cheiro do hálito dele, que havia bebido e provavelmente muito. O rosto
do capitão Denny estava sujo de sangue. Também havia sangue nas mãos e no
rosto do sr. Wickham — provavelmente, pensei, porque ele tinha tocado no
amigo.”
“O sr. Wickham falou alguma coisa?”
“Sim, falou.”
“E o que ele disse?”
Lá estava, en m, a pergunta temida, e por alguns pavorosos segundos a
cabeça de Darcy cou absolutamente vazia. Então, ele olhou para Cartwright e
disse: “Não sei se me lembro da ordem exata das palavras, senhor, mas creio
ter uma lembrança precisa delas. Pelo que me lembro, ele disse: ‘Eu o matei.
Foi culpa minha. Ele era meu amigo, meu único amigo, e eu o matei’. Depois
ele repetiu: ‘Foi culpa minha’.”.
“E o que, naquela hora, o senhor achou que as palavras dele significavam?”
Darcy tinha consciência de que todos os presentes aguardavam sua
resposta. Virou-se para o juiz, que então abriu lentamente os olhos e o tou.
“Responda a pergunta, sr. Darcy.”
Só então Darcy se deu conta, em pânico, de que já devia estar em silêncio
fazia alguns segundos. Dirigindo-se ao juiz, disse: “Eu estava diante de um
homem profundamente angustiado, ajoelhado ao lado do corpo do amigo.
Achei que o sr. Wickham queria dizer que, se não tivesse havido algum
desentendimento entre eles que fez com que o capitão Denny saísse da
caleche e corresse oresta adentro, o amigo não teria sido assassinado. Essa
foi minha impressão imediata. Não vi nenhuma arma e sabia que o capitão
Denny era maior que o sr. Wickham e estava armado. Teria sido o cúmulo da
tolice o sr. Wickham se embrenhar pela mata atrás do amigo, sem lanterna e
sem arma, com a intenção de matá-lo. Ele não teria como saber nem se
conseguiria encontrar o capitão no meio dos arbustos densos e das árvores,
tendo apenas a luz da lua para guiá-lo. Pareceu-me que não era possível que o
sr. Wickham tivesse assassinado o amigo, nem por impulso nem de modo
premeditado.”
“O senhor viu ou ouviu mais alguém na oresta ou na cena do crime, além
de Lorde Hartlep e do sr. Alveston?”
“Não, senhor.”
“Então o senhor está declarando sob juramento que encontrou o corpo do
capitão Denny, que viu o sr. Wick ham debruçado sobre ele e sujo de sangue e
que ouviu o sr. Wickham dizer não uma, mas duas vezes que era responsável
pelo assassinato do amigo.”
O silêncio foi ainda mais longo. Pela primeira vez Darcy se sentiu como um
animal acuado. Por m, disse: “Esses são os fatos. O senhor me perguntou o
que eu achei, naquela hora, que esses fatos signi cavam. Eu lhe respondi o
que achei na hora e ainda acho agora: que o sr. Wickham não estava
confessando um assassinato, mas dizendo o que era de fato a verdade, que se
o capitão Denny não tivesse saído da caleche e se embrenhado na mata, não
teria se deparado com o assassino”.
Cartwright, no entanto, ainda não havia terminado. Mudando de tática,
perguntou: “Se tivesse chegado a Pemberley inesperadamente e sem ter sido
convidada, a sra. Wickham teria sido recebida?”.
“Sim, teria.”
“Ela, é claro, é irmã da sra. Darcy. O sr. Wickham também teria sido bem-
vindo se chegasse nas mesmas circunstâncias? Ele e a sra. Wickham haviam
sido convidados para o baile?”
“Isso, senhor, é uma pergunta hipotética. Não havia razão para nós os
convidarmos. Já fazia algum tempo que não estávamos em contato com os
dois e eu não sabia o endereço deles.”
“Creio, sr. Darcy, que sua resposta seja um tanto evasiva. O senhor teria
convidado os dois se soubesse o endereço deles?”
Foi então que Jeremiah Mickledore se levantou e se dirigiu ao juiz.
“Meritíssimo, que relevância a lista de convidados da sra. Darcy pode ter em
relação ao assassinato do capitão Denny? Todos nós por certo temos o direito
de convidar quem quisermos para ir à nossa casa, sejam parentes ou não, sem
que exista a necessidade de explicar as nossas razões num tribunal de justiça
em circunstâncias em que o convite não pode ter nenhuma importância.”
Fazendo um leve movimento, o juiz disse com voz inesperadamente rme:
“O senhor tem algum motivo para adotar essa linha de indagação, sr.
Cartwright?”.
“Tenho, meritíssimo: lançar luz sobre as relações do sr. Darcy com o
cunhado e, assim, indiretamente dar ao júri uma noção do caráter do sr.
Wickham.”
“Duvido que a inexistência de um convite para um baile possa dar alguma
noção da natureza essencial de um homem”, disse o juiz.
Então, Jeremiah Mickledore se levantou. Virando-se para Darcy, perguntou:
“O senhor tem alguma informação a respeito da conduta do sr. Wickham na
campanha da Irlanda em agosto de 1798?”.
“Tenho, senhor. Sei que recebeu uma condecoração por bravura e também
que foi ferido.”
“Até onde o senhor sabe, ele alguma vez foi preso por algum crime ou teve
algum tipo de problema com a polícia?”
“Até onde sei, não, senhor.”
“E como ele é casado com uma irmã da sra. Darcy, presumivelmente coisas
desse tipo chegariam ao seu conhecimento?”
“Se fossem sérias ou frequentes, creio que sim.”
“Pelas descrições feitas do sr. Wickham, ele mostrava sinais de haver
bebido. Que medidas foram tomadas para controlá-lo quando os senhores
chegaram a Pemberley?”
“Ele foi posto na cama e o dr. McFee foi chamado, para atender tanto a sra.
Wickham quanto o marido.”
“Mas ele não foi trancado num quarto nem mantido sob vigilância?”
“A porta do quarto não foi trancada, mas dois homens ficaram de guarda.”
“Isso era necessário, considerando que o senhor acreditava que ele fosse
inocente?”
“Ele estava embriagado, senhor. Eu não podia deixar que vagasse pela casa,
principalmente porque tenho lhos. Também estava apreensivo quanto ao
estado físico dele. Sendo magistrado, senhor, eu sabia que todos os
envolvidos no caso teriam de estar em condições de ser interrogados quando
Sir Selwyn Hardcastle chegasse.”
O sr. Mickledore se sentou e Simon Cartwright retomou sua inquirição. “Uma
última pergunta, sr. Darcy. O grupo de busca consistia em três homens, um
dos quais estava armado. Os senhores também tinham à disposição a arma do
capitão Denny, que provavelmente estava em condições de uso. Não havia
nenhuma razão para suspeitar que o capitão Denny tivesse sido assassinado
muito tempo antes de os senhores o encontrarem. O assassino poderia muito
bem estar ali perto, escondido. Por que os senhores não foram à procura
dele?”
“Achei que a primeira providência necessária a tomar era voltar o mais
rápido possível para Pemberley com o corpo do capitão Denny. Teria sido
quase impossível encontrar alguém escondido na oresta densa, e me pareceu
que o mais provável era que o assassino já tivesse fugido.”
“Algumas pessoas podem achar que sua explicação não é muito
convincente. Por certo a primeira reação de qualquer um ao encontrar um
homem assassinado é tentar capturar o assassino.”
“Naquelas circunstâncias, senhor, isso não me ocorreu.”
“De fato, sr. Darcy, entendo que isso não lhe tenha ocorrido. O senhor já
estava diante do homem que o senhor, apesar de negar, acreditava ter sido o
assassino. Por que, de fato, ia ocorrer ao senhor ir à procura de outra
pessoa?”
Antes que Darcy pudesse responder, Simon Cartwright consolidou a vitória
proferindo suas palavras nais. “Tenho de lhe dar os parabéns, sr. Darcy, pela
sua acuidade de raciocínio, pois o senhor parece ter uma extraordinária
facilidade para pensar de forma coerente mesmo em momentos em que a
maioria de nós caria tão abalada que seria incapaz de uma reação tão
cerebral. Era, a nal, uma cena de um horror sem precedentes. Eu lhe
perguntei qual havia sido sua reação ao ouvir as palavras do réu quando o
senhor e seus companheiros o encontraram debruçado sobre o corpo do
amigo assassinado, de joelhos e com as mãos sujas de sangue. O senhor foi
capaz de deduzir no mesmo instante que devia ter havido algum
desentendimento que fez com que o capitão Denny saísse do veículo onde
eles estavam e fugisse oresta adentro, lembrar a diferença de altura e de peso
que existia entre os dois, pensar no que isso signi cava e ainda notar que não
havia nenhuma arma por perto que pudesse ter sido usada para in igir
qualquer dos dois ferimentos. Por certo, o assassino não foi prestativo a ponto
de deixar as armas convenientemente à mão. Obrigado. O senhor pode descer
agora.”
Para surpresa de Darcy, o sr. Mickledore não se levantou para interrogá-lo
de novo, e Darcy cou se perguntando se teria sido porque não havia nada
que o advogado de defesa pudesse fazer para mitigar o estrago que ele
causara. Não se lembrava de ter voltado para seu lugar. Uma vez lá, foi
invadido por uma desconsolada raiva de si mesmo. Xingou-se de tolo
incompetente. Por acaso Alveston não havia lhe dado cuidadosas instruções
sobre como se comportar durante o interrogatório? “Pare para pensar antes de
responder, mas não demore a ponto de parecer estar calculando as
consequências da sua resposta. Responda as perguntas de maneira simples e
precisa, não diga nada além do que lhe for perguntado e jamais oreie. Se
Cartwright quiser mais informações, ele pode perguntar. Testemunhos
desastrosos em geral acontecem quando a pessoa fala demais, não de menos.”
Ele havia falado demais e tinha sido desastroso. Sem dúvida o coronel se sairia
melhor, mas o estrago já estava feito.
Sentiu a mão de Alveston em seu ombro. “Prejudiquei a defesa, não foi?”,
Darcy disse, angustiado.
“De forma alguma. O senhor, uma testemunha da acusação, fez um discurso
muito e caz para a defesa, o qual Mickledore não pode fazer. O júri ouviu e é
isso que importa. Cartwright não pode apagar o que o senhor disse da
memória dos jurados.”
Testemunhas e mais testemunhas da acusação prestaram depoimento. O dr.
Belcher depôs sobre a causa da morte e os subdelegados descreveram em
certo detalhe suas infrutíferas tentativas de identi car as armas do crime,
embora pedras do tamanho e do formato certo tivessem sido encontradas
cobertas por folhas na mata; apesar de terem sido feitas indagações e buscas
exaustivas, não fora descoberto nenhum indício de que um fugitivo ou alguma
pessoa estranha tivesse estado na floresta no período relevante.
Agora, o chamado para que o coronel Fitzwilliam, visconde Hartlep, se
dirigisse à tribuna das testemunhas foi seguido de um imediato silêncio, e
Darcy se perguntou o que teria levado Simon Cartwright a decidir que aquela
importante testemunha da acusação seria a última a depor. Teria sido porque
acreditava que, se aquele fosse o último testemunho ouvido pelo júri, a
impressão gerada seria mais duradoura e e caz? O coronel estava de uniforme
e Darcy se lembrou de que o primo tinha de se apresentar no Ministério da
Guerra mais tarde. Ele foi andando rumo à tribuna com a naturalidade de
quem faz uma caminhada matinal, cumprimentou o juiz com uma breve
reverência, prestou o juramento e cou aguardando que Cartwright iniciasse a
inquirição. Darcy achou que ele tinha o ar levemente impaciente de um
soldado pro ssional com uma guerra a ser ganha; parecia estar preparado
para demonstrar o devido respeito pela corte, ao mesmo tempo que se
mantinha distante da presunção de seus membros. Investido da dignidade de
seu uniforme, ele era o retrato de um o cial que já fora descrito como um dos
mais galantes do Exército britânico e um excelente partido. Ouviram-se alguns
murmúrios, rapidamente silenciados, e Darcy viu que as leiras de mulheres
embonecadas inclinavam-se para a frente, atentas e ansiosas — um pouco
como cãezinhos de colo adornados com ta estremecendo ao sentir o cheiro
de um bom pedaço de carne, pensou.
O coronel foi minuciosamente interrogado acerca de cada detalhe dos
acontecimentos, desde o momento em que voltou de seu passeio noturno e
juntou-se ao grupo de busca até a hora em que Sir Selwyn Hardcastle chegou
para assumir a investigação. Ele havia saído a cavalo para ir à estalagem King’s
Arms, em Lambton, onde tivera uma conversa particular com uma pessoa,
justamente durante o período em que o capitão Denny fora assassinado.
Quando Cartwright lhe perguntou se ele conhecia a origem das trinta libras
encontradas com Wickham, o coronel respondeu com calma que fora ele
quem dera o dinheiro ao réu para que pudesse quitar uma dívida de honra e
que era apenas o dever de depor no tribunal que o levava a quebrar a
promessa solene que os dois haviam feito de manter a transação em segredo.
O coronel não tinha a intenção de revelar o nome do pretendido bene ciário,
mas declarou que não era o capitão Denny e que tampouco o dinheiro tinha
qualquer ligação com a morte do capitão.
Nesse momento, o sr. Mickledore se levantou para interrogá-lo brevemente.
“O senhor pode garantir a este tribunal, coronel, que esse empréstimo ou
doação não se destinava ao capitão Denny nem tem qualquer relação com o
assassinato?”
“Posso.”
Em seguida, Cartwright voltou mais uma vez ao sentido das palavras ditas
por Wickham quando estava debruçado sobre o corpo do amigo. O que a
testemunha supunha que o réu quisera dizer com elas?
O coronel cou alguns segundos calado antes de responder. “Não tenho
como saber o que se passa na cabeça de outro homem, senhor, mas
concordo com a opinião dada pelo sr. Darcy. Para mim, foi uma questão de
instinto, e não resultado de uma análise imediata e detalhada dos indícios. Não
desprezo o instinto; ele já salvou minha vida algumas vezes. E o instinto, é
claro, se baseia numa percepção de todos os fatos salientes, percepção essa
que não é necessariamente errada só porque não estamos conscientes dela.”
“E em algum momento foi cogitada a hipótese de deixar o corpo do capitão
Denny onde estava e sair imediatamente à procura do assassino? Suponho
que, se essa busca tivesse sido feita, teria sido o senhor que, sendo um
comandante insigne, teria assumido o comando.”
“Não foi cogitada por mim, senhor. Não penetro em territórios hostis e
desconhecidos quando não disponho de tropas adequadas, deixando minha
retaguarda desprotegida.”
Não houve mais perguntas e cou claro que os testemunhos da acusação
estavam encerrados. Alveston sussurrou para Darcy: “Mickledore foi brilhante.
O coronel validou seu testemunho e pôs em dúvida a credibilidade do
depoimento de Pratt. Estou começando a car esperançoso, mas ainda falta
Wickham falar em defesa própria e o juiz dar instruções ao júri”.
8
Roncos ocasionais haviam deixado patente que o calor da sala de
audiências provocava sono, mas cotoveladas, sussurros e um alvoroço de
interesse se espalharam pela plateia quando Wickham nalmente se levantou
do banco dos réus para falar. A voz dele era clara e rme, mas sem emoção,
quase como se ele estivesse lendo, e não falando, as palavras que poderiam
salvar-lhe a vida, pensou Darcy.
“Eu estou aqui por ter sido acusado de assassinar o capitão Martin Denny e
me declarei inocente de tal acusação. Con rmo que sou de fato totalmente
inocente desse crime e aqui me apresento tendo me posto à mercê de meu
país. Servi na milícia com o capitão Denny seis anos atrás, quando ele se
tornou não só meu companheiro de armas, mas também um grande amigo.
Essa amizade continuou e a vida dele era tão cara a mim quanto a minha
própria. Eu o defenderia até a morte de qualquer ataque e o teria defendido
se estivesse presente quando foi perpetrado o ataque covarde que causou sua
morte. Testemunhas disseram ter nos visto discutir quando estávamos na
estalagem, antes de partir na viagem fatal. Não foi nada além de um
desentendimento entre amigos, do qual sou o culpado. O capitão Denny, que
era um homem de honra e profundamente compassivo, achou que eu havia
agido errado ao renunciar ao meu posto quando não tinha uma pro ssão
sólida nem um lar certo para dar à minha esposa. Além disso, achou que meu
plano de deixar a sra. Wickham em Pemberley para passar a noite lá e ir ao
baile no dia seguinte não só demonstrava uma grande falta de consideração
da minha parte, como seria inconveniente para a sra. Darcy. Acredito que
tenha sido a crescente irritação dele para com minha conduta que tornou
minha companhia intolerável para ele e que tenha sido isso que o fez mandar
a caleche parar e correr para a oresta. Fui atrás dele para pedir que voltasse.
Era uma noite de tempestade; a oresta é impenetrável em alguns pontos e
pode ser perigosa. Não nego ter dito as palavras que foram atribuídas a mim,
mas o que quis dizer foi que a morte do meu amigo tinha sido
responsabilidade minha, já que foi nosso desentendimento que o fez entrar na
mata. Eu tinha bebido muito, mas, embora não consiga recordar boa parte do
que aconteceu, lembro claramente o horror que senti quando o encontrei e vi
seu rosto sujo de sangue. Seus olhos con rmaram o que eu já sabia: que
Denny estava morto. O choque, o terror e a pena que isso me causou me
deixaram sem forças, mas não a ponto de me impedir de tomar a atitude que
podia para capturar o assassino. Peguei a pistola do capitão Denny e disparei
alguns tiros em direção ao que achei que fosse um vulto em fuga e o persegui
mata adentro. Àquela altura, a bebida que tinha ingerido já havia surtido efeito
e não me lembro de mais nada, a não ser de estar ajoelhado ao lado do meu
amigo, com a cabeça dele nos braços. Foi então que o grupo de resgate
chegou.
“Cavalheiros do júri, a argumentação feita contra mim não se sustenta. Se
golpeei meu amigo na testa e depois, com mais força e crueldade, na nuca,
onde estão as armas? Mesmo tendo sido realizada uma busca meticulosa,
nenhuma foi apresentada no tribunal. Alegou-se que eu teria seguido meu
amigo com a intenção de matá-lo, mas como eu poderia ter subjugado um
homem mais alto e mais forte do que eu e que dispunha de uma arma? E por
que eu faria isso? Nenhum motivo foi alegado. O fato de não ter sido
encontrado nenhum vestígio de que um estranho tenha se emboscado na
oresta não signi ca que tal homem não exista; ele di cilmente caria
esperando na cena do crime. Só o que posso fazer é dar minha palavra,
lembrando que estou sob juramento, de que não tive participação alguma no
assassinato do capitão Martin Denny e, com con ança, pôr-me à mercê de
meu país.”
Todos caram em silêncio. Então, Alveston sussurrou para Darcy: “Não foi
bom”.
Em voz baixa, Darcy disse: “Como não foi bom? Achei que ele tinha dito o
su ciente. Os principais argumentos foram desenvolvidos com clareza: a falta
de provas de que houve uma discussão séria, a ausência de armas, a
irracionalidade de perseguir o amigo com a intenção de matá-lo, a inexistência
de um motivo. O que ele fez de errado?”.
“É difícil explicar, mas já ouvi muitos discursos de réus e temo que esse
possa não ter êxito. Apesar de ter sido construído de modo muito cuidadoso,
faltou a centelha vital que vem da segurança da inocência. A maneira de falar,
a falta de paixão, o esmero das frases; Wickham pode ter se declarado
inocente, mas não se sente inocente. Isso é uma coisa que o júri percebe, não
me pergunte como. Ele pode não ser culpado desse assassinato, mas alguma
culpa sente.”
“Como todos nós às vezes; sentir culpa não faz parte da condição humana?
Sem dúvida ele conseguiu semear uma dose razoável de dúvida no júri. O
discurso de Wickham teria sido suficiente para mim.”
“Espero sinceramente que também seja su ciente para o júri, mas não estou
muito otimista”, disse Alveston.
“Mas se ele estava bêbado?”
“Ele certamente alegou estar bêbado na hora do crime, mas não estava
bêbado a ponto de precisar de ajuda para subir na caleche quando saiu da
estalagem. Não foram feitas muitas perguntas a esse respeito durante os
testemunhos, mas, para mim, seu grau de embriaguez naquele momento é
discutível.”
Durante o discurso, Darcy havia procurado se concentrar em Wickham, mas
agora não conseguiu resistir à tentação de olhar para a sra. Younge. Não havia
risco de os olhares dos dois se encontrarem. Os olhos dela estavam cravados
em Wickham, e às vezes Darcy percebia que ela mexia os lábios, como se
estivesse ouvindo alguém recitar algo que ela própria escrevera, ou estivesse
rezando em silêncio. Quando tornou a olhar para o banco dos réus, Darcy viu
que Wickham olhava xamente para a frente; virou-se em direção ao juiz
quando o meritíssimo sr. Moberley começou a instruir o júri.
9
O juiz Moberley não havia feito anotação alguma e então se inclinou um
pouco em direção ao júri, como se o assunto não interessasse ao resto da
corte, mas a bela voz que logo atraíra a atenção de Darcy foi ouvida com
clareza por todas as pessoas presentes. Ele descreveu os testemunhos e provas
de forma sucinta mas cuidadosa, como se o tempo não tivesse importância.
Darcy achou que o juiz encerrou sua fala com palavras que davam crédito à
defesa e ficou mais animado.
“Cavalheiros do júri, os senhores ouviram com paciência e claramente com
muita atenção os testemunhos prestados neste longo julgamento, e agora é
hora de avaliar as provas e dar seu veredicto. O acusado foi no passado um
soldado pro ssional e tem um histórico de notável bravura, pelo qual foi
condecorado com uma medalha, mas isso não pode afetar a decisão dos
senhores, que deve se basear nos testemunhos e provas apresentados. A tarefa
que lhes cabe é de muita responsabilidade, mas sei que vão cumpri-la sem
medo e sem parcialidade, e de acordo com a lei.
“O mistério, se posso chamar assim, que está no cerne deste caso é o que
teria levado o capitão Denny a se embrenhar na mata, quando poderia ter
permanecido na caleche com segurança e conforto; é difícil conceber que um
ataque fosse perpetrado contra ele na presença do sr. Wickham. O acusado
procurou explicar por que o capitão Denny desceu da caleche de forma tão
inesperada, e os senhores terão de decidir se acham que essa explicação é
satisfatória. O capitão Denny não está vivo para explicar a atitude que tomou e
não dispomos de outro elemento para elucidar a questão, a não ser o
testemunho do sr. Wickham. Como em grande parte desse caso, o que há é
suposição, e é com base em testemunhos prestados sob juramento, e não em
opiniões sem comprovação, que os senhores podem dar com segurança seu
veredicto: as circunstâncias sob as quais os membros do grupo de resgate
encontraram o corpo do capitão Denny e ouviram as palavras atribuídas ao
acusado. Os senhores ouviram a explicação do réu sobre o que quis dizer e
cabe aos senhores decidir se acreditam nele ou não. Se estiverem plenamente
convictos de que George Wickham é culpado do assassinato do capitão
Denny, então os senhores devem apresentar o veredicto de culpado; se não
tiverem essa convicção plena, o acusado tem o direito de ser absolvido. Agora
vou deixar que deliberem. Se desejarem se retirar para discutir o veredicto, há
uma sala à disposição.”
10
Ao nal do julgamento, Darcy sentia-se tão esgotado como se ele próprio
tivesse ocupado o banco dos réus. Estava ansioso para perguntar a opinião de
Alveston, na esperança de receber uma resposta tranquilizadora, mas o
orgulho e a consciência de que importunar o jovem advogado seria não só
irritante como inútil o manteve em silêncio. Não havia nada que ninguém
pudesse fazer, a não ser aguardar e procurar manter a esperança. O júri havia
preferido se retirar para debater o veredicto e, em sua ausência, a sala de
audiências tinha cado de novo tão ruidosa quanto uma enorme gaiola de
papagaios, enquanto a plateia discutia os testemunhos e fazia apostas sobre
qual seria o veredicto. Não tiveram de esperar muito. Menos de dez minutos
depois, os jurados voltaram à sala. Darcy ouviu o o cial de justiça perguntar
ao júri com voz alta e imponente: “Quem é o primeiro jurado?”.
“Sou eu, senhor.” O homem alto e moreno que havia encarado Darcy com
tanta frequência durante o julgamento e obviamente assumira o comando do
grupo se levantou.
“Os senhores chegaram a um veredicto?”
“Chegamos.”
“Consideram o prisioneiro culpado ou inocente?”
A resposta foi dada sem hesitação. “Culpado.”
“E esse é o veredicto de todos os senhores?”
“Sim, senhor.”
Darcy deduziu que provavelmente soltara um gemido. Sentiu a mão de
Alveston em seu braço, amparando-o. A sala se encheu de vozes — uma
mistura de grunhidos, gritos e protestos que foram cando cada vez mais
altos, até que, como que por uma espécie de compulsão coletiva, todos
emudeceram e voltaram os olhos para Wickham. Cercado pelo rebuliço,
Darcy fechou os olhos, depois se forçou a abri-los e xou-os no banco dos
réus. O rosto de Wickham tinha a rigidez e a palidez doentia de uma máscara
da morte. Ele abriu a boca como se fosse falar, mas nenhuma palavra saiu.
Estava agarrado ao corrimão do banco dos réus e pareceu perder o equilíbrio
por um momento. Darcy sentiu seus próprios músculos enrijecerem enquanto
observava Wickham se recuperar e, com evidente esforço, encontrar forças
para pôr-se ereto. Fitando o juiz, recobrou a voz, a princípio uma voz falha,
mas depois alta e clara. “Sou inocente dessa acusação, meritíssimo. Juro por
Deus que sou inocente.” De olhos arregalados, esquadrinhou
desesperadamente a sala de audiências como se procurasse um rosto amigo,
uma voz que con rmasse sua inocência. Em seguida, repetiu com mais
firmeza: “Sou inocente, meritíssimo, inocente”.
Darcy olhou em direção ao lugar onde vira a sra. Younge sentada, vestida
com sobriedade e em silêncio, em meio a sedas, musselinas e leques
tremulantes. Ela não estava mais lá. Devia ter saído assim que o veredicto fora
proferido. Darcy sabia que tinha de encontrá-la; precisava saber que papel ela
havia desempenhado na tragédia da morte de Denny, descobrir por que
assistira ao julgamento com os olhos cravados nos de Wickham, como se
alguma força, alguma coragem estivesse sendo transmitida entre eles.
Darcy se desvencilhou de Alveston e foi andando rumo à porta, abrindo
caminho por entre a multidão. A porta estava sendo mantida fechada à força
contra uma turba reunida do lado de fora, que, a julgar pelo clamor crescente,
estava determinada a entrar. A vozearia dentro da sala de audiências estava
aumentando de novo, perdendo o tom lamentoso e tornando-se mais raivosa.
Darcy teve a impressão de ouvir o juiz ameaçar chamar a polícia ou o Exército
para expulsar os desordeiros, e alguém perto dele disse: “Onde está o capuz
preto? Por que eles não vão buscar o maldito capuz e en am na cabeça
dele?”. Ouviu-se um grito como que de vitória e, olhando ao redor, Darcy viu
um quadrado preto sendo agitado acima da multidão por um rapaz que estava
trepado sobre os ombros de um companheiro. Com um estremecimento,
Darcy se deu conta de que aquilo era o capuz preto.
Lutou para conseguir manter seu lugar perto da porta e, quando a turba do
lado de fora conseguiu entreabri-la, ele deu um jeito de passar pela fresta e, às
cotoveladas, abriu passagem até a rua. Ali também havia tumulto, a mesma
cacofonia de grunhidos, berros e um coro de brados que Darcy achou serem
mais de pena do que de raiva. Um coche pesado estava parado em frente ao
tribunal e algumas pessoas puxavam o cocheiro, tentando arrancá-lo de seu
assento. O cocheiro gritava: “Não foi culpa minha. Vocês viram a senhora. Ela
se atirou na frente das rodas!”.
E lá estava ela, esmagada sob as rodas pesadas feito um animal desgarrado,
seu sangue escorrendo num arroio vermelho e empoçando debaixo das patas
dos cavalos. Cheirando o sangue, os cavalos relinchavam e se empinavam, e
era difícil para o cocheiro controlá-los. Tão logo viu aquela cena, Darcy virou
o rosto e vomitou violentamente na sarjeta. O odor acre parecia contaminar o
ar. Ele ouviu uma voz bradar: “Onde está o carro fúnebre? Por que não a
levam daqui? Não é certo deixar uma pessoa assim”.
O passageiro que estava no coche fez menção de sair, mas, vendo a
multidão, recuou e fechou a cortina, achando melhor esperar que os o ciais
de polícia chegassem e restaurassem a ordem. A multidão parecia crescer cada
vez mais, reunindo crianças que olhavam para aquilo sem compreender e
mulheres com bebês de colo que, assustados com o alarido, punham-se a
chorar. Não havia nada que Darcy pudesse fazer. Ele precisava voltar para a
sala de audiências e encontrar o coronel e Alveston. Quem sabe pudessem lhe
oferecer alguma esperança? Em seu íntimo, porém, sabia que não havia
nenhuma.
Então, ele viu o chapéu adornado com tas roxas e verdes. Devia ter caído
da cabeça dela e rolado pela calçada, parando aos pés dele. Darcy cou
olhando para o chapéu como que em transe. Ali perto, uma mulher trôpega,
que segurava um bebê aos berros debaixo de um braço e uma garrafa de gim
debaixo do outro, foi andando na direção dele, abaixou-se e botou o chapéu
na cabeça, torto. Sorrindo para Darcy, ela disse: “Não tem mais serventia para
ela, não é?”. E foi embora.
11
Tal qual um novo espetáculo a concorrer pela atenção da multidão, o
cadáver havia feito parte das pessoas antes aglomeradas diante do tribunal
acorrer para a rua, permitindo que Darcy conseguisse abrir caminho entre o
restante e fosse arrastado porta adentro com as últimas seis pessoas a receber
permissão para entrar. Alguém bradou com uma voz retumbante: “Uma
con ssão! Trouxeram uma con ssão!”. Imediatamente a corte cou em
polvorosa. Por um momento, pareceu que a multidão ia arrastar Wickham do
banco dos réus, mas ele logo foi cercado por guardas do tribunal e, depois
de manter-se de pé por alguns instantes de atordoamento, sentou-se e cobriu o
rosto com as mãos. O alarido aumentou. Foi então que Darcy viu o dr. McFee
e o reverendo Percival Oliphant cercados de o ciais de polícia. Espantado
com a presença deles, cou observando duas pesadas cadeiras serem
arrastadas até a frente da sala e os dois desabarem nelas como que exaustos.
Tentou en ar-se por entre as pessoas e chegar mais perto deles, mas a
multidão era uma massa impenetrável e ondeante.
Várias pessoas haviam abandonado seus lugares e agora se aproximavam
do juiz. Erguendo seu martelo, ele deu vigorosas pancadas, até que por m
conseguiu fazer com que sua voz fosse ouvida e a multidão se calasse.
“O cial, tranque as portas. Se houver mais algum tumulto, vou ordenar que o
público se retire. O documento que examinei parece ser uma con ssão
assinada diante da presença dos dois cavalheiros aqui presentes, o dr. Andrew
McFee e o reverendo Percival Oliphant. Cavalheiros, estas assinaturas são
suas?”
O dr. McFee e o sr. Oliphant responderam ao mesmo tempo. “São,
meritíssimo.”
“E este documento foi escrito pela pessoa cujo nome está assinado acima
das assinaturas dos senhores?”
Quem respondeu foi o dr. McFee. “Parte dele, sim, meritíssimo. William
Bidwell estava à beira da morte e redigiu sua con ssão na cama, apoiado em
travesseiros, mas creio que a letra dele, embora trêmula, esteja clara o
su ciente para permitir a leitura. O último parágrafo, como se percebe, está
escrito numa caligra a diferente. Fui eu que o escrevi, conforme as palavras
que me foram ditadas por William Bidwell. Nessa hora ele ainda conseguia
falar, mas não teve mais forças para escrever, salvo para assinar seu nome.”
“Então vou pedir ao advogado de defesa que o leia em voz alta. Depois,
decidirei qual será a melhor forma de proceder. Se alguém interromper a
leitura, será expulso do tribunal.”
Jeremiah Mickledore pegou o documento e, ajeitando os óculos, correu os
olhos pelas folhas; em seguida, começou a ler em voz alta e clara. A sala
inteira ficou em silêncio.
Eu, William John Bidwell, faço esta con ssão por livre e espontânea vontade,
oferecendo um relato verdadeiro do que aconteceu na oresta de Pemberley na
noite de 14 de outubro do ano passado. Faço isso com a certeza de que estou
prestes a morrer. Eu estava na cama, no quarto da frente do andar de cima. Não
havia mais ninguém na cabana, a não ser meu sobrinho, Georgie, que estava no
berço. Meu pai estava em Pemberley, trabalhando. Tínhamos ouvido as galinhas
cacarejarem alto e minha mãe e minha irmã, Louisa, foram ver o que estava
acontecendo, com medo de que alguma raposa andasse rondando o galinheiro.
Como estou muito fraco, minha mãe não gosta que saia da cama, mas eu quis
olhar pela janela. Consegui me levantar e fui me apoiando na cama até chegar
perto da janela. Ventava forte e o luar estava claro e, quando olhei lá para fora,
vi um o cial de uniforme sair do meio da oresta e car olhando para a cabana.
Eu me escondi atrás da cortina para poder espiar sem ser visto.
Minha irmã Louisa tinha contado que um o cial da milícia que cara
aquartelada em Lambton no ano passado tinha atentado contra a virtude dela, e
eu soube instintivamente que era aquele homem e que ele tinha voltado para
levá-la com ele. Por que mais estaria ali parado na frente da cabana, numa
noite como aquela? Meu pai não estava em casa para proteger minha irmã, e
sempre me causou muito sofrimento pensar que sou um inválido inútil, incapaz
de trabalhar enquanto ele trabalha tanto, fraco demais para proteger minha
família. Então calcei meus chinelos e desci a escada como pude. Peguei o
atiçador da lareira e saí.
O o cial começou a andar na minha direção e levantou a mão em sinal de
que vinha em paz, mas eu sabia que não era verdade. Cambaleando, dei alguns
passos em direção a ele e esperei que chegasse perto de mim. Depois, levantei o
atiçador e bati na cabeça dele com toda a força que pude. Não foi uma pancada
forte, mas fez um corte na testa dele e o corte começou a sangrar. O homem
esfregou os olhos, tentando limpar o sangue, mas eu sabia que ele não estava
enxergando direito. Aos tropeções, voltou para o meio das árvores e senti uma
grande sensação de vitória, que me deu força. Ele já tinha sumido de vista
quando ouvi um estrondo, como se uma árvore tivesse caído. Fui andando pela
oresta me apoiando no tronco das árvores e vi, na claridade da lua, que ele
tinha tropeçado na borda do túmulo do cachorro e caído para trás, batendo a
cabeça na lápide. Era um homem pesado e o ruído que fez quando caiu tinha
sido muito alto, mas eu não sabia que a queda tinha sido fatal. Só o que senti foi
orgulho por ter conseguido salvar minha irmã tão querida. Enquanto estava lá
parado, olhando, eu o vi rolar para o lado, depois car de quatro no chão e pôr-
se a engatinhar. Sabia que estava tentando fugir de mim, embora eu não tivesse
força para ir atrás dele. Pensar que ele não ia mais voltar me deixou muito
contente.
Não tenho nenhuma lembrança de como voltei para a cabana, mas lembro
que limpei a ponta do atiçador com meu lenço e joguei o lenço no fogo. Depois
disso, só me lembro da minha mãe me ajudando a subir a escada e a ir para o
quarto, ralhando comigo por ter feito a tolice de sair da cama. Não falei nada
sobre meu encontro com o o cial. No dia seguinte, ela me contou que o coronel
Fitzwilliam tinha ido à cabana mais tarde para falar dos dois cavalheiros que
haviam desaparecido, mas eu não sabia nada sobre isso.
Não contei nada a ninguém mesmo após saber que o sr. Wickham ia ser levado
a julgamento. Continuei calado durante os meses em que ele cou preso em
Londres, mas depois vi que precisava fazer esta con ssão para que, se ele fosse
considerado culpado, todos soubessem a verdade. Decidi contar ao reverendo
Oliphant e ele me disse que o julgamento do sr. Wickham seria realizado em
poucos dias e que eu tinha de escrever esta con ssão o quanto antes para que
fosse levada ao tribunal antes do início do julgamento. O sr. Oliphant na mesma
hora mandou chamar o dr. McFee e esta noite confessei tudo aos dois e perguntei
ao doutor quanto tempo de vida previa que eu ainda tivesse. Ele disse que não
tinha como ter certeza, mas que era pouco provável que eu sobrevivesse por mais
de uma semana. O dr. McFee também insistiu comigo para que eu escrevesse esta
con ssão e a assinasse, e eu concordei. O que escrevi aqui é a mais pura verdade,
e eu a revelo sabendo que em breve terei de responder por todos os meus pecados
diante do trono de Deus e na esperança de merecer Sua misericórdia.
“Ele levou mais de duas horas para escrever esse documento e só teve
forças para isso graças a um remédio que lhe dei”, disse o dr. McFee. “O
reverendo Oliphant e eu não temos dúvida de que ele sabia que estava prestes
a morrer e de que o que escreveu é sua confissão da verdade a Deus.”
Depois de alguns instantes de silêncio, um grande alarido novamente tomou
conta da sala. As pessoas se levantaram, berrando e batendo os pés no chão,
e alguns homens iniciaram um novo coro de brados, ao qual toda a multidão
aderiu, gritando em uníssono: “Soltem o réu! Soltem o réu! Soltem o réu!”. Eram
tantos os guardas e o ciais de justiça que agora cercavam o banco dos réus
que mal dava para ver Wickham.
Mais uma vez a voz retumbante pediu silêncio. O juiz se dirigiu ao dr.
McFee. “O senhor poderia me explicar por que só trouxe à corte esse
documento tão importante no último minuto do julgamento, quando a
sentença estava prestes a ser proferida? Essa sua chegada desnecessariamente
dramática é um insulto a mim e a esta corte, e exijo uma explicação.”
“Pedimos sinceras desculpas, meritíssimo”, disse o dr. McFee. “A data que
consta no documento é de três dias atrás, quando eu e o reverendo Oliphant
ouvimos a con ssão, mas já era tarde da noite. No dia seguinte, bem cedo,
partimos para Londres na minha carruagem. Só paramos para fazer breves
refeições e dar de beber aos cavalos. Como o senhor pode ver, meritíssimo, o
reverendo Oliphant, que já tem mais de sessenta anos, está exausto.”
O juiz voltou a falar, num tom rabugento: “Já estou cansado de julgamentos
em que provas vitais só são apresentadas na última hora. No entanto, parece
que os senhores não tiveram culpa e aceito suas desculpas. Agora vou
conversar com meus conselheiros sobre qual deve ser a próxima medida a ser
tomada. O réu será levado de volta à prisão e lá permanecerá enquanto a
questão de um perdão real, que é obviamente prerrogativa da Coroa, é
considerada pelo secretário de Estado, pelo presidente da Câmara dos Lordes,
pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça e outras autoridades judiciais.
Eu próprio, como juiz que presidiu o julgamento, também vou participar da
decisão. À luz deste documento, não vou proferir a sentença, mas o veredicto
do júri tem de ser levado em conta. Os senhores podem ter certeza,
cavalheiros, de que os tribunais da Inglaterra não condenam à morte um
homem comprovadamente inocente”.
Houve certo murmurinho, mas a sala de audiências começou a esvaziar.
Wickham estava de pé, com as mãos agarradas ao corrimão do banco dos
réus, os nós dos dedos brancos. Imóvel e pálido, parecia em transe. Um dos
guardas, levantando seus dedos um a um, fez com que ele largasse o
corrimão, como se fosse uma criança. Um caminho se abriu entre o banco dos
réus e uma porta lateral. Wickham, sem olhar nenhuma vez para trás, foi
levado em silêncio de volta à sua cela.
livro seis
GRACECHURCH STREET
1
Fora acertado que Alveston permaneceria no tribunal com o sr. Mickledore,
para o caso de sua ajuda ser necessária durante as formalidades a serem
cumpridas para o perdão, e então Darcy, saudoso de Elizabeth, voltou
sozinho para a Gracechurch Street. Já passava de quatro horas quando
Alveston foi ter com Darcy para dizer que previa-se que todos os
procedimentos para a obtenção de um perdão real estariam concluídos dois
dias depois, até o m da tarde, quando então ele poderia conduzir Wickham
da prisão à casa da Gracechurch Street. Esperava-se que isso pudesse ser feito
de modo a atrair a mínima atenção possível. Uma caleche alugada caria de
prontidão diante da porta dos fundos da prisão Coldbath e outra diante da
porta da frente, como chamariz. Era uma grande vantagem terem conseguido
manter em segredo o fato de Darcy e Elizabeth estarem hospedados na casa
dos Gardiner e não, como todos certamente esperavam, num hotel elegante, e
se fosse possível evitar que o público tomasse conhecimento da hora exata em
que Wickham seria solto, havia grande chance de conseguir chegar incógnito
à Gracechurch Street. Por ora, ele estava de volta a Coldbath, mas o capelão
de lá, o reverendo Cornbinder, que zera amizade com ele, havia
providenciado para que Wickham se hospedasse com ele e a esposa na noite
de sua soltura, e Wickham tinha expressado o desejo de ir direto para lá
depois de ter contado sua história para Darcy e o coronel, recusando o
convite do sr. e da sra. Gardiner para permanecer na Gracechurch Street. Os
Gardiner haviam se sentido no dever de fazer o convite, mas o alívio foi geral
quando foi recusado.
“Parece um milagre a vida de Wickham ter sido salva, mas o veredicto
certamente foi cruel e irracional. Wickham jamais deveria ter sido considerado
culpado”, disse Darcy.
“Não concordo”, Alveston retorquiu. “Os jurados entenderam o que ele
disse e repetiu como uma con ssão, e acreditaram. Além disso, muita coisa
cou sem explicação. Teria mesmo o capitão Denny saído da caleche e se
embrenhado numa oresta densa e, para ele, desconhecida numa noite como
aquela apenas para evitar o constrangimento de estar presente quando a sra.
Wickham chegasse a Pemberley? Ela era, a nal, irmã da sra. Darcy. Não seria
muito mais provável que Wickham tivesse se envolvido em alguma transação
ilegal em Londres e, como Denny não estava mais disposto a ser seu cúmplice,
resolvido que tinha de silenciá-lo antes que eles saíssem de Derbyshire?
“Mas há ainda outra coisa que pode ter contribuído para o veredicto e da
qual só tomei conhecimento quando conversei com um dos jurados ainda no
tribunal”, continuou Alveston. “Ao que parece, o primeiro jurado tem uma
sobrinha viúva de quem ele gosta muito, cujo marido participou da rebelião
irlandesa e foi morto. Desde então, ele nutre um ódio implacável contra o
Exército. Se isso tivesse sido revelado, sem dúvida Wickham poderia ter
rejeitado esse jurado em particular, mas os sobrenomes eram diferentes e era
improvável que o segredo viesse a ser descoberto. Wickham deixou claro
antes do julgamento que não tinha nenhuma intenção de contestar a escolha
dos jurados, como era direito dele, nem de convocar três testemunhas para
depor sobre seu caráter. Parece ter adotado desde o início uma atitude
otimista, mas essencialmente fatalista. Tinha sido um o cial respeitado, ferido
quando servia seu país, e agora estava contente em ser julgado por ele. Se sua
palavra não era suficiente, onde poderia buscar justiça?”
“Mas há uma coisa que me preocupa e sobre a qual eu gostaria de saber sua
opinião”, disse Darcy. “Você realmente acredita, Alveston, que um homem
moribundo poderia ter desferido aquele primeiro golpe?”
“Acredito”, respondeu Alveston. “Já vi casos, no decorrer da minha carreira,
em que pessoas muito doentes foram capazes de encontrar uma força
espantosa quando o esforço foi necessário. O golpe foi leve e, depois que o
desferiu, Bidwell não chegou a ir muito longe mata adentro, mas não acredito
que tenha voltado para casa sem ajuda. Acho mais provável que tenha
deixado a porta da cabana aberta e que a mãe tenha saído, o encontrado e o
ajudado a voltar para casa e para a cama. Deve ter sido ela que limpou a
ponta do atiçador e queimou o lenço. Mas no meu entender, e tenho certeza
de que no do senhor também, tornar pública essa suspeita não contribuiria em
nada para a justiça. Não existe prova alguma e jamais poderá existir, e acho
que devemos car felizes com o perdão real, que será concedido, e com o
fato de que Wickham, que demonstrou uma admirável coragem ao longo de
toda essa provação, estará livre para começar o que esperamos que seja uma
vida mais bem-sucedida.”
Eles jantaram cedo e num silêncio quase total. Darcy havia imaginado que o
alívio de saber que Wickham escaparia de um enforcamento público seria uma
bênção tão grande que outras preocupações pareceriam menos importantes,
mas, passada a angústia maior, outras menores invadiram sua cabeça. Que
história eles iam ouvir quando Wickham chegasse? Como ele e Elizabeth
evitariam o horror de ser alvo da curiosidade pública enquanto
permanecessem na casa dos Gardiner? E que papel o coronel teria
desempenhado naquele misterioso enredo, se é que desempenhara algum?
Darcy sentiu-se tomado por uma necessidade desesperada de voltar para
Pemberley e por uma premonição, que admitia ser irracional, de que algo de
errado acontecia por lá. Sabia que, como ele, Elizabeth raramente conseguia
dormir bem fazia meses e que essa pesada sensação de desastre iminente, que
ela também sentia, devia-se em grande parte a um cansaço físico e mental
esmagador. O resto do grupo parecia contagiado pela mesma culpa de não
conseguir celebrar da forma adequada uma libertação aparentemente
milagrosa. O sr. e a sra. Gardiner foram muito solícitos, mas o delicioso jantar
cou quase intocado e os hóspedes se recolheram pouco depois de o último
prato ser servido.
No café da manhã cou claro que o estado de espírito do grupo estava
mais leve; a primeira noite livre de premonições medonhas havia
proporcionado descanso e um sono profundo, e eles agora pareciam mais
preparados para lidar com o que quer que o dia pudesse lhes trazer. O
coronel ainda estava em Londres e chegou naquele momento à casa da
Gracechurch Street. Depois de cumprimentar o sr. e a sra. Gardiner, ele disse:
“Tenho coisas a lhe contar a respeito da minha participação nessa história
toda, Darcy. São fatos que agora posso revelar em segurança e que você tem
o direito de saber antes de Wickham chegar. Pre ro conversar com você a
sós, mas pode, claro, transmitir o que vou lhe contar à sra. Darcy”.
O coronel explicou à sra. Gardiner o motivo de sua chegada e ela sugeriu
que ele e Darcy usassem a sala de estar, que, a seu ver, era o cômodo mais
confortável e tranquilo para abrigar um encontro fadado a ser difícil para
todos os envolvidos e que ela havia preparado, com a solicitude de sempre,
para a reunião que seria realizada no dia seguinte, quando Wickham chegasse
com Alveston.
Os dois se sentaram e, inclinando-se para a frente em sua cadeira, o coronel
disse: “Achei que era importante falar primeiro para que você possa julgar o
relato de Wickham em contraste com o meu. Nem eu nem ele temos motivo
para sentir orgulho do que zemos, mas agi sempre com a melhor das
intenções e lhe z a cortesia de acreditar que ele fez o mesmo. Não pretendo
justificar minha conduta nessa história, apenas explicá-la, e tentarei ser breve.
“No nal de novembro de 1802, recebi uma carta de Wickham na minha
casa em Londres, onde residia na época. Nela, ele dizia brevemente que estava
enfrentando um problema e caria grato se eu aceitasse encontrá-lo, na
esperança de que pudesse lhe oferecer conselhos e alguma ajuda. Eu não
queria de forma alguma me envolver, mas tinha uma dívida com ele, um tipo
de dívida que não podia ignorar. Durante a rebelião irlandesa, Wickham
salvou a vida de um jovem capitão que estava sob meu comando. O rapaz era
meu a lhado e estava gravemente ferido. Rupert não sobreviveu por muito
tempo aos ferimentos, mas, ao resgatá-lo, Wickham deu à mãe dele e a mim a
oportunidade de dizer adeus e de garantir que ele morresse com conforto. Era
um favor que nenhum homem honrado poderia esquecer. Então, quando li a
carta, aceitei me encontrar com ele.
“A história que Wickham me contou não é incomum e é fácil de relatar.
Como você sabe, sua esposa era recebida regularmente em Highmarten, mas
não ele. Nessas ocasiões, Wickham ficava hospedado numa estalagem local ou
numa pensão, o lugar mais barato possível, e se ocupava da melhor forma
que podia até que a sra. Wickham decidisse se juntar a ele. Os dois na época
levavam uma vida itinerante e difícil. Depois de deixar o Exército — a meu ver
uma decisão extremamente infeliz —, ele cou pulando de emprego em
emprego, sem car muito tempo em nenhum. A última pessoa a lhe oferecer
trabalho tinha sido um baronete, Sir Walter Elliot. Wickham não foi explícito
ao revelar por que não trabalhava mais para o baronete, porém disse o
su ciente para deixar claro que o baronete era suscetível demais aos encantos
da sra. Wickham, o que preocupava a srta. Elliot, e que ele próprio, Wickham,
acalentava a ideia de cortejar a lha do baronete. Estou lhe contando isso para
que saiba o tipo de vida que eles levavam. Quando me procurou, Wickham
estava em busca de um novo trabalho. Enquanto isso, a sra. Wickham havia
encontrado um lar confortável mas temporário com a sra. Bingley, em
Highmarten, e ele estava se arranjando como podia.
“Não sei se você se lembra, mas o verão de 1802 foi particularmente quente
e bonito. Então, para economizar dinheiro, Wickham passou algum tempo
dormindo ao ar livre; para um soldado, isso não é nenhum grande sacrifício.
Ele sempre havia gostado da oresta de Pemberley e, saindo de uma
estalagem perto de Lambton, caminhava muitas milhas para passar os dias e às
vezes algumas noites lá, dormindo debaixo das árvores. Foi lá que conheceu
Louisa Bidwell. Ela também andava aborrecida e solitária. Tinha parado de
trabalhar em Pemberley para ajudar a mãe a cuidar do irmão doente, e o
noivo, muito ocupado com suas tarefas, só raramente ia visitá-la. Ela e
Wickham se encontraram por acaso na oresta. Ele nunca conseguiu resistir a
uma mulher bonita e o resultado talvez tenha sido quase inevitável, dado o
caráter dele e a vulnerabilidade dela. Começaram a se encontrar com
frequência e, algum tempo depois, ela lhe contou que descon ava estar
grávida. A princípio, Wickham agiu com mais generosidade e compaixão do
que aqueles que o conhecem poderiam esperar. Parecia, na verdade, ter um
afeto genuíno por ela, talvez estivesse até um pouco apaixonado. Fossem
quais fossem os motivos ou os sentimentos dele, juntos os dois traçaram um
plano. Ela escreveria para a irmã casada, que mora em Birmingham, iria para
lá assim que começasse a haver risco de sua condição se tornar óbvia e lá
daria à luz o bebê, que passaria por lho da irmã. Wickham tinha esperança
de que o sr. e a sra. Simpkins aceitassem a responsabilidade de criar o bebê
como lho, mas reconhecia que precisariam de dinheiro. Foi por isso que me
procurou e, de fato, não sei a quem mais poderia ter pedido ajuda.
“Embora não tivesse ilusões a respeito do caráter de Wickham, nunca senti
um rancor tão forte dele quanto você, Darcy, e estava disposto a ajudar. Havia
também um motivo mais forte: o desejo de livrar Pemberley de qualquer
ameaça de escândalo. Como Wickham se casou com a srta. Lydia Bennet, o
lho dele, embora ilegítimo, seria sobrinho da sra. Darcy e seu, e também dos
Bingley. O acordo que zemos foi que eu lhe emprestaria trinta libras, sem
juros, e Wickham me pagaria em prestações quando pudesse. Eu não tinha
nenhuma ilusão de que receberia esse dinheiro de volta, mas era um valor do
qual podia prescindir e, na verdade, teria pagado mais ainda para garantir que
um lho bastardo de George Wickham não morasse nas terras de Pemberley
ou brincasse na floresta.”
“Foi uma generosidade tão grande que beira a excentricidade e,
conhecendo o homem como você conhece, alguns diriam que foi uma
estupidez”, disse Darcy. “Só posso supor que você tivesse um interesse mais
pessoal do que o desejo de evitar que a oresta de Pemberley fosse
conspurcada.”
“Se tive, não foi nada que me desonre. Admito que, na época, eu acalentava
um desejo, uma expectativa mesmo, que não era insensato, mas que agora
reconheço que nunca vai se realizar. Dada a esperança que eu então
alimentava e sabendo o que eu sabia, creio que você também teria elaborado
algum plano para salvar sua casa e a si próprio do constrangimento e da
ignomínia.”
Sem esperar por qualquer resposta, o coronel continuou. “O plano era
relativamente simples. Depois de dar à luz, Louisa voltaria para a cabana da
oresta com a criança, sob o pretexto de que os pais e o irmão deviam estar
desejosos de conhecer o novo membro da família. Era importante para
Wickham, obviamente, ver que a criança existia e estava viva e saudável. O
dinheiro seria então entregue na manhã do dia do baile de Lady Anne,
quando Louisa e Wickham sabiam que todos em Pemberley estariam muito
ocupados. Uma caleche caria à espera na estrada da oresta. Depois, Louisa
levaria o menino de volta para a casa da irmã e de Michael Simpkins. As únicas
pessoas que estariam na cabana da oresta àquela hora seriam a sra. Bidwell e
Will, e eles eram também as únicas pessoas que tinham conhecimento do
plano. Não era um segredo que uma moça pudesse esconder da mãe,
tampouco de um irmão de quem era muito próxima e que nunca saía de casa.
Os três estavam convictos de que era melhor Bidwell não saber de nada.
Louisa havia dito à mãe e ao irmão que o pai do menino era um o cial da
milícia que cara aquartelada em Lambton no verão anterior. Ela não tinha
ideia na época que seu amante era Wickham.”
Nesse momento, o coronel fez uma pausa, pegou uma taça de vinho e
bebeu lentamente. Nenhum dos dois disse nada; caram em silenciosa espera.
Passaram-se pelo menos dois minutos antes que o coronel retomasse sua
narrativa.
“Então, até onde Wickham e eu sabíamos, tudo havia sido acertado de
modo satisfatório. O bebê seria aceito e amado pelos tios e nunca saberia
quem eram seus verdadeiros pais, Louisa se casaria com o noivo, como estava
planejado antes, e assim tudo se resolveria.
“Wickham não é de agir sozinho quando tem a possibilidade de encontrar
um aliado ou companheiro, uma falta de prudência que provavelmente
explica o desatino que cometeu levando consigo a srta. Lydia Bennet quando
fugiu de seus credores e de suas obrigações em Brighton. Desta vez,
depositou sua con ança no capitão Denny e principalmente na sra. Younge,
que, ao que parece, exercia um papel controlador na vida de Wickham desde
que ele era jovem. Creio que fossem as contribuições nanceiras regulares
dela que basicamente sustentavam Wickham e a esposa quando ele estava
desempregado. Ele pediu à sra. Younge que fosse em segredo à oresta para
ver o bebê e depois lhe dissesse como ele estava. Então, passando-se por
alguém que está visitando a região, ela foi ao encontro de Louisa e do bebê
na oresta, conforme já tinha sido combinado. O resultado, porém, foi
adverso num aspecto; a sra. Younge se afeiçoou imediatamente ao menino e
decidiu que era ela que devia adotá-lo e não os Simpkins. Então, o que
parecia uma desgraça acabou contando a favor dela: Michael Simpkins
escreveu dizendo que não estava disposto a criar o lho de outro homem.
Aparentemente, as duas irmãs não haviam se entendido muito bem durante o
tempo em que Louisa cara con nada, e a sra. Simpkins já tinha três lhos e
sem dúvida ainda teria outros. Os Simpkins cuidariam do menino por mais três
semanas para que Louisa pudesse procurar um lar para ele, mas não mais que
isso. Louisa deu a notícia a Wickham e ele a transmitiu à sra. Younge. Louisa
estava, é claro, desesperada. Não sabia como encontrar um lar para o menino,
e logo ela e Wickham começaram a achar que a oferta da sra. Younge era a
solução para todos os problemas dos dois.
“Wickham havia informado a sra. Younge do meu interesse nesse assunto e
das trinta libras que havia prometido e já tinha, aliás, dado a Wickham. Ela
sabia que eu me hospedaria em Pemberley para ir ao baile de Lady Anne,
como era meu hábito quando estava de folga do Exército — Wickham sempre
fez questão de saber o que se passava em Pemberley e tinha notícias através
da esposa, que fazia visitas frequentes a Highmarten. A sra. Younge enviou
uma carta para meu endereço em Londres na qual dizia que estava interessada
em adotar o menino, que caria hospedada na King’s Arms durante dois dias
e que desejava discutir essa possibilidade comigo, já que soubera que eu era
uma das partes envolvidas. Marcamos um encontro às nove horas da noite da
véspera do baile de Lady Anne, quando ela supôs que todos estariam
ocupados demais para notar minha ausência. Não tenho dúvida, Darcy, de
que você achou não só estranho, mas também indelicado da minha parte ter
saído da sala de música de maneira tão peremptória, com a desculpa de que
queria andar a cavalo. Eu não tinha outra escolha senão ir ao tal encontro,
embora não tivesse praticamente nenhuma dúvida do que a sra. Younge
pretendia. Você deve se lembrar que quando a conhecemos ela era uma
mulher não só bonita, mas também elegante, e achei que ela continuava
bonita, embora, depois de oito anos, talvez não a tivesse reconhecido se já
não soubesse de quem se tratava.
“Ela foi muito persuasiva. Você há de lembrar, Darcy, que eu só a tinha visto
uma vez, quando a entrevistamos na época em que estávamos procurando
uma acompanhante para a srta. Georgiana. Então, não preciso lhe dizer o
quanto sabia ser encantadora e sensata. Ela obviamente tinha uma boa
situação nanceira, pois chegou à estalagem em sua própria carruagem com
cocheiro e acompanhada por uma criada. Para provar que tinha condições de
sustentar o menino, ela me mostrou documentos do banco no qual tinha
conta, mas disse — quase com um sorriso — que era uma mulher cautelosa e,
portanto, esperava que aquelas trinta libras fossem duplicadas. Mas disse
também que depois disso não seria preciso fazer mais nenhum pagamento e
me garantiu que, se fosse adotado por ela, o menino caria longe de
Pemberley para sempre.”
“Você estava se pondo nas mãos de uma mulher que sabia que era corrupta
e que com quase toda a certeza era uma chantagista”, disse Darcy. “Se só
ganhasse dinheiro alugando quartos, como ela poderia viver com tamanha
opulência? Você já sabia, pelas nossas negociações anteriores com ela, que
tipo de mulher era.”
“Quem fez essas negociações foi você, Darcy, não eu”, retrucou o coronel.
“Reconheço que tomamos juntos a decisão de contratá-la como acompanhante
da srta. Darcy, mas essa foi a única vez em que estive com ela antes daquela
noite. Você pode ter negociado com ela depois, mas não estou a par disso
nem quero estar. Ouvindo-a falar e examinando os documentos que ela havia
trazido, quei convencido de que a solução que estava oferecendo para o
bebê de Louisa era não só sensata, mas justa. A sra. Younge claramente tinha
se afeiçoado ao bebê e estava disposta a assumir a responsabilidade pela
educação e pelo futuro sustento do menino. Acima de tudo, ele caria
totalmente afastado de Pemberley e não teria nenhuma ligação com a
propriedade. Esse era o principal fator para mim, e creio que teria sido para
você também. Jamais teria feito nada contra a vontade da mãe, e não fiz.”
“Será que Louisa realmente caria feliz se o lho fosse entregue a uma
mulher que era uma chantagista e vivia à custa alheia? Você realmente
acreditou que a sra. Younge não ia lhe pedir mais dinheiro várias e várias
vezes?”
O coronel sorriu. “Darcy, às vezes eu me espanto com sua ingenuidade.
Como conhece pouco o mundo que existe fora da sua amada Pemberley. A
natureza humana é bem mais complicada do que supõe. A sra. Younge era
uma chantagista, sem dúvida, mas uma chantagista bem-sucedida, e o negócio
que estava propondo me pareceu con ável, desde que administrado com
discrição e sensatez. São os maus chantagistas que acabam na prisão ou na
forca. Ela pedia o máximo que suas vítimas podiam pagar, mas nunca levou
ninguém à bancarrota nem ao desespero, e cumpria sua palavra. Não tenho
dúvida de que pagou pelo silêncio dela quando a despediu. Alguma vez ela
falou para alguém sobre a época em que foi acompanhante da srta. Darcy? E
quando Wickham fugiu com Lydia, você deve ter pagado uma boa quantia
para que ela lhe desse o endereço dos dois, mas alguma vez ela tocou nesse
assunto com alguém? Não estou defendendo a sra. Younge, sei o que ela era,
mas acho mais fácil lidar com alguém assim do que com a maioria dos
moralistas.”
“Não sou tão ingênuo quanto você pensa, Fitzwilliam. Faz tempo que sei
como ela administrava os negócios. Então, o que aconteceu com a carta que
ela lhe enviou? Seria interessante ver que promessas aquela mulher fez para
convencê-lo não só a apoiar seu plano de adotar a criança, mas a dar mais
dinheiro ainda. Agora sou eu que digo que você não pode ser ingênuo a
ponto de imaginar que Wick ham ia lhe pagar as trinta libras.”
“Queimei a carta naquela noite em que nós dois dormimos na biblioteca.
Esperei você pegar no sono e a joguei no fogo. Achei que não teria mais
nenhuma utilidade. Mesmo que os motivos da sra. Younge fossem suspeitos e
ela traísse sua palavra, como eu poderia tomar alguma medida judicial contra
ela? Sempre acreditei que cartas que contêm informações que não possam vir
a público devem ser destruídas; não há outra maneira segura de garantir que
não venham a ser lidas. Quanto ao dinheiro, propus à sra. Younge, e com
toda a con ança, que ela se encarregasse da tarefa de convencer Wickham a
lhe entregar as trinta libras. Eu estava certo de que ela daria conta da tarefa;
tinha um poder de convencimento e uma experiência que eu não tinha.”
“E quando você sugeriu que dormíssemos na biblioteca e depois acordou
cedo e foi ao quarto onde Wickham estava — isso tudo também fazia parte do
seu plano?”
“Se o encontrasse acordado e sóbrio e tivesse a oportunidade, eu pretendia
convencê-lo de que as circunstâncias sob as quais ele havia recebido as trinta
libras tinham de permanecer em absoluto sigilo e ele não deveria fazer
nenhuma menção a elas em nenhum tribunal, a menos que eu próprio
revelasse a verdade, quando então ele poderia con rmar meu depoimento. Se
fosse interrogado a esse respeito pela polícia ou no tribunal, eu diria que
havia lhe emprestado as trinta libras para que pagasse uma dívida de honra, o
que de fato era verdade, e que dera a ele minha palavra de que o motivo do
empréstimo jamais seria revelado.”
“Sendo você quem é, coronel e Lorde Hartlep, duvido que alguma corte o
coagisse a quebrar sua palavra. Mas eles poderiam querer apurar se o dinheiro
se destinava a Denny”, disse Darcy:
“Se quisessem, eu poderia lhes garantir que não. Era importante para a
defesa que isso fosse confirmado no julgamento.”
“Eu já havia mesmo me perguntado por que, antes de sairmos em busca de
Denny e Wickham, você teria ido às pressas falar com Bidwell para dissuadi-lo
de juntar-se a nós na caleche e de voltar para a cabana da oresta. Você agiu
antes mesmo que a sra. Darcy tivesse a chance de dar instruções a Stoughton
ou à sra. Reynolds. Pareceu-me, na hora, que aquela sua atitude tão prestativa
era desnecessária e até impertinente. Mas agora entendo por que era
importante manter Bidwell longe da cabana na oresta naquela noite e por
que você fez questão de ir até lá para avisar Louisa.”
“Fui impertinente e peço desculpas tardias por isso. Era vital, claro, que as
duas mulheres fossem informadas de que o plano de entregar o bebê no dia
seguinte talvez tivesse de ser abandonado. Eu estava cansado de tantos
subterfúgios e achei que estava na hora de dizer a verdade. Contei a elas que
Wickham e o capitão Denny estavam perdidos na oresta e que o pai do bebê
de Louisa era casado com a irmã da sra. Darcy.”
“Louisa e a mãe devem ter cado num estado terrível de a ição”, disse
Darcy. “É difícil imaginar o choque que foi para as duas descobrir que o
menino era lho bastardo de Wickham e que ele e um amigo estavam
perdidos na floresta. Quando ouviram os tiros, devem ter receado o pior.”
“Não havia nada que eu pudesse fazer para tranquilizá-las. Não havia tempo.
Quando revelei a verdade, a sra. Bidwell exclamou: ‘Bidwell vai morrer se
souber disso! Um lho de Wickham aqui, na cabana da oresta! A desonra
para Pemberley, o choque terrível para o patrão e a sra. Darcy, a desgraça
para Louisa e para nós todos’. Foi interessante a ordem em que ela pôs as
coisas. Eu estava mais preocupado com Louisa. Ela quase desmaiou, depois
foi cambaleando até uma cadeira ao pé da lareira e lá cou, tremendo
violentamente. Eu sabia que ela estava em choque, mas não havia nada que
pudesse fazer. Já tinha me demorado muito ali, por certo mais do que você,
Darcy, e Alveston esperavam.”
“Antes de Bidwell, o pai e o avô dele haviam morado naquela cabana e
trabalhado para a minha família”, disse Darcy. “A angústia das duas era uma
consequência natural dessa lealdade. E, de fato, se o menino tivesse
permanecido em Pemberley, ou mesmo visitado a propriedade regularmente,
Wickham teria uma desculpa para entrar na minha casa e se aproximar da
minha família, o que me causaria um profundo desgosto. Nem Bidwell nem a
mulher dele jamais viram Wickham depois de adulto, mas o fato de ser meu
cunhado e mesmo assim continuar não sendo bem-vindo em Pemberley deve
ter lhes servido como um sinal do quanto era profunda e indelével a
desavença entre nós.”
O coronel continuou: “E então encontramos o corpo de Denny e, até o dia
raiar, a sra. Younge e toda a gente da estalagem King’s Arms e, na verdade, da
região inteira saberia que um assassinato fora cometido na oresta de
Pemberley e que Wickham havia sido preso. Alguém acreditaria que Pratt não
havia contado nada quando fora à King’s Arms naquela noite? Eu não tinha
dúvida de que a reação da sra. Younge teria sido voltar imediatamente para
Londres, sem o bebê. Mas é possível que isso não signi que que ela tenha
desistido permanentemente da adoção. Talvez Wickham, quando chegar,
possa nos dizer se ela desistiu ou não. O sr. Cornbinder virá com ele?”.
“Imagino que sim”, respondeu Darcy. “Ao que parece, o capelão fez muito
bem a Wickham. Espero que a in uência dele perdure, embora eu não esteja
muito otimista. Para Wickham, o sr. Cornbinder provavelmente está associado
demais à cela da prisão, à ameaça da forca e a meses de sermão para que
queira passar mais tempo em sua companhia além do necessário. Quando
Wickham chegar, ouviremos o resto dessa lastimável história. Lamento muito,
Fitzwilliam, que você tenha sido envolvido nos problemas de Wickham e nos
meus também. Deve ter sido penoso ir ao encontro de Wickham e lhe dar as
trinta libras. Reconheço que você estava agindo no interesse do menino
quando apoiou a proposta de adoção feita pela sra. Younge. Só o que posso
fazer é esperar que essa pobre criança, depois de um início tão terrível,
encontre um lar feliz e permanente na casa dos Simpkins.”
2
Pouco depois do almoço, um funcionário do escritório de Alveston chegou
à casa dos Gardiner para con rmar que o perdão real seria concedido até o
meio da tarde do dia seguinte e para entregar a Darcy uma carta, para a qual
ele disse não estar sendo esperada uma resposta imediata. Era do reverendo
Samuel Cornbinder, da prisão Coldbath, e Darcy e Elizabeth se sentaram para
lê-la juntos.
Reverendo Samuel Cornbinder
Prisão Coldbath
Honrado senhor,
Por certo lhe causará surpresa receber esta mensagem de um homem que é um
estranho para o senhor, embora o sr. Gardiner, a quem conheci, talvez já tenha
lhe falado de mim. Devo começar pedindo desculpas por estar me intrometendo
em sua intimidade, quando o senhor e sua família estão celebrando o fato de seu
cunhado ter se livrado de uma acusação injusta e de uma morte desonrosa.
Contudo, se tiver a bondade de examinar o que escrevo, estou certo de que
concordará comigo que o assunto de que trato é não só importante, como de
certa urgência e afeta o senhor e sua família.
Antes, porém, preciso me apresentar. Meu nome é Samuel Cornbinder e sou
um dos capelães nomeados para a prisão Coldbath, onde tive o privilégio ao
longo dos últimos nove anos de servir como sacerdote tanto àqueles que
aguardam julgamento quanto aos que já foram condenados. Entre os primeiros,
encontrava-se o sr. George Wickham, que logo estará com o senhor para lhe
explicar as circunstâncias que levaram à morte do capitão Denny, um
esclarecimento ao qual o senhor obviamente tem direito.
Vou deixar esta carta nas mãos do nobre sr. Henry Alveston, que a entregará
com uma mensagem do sr. Wickham. Ele expressou o desejo de que o senhor a
leia antes que vá ao seu encontro, a m de que já esteja a par da participação
que tive nos planos que ele traçou para o futuro. O sr. Wickham suportou o
cárcere com notável perseverança, mas, como é natural, por vezes deixava-se
abater pela possibilidade de vir a ser considerado culpado, quando era então
meu dever fazer com que seus pensamentos se voltassem para Ele que é o único
que pode nos perdoar a todos pelo que se passou e fortalecer-nos para o que
podemos ter pela frente. Como era inevitável, nas nossas conversas muito me foi
revelado a respeito da infância e da vida posterior do sr. Wickham. Preciso
deixar claro que, como membro evangélico da Igreja da Inglaterra, não creio em
con ssão auricular, mas gostaria de garantir-lhe que todos os assuntos a mim
con ados por prisioneiros permanecem inviolados. Procurei nutrir no sr.
Wickham a esperança de vir a ser considerado inocente, e em seus momentos de
otimismo — que folgo em dizer que foram muitos — ele re etiu sobre seu futuro
e o de sua esposa.
O sr. Wickham manifestou o rme desejo de partir da Inglaterra e tentar a
sorte no Novo Mundo. Felizmente, tenho condições de ajudá-lo a realizar esse
desejo. Meu irmão gêmeo, Jeremiah Cornbinder, emigrou cinco anos atrás para
a antiga colônia de Virgínia, onde se estabeleceu como adestrador e vendedor de
cavalos, e seu negócio, graças principalmente a seu conhecimento e sua
habilidade, prosperou muitíssimo. Em virtude da expansão dos negócios, ele
agora está à procura de um assistente, de alguém que tenha experiência com
cavalos, e me escreveu há pouco mais de um ano para pedir auxílio nessa busca,
dizendo que qualquer candidato recomendado por mim seria gentilmente
recebido e contratado para o posto por um período de experiência de seis meses.
Quando o sr. Wickham foi levado para a prisão Coldbath e comecei a lhe fazer
visitas, logo cou evidente para mim que ele tinha qualidades e experiência para
ser um bom candidato ao emprego oferecido pelo meu irmão se, como ele
esperava, viesse a ser considerado inocente daquela terrível acusação. O sr.
Wickham é um excelente cavaleiro e já mostrou que é corajoso. Conversei com
ele sobre isso e ele está ansioso para tirar proveito dessa oportunidade e, embora
eu ainda não tenha falado com a sra. Wickham, ele me garantiu que ela está
igualmente entusiasmada com a ideia de deixar a Inglaterra e aproveitar as
oportunidades oferecidas pelo Novo Mundo.
Há, no entanto, como o senhor deve ter previsto, um problema de dinheiro. O
sr. Wickham tem esperança de que possa fazer a bondade de lhe emprestar a
quantia necessária, que compreenderia o custo da passagem e uma soma
su ciente para sustentá-los durante quatro semanas, até que receba seu primeiro
pagamento. Lá, uma casa lhes será oferecida, livre de aluguel. A fazenda de
criação de cavalos — pois assim se pode chamar o negócio do meu irmão —
situa-se a duas milhas da cidade de Williamsburg. A sra. Wickham, portanto,
não cará privada de convívio social nem dos confortos de que uma senhora
bem-nascida precisa.
Se esta proposta tiver sua aprovação e o senhor puder ajudar, terei enorme
prazer em encontrá-lo na hora e no lugar que lhe forem mais convenientes para
lhe dar mais detalhes acerca da quantia necessária e das acomodações
oferecidas, bem como para lhe apresentar cartas de recomendação dando fé da
posição de meu irmão na Virgínia e do caráter dele, que, nem preciso dizer, é
excepcional. Ele é um homem justo e um ótimo patrão, mas não tolera
desonestidade nem preguiça. Se for possível ao sr. Wickham aceitar uma oferta
pela qual demonstra entusiasmo, isso vai afastá-lo de todas as tentações. O fato
de ter sido solto e de ter um histórico de bravura como soldado vai transformá-lo
num herói nacional e, por mais breve que tal fama possa ser, temo que a
notoriedade não contribua para a mudança de vida e regeneração que ele me
garantiu estar determinado a realizar.
O senhor poderá me encontrar a qualquer hora do dia ou da noite no
endereço acima, e posso lhe assegurar que minha proposta é feita de boa-fé e que
estou disposto a lhe dar todas as informações de que necessite acerca do posto
oferecido.
Subscrevo-me cordialmente,
Samuel Cornbinder
Darcy e Elizabeth leram a carta em silêncio e em seguida, sem fazer nenhum
comentário, ele a entregou ao coronel. Depois, disse: “Acho que devo me
encontrar com esse reverendo. Foi bom ter tomado conhecimento desse plano
antes de falar com Wickham. Se a oferta for genuína e adequada, como
parece ser, certamente vai resolver meu problema e o de Bingley, se não o de
Wickham. Ainda tenho de saber quanto isso vai me custar, mas, se ele e Lydia
permanecerem na Inglaterra, nada leva a crer que consigam sobreviver sem
uma ajuda regular”.
“Descon o que tanto a sra. Darcy quanto a sra. Bingley venham
contribuindo com seus próprios recursos para pagar as despesas de
Wickham”, disse o coronel Fitzwilliam. “Para falar com toda a franqueza, esse
arranjo vai livrar as duas famílias de um fardo nanceiro. Quanto ao futuro
comportamento de Wickham, tenho di culdade de partilhar da con ança do
reverendo de que ele vá mesmo se regenerar, mas suspeito que Jeremiah
Cornbinder será mais competente do que a família de Wickham na tarefa de
garantir que mantenha a boa conduta. Estou disposto a contribuir para
providenciar a quantia necessária, que, imagino, não será vultosa.”
“A responsabilidade é minha”, retrucou Darcy. “Vou responder agora
mesmo ao sr. Cornbinder na esperança de que possamos nos encontrar
amanhã cedo, antes que Wick ham e Alveston cheguem.”
3
O reverendo Samuel Cornbinder chegou depois da cerimônia religiosa no
dia seguinte, em resposta a uma carta de Darcy que lhe fora entregue em
mãos. Tinha uma aparência inesperada, pois, lendo sua carta, Darcy havia
imaginado um homem de meia-idade ou mais velho e cou surpreso ao ver
que ou era consideravelmente mais jovem do que seu estilo literário sugeria,
ou conseguira enfrentar os rigores e responsabilidades de seu trabalho sem
perder o ar e o vigor da juventude. Darcy expressou sua gratidão por tudo o
que o reverendo havia feito para ajudar Wickham a suportar o cárcere, mas
sem mencionar sua aparente conversão a um modo de vida melhor, um
assunto que não se sentia preparado para comentar. Gostou do sr.
Cornbinder, que não era nem cerimonioso em demasia nem adulador, e lhe
trouxe uma carta do irmão e todas as informações nanceiras necessárias para
permitir que Darcy decidisse de forma bem fundamentada até que ponto
deveria e poderia ajudar Wickham e a esposa a iniciar a vida nova que tanto
pareciam desejar.
A carta vinda da Virgínia fora recebida cerca de três semanas antes. Nela,
Jeremiah Cornbinder expressava con ança no discernimento do irmão e, sem
exagerar as vantagens que o Novo Mundo tinha a oferecer, apresentava um
retrato animador da vida que o candidato que lhe fora recomendado poderia
esperar.
O Novo Mundo não é um refúgio para indolentes, criminosos, indesejáveis ou
velhos, mas um jovem que foi claramente absolvido de um crime capital, que
mostrou tenacidade durante a provação por que passou e notável bravura no
campo de batalha parece ter as qualidades que lhe garantirão uma boa acolhida
aqui. Procuro um homem que tenha não só habilidades práticas e, de
preferência, experiência no adestramento de cavalos, mas também boa
educação, e estou certo de que ele estará se unindo a uma sociedade que, em
inteligência e na amplitude de seus interesses culturais, pode igualar-se a
qualquer cidade europeia civilizada e oferecer oportunidades quase ilimitadas.
Acho que posso prever com toda a con ança que os descendentes daqueles aos
quais ele agora deseja juntar-se serão cidadãos de um país tão poderoso quanto,
ou talvez até mais poderoso do que aquele do qual eles partiram, e que
continuará a dar um exemplo de liberdade para o mundo todo.
“Da mesma forma que o meu irmão con a no meu discernimento ao
recomendar o sr. Wickham, con o na boa vontade dele para fazer tudo o que
puder para ajudar o jovem casal a sentir-se em casa e a prosperar no Novo
Mundo”, disse o reverendo Cornbinder. “Ele está particularmente ansioso para
atrair imigrantes ingleses casados. Quando lhe escrevi para recomendar o sr.
Wickham ainda faltavam dois meses para o julgamento, mas eu estava
con ante não só de que ele seria absolvido, mas também de que era
exatamente o homem que meu irmão procurava. Sei avaliar com rapidez o
caráter dos prisioneiros e até hoje não me enganei. Embora respeitando a
con ança do sr. Wickham, percebi que havia certos aspectos da vida dele que
poderiam fazer um homem prudente hesitar, mas me senti seguro para garantir
ao meu irmão que o sr. Wickham mudou e está determinado a manter essa
mudança. Certamente as virtudes que tem superam os defeitos, e meu irmão é
sensato o bastante para saber que não se pode esperar perfeição. Todos
pecamos, sr. Darcy, e não podemos buscar compaixão se não a
demonstramos em nossas vidas. Se o senhor estiver disposto a arcar com o
custo da passagem e da módica quantia necessária para que o sr. Wickham
sustente a si e à esposa nos primeiros meses de trabalho, eles poderão
embarcar no Esmeralda, em Liverpool, daqui a duas semanas. Conheço o
capitão e tenho plena con ança tanto nele como na qualidade do navio.
Imagino que o senhor vá precisar de algumas horas para re etir sobre o
assunto e, sem dúvida, para discuti-lo com o sr. Wickham, mas seria
conveniente se eu pudesse ter uma resposta até as nove horas da noite de
amanhã.”
“A previsão é de que George Wickham seja trazido para cá esta tarde com o
advogado dele, o sr. Alveston”, disse Darcy. “Em vista do que o senhor disse,
estou con ante de que o sr. Wickham vá aceitar de muito bom grado a oferta
do seu irmão. Pelo que sei, a intenção do sr. e da sra. Wickham por ora é ir
para Longbourn e lá permanecer até decidir o que farão no futuro. A sra.
Wickham está ansiosa para encontrar-se com a mãe e com as amigas de
infância; se ela e o marido de fato emigrarem, é pouco provável que torne a
vê-las um dia.”
Levantando-se para ir embora, Samuel Cornbinder disse: “De fato, é
extremamente improvável. Atravessar o Atlântico não é algo que se faça
levianamente e poucos dos meus conhecidos na Virgínia realizaram ou
desejam realizar uma viagem de volta. Eu lhe agradeço, senhor, por me
receber com tanta presteza e pela sua generosidade ao concordar com a
proposta que lhe apresentei”.
“Sua gratidão é generosa, mas imerecida. É difícil que me arrependa da
minha decisão. Já o sr. Wickham talvez se arrependa da dele”, disse Darcy.
“Não creio, senhor.”
“Não pretende esperar que ele chegue?”
“Não, senhor. O que podia fazer por Wickham, já z. À noite nos
encontraremos, e ele não há de querer me ver antes disso.”
Dizendo essas palavras, ele apertou a mão de Darcy com extraordinária
força, pôs o chapéu na cabeça e se foi.
4
Eram quatro horas da tarde quando eles ouviram ruídos de passos seguidos
de vozes e não tiveram dúvida de que o grupo que vinha do tribunal de Old
Bailey havia en m chegado. Pondo-se de pé, Darcy sentiu um intenso
desconforto. Sabia o quanto o sucesso da vida social dependia da expectativa
tranquilizadora do uso das convenções instituídas e fora treinado desde
criança a adotar as atitudes esperadas de um cavalheiro. Admitia que a mãe
por vezes expressava uma visão mais generosa, segundo a qual boas maneiras
consistiam essencialmente na devida consideração pelos sentimentos de outras
pessoas, principalmente quando se estava em companhia de alguém de uma
classe mais baixa, uma precaução para com a qual sua tia, Lady Catherine de
Bourgh demonstrava uma agrante falta de atenção. Agora, porém, nem as
convenções nem o conselho servindo-lhe serviam de guia. Não havia regras
sobre como receber um homem que o costume ditava que se devia chamar de
cunhado e que, algumas horas antes, fora condenado a ser enforcado em
praça pública. Claro que Darcy havia cado feliz por Wickham ter escapado
da forca, mas será que essa felicidade era tanto por sua própria paz de
espírito e reputação quanto pelo fato de que a vida de Wickham seria
preservada? Os ditames do decoro e da compaixão certamente o impeliriam a
trocar um caloroso aperto de mão com Wickham, mas o gesto agora lhe
parecia não só inapropriado como também desonesto.
O sr. e a sra. Gardiner tinham saído às pressas da sala para postar-se diante
da casa assim que ouviram os primeiros passos, e Darcy escutava suas vozes
elevadas para dar as boas-vindas aos recém-chegados, mas não ouviu
nenhuma resposta. Então, a porta se abriu e os Gardiner entraram, instando
gentilmente Wickham e Alveston a fazer o mesmo.
Darcy esperava que o momento de choque e surpresa não tivesse
transparecido em seu rosto. Era difícil acreditar que o homem que havia
encontrado forças para erguer-se ereto do banco dos réus e declarar sua
inocência em voz clara e rme fosse o mesmo Wickham agora diante deles.
Ele parecia ter diminuído sicamente e suas roupas, as mesmas que usara no
julgamento, pareciam grandes demais, um traje grosseiro, barato e mal
ajustado para um homem que não se esperava que fosse usá-lo por muito
tempo. Seu rosto conservava a palidez doentia adquirida no cárcere, mas,
quando os olhares dos dois se encontraram e se detiveram por um momento,
Darcy viu nos olhos de Wickham um vestígio do homem que ele já fora, um ar
de maquinação e talvez de desdém. Acima de tudo, ele parecia exausto, como
se o choque do veredicto de culpado e o alívio de escapar da forca tivessem
sido mais do que o corpo humano é capaz de suportar. Mas o velho Wickham
ainda estava lá e Darcy viu o esforço e também a coragem com que procurava
manter-se ereto e enfrentar o que quer que o aguardasse. “O senhor precisa
dormir”, disse a sra. Gardiner. “Alimentar-se também, talvez, porém mais que
tudo dormir. Posso lhe oferecer um quarto para descansar e pedir que lhe
levem uma refeição. Não seria melhor o senhor dormir ou pelo menos
descansar por uma hora antes de conversar?”
Sem desviar os olhos do grupo reunido, Wickham disse: “Agradeço sua
gentileza, senhora, mas quando dormir não vai ser por uma hora, e sim
muitas, e temo ter me acostumado a acalentar a esperança de nunca mais
acordar. Além disso, preciso falar com os cavalheiros e é melhor que seja já.
Estou bem, senhora, que tranquila, mas se for possível alguém me trazer um
café forte e talvez algo para comer...”.
A sra. Gardiner olhou rapidamente para Darcy, depois disse: “Claro. Já dei
ordens para que preparassem uma leve refeição e vou mandar que a tragam
agora mesmo. O sr. Gardiner e eu vamos deixá-los à vontade agora para que
conte sua história. Soube que o reverendo Cornbinder virá buscá-lo antes do
jantar e lhe ofereceu hospedagem para esta noite, quando então o senhor
poderá descansar sem ser incomodado e dormir um sono profundo. Assim
que o reverendo chegar, o sr. Gardiner e eu lhe avisaremos”. Então, os dois se
retiraram da sala e a porta se fechou silenciosamente.
Sacudindo a cabeça, Darcy se forçou a sair de um momento de indecisão,
depois deu um passo à frente com o braço estendido e disse, com uma voz
que mesmo a seus ouvidos soou fria e formal: “Eu o felicito, Wickham, pela
tenacidade que demonstrou enquanto estava preso e por ter se livrado de uma
acusação injusta. Por favor, sente-se e que à vontade. Depois que tiver se
alimentado podemos conversar. Temos muito a dizer, mas não há razão para
pressa”.
“Pre ro falar logo”, disse Wickham, deixando-se cair numa poltrona. Os
outros também se sentaram. Um silêncio desconfortável se instalou e foi um
alívio quando, instantes depois, a porta se abriu e um empregado entrou
trazendo uma grande bandeja com um bule de café e uma travessa com pão,
queijo e carnes frias. Assim que o empregado se retirou, Wickham se serviu de
café e o tomou com enormes goles sôfregos. Depois disse: “Desculpem a falta
de modos. Acabo de sair de uma péssima escola para a prática do
comportamento civilizado”.
Passados alguns minutos, durante os quais comeu avidamente, Wickham
empurrou a bandeja para o lado e disse: “Bem, talvez seja melhor eu começar.
O coronel Fitzwilliam poderá con rmar boa parte do que vou dizer. Você já
me tem como um canalha, então duvido que qualquer coisa que eu tenha a
acrescentar à minha lista de delinquências vá lhe causar surpresa”.
“Não é necessário justi car nada. Você já enfrentou um júri, nós não somos
outro”, disse Darcy.
Wickham riu um riso curto, alto e rouco. “Então espero que vocês tenham
menos preconceitos. Suponho que o coronel Fitzwilliam já tenha lhe contado
os fatos essenciais”, disse.
O coronel con rmou: “Contei apenas o que sei, que não é muito, e não
creio que nenhum de nós acredite que toda a verdade tenha vindo à tona no
julgamento. Estávamos esperando sua chegada para ouvir o relato completo a
que temos direito”.
Wickham não começou a falar imediatamente. De cabeça baixa, cou
olhando para as próprias mãos entrelaçadas, depois se levantou com aparente
esforço e iniciou sua narrativa com uma voz quase sem expressão, como se
conhecesse a história de cor.
“Você já deve saber que sou o pai do bebê de Louisa Bidwell. Nós nos
conhecemos no penúltimo verão, quando minha mulher estava em
Highmarten, onde gostava de passar algumas semanas durante o verão. Como
não sou recebido naquela casa, costumava me hospedar na estalagem local
mais barata que conseguisse encontrar, onde às vezes, por sorte, conseguia
marcar um encontro com Lydia. As terras de Highmarten seriam profanadas se
eu entrasse lá, então eu preferia ir para a oresta de Pemberley. Passei alguns
dos momentos mais felizes da minha infância naquela mata e sentia um pouco
daquela antiga alegria juvenil quando estava lá com Louisa. Eu a encontrei por
acaso, vagando pela oresta. Ela também se sentia muito só. Passava a maior
parte do tempo con nada na cabana, cuidando de um irmão que estava à
beira da morte, e raramente conseguia ver o noivo, um homem ambicioso que
vivia ocupado com suas obrigações em Pemberley. Pelo que ela disse sobre
ele, formei a imagem de um homem mais velho e enfadonho, que só se
preocupava em manter aquele seu trabalho servil e não tinha a sensibilidade
para perceber que a noiva estava aborrecida e insatisfeita. Louisa também é
inteligente, uma qualidade à qual ele não daria valor, mesmo se tivesse tino
para reconhecê-la. Admito que seduzi Louisa, mas lhes asseguro de que não a
forcei a nada. Nunca precisei violentar mulher alguma e nunca tinha visto uma
moça tão ávida de amor como ela.
“Quando descobriu que estava grávida, foi uma catástrofe para nós dois.
Muito nervosa, ela deixou claro que não queria que ninguém soubesse, salvo
a mãe, claro, que di cilmente poderia ser mantida na ignorância. Louisa
achava que não podia dar mais aquele desgosto ao irmão nos últimos meses
de sua vida, mas, quando ele descon ou do que estava acontecendo, ela
confessou. A principal preocupação dela era evitar que o pai sofresse. A
coitada sabia que, para ele, a perspectiva de desonrar Pemberley seria pior do
que qualquer coisa que pudesse acontecer com ela. Eu não conseguia
entender por que um ou dois bastardos tinham de ser vistos como uma
desgraça tão grande; é um revés comum em casas onde mora muita gente. Mas
era assim que Louisa pensava. Foi ela que teve a ideia de ir, com a conivência
da mãe, para a casa da irmã casada, antes que seu estado se tornasse evidente,
e car lá até a criança nascer. A ideia era fazer o bebê passar por lho da
irmã, e eu então sugeri que Louisa voltasse com a criança para Pemberley
assim que tivesse condições de viajar, com a desculpa de mostrar o bebê para
a avó. Eu precisava me certi car de que o menino estava vivo e saudável antes
de decidir qual seria a melhor forma de proceder. Combinamos que eu daria
um jeito de arranjar dinheiro para persuadir os Simpkins a car com o bebê e
criá-lo como lho. Foi então que enviei um pedido desesperado de ajuda ao
coronel Fitzwilliam, que me forneceu trinta libras quando chegou o momento
de entregar Georgie aos Simpkins. Isso eu imagino que vocês já soubessem. O
coronel disse que estava me ajudando por compaixão a um soldado que já
servira sob seu comando, mas sem dúvida também tinha outras razões; Louisa
ouvira boatos entre os empregados de que ele poderia estar procurando uma
esposa em Pemberley. Um homem orgulhoso e prudente, principalmente se é
aristocrata e rico, não se associa a uma casa atingida por um escândalo,
especialmente em se tratando de um vexame tão sórdido e corriqueiro. A ideia
de ver um lho ilegítimo meu brincando na oresta de Pemberley causava-lhe
tanta repulsa quanto teria causado a Darcy.”
“O senhor nunca revelou a Louisa sua verdadeira identidade, suponho?”,
perguntou Alveston.
“Não. Teria sido uma tolice e só faria Louisa car mais a ita. Fiz o que a
maioria dos homens faz na minha situação. Aliás, me orgulho de ter inventado
uma história tão convincente e capaz de despertar compaixão em qualquer
moça suscetível. Disse a ela que me chamava Frederick Delancey — sempre
gostei da ideia dessas iniciais. Disse também que era soldado, que tinha sido
ferido na campanha irlandesa — o que era verdade — e que, ao voltar para
casa, descobrira que minha amada esposa e meu lho haviam morrido no
parto. Essa triste saga fez com que Louisa casse ainda mais apaixonada por
mim e, então, fui forçado a acrescentar-lhe um ornato, dizendo que em breve
teria de ir a Londres procurar trabalho, mas que voltaria depois para me casar
com ela, quando nosso bebê não precisaria mais car com os Simpkins e nós
três poderíamos formar uma família. Por insistência de Louisa, entalhamos
juntos minhas iniciais nos troncos de algumas árvores, como sinal do meu
amor e do meu compromisso. Foi ideia dela, mas confesso que eu tinha certa
esperança de que aquelas iniciais causassem confusão. Prometi mandar o
dinheiro para os Simpkins assim que tivesse encontrado um lugar para car
em Londres e pagado por ele.”
“Foi um embuste vil esse seu, sr. Wickham, cometido contra uma moça
crédula e essencialmente inocente. Suponho que, depois que a criança
nascesse, o senhor pretendia desaparecer para sempre e que o caso terminaria
aí”, disse o coronel.
“Admito o embuste, mas me parecia que o resultado não seria ruim. Louisa
logo se esqueceria de mim e se casaria com o noivo, e a criança seria criada
por pessoas da família. Já ouvi falar em maneiras muito piores de lidar com
um bastardo. Infelizmente, as coisas não correram como eu esperava. Quando
Louisa voltou para casa com o lho e nos encontramos como de hábito perto
do túmulo do cachorro, ela levou uma mensagem de Michael Simpkins. Nela,
ele dizia não estar mais disposto a car com o bebê permanentemente, nem
mesmo por uma quantia generosa. Ele e a mulher já tinham três meninas e sem
dúvida teriam outros lhos, e ele não podia aceitar a ideia de que Georgie
seria o primogênito da família, tendo precedência sobre qualquer filho que ele
viesse a ter. Ao que parecia, também haviam ocorrido certas di culdades entre
Louisa e a irmã nos meses em que ela cou na casa deles, esperando o
nascimento do lho. Suponho que raramente as coisas corram bem quando
duas mulheres cam juntas na mesma cozinha. Eu havia con denciado à sra.
Younge que Louisa estava grávida, e ela fez questão de ver a criança e pediu
que eu marcasse um encontro entre ela e Louisa na oresta. Então, a sra.
Younge se apaixonou por Georgie e cou determinada a adotar o menino. Eu
sabia que ela acalentava o desejo de ter lhos, mas não fazia ideia até então
de que esse desejo fosse tão forte. Georgie é um menino bonito e, claro, é
meu filho.”
Darcy não conseguiu mais continuar calado. Havia muitas coisas que
precisava saber. “Suponho então que a tal mulher vestida de preto que as duas
criadas viram na oresta fosse a sra. Younge. Como teve coragem de envolver
aquela mulher em qualquer plano relacionado ao futuro do seu lho, uma
mulher cuja conduta, até onde sabemos, mostra que está entre as mais abjetas
e desprezíveis de seu sexo?”
Nesse momento, Wickham quase saltou do assento. Com o rosto
subitamente vermelho de fúria, apertou os braços da poltrona com tal força
que os nós de seus dedos caram brancos. “É melhor você saber a verdade
logo de uma vez. Eleanor Younge foi a única mulher que me amou de fato.
Nenhuma outra, nem mesmo minha esposa, me deu o carinho, a atenção
generosa, o apoio, a sensação de ser importante para ela como minha irmã me
deu. Sim, ela era minha irmã, minha meia-irmã. Sei que isso lhe causa espanto.
Meu pai tem a reputação de ter sido o mais e ciente, o mais leal, o mais
admirável dos administradores do falecido sr. Darcy, e ele foi de fato. Minha
mãe era severa com ele, como era comigo; não havia riso na nossa casa. Ele
era um homem como outro qualquer e, quando os negócios do sr. Darcy o
obrigavam a ir a Londres e passar uma ou mais semanas lá, ele levava uma
vida diferente. Nada sei sobre a mulher com quem se envolveu, mas ele me
con denciou em seu leito de morte que tinha uma lha. Preciso dizer, por
uma questão de justiça, que ele fez o que podia para sustentá-la, mas pouco
me foi revelado a respeito da infância dela, salvo que foi posta num colégio
interno em Londres que, na verdade, não passava de um orfanato. Ela fugiu
de lá quando tinha doze anos e, depois disso, meu pai perdeu contato com
ela, apesar dos esforços que fez para encontrá-la. Quando a idade e as
responsabilidades em Pemberley começaram a lhe pesar, ele não pôde mais
continuar a busca. Mas ela lhe veio à consciência nos últimos minutos de vida,
e ele me implorou que zesse o possível para encontrá-la. O colégio já não
existia fazia anos e ninguém sabia quem era o proprietário, mas consegui me
comunicar com os moradores de uma casa vizinha que haviam feito amizade
com uma das meninas e ainda mantinham contato com ela. Foi ela que me deu
as primeiras pistas de onde eu poderia encontrar Eleanor. E, por m, eu a
encontrei. Ela não estava nem de longe na penúria. Tinha sido casada por um
breve período com um homem bem mais velho, que havia lhe deixado
dinheiro su ciente para comprar uma casa em Marylebone, onde passou a
alugar quartos, sempre para rapazes de famílias respeitáveis que tinham
deixado a casa dos pais para trabalhar em Londres. As boas mães dos rapazes
eram imensamente gratas àquela senhora digna e maternal, que cumpria
elmente a regra de não receber nenhuma moça na casa, fosse como hóspede
ou como visita.”
“Isso eu já sabia, mas o senhor não fez nenhuma menção ao modo como
sua irmã tinha vivido antes, nem aos pobres homens que ela chantageou”,
disse o coronel.
Wickham teve certa di culdade para controlar a raiva. “Ela causou menos
mal ao longo da vida do que muitas matronas respeitáveis”, disse. “O marido
não tinha lhe deixado nenhuma propriedade e ela foi forçada a viver de
expedientes. Logo nos afeiçoamos um ao outro, talvez por ter tanto em
comum. Ela era inteligente. Dizia que meu grande trunfo, talvez o único, era
que as mulheres gostavam de mim e que eu tinha talento para cativá-las. Minha
melhor chance para escapar da pobreza era me casar com uma mulher rica, e
achava que eu tinha as qualidades necessárias para conseguir isso. Como os
senhores sabem, minha primeira e mais promissora chance deu em nada,
quando Darcy apareceu em Ramsgate para fazer o papel de irmão indignado.”
Antes que Darcy pudesse esboçar qualquer reação, o coronel se levantou
de salto e disse: “Há um nome que jamais pode sair da sua boca, seja nesta
casa ou em qualquer outro lugar, se o senhor dá algum valor à sua vida”.
Wickham olhou para ele com uma centelha de sua antiga con ança e disse:
“Não estou no mundo há tão pouco tempo, senhor, a ponto de não saber
quando uma dama tem um nome que jamais poderá ser maculado por
escândalos e uma reputação que é de fato sagrada, e também sei que existem
mulheres cujo modo de vida ajuda a proteger essa pureza. Minha irmã era uma
delas. Mas vamos voltar ao assunto de que estávamos tratando. Felizmente, os
anseios maternais da minha irmã acabaram por oferecer uma solução para
nosso problema. A irmã de Louisa tinha se recusado a car com o menino, e
teríamos de encontrar um lar para ele de algum modo. Eleanor encantou
Louisa contando histórias sobre a vida que ele teria e ela en m concordou. A
proposta era que, na manhã do dia do baile de Pemberley, Eleanor iria à
cabana da oresta comigo para pegar o bebê e levá-lo conosco para Londres,
onde eu ia procurar trabalho e ela cuidaria temporariamente do menino até
que Louisa e eu pudéssemos nos casar. Claro que não tínhamos nenhuma
intenção de lhe dar o endereço da minha irmã.
“E, então, o plano malogrou. Tenho de admitir que foi em grande parte por
culpa de Eleanor. Ela não estava acostumada a lidar com mulheres e havia
adotado como política nunca fazer negócios com elas. Homens eram mais
diretos, e ela sabia como persuadi-los e bajulá-los. Mesmo depois de lhe
pagarem, os homens nunca a tratavam com hostilidade. Ela não tinha
paciência para as vacilações sentimentais de Louisa. Para Eleanor, era uma
questão de bom senso: Georgie precisava urgentemente de um lar e ela podia
lhe dar um muito superior ao dos Simpkins. Louisa simplesmente não gostou
de Eleanor e começou a sentir descon ança, e Eleanor, por sua vez, falava
demais na necessidade de que as trinta libras prometidas aos Simpkins fossem
entregues a ela. No m, Louisa aceitou que levássemos o menino como estava
planejado, mas sempre havia o risco de ela resistir quando chegasse a hora de
se separar do lho. Era por isso que eu queira que Denny estivesse conosco
quando fôssemos pegar Georgie. Eu tinha certeza de que Bidwell estaria em
Pemberley e de que todos os empregados estariam ocupados, e sabia que o
portão noroeste seria aberto sem grandes problemas para deixar passar a
carruagem da minha irmã. É espantoso como um ou dois xelins conseguem
eliminar essas pequenas di culdades. Eleanor já havia marcado antes um
encontro com o coronel na estalagem King’s Arms, em Lambton, na noite
anterior, a fim de informá-lo da mudança de plano.”
“Eu obviamente não via a sra. Younge desde a época em que zemos uma
entrevista com ela como candidata ao posto de preceptora”, disse o coronel
Fitzwilliam. “Ela foi tão convincente naquela noite como havia sido na época.
Descreveu em detalhes sua situação nanceira e me mostrou documentos. Eu
já disse a Darcy que estava convicto de que a proposta dela era a melhor
solução para o menino e, na verdade, ainda acredito que teria sido. Quando
estávamos a caminho da oresta para investigar os tiros, z questão de passar
na cabana e achei que era justo avisar a Louisa que seu amante era Wickham,
que ele era casado e que ele e um amigo tinham se perdido na mata. Isso
acabou com qualquer esperança de que Louisa viesse a permitir que a sra.
Younge, a amiga e confidente de Wickham, ficasse com o menino.”
“Mas a escolha nunca foi de Louisa”, disse Darcy, virando-se em seguida
para Wickham. “Sua intenção era pegar o menino à força se fosse necessário.”
Wickham disse com aparente tranquilidade: “Eu teria feito qualquer coisa,
qualquer coisa, para dar Georgie para Eleanor criar. Ele era meu lho, era o
futuro dele que importava para nós dois. Desde que eu e minha irmã nos
conhecemos, eu nunca havia tido condições de lhe dar nada em troca do
apoio e do amor que ela me dava. Agora eu tinha algo para lhe dar, algo que
ela queria desesperadamente, e eu não ia deixar que a indecisão e a estupidez
de Louisa me impedissem de fazer isso”.
“E que vida o menino teria, sendo criado por uma mulher como aquela?”,
perguntou Darcy.
Wickham não respondeu. Os olhos de todos estavam xos nele, e Darcy
percebeu com um misto de horror e compaixão que Wickham estava fazendo
um enorme esforço para manter a compostura. A con ança e o ar quase
impassível com que começara a narrar sua história haviam desaparecido. Ele
estendeu uma mão trêmula em direção ao bule de café, mas, com os olhos
cegados por lágrimas, só o que conseguiu foi derrubá-lo no chão. Ninguém
disse nada, ninguém se mexeu, até que o coronel se abaixou para pegar o
bule e o pôs de volta na mesa.
Por m, controlando-se, Wickham disse: “O menino teria sido amado, mais
amado do que fui na minha infância, ou você na sua, Darcy. Minha irmã
nunca teve lhos e havia uma chance de que cuidasse do meu. Não tenho
dúvida de que ela pediu dinheiro, era assim que sobrevivia, mas tudo teria
sido gasto com o menino. Ela tinha visto o bebê. Ele é lindo. Meu lho é lindo.
E agora sei que nunca mais vou ver nenhum dos dois”.
O tom de Darcy foi duro. “Mas você não conseguiu resistir à tentação de
aliciar Denny. As únicas pessoas que teria de enfrentar eram uma velha
senhora e Louisa, mas a última coisa que você queria era que Louisa casse
histérica e se recusasse a entregar a criança. Tudo tinha de ser feito de forma
silenciosa, para não alertar o irmão doente. Você queria um homem ao seu
lado, um amigo com quem pudesse contar, mas, quando percebeu que você
estava disposto a tomar o menino à força caso fosse necessário e soube que
tinha prometido se casar com a moça, Denny não quis tomar parte nessa
história e foi por isso que desceu da caleche. Sempre foi um mistério para nós
por que Denny teria saído da estrada que o levaria de volta à estalagem ou, o
que era mais razoável, por que não seguiu viagem na caleche até chegar a
Lambton, onde poderia ter descido e ido embora sem dar explicações. Ele
morreu porque estava a caminho da cabana para avisar Louisa Bidwell das
suas intenções. O que você disse quando estava debruçado sobre o corpo
dele era verdade. Você matou seu amigo. Foi tão responsável pela morte dele
como teria sido se tivesse lhe enterrado uma espada no peito. E Will, em sua
solitária espera pela morte, achou que estava protegendo a irmã de um
sedutor. Em vez disso, ele matou o único homem que tentou ajudá-la.”
Wickham, no entanto, pensava em outra morte. “Quando Eleanor ouviu a
palavra ‘culpado’, a vida dela acabou. Ela sabia que dali a algumas horas eu
estaria morto. Teria se postado diante da forca e testemunhado meus últimos
esforços se isso pudesse me trazer algum conforto no m, mas há certos
horrores que nem quem ama consegue suportar. Não tenho dúvida de que ela
se matou. Tinha perdido tanto a mim quanto ao meu lho, mas podia pelo
menos garantir que, como eu, também jazeria num túmulo não abençoado.”
Darcy pretendia dizer que essa última indignidade por certo poderia ser
evitada, mas Wickham calou-o com um olhar e disse: “Você desprezava
Eleanor quando viva; não a trate com complacência agora que está morta. O
reverendo Cornbinder está tomando as providências necessárias e não precisa
da sua ajuda. Em certas áreas da vida, ele tem uma autoridade da qual nem o
sr. Darcy de Pemberley dispõe”.
Ninguém disse nada. Por m, Darcy perguntou: “O que é feito do menino?
Onde ele está agora?”.
Quem respondeu foi o coronel: “Fiz questão de me informar a esse respeito.
O menino voltou para a casa dos Simpkins e, portanto, como todos acreditam,
está com a mãe. O assassinato de Denny causou uma considerável tensão em
Pemberley, e Louisa não teve di culdade para convencer os Simpkins a deixar
que ela levasse o bebê de volta para lá, a m de afastá-lo do perigo. Eu lhes
enviei uma generosa quantia, anonimamente e, até onde sei, ninguém até
agora fez nenhuma sugestão de que o menino seja levado embora de lá, ainda
que mais cedo ou mais tarde possam surgir problemas. Não quero mais me
envolver nesse assunto; é provável que em breve eu seja convocado para
tratar de questões mais prementes. A Europa só vai se libertar de Bonaparte se
conseguir derrotá-lo inteiramente tanto em terra quanto no mar, e eu espero
estar entre os que terão o privilégio de tomar parte nessa grande batalha”.
Todos agora estavam exaustos e ninguém conseguia pensar em mais nada
que precisasse ser dito. Foi um alívio quando, mais cedo do que se esperava,
o sr. Gardiner abriu a porta para anunciar que o sr. Cornbinder havia
chegado.
5
Com a notícia do perdão de Wickham, um enorme fardo de ansiedade fora
retirado dos ombros dos Darcy, mas não houve nenhuma efusão de alegria.
Eles haviam suportado a ições demais para fazer qualquer coisa além de
expressar profundos e sinceros agradecimentos pelo fato de Wickham ter sido
libertado e prepararem-se para a alegria de voltar para casa. Elizabeth sabia
que, como ela, Darcy sentia uma necessidade desesperada de dar início à
viagem de volta a Pemberley e achou que podiam partir logo cedo no dia
seguinte. Isso, no entanto, acabou sendo impossível. Darcy precisava tratar
com seus advogados da transferência de dinheiro para o reverendo
Cornbinder, e por meio dele para Wickham, e na véspera eles haviam
recebido uma carta de Lydia declarando sua intenção de ir a Londres para
encontrar-se com o amado marido tão logo fosse possível e, obviamente, de
realizar com ele um retorno triunfal a Longbourn. Lydia viajaria no coche da
família acompanhada por um empregado e dava por certo poder hospedar-se
na Gracechurch Street. Seria fácil encontrar uma cama para o empregado
numa estalagem local. Como não havia na carta nenhuma menção ao provável
horário de chegada no dia seguinte, a sra. Gardiner pôs-se imediatamente a
providenciar novas acomodações e a arranjar de alguma forma um espaço na
cocheira para uma terceira carruagem. Elizabeth tinha consciência apenas de
estar sentindo um cansaço arrasador e só com muita força de vontade
conseguia evitar cair num pranto de alívio. A necessidade de ver os lhos era
o principal pensamento em sua cabeça, como ela sabia que era também na de
Darcy, e eles fizeram planos para partir dois dias depois.
A primeira tarefa do dia seguinte foi enviar uma mensagem expressa a
Pemberley para informar a Stoughton o horário em que previam chegar.
Tendo de cuidar de todas as formalidades necessárias e da arrumação das
malas, Elizabeth cou tão ocupada que pouco viu Darcy. Ambos pareciam
carregar um peso no peito que não lhes permitia falar, e Elizabeth sabia que
estava feliz, mas não se sentia feliz, ou melhor, sabia que caria feliz tão logo
voltasse para casa. Havia certa preocupação de que, quando a notícia do
perdão se espalhasse, uma ruidosa multidão acorresse à Gracechurch Street
com a intenção de felicitá-los, mas felizmente tal rebuliço não havia
acontecido. A família que estava hospedando Wickham a pedido do
reverendo Cornbinder vinha sendo absolutamente discreta e o endereço da
casa era desconhecido. Assim, os ajuntamentos que se formaram foram apenas
ao redor da prisão.
Lydia chegou no coche dos Bennet no dia seguinte, depois do almoço, mas
tal chegada também não despertou nenhum tipo de interesse público. Para
alívio tanto dos Darcy quando dos Gardiner, ela se comportou de modo mais
discreto e razoável do que seria de esperar. A angústia dos últimos meses e a
consciência de que o marido podia ser condenado à morte haviam abrandado
seus modos normalmente espalhafatosos, e Lydia até foi capaz de agradecer a
hospitalidade da sra. Gardiner com algo próximo de uma gratidão genuína e
um reconhecimento do quanto devia à generosidade dos tios. Já em relação a
Elizabeth e Darcy ela não estava tão certa, e nenhum agradecimento foi
expresso.
Antes do jantar, o reverendo Cornbinder chegou para pegá-la e levá-la ao
local onde Wickham estava hospedado. Ela voltou cerca de três horas depois,
ocultada pelo escuro da noite e com excelente ânimo. O marido voltara a ser
seu belo, galante e irresistível Wickham, e ela falou do futuro dos dois com
plena con ança de que a aventura na qual iam se lançar seria o início da
prosperidade e da fama para ambos. Lydia sempre fora impetuosa, e cou
claro que estava tão ansiosa quanto Wickham para ir embora da Inglaterra
para sempre. Ela se juntou a ele, que recuperava as forças, na casa onde
estava hospedado, mas não conseguiu tolerar por muito tempo as reuniões
religiosas que os an triões realizavam logo cedo e as preces que faziam antes
de toda santa refeição, de modo que, três dias depois, a carruagem dos
Bennet atravessou as ruas de Londres em direção à bem-vinda vista da estrada
que seguia para o norte, rumo a Hertfordshire e Longbourn.
6
A viagem até Derbyshire deveria levar dois dias, já que Elizabeth estava
muito cansada e sem disposição para passar muitas horas seguidas na estrada.
No meio da manhã da segunda-feira depois do julgamento, a carruagem foi
conduzida até a porta da frente e, depois de expressar uma gratidão para a
qual era difícil encontrar palavras adequadas, os Darcy tomaram o rumo de
casa. Ambos cochilaram durante boa parte da viagem, mas estavam acordados
quando a carruagem cruzou a fronteira do condado, entrando em Derbyshire.
Foi com uma alegria cada vez maior que eles passaram por vilas familiares e
trilharam sendas que traziam guardadas na memória. No dia anterior, eles
apenas sabiam que estavam felizes; agora, sentiam a força irradiante da alegria
em todos os nervos do corpo. A chegada a Pemberley não poderia ter sido
mais diferente do que fora a partida. Todos os empregados, de uniformes
limpos e passados, esperavam em la para cumprimentá-los; a sra. Reynolds
tinha lágrimas nos olhos quando fez uma reverência e, emocionada demais
para falar, deu silenciosas boas-vindas a Elizabeth.
A primeira visita que zeram foi ao quarto das crianças, onde foram
recebidos por Fitzwilliam e Charles com gritinhos e pulos de alegria e
passaram algum tempo ouvindo as novidades que a sra. Donovan tinha para
contar. Tanta coisa havia acontecido naquela semana em Londres que
Elizabeth tinha a sensação de ter passado meses longe de casa. Depois,
chegou a hora de a sra. Reynolds fazer seu relatório. “Por favor, que
tranquila, senhora, que não tenho nenhuma má notícia a lhe dar, mas há um
assunto de certa importância do qual a senhora precisa saber”, ela disse.
Elizabeth sugeriu que fossem, como de hábito, para sua sala particular. A
sra. Reynolds tocou a campainha e deu ordens para que levassem chá para as
duas, e então elas se sentaram em frente ao fogo, que fora aceso mais para
dar conforto do que para aquecer, e a sra. Reynolds começou a contar sua
história.
“Soubemos, claro, da con ssão de Will a respeito da morte do capitão
Denny e todos estão muito solidários à sra. Bidwell, embora algumas pessoas
tenham censurado Will por não ter confessado antes e, assim, poupado a
senhora, o sr. Darcy e o sr. Wickham de tanta angústia e sofrimento. Sem
dúvida o rapaz demorou a falar porque precisava de tempo para fazer as
pazes com Deus, mas alguns acham que esse tempo teve um preço alto
demais. Ele foi enterrado no adro da igreja; o sr. Oliphant falou com muito
sentimento e a sra. Bidwell cou muito agradecida por tanta gente ter ido ao
funeral, muitos, aliás, tendo vindo de Lambton. As ores estavam uma beleza e
o sr. Stoughton e eu providenciamos para que uma coroa em nome do sr.
Darcy e da senhora fosse levada para a igreja. Tínhamos certeza de que era o
que a senhora gostaria. Mas é de Louisa que preciso falar.
“No dia seguinte à morte do capitão Denny, Louisa me procurou e
perguntou se poderia conversar comigo reservadamente. Eu a levei para a
minha sala e ela, muito a ita, caiu em prantos. Quando, com muita paciência e
di culdade, consegui acalmá-la, ela me contou o que havia acontecido. Disse
que, até o momento em que o coronel foi à cabana na noite da tragédia, ela
não fazia ideia de que o pai do lho dela era o sr. Wickham, e receio,
senhora, que tenha se deixado enganar por completo pela história que ele lhe
contou. Ela não queria vê-lo nunca mais e até começava a ficar com mágoa do
bebê. O sr. Simpkins e a irmã dela não queriam mais car com o menino, e
Joseph Billings, que sabia do bebê, não estava disposto a se casar com Louisa
se isso signi casse ter de assumir a responsabilidade pelo lho de outro
homem. Ela havia con denciado a ele que tinha um amante, mas o nome do
sr. Wickham não foi relevado e, na minha opinião e na de Louisa, jamais
deverá ser, para evitar causar vergonha e angústia a Bidwell. Louisa estava
desesperada para encontrar um lar decente e amoroso para Georgie, e por
isso fora à minha procura, e eu quei contente em poder ajudar. A senhora há
de se lembrar de me ouvir falar da viúva do meu irmão, a sra. Goddard, que
durante alguns anos manteve uma escola bem-sucedida em Highbury. Uma de
suas antigas alunas, que também morava com ela, casou-se com um agricultor
local, chamado Robert Martin, e está muito feliz em sua vida de casada. O
casal tem três lhas e um lho, mas o médico disse a ela que é improvável que
tenha outros lhos, e ela e o marido estão ansiosos para adotar um menino
para brincar com o lho deles. O sr. e a sra. Knightley, da abadia de Donwell,
são o casal mais importante de Highbury, e a sra. Knightley é amiga da sra.
Martin e sempre demonstrou muito interesse pelos lhos dela. A sra. Knightley
teve a gentileza de me mandar uma carta, além das que recebi da sra. Martin,
para me assegurar de que podíamos contar com sua ajuda e seu contínuo
interesse por Georgie se ele fosse para Highbury. Pareceu-me que o menino
não poderia ter encontrado um lar melhor. Então, foi acertado que ele deveria
voltar o quanto antes para a casa da sra. Simpkins, em Birmingham, pois seria
melhor apanhar o menino lá do que em Pemberley, onde a carruagem enviada
pela sra. Knightley com quase toda a certeza seria notada. Tudo aconteceu
exatamente conforme o combinado; cartas subsequentes con rmaram que o
menino se adaptou bem, é alegre e encantador e muito amado por toda a
família. É claro que guardei toda a correspondência para que a senhora visse.
A sra. Knightley cou a ita quando soube que Georgie ainda não havia sido
batizado, mas o batismo já foi celebrado na igreja de Highbury, e o menino
agora se chama John, em homenagem ao pai da sra. Martin.
“Peço desculpas por não ter lhe contado antes, mas eu havia prometido a
Louisa que tudo seria mantido em absoluto segredo, embora eu tenha deixado
claro que a senhora precisaria ser informada. A verdade teria causado um
grande desgosto a Bidwell, e ele ainda acredita, como todos em Pemberley,
que a mãe do menino é a sra. Simpkins e que Georgie voltou para junto dela.
Espero ter agido certo, senhora, mas eu sabia o quanto Louisa estava
desesperada para encontrar uma forma de garantir que o pai do menino
nunca viesse a encontrá-lo e de que o menino fosse bem cuidado e amado.
Ela não quer mais ver a criança, não deseja receber relatórios regulares de seu
desenvolvimento e, na verdade, nem sabe com quem está. Para ela, é
suficiente saber que o filho será criado com amor e dedicação.”
“A senhora não poderia ter agido mais certo e eu, é claro, vou respeitar seu
segredo. Mas eu caria grata se pudesse abrir uma exceção; o sr. Darcy
precisa ser posto a par. Sei que ele não passará o segredo adiante. Louisa
reatou o noivado com Joseph Billings?”, perguntou Elizabeth.
“Reatou, senhora, e o sr. Stoughton diminuiu um pouco a carga de trabalho
dele para que possa passar mais tempo com Louisa. Acho que o sr. Wickham
de fato a abalou, mas o que quer que tenha sentido por ele se transformou em
ódio e ela agora parece contente em concentrar seus pensamentos na vida que
ela e Joseph terão juntos em Highmarten.”
Fossem quais fossem seus defeitos, Wickham era um homem inteligente,
bonito e fascinante, e Elizabeth se perguntava se, durante o tempo em que os
dois caram juntos, Louisa, uma moça que o reverendo Oliphant considerava
extremamente inteligente, tivera um vislumbre de uma vida diferente e mais
estimulante. Porém, não havia dúvida de que a solução encontrada fora
melhor para o lho e provavelmente para Louisa também. O futuro que a
aguardava era o de uma copeira em Highmarten, esposa do mordomo, e com
o tempo Wickham não seria mais do que uma vaga lembrança. Pareceria
irracional e bastante estranho a Elizabeth se Louisa sentisse uma pontinha de
tristeza com isso.
epílogo
Numa manhã do início de junho, Elizabeth e Darcy tomaram o café da
manhã juntos na varanda. O dia prometia ser agradável, com a perspectiva de
compartilhar momentos de alegria com amigos. Henry Alveston havia
conseguido tirar uma breve folga de suas responsabilidades em Londres e
chegara na noite anterior, e os Bingley eram esperados para o almoço e o
jantar.
“Eu caria grato, Elizabeth, se você pudesse caminhar comigo pela beira do
rio. Há coisas que eu preciso dizer, inquietações que estão na minha cabeça
há muito tempo e das quais eu já devia ter lhe falado antes”, disse Darcy.
Elizabeth concordou e, cinco minutos depois, atravessaram juntos o relvado
rumo à trilha que margeava o rio. Ambos em silêncio, seguiram pela trilha até a
parte em que o rio se estreitava, quando então cruzaram a ponte que levava
ao banco instalado na época em que Lady Anne esperava o primeiro lho, a
m de proporcionar-lhe um conveniente lugar de repouso. Daquele ponto,
tinha-se uma boa vista da casa de Pemberley do outro lado do rio, uma vista
que tanto Darcy quanto Elizabeth adoravam e em direção à qual seus passos
sempre se voltavam instintivamente. O dia nascera encoberto por uma névoa
matinal, que, conforme invariavelmente profetizava o chefe dos jardineiros,
pressagiava um dia quente, e as árvores, que já não tinham mais os tenros
brotos de folhas verde-claras da primavera, estavam agora carregadas de
luxuriante folhagem, enquanto as touceiras de ores de verão e o rio cintilante
combinavam-se numa celebração viva da beleza e da plenitude.
Fora um alívio quando a ansiada carta vinda da América en m chegara a
Longbourn, e uma cópia enviada por Kitty a Elizabeth tinha sido entregue
naquela manhã. Wickham escrevera apenas um breve relato, ao qual Lydia
acrescentara algumas linhas apressadas. Os dois estavam extasiados com o
Novo Mundo. Wickham falava principalmente dos magní cos cavalos e dos
planos que o sr. Cornbinder e ele tinham de criar cavalos de corrida,
enquanto Lydia dizia que Williamsburg era um avanço em todos os aspectos
em relação à enfadonha Meryton e que ela já tinha feito amizade com alguns
dos o ciais e suas esposas aquartelados num forte do Exército próximo à
cidade. Ao que parecia, Wickham havia nalmente encontrado um trabalho
que seria capaz de manter; se ele seria capaz de manter a esposa já era uma
questão da qual os Darcy sentiam-se gratos por estarem afastados por três mil
milhas de oceano.
“Tenho pensado em Wickham e na viagem que ele e sua irmã enfrentaram e,
pela primeira vez, desejo sinceramente que tudo corra bem para ele”, disse
Darcy. “Acredito que a grande provação pela qual ele passou possa de fato
levar à regeneração da qual o reverendo Cornbinder está tão con ante, e que
o Novo Mundo continue a satisfazer todas as expectativas dele, mas o passado
é uma parte muito grande do que sou e minha única vontade agora é nunca
mais ver Wickham. O fato de ter tentado seduzir Georgiana foi tão abominável
que nunca consigo deixar de sentir repugnância quando penso nele. Procurei
tirar o caso todo da minha cabeça como se nada daquilo tivesse acontecido,
um expediente que achei que seria mais fácil de levar a efeito se nunca falasse
sobre o assunto com Georgiana.”
Por um momento, Elizabeth cou calada. Wickham não era uma sombra
sobre a felicidade deles, nem poderia prejudicar a perfeita con ança,
declarada ou não, que tinham um no outro. Se aquele não fosse um
casamento feliz, tais palavras não teriam sentido. A amizade que havia existido
entre Wickham e Elizabeth jamais era mencionada por uma questão de tato
que ambos julgavam importante, mas os dois tinham a mesma opinião acerca
do caráter e do estilo de vida de Wickham, e Elizabeth partilhava da
convicção do marido de que Wickham jamais deveria ser recebido em
Pemberley. Também por tato, ela nunca havia falado com o marido sobre a
proposta de fuga feita a Georgiana, uma proposta que Darcy via como um
plano de Wickham para pôr as mãos na fortuna da menina e vingar-se de
desconsiderações de que ele imaginava ter sido vítima. O coração de Elizabeth
estava tão cheio de amor pelo marido e con ança no discernimento dele que
não havia espaço para censuras; ela não conseguia acreditar que ele tivesse
agido com a irmã de modo irre etido ou descuidado, mas talvez fosse
chegada a hora de irmão e irmã conversarem sobre o passado, por mais
doloroso que fosse.
Num tom amável, Elizabeth disse: “Será que esse silêncio entre você e
Georgiana não é um erro, meu amor? É preciso lembrar que nada desastroso
aconteceu. Você chegou a Ramsgate a tempo e Georgiana confessou tudo,
com alívio. Não podemos nem mesmo ter certeza de que ela teria, de fato,
fugido com ele. Você deveria poder olhar para ela sem que sempre lhe viesse
à lembrança algo que é tão doloroso para vocês dois. Sei que ela anseia sentir
que foi perdoada”.
“Sou eu que preciso ser perdoado”, disse Darcy. “A morte do capitão Denny
me fez re etir sobre minha própria responsabilidade, talvez pela primeira vez,
e não foi só Georgiana que foi prejudicada pela minha negligência. Wickham
jamais teria fugido com Lydia, nem se casado com ela, nem entrado para sua
família se eu tivesse domado meu orgulho e dito a verdade a respeito dele
quando foi pela primeira vez para Meryton.”
“Di cilmente você poderia ter feito isso sem trair o segredo de Georgiana”,
disse Elizabeth.
“Algumas palavras de advertência nos círculos certos teriam bastado. Mas os
erros começaram ainda antes disso, quando decidi tirar Georgiana da escola e
deixá-la aos cuidados da sra. Younge. Como posso ter sido tão cego, tão
descuidado, tão indiferente às mais elementares precauções, eu, que sou
irmão dela, que era seu tutor, que fui incumbido pelos meus pais de cuidar
dela e mantê-la em segurança? Georgiana só tinha quinze anos na época e não
estava feliz na escola. Era um colégio caro e so sticado, mas não dava às
alunas uma atenção cuidadosa e amorosa, e inculcava o orgulho e os valores
do mundo elegante, em vez de uma cultura sólida e bom senso. Era correto
tirar Georgiana daquele colégio, mas ela não estava preparada para viver de
forma independente. Como eu, era tímida e insegura em ocasiões sociais; você
mesma viu isso quando veio a Pemberley pela primeira vez com o sr. e a sra.
Gardiner e fez uma refeição conosco.”
“Vi também, como vejo até hoje, a con ança e o amor que existe entre
vocês”, disse Elizabeth.
Darcy continuou como se ela não tivesse falado. “E montar uma casa para
ela, primeiro em Londres, e depois sancionar uma mudança para Ramsgate!
Ela precisava car em Pemberley; Pemberley era a casa dela. Eu podia ter
trazido Georgiana para cá, encontrado uma senhora adequada para ser sua
acompanhante, talvez também uma preceptora para aprimorar uma educação
que fora negligente em aspectos essenciais, e car aqui com ela, para lhe dar
o amor e o apoio de um irmão. Em vez disso, eu a deixei sob os cuidados de
uma mulher que, mesmo agora que está morta e além de qualquer
reconciliação terrena, para mim sempre será a personi cação do mal. Embora
nunca tenha dito nada, você por certo devia se perguntar por que Georgiana
não havia permanecido comigo em Pemberley, a única casa que era um lar
para ela.”
“Admito que me perguntei sobre isso algumas vezes, mas, depois que
conheci Georgiana e vi vocês dois juntos, tive a certeza de que você não
poderia ter tido qualquer outro motivo para agir assim a não ser a felicidade e
o bem-estar dela. Quanto a Ramsgate, talvez médicos tivessem recomendado
que o ar marítimo faria bem a ela. Talvez Pemberley, onde tanto o pai como a
mãe dela faleceram, tivesse cado carregada demais de tristeza, e o fato de
você ter de cuidar da propriedade o impedisse de dedicar a Georgiana o
tempo que desejaria. Eu vi como ela estava feliz na sua companhia e concluí
com toda a con ança que sempre agira como um irmão amoroso.” Elizabeth
fez uma pausa e depois perguntou: “E o coronel Fitzwilliam? Ele partilhava
com você a tutela de Georgiana. Presumo que tenham entrevistado juntos a
sra. Younge, não?”.
“Sim. Mandei um coche para transportá-la até Pemberley para a entrevista e
depois a convidamos para o jantar. Lembrando disso agora, percebo como
foi fácil para ela manipular dois rapazes suscetíveis. A sra. Younge se
apresentou como a pessoa perfeita para assumir a responsabilidade por uma
jovem menina. Tinha a aparência adequada, falava as palavras certas, dizia-se
uma mulher de boa família, culta, compreensiva com os jovens, moralmente
irrepreensível e com modos impecáveis.”
“Ela não trouxe referências?”
“Sim, referências de impressionar. Mas eram, claro, forjadas. Nós as
aceitamos principalmente porque camos ambos seduzidos pela sua aparência
e pelo fato de parecer tão adequada para a função, e embora devêssemos ter
escrito para seus pretensos antigos patrões, acabamos não o fazendo. Apenas
uma referência foi veri cada, mas, mais tarde, viemos a descobrir que o
testemunho que havíamos recebido fora dado por um parceiro dela e era tão
falso quanto as informações que a sra. Younge nos dera ao apresentar-se
como candidata ao posto. Eu acreditava que Fitzwilliam tivesse escrito e ele
pensava que eu cuidaria do assunto, e admito que a responsabilidade era
minha. Ele tinha sido chamado de volta ao seu regimento e estava ocupado
demais com questões mais imediatas. Sou eu que devo carregar o peso maior
da culpa. Não há como justi car a conduta de nenhum de nós dois, mas na
época eu achei que havia.”
“Era uma obrigação pesada para dois homens jovens e solteiros, ainda que
um fosse irmão da menina. Não havia nenhuma parente ou amiga chegada da
família que Lady Anne pudesse designar para partilhar a tutela?”, perguntou
Elizabeth.
“Era exatamente esse o problema. A escolha óbvia seria Lady Catherine de
Bourgh, a irmã mais velha da minha mãe. Escolher outra parente provocaria
uma ruptura permanente entre as duas. Mas elas nunca haviam sido próximas,
pois tinham temperamentos muito diferentes. Minha mãe era considerada, de
modo geral, severa em suas opiniões e imbuída do orgulho de sua classe, mas
era extremamente generosa com os a itos e necessitados e tinha uma
capacidade de discernimento infalível. Você sabe como Lady Catherine é, ou
melhor, era. A imensa bondade com que você a vem tratando desde que ela
perdeu a filha fez com que o coração dela começasse a amolecer.”
“Quando penso nos defeitos de Lady Catherine, sempre lembro que foi a
visita que ela fez a Longbourn, tão determinada a descobrir se estávamos
noivos ou não e, se estivéssemos, a me fazer romper o noivado, que acabou
por nos unir”, disse Elizabeth.
“Quando ela descreveu o modo como você reagiu à interferência dela, eu
soube que ainda havia esperança”, disse Darcy. “Mas você era uma mulher
adulta e orgulhosa demais para tolerar a insolência de Lady Catherine. Ela teria
sido uma tutora desastrosa para uma menina de quinze anos. Georgiana
sempre teve um pouco de medo dela. A toda hora chegavam convites a
Pemberley para que minha irmã visitasse Rosings. A proposta de Lady
Catherine era que Georgiana e a prima partilhassem uma preceptora e
crescessem como irmãs.”
“Talvez com a intenção de que um dia elas se tornassem cunhadas. Lady
Catherine deixou claro para mim que você estava prometido à filha dela.”
“Prometido por ela própria, não pela minha mãe. Essa foi outra razão por
que Lady Catherine não foi escolhida para partilhar a tutela de Georgiana.
Mas, por mais que eu desaprove as interferências da minha tia na vida de
outras pessoas, ela certamente teria sido mais responsável do que eu e não
teria se deixado enganar pela sra. Younge. Botei em risco a felicidade e talvez
até a vida de Georgiana quando a pus sob o domínio daquela mulher. A sra.
Younge sabia desde o início onde queria chegar e Wickham sempre fora parte
desse plano. Ele fazia questão de se manter informado sobre o que estava
acontecendo em Pemberley; foi Wickham que disse à sra. Younge que eu
estava à procura de uma acompanhante para Georgiana e então, mais que
depressa, ela se apresentou como candidata ao posto. Ela sabia que, com a
grande habilidade que Wickham tinha para cativar as mulheres, a melhor
chance que ele tinha de conquistar o estilo de vida ao qual achava que tinha
direito era se casar por dinheiro, e Georgiana foi escolhida como vítima.”
“Então você acha que foi tudo uma trama torpe dos dois, desde o momento
em que você a viu pela primeira vez?”
“Sem dúvida. Ela e Wickham tinham planejado a fuga já no princípio. Ele
admitiu isso quando nos encontramos na Gracechurch Street.”
Eles caram algum tempo calados, olhando para o lugar em que as águas
formavam ondas e torvelinhos ao passar pelas pedras planas do rio. Então,
Darcy se levantou.
“Mas há ainda outras coisas que precisam ser ditas. Como posso ter sido tão
insensível, tão presunçoso a ponto de tentar separar Bingley de Jane? Se
tivesse me dado o trabalho de conversar com ela, de conhecê-la melhor e
notar como ela é boa e generosa, teria percebido que Bingley seria um
homem de sorte se conseguisse conquistar o amor dela. Acho que eu temia
que, se Bingley se casasse com sua irmã, seria mais difícil para mim superar
meu amor por você, uma paixão que havia se tornado uma necessidade
implacável, mas que eu tinha me convencido de que precisava vencer. Por
causa da sombra que a vida do meu bisavô havia lançado sobre a família, fui
ensinado desde pequeno que grandes posses vêm acompanhadas de grandes
responsabilidades e que um dia a missão de cuidar de Pemberley, e das
muitas pessoas cujo sustento e bem-estar dependem da propriedade, recairia
sobre meus ombros. Anseios íntimos e minha felicidade pessoal deveriam estar
sempre em segundo lugar em relação a essa responsabilidade quase sagrada.
“Foi essa certeza de estar agindo errado que me levou a lhe fazer aquele
primeiro e vergonhoso pedido de casamento e a escrever a carta mais
lamentável ainda que lhe enviei em seguida, tentando justi car ao menos em
parte meu comportamento. De modo deliberado, z uma proposta que
nenhuma mulher que sentisse qualquer afeição pela própria família, ou fosse
leal a ela, ou tivesse um mínimo de orgulho e de respeito por si mesma,
poderia ter aceitado. E, quando você recusou com desdém minha proposta e
eu lhe enviei aquela carta me justi cando, quei convencido de que nunca
mais tornaria a pensar em você. Mas não foi o que aconteceu. Depois que nos
separamos, você continuou na minha cabeça e no meu coração e, quando
você e seus tios vieram visitar Derbyshire e inesperadamente nos encontramos
em Pemberley, tive a absoluta certeza de que ainda a amava e nunca deixaria
de amá-la. Foi então que comecei, ainda que sem muita esperança, a tentar lhe
mostrar que eu havia mudado e me tornado o tipo de homem que você
poderia considerar digno de aceitar como marido. Agi como um menininho
que exibe seus brinquedos, desesperado para agradar.”
Depois de uma pausa, Darcy continuou: “Quando recebi você e o sr. e a
sra. Gardiner em Pemberley tão pouco tempo depois de ter lhe entregado
aquela carta lastimável em Rosings, de ter sido tão insolente, arrogante e
ofensivo com sua família e de ter demonstrado tanto ressentimento
injusti cado, minha necessidade de fazer com que acreditasse numa mudança
tão súbita, de compensar tudo aquilo e tentar de alguma forma conquistar seu
respeito e até, quem sabe, algum sentimento mais terno... minha necessidade
era tão grande que sobrepujou o comedimento. Mas como poderia acreditar
que eu tinha mudado? Como qualquer criatura racional poderia? Até mesmo o
sr. e a sra. Gardiner, que por certo já conheciam minha reputação de
orgulhoso e arrogante, devem ter cado espantados com a transformação. E
você sem dúvida deve ter achado minha conduta para com a srta. Bingley
repreensível. Você viu como o modo como eu agia com ela quando Jane
cou doente e você foi visitá-la em Nether eld. Se eu não tinha nenhuma
intenção de pedir Caroline Bingley em casamento, por que lhe dei esperanças
indo tanto à casa da família? A maneira descortês como às vezes eu a tratava
devia ser humilhante. E Bingley, um homem tão bom, devia acalentar
esperanças de que as nossas famílias se unissem. Eu não me comportei como
um amigo nem como um cavalheiro com nenhum dos dois. A verdade é que
tinha tanto asco de mim mesmo que não estava mais apto a conviver em
sociedade”.
“Não creio que Caroline Bingley se deixe humilhar com facilidade quando
está perseguindo um objetivo, mas se você está determinado a acreditar que a
decepção que causou a Bingley ao tirar-lhe a esperança de unir as duas
famílias pesa mais do que o incômodo de ser casado com a irmã dele, não
vou ser eu que vou tentar convencê-lo do contrário”, disse Elizabeth. “Mas
você não pode ser acusado de ter enganado nem um nem outro, pois sempre
deixou seus sentimentos muito claros. Quanto à sua mudança de conduta em
relação a mim, precisa lembrar que eu estava descobrindo como você era de
fato e começando a me apaixonar. Talvez tenha acreditado que você havia
mudado porque meu coração precisava acreditar. E, se fui guiada pelo instinto
e não pelo pensamento racional, o resultado nal não acabou mostrando que
eu estava certa?”
“Ah, certíssima, meu amor.”
Elizabeth continuou: “Tenho tantos motivos de arrependimento quanto você,
e sua carta teve uma vantagem: me fez pensar pela primeira vez que eu podia
estar enganada em relação a George Wickham e em como era improvável que
o cavalheiro que o sr. Bingley havia escolhido como melhor amigo tivesse
agido do modo como o sr. Wickham descreveu, traindo os desejos do pai por
razões mesquinhas. A carta que você tanto lastima teve ao menos um efeito
bom”.
“Os trechos sobre Wickham foram as únicas palavras honestas na carta
inteira”, disse Darcy. “Não é estranho que eu tenha escrito tão determinado a
magoá-la e humilhá-la e, no entanto, não conseguisse suportar a ideia de que,
rompidos como caríamos, você viesse a me ver para sempre como o homem
que Wickham havia descrito?”
Elizabeth chegou mais perto de Darcy e, por um momento, eles caram em
silêncio. Então, ela disse: “Não somos mais, nenhum de nós dois, as pessoas
que éramos na época. Vamos lembrar do passado apenas o que nos der
alegria e olhar para o futuro com confiança e esperança”.
“Tenho mesmo pensado no futuro”, disse Darcy. “Sei que é difícil me tirar
de Pemberley e que pode ser complicado viajar pela Europa no momento,
mas não seria um prazer voltar à Itália e visitar de novo os lugares onde
estivemos na nossa viagem de núpcias? Poderíamos viajar em novembro e
escapar do inverno inglês. Não precisamos passar muito tempo fora, se estar
longe dos meninos a desagrada.”
Elizabeth sorriu. “Os meninos carão seguros aos cuidados de Jane. Você
sabe o quanto ela gosta de tomar conta deles. Voltar à Itália será de fato uma
alegria, mas teremos de adiá-la um pouco. Eu estava mesmo para lhe contar
meus planos para novembro. No início daquele mês, meu amor, eu espero
estar segurando nossa filha nos braços.”
Darcy não conseguia falar; a felicidade lhe trouxe lágrimas aos olhos e lhe
inundou o rosto, mas a força com que apertou a mão de Elizabeth foi
su ciente. Quando conseguiu recuperar a voz, perguntou: “Mas você está
bem? Por certo precisa de um xale. Não seria melhor voltarmos para dentro de
casa para que possa descansar? Não é imprudente ficar sentada aqui?”.
Elizabeth riu. “Estou perfeitamente bem. Não co sempre bem? E não
poderia haver melhor lugar para lhe dar a notícia. Lembre que era neste banco
que Lady Anne costumava descansar quando estava esperando você. Não
posso, claro, prometer uma menina. Tenho um pressentimento de que estou
predestinada a ser mãe de homens, mas se for outro menino encontraremos
um lugar para ele.”
“Certamente, meu amor, tanto no quarto das crianças quanto no nosso
coração.”
No silêncio que se seguiu, viram Georgiana e Alveston descendo os degraus
de Pemberley em direção ao relvado na margem do rio. Darcy disse num tom
de falsa severidade: “O que é isso que vejo, sra. Darcy? Nossa irmã e o sr.
Alveston andando de mãos dadas e à vista de quem quer que olhe das janelas
de Pemberley? Não é um escândalo? O que isso pode querer dizer?”.
“Deixo a seu cargo determinar, sr. Darcy.”
“Só posso concluir que o sr. Alveston tenha algo de importante a comunicar,
algo a me pedir, talvez?”
“Não a pedir, meu amor. Precisamos lembrar que Georgiana não está mais
sob tutela. Tudo por certo já foi acertado entre os dois e eles vêm juntos ali
não para pedir, mas para contar. No entanto, há algo que eles precisam e
esperam receber: sua bênção.”
“E vão recebê-la, com todo o meu amor. Não consigo pensar em outro
homem a quem eu chamaria de cunhado com mais prazer. E pretendo
conversar com Georgiana ainda esta noite. Não haverá mais silêncios entre
nós.”
Juntos, os dois se levantaram do banco e caram observando Georgiana e
Alveston, ainda de mãos entrelaçadas, suas risadas elevando-se acima da
música constante do rio, correrem pela relva luzidia em direção a eles.
BASSO GANNARSA/OPALE
Phyllis Dorothy James White nasceu em Oxford, Inglaterra, em 1920. Durante a
Segunda Guerra trabalhou na Cruz Vermelha, e em 1949 no Serviço de
Segurança Britânico. Em 1968, entrou para o Departamento de Polícia do
Ministério do Interior. Estreou na literatura aos 42 anos, tornando-se uma das
maiores escritoras de romances policiais da atualidade. Além de Morte em
Pemberley, outros catorze romances seus já foram publicados pela Companhia das
Letras.
Copyright © 2011 by P. D. James
Proibida a venda em Portugal
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no
Brasil em 2009.
Título original
Death Comes to Pemberley
Capa
Elisa von Randow
Foto de capa
Stephen Spraggon/ Getty Images
Preparação
Lígia Azevedo
Revisão
Adriana Cristina Bairrada
Marise Leal
ISBN 978-85-8086-648-3
Todos os direitos desta edição reservados à
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Table of ContentsRosto 2Sumário 4Nota da autora 5Prólogo 6LIVRO UM 15
1 162 313 374 405 44
LIVRO DOIS 501 512 583 654 725 81
LIVRO TRÊS 841 852 973 1034 1065 1146 117
LIVRO QUATRO 1211 1222 1323 1404 1515 1556 158
7 169LIVRO CINCO 172
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