Os Significados do Design Moderno A Caminho do Século XXI - Peter Dormer -...

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I I Colecção " DE SIG N , TE CNO L OG IA e GEST ÃO" Peter Dormer I A caminho do século XXI Ed i tad o co m o apoio do PEDIP 11 aNTRO PORTUGUÊS .,é OESIGN

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I I

Colecção " DESIGN , TECNOLOGIA e GESTÃO"

Peter Dormer

• •

I

A caminho do século XXI

• •

Editado com o apoio do PEDIP 11

aNTRO PORTUGUÊS .,éOESIGN

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Os significados do design moderno

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Título Original:

The Meallillgs 01 Moderll Design

Towards tlle Twenty-Firsl Ce11lury

Peter Dormer

© 1990 Thames and Hudson Lld, Londres

Os Significados do Design Modemo

A caminho do século XX!

por Peter Donner

Copyright para a língua portuguesa

© Centro Português de Design, 1995

Tradutor: Pedro Afonso Dias •

Conse(heira Editorial: Ana Calçada

D~signer: Paula Crú Grais •

ISBN 972-9445-05:-2

• Todos os direitos reservados. E proibida a reprodução no todo ou em parte desta publicação,

seja qual foro me io ou suporte, nomeadamente os electrónicos, mecânicos (incluindo fotocópias.

gravações ou outros sistemas de regislO e recuperaçao de infonnações), sem aUlOrização prévia,

por escrito, do editor.

Impresso por Bloco Gráfico, Lda. Rua da Restauraçao, 387 4050 PORTO - Portugal, 1995

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-Colecção "DESIGN, TECNOLOGIA e GESTAO"

Peter Dormer

• •

A caminho do século XXI

,

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4

n

, INOICE

PREFÁCIO 7

1

O DESIGN E O ESTILO I 1

A relação entre estilo e engenharia

Acima e abaixo da linha Estilos agradáveis à vista Não há artesãos

autónomos?

2

NOVENTA ANOS DE DESIGN

O estilo em design desde 1900

31

O direito de escolha A economia norte-americana e o design do século XX

- Design e consumo na Europa

3 COMO DUAS GOTAS DE ÁGUA

O impacte dos novos materiais

59

Os valores do plástico A revolução da supercondutividade As limitações

da carne E o Homem criou a máquina -

4 O PANORAMA DOMÉSTICO ACTUAL

O design e o lar

A infra-estrutura incorpórea

8 1

Os instrumentos que prolongam o corpo humano A alma da máquina -

- Emoções face ao objecto Valores em mudança

I

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5

DESIGN DE LUXO O luxo do design

A deificação do dinheiro

Objectos de figuração

6

Objectos paradi síacos

-VALORIZAR A PRODUÇAO MANUAL

O artesanato de atelier e significado do seu estilo

113

Feitos à mão

139

David Pye O percurso do artesão Libertação face ao mercado -~ .- ~ .. - ----- - -

Realização pessoal O estilo do artesanato Uma estética de oposição?

7

OS FUTUROS DO DESIGN

Conservação e conservadorismo 167

Publicidade e ideologia - Ouro de lei - O design e as raízes da sociedade

NOTAS 179

-ILUSTRAÇOES 183

ÍNDICE REMISSIVO 184

-

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-

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, PREFACIO

Porque compramos tantas coisas? Quem convence os designers a re­

desenharem tudo constantemente? O consumidor, o fabricante, o publicitário?

Ou os próprios designers? Porquê e de que forma a arte, os misteres, o

artesanato e os acabamentos à mão são relevantes para o design numa cultura

de consumo industrializada?

Embora haja, como sempre, excepções à regra, subjacente ao enorme interesse

que actualmente existe pelos objectos de design está uma verdade insofi smável:

desde que lhes seja dada a oportunidade, as pessoas gostam de adquirir coisas.

O desejo de possuir coisas contribui para o êxito tanto da indústria como do

designo Haverá provavelmente razões subtis que expliquem os vários tipos de

avidez aquisitiva, mas existem também outras bastante lineares: as máquinas

de lavar roupa e outros equipamentos tornam a vida mais fáci l (e, conse­

quentemente, mais agradável); outros objectos, como as cadeiras, proporcionam

conforto; e existem artefactos lúdicos, como a telefonia, a alta fidelidade, a

televisão e os brinquedos. Há ainda outras coisas algumas classificadas

como arte, outras como peças de artesanato que queremos à nossa volta

para nos emprestarem cor, variedade ou expressiv idade.

Raramente são indispensáveis à nossa sobrevivência. Mas a partir do momento

em que o aumento da população e a complexidade das nossas relações sociais

passaram a caminhar a par da evolução associada à produção da energia, da

medicina e do comércio, pode dizer-se que a nossa existência está dependente

daquilo que algumas pessoas consideram supérfluo. A moderna cultura dos

materiais é de tal modo elaborada que ficamos mutuamente interdependentes

de um conjunto complicado, gongórico e aparentemente esban jador de relações

e condições, qual miríade de insectos da floresta tropical. A sobrev ivência pura

e simples não se põe sequer como hipótese.

Aquilo que torna designers, fabricantes e objectos irresistivelmente interes­

santes é o facto de estarem integrados no seio de culturas materiali stas,

procurando dar expressão a uma grande variedade de realizações culturais e

aspirações do Homem. Neste livro, dá-se ênfase ao designerenquanto estilista,

espécie de conetor de uma bolsa de ideias e valores; um intermediário entre

fabricantes, engenheiros e cientistas, por um lado, e o consumidor, por outro.

Toda a interacção pressupõe necessariamente valores partilhados. Para que

o fabricante possa ter lucros, o designer receber honorários e o consumidor

-

---~."

7

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Prefácio

ver aumentada a sua auto-estima, têm de partilhar a mesma linguagem.

Tem que existir um consenso sobre o que é bom aspecto, quais os materiais

que devem ser valori zados e porquê; tem que existir uma comunhão de

opiniões sobre aquilo a que vale a pena aspirar e de que modo essas aspi­

rações podem ser reforçadas através de bens materi ais. A consonância nestes

aspectos manifesta-se por convenções de gosto, classe e moda que caracte­

rizam uma cultura em todos os momentos da história.

Consequentemente, a poss ibilidade de um vanguardismo no design é mais

restrita do que nas belas-artes o que é óbvio, porque, se o des ign estiver

muito avançado relativamente à compreensão das pessoas, deixará de

corresponder às suas expectati vas enquanto consumidores, perdendo-as

enquanto tal. Na actualidade, as belas-artes deixaram de valorizar a ideia de

que o vanguardismo deve ser acess ível ao grande público, pelo que a maioria

das pessoas o ignora.

Existem importantes diferenças ao nível económico entre arte e des ign; mas a

estrutura e as ambições de arti stas e designers confundem-se por vezes no

campo do des ign de luxo e do artesanato de qualidade, áreas em que a exclusi­

vidade é um valor em si e em que o valor estético apenas pode ser reconhecido

pelos conhecedores. Um exemplo deste facto foi o mobiliário produzido em

8 Mi lão pelo Grupo de Memphis em princípios dos anos oitenta. O seu trabalho

não atraiu o público, mas esse não parece ter sido alguma vez o objectivo;

foram os museus que o compraram, enquanto símbolo de um fenómeno

cul tural, no que foram imitados por alguns coleccionadores ricos.

De uma maneira geral, os des igners e os fabricantes não se podem dar ao luxo

de estar muito avançados em relação aos gostos dos consumidores nem do que

os preocupa - sobretudo numa época de crescente conscienc ialização para

questões ecológicas. Mas isto não significa que o consumidor esteja na origem

de todas as influências dos designers e fabricantes. Fazem-se experiências,

avança-se uma ou outra provocação, testam-se coisas nunca pedidas nem

sequer esperadas pelo consumidor.

Para aguçar o apetite dos potenciais consumidores, o fabricante recorre aos

serviços dos especialistas na matéria, as agências de publicidade. Os publicitários

contribuem para a construção dos valores que moldam o consumismo. Os

diferentes elementos design, consumismo e construção da imagem do

consumismo através da publicidade mantêm uma relação bastante instável:

o processo é contínuo , como verter tintas de óleo sobre a água e vê-Ias misturar­

-se. Umas vezes conseguimos ver em que ponto as cores se tocam; outras, é

impossível determinar a fronteira entre elas. Os mati zes gerados pelo

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Prefócio

materialismo são potenciados pela publicidade na televisão e revistas de

grande consumo.

Todo o design envolve, aberta ou dissimuladamente, a expressão de valores.

Neste livro, analisam-se as seguintes categorias de objectos:

I Objectos de consumo duráveis: tais como secadores de cabelo, chaleiras

eléctricas e aspiradores.

2 Artesanato: cerâmica, mobiliário, têxteis ou joalharia, fe itos à mão.

3 Artefactos de design de luxo: peças que, tendo sido desenhadas por

arquitectos ou designers conceituados, exigem uma grande quantidade

de mão-de-obra especializada (aqui se incluem produtos de preço

elevado, como automóveis, relógios e serv iços de chá l.

A estrutura do livro reflecte a importância de quatro temas o contexto

económico do design e da produção, incluindo o fabrico artesanal; o papel

desempenhado pelas novas tecnologias na abertura de possibilidades aos

estilistas; a relação entre fabrico, consumo e realização pessoal; a necessidade

crescente de enquadrar o design nos valores mais elevados da sociedade

saúde e segurança, realização profissional do indivíduo e responsabilização

face ao meio ambiente. Este livro não se baseia, portanto, nas histórias e 9

percursos de designers individuais.

A nossa relação com o consumismo, neste final do século XX, é ambígua;

apesar de se reconhecer o êxito e o prazer tornados possíveis pela cultura do

consumismo, a actual espiral de excessos não pode continuar sem que haja

estruturas nacionais e internacionais para regulamentar o fabrico dos produtos

de consumo. Estamos aexercerdemasiada pressão sobre o planetaedefrontamo­

-nos já com o perigo real de o envenenar. E os principais responsáveis são

sobretudo o Ocidente e o Japão; o resto do Mundo não aderiu ainda ao clube

dos consumidores.

O design e o estilo, o primeiro capítulo, define o âmbito de todo o livro e

explica a distinção entre "abaixo" e "acima da linha", que permite identificar

separadamente o design enquanto processo estilístico e enquanto produto da

engenharia.

No capítulo 2, Noventa anos de design, define-se o contexto económico geral

que esteve na raiz da modificação estilística verficada no design do século XX,

com especial ênfase na economia e na política externa dos Estados Unidos.

Considera-se frequentemente que a guerra é um motor de inovação e de

progresso do design, e há boas razões para que assim seja. O capítulo 3, Como

-

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Prefócio

duas gotas de água, demonstra que muito se fez em prol do design também

em tempo de paz, através da dinâmica do próprio consumismo em larga

medida auxiliado pelas indústrias de armamento e aerospaciais, sustentadas,

como em tempo de guelTa, pelos impostos e não por políticas comerciais

baseadas no lucro. No entanto, o capítulo incide fundamentalmente na

contribuição estilística dos novos materiai s.

O panorama doméstico actual (capítulo 4) começa por analisar o des ign e o

estilo das ferramentas, passando em seguida às " pseudoferramentas". Assim,

as máquinas de lavar são consideradas "verdadeiras ferramentas", enquanto a

máquina de fotografar SLR 3S mm, com todos os seus acessórios, é conside­

rada uma "pseudofelTamenta". Debate-se ainda o papel do simbolismo e

significado do estilo no produto

formas, ao longo do livro.

questões recorrentes, sob diferentes

Assim, o capítulo S, Design de luxo, detém-se no papel do simbolismo no

marketing d irigido aos ricos ou aspirantes a ricos, sa lientando a importância

do artesanato neste sector.

O trabalho dos artesãos é o tema principal do capítu lo 6, Valorizar a produção

manual. Aí se defende a tese de que o artesanato contemporâneo é uma

invenção do século XX e de que o seu significado se forja não só na sua

10 oposição ao design e à indústria, mas também pelo seu distanciamento da ética

da concorrência dos preços.

O capítulo final, Futuros do design, enuncia doi s tipos de abordagem para o

des ign: a conservação e o conservadorismo. Agora que os consumidores di s­

põem de uma enorme variedade de objectos, o próximo passo no percurso

lógico do consumismo (que está a desenrolar-se perante os nossos olhos) é a

preocupação com o meio ambiente. No design, como em qualquer actividade,

há lugar para o ceptic ismo. Mas ao aproximar-se o termo do século XX temos

de acreditar no futuro se quisermos encontrar o que torna a vida tolerável

os valores inatos.

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o Design e o Estilo

deste facto. Por vezes, os objectos de segunda ordem, as compras de artigos

básicos, essenciais, são tornados atraentes pelos publicitários que,

inteligentemente, chamam a atenção para a ciência que tais produtos encerram. ,

E o caso das pilhas secas e do óleo para automóveis. Por exemplo, ao tentar

fazer de uma determinada marca de óleo para motores uma compra atraente,

a agência de publicidade pode realçar o aspecto sofisticado da ciência invisível

do óleo para motor, referindo-se-Ihe como "engenharia líquida" .

O consumidor ignora, normal e compreensivelmente, o design "abaixo da

linha", até se verificar uma falha. Esta pode ocorrer devido a pelo menos uma

de três razões: conhecimento insuficiente do produto por parte do fabricante

ou designer; falta de cuidado na sua elaboração; fim da vida natural do

componente. Os critérios subjacentes ao êxito ou fracasso do design "abaixo

da linha" são, por vezes, perfeitamente identificáveis: as peças falham, as

pessoas morrem. A ordem e a natureza da responsabilidade do design ao nível

dos estratos ocultos são normalmente essenciais e podem afectar fisicamente

as vidas de pessoas e animais ou o meio ambiente.

O vaivém Challenger é um exemplo recente. Em parte por razões políticas

(o público teve de ser convencido de que teri am que gastar-se fundos públicos

no Espaço para benefício de industriais privados) e também porque alargarmos

o nosso horizonte ao sistema solar é entusiasmante e revigorante, a NASA

manteve a sua máquina publicitária permanentemente em acção, no intuito de

convencer o público de que no design "abaixo da linha" se pautou sempre por

uma grande qualidade. A tecnologia espacial dos Estados Unidos tornou-se,

ela própria, uma metáfora do que melhor havia em designo ,

E claro que o imaginário colectivo donde também o imaginário de cada um

de nós se intrigava com os elementos estilisticamente mais notórios e

visíveis, um sem-número de minúcias de que se compunha o programa

espacial - as botas dos astronautas, as mochilas e os comandos internos da

nave. Esse imaginário não foi perturbado por coisas como válvulas de

borracha, nem sequer pelos mosaicos cerâmicos de isolamento térmico que,

como telhas ao vento, se desprendiam constantemente. Quem, a não ser um

canalizador, se entusiasma com o tipo de canalização que tem em casa?

A explosão do vaivém espacial Challenger provocou, no imaginário do

consumidor ocidental, uma ruptura comparável ao afundamento do Titanic.

Ambos são exemplos do maior expoente das realizações materiais, cujo

fracasso repentino provoca no consumidor um imediato decréscimo na fé que

ele tem no design e, temporariamente, na cultura em que este está inserido.

Além disso, apesar de tais realizações serem ou terem sido encaradas como

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o Design e o Estilo

expoentes máximos da técnica, foram logo tidas como dados adquiridos e

consideradas seguras.

A fé dos leigos é também alimentada pela construção de histórias, mitos e

metáforas contemporâneos. A exploração espacial, em particular, tem sido

acompanhada por algumas metáforas de um virtuosismo inigualável para

alimentar a nossa imaginação. Veja-se o caso de "2001, Odisseia no Espaço",

que exalta a tecnologia superior da cultura dos Estados Unidos. O filme

apresenta como "realidade" aconquistado Espaço na versão de empreendimento

sem mácula, em que os erros habituais nas empresas humanas foram erradi­

cados o que correu mal no mundo de ficção de Kubrick foi a inconstância

de outra inteligência (essa não humana), nomeadamente a de HAL, o exasperante

computador inteligente que falava com uma voz de missionário mórmon. ,

E evidente que o chauvinismo nacional afecta a forma como vemos o des ign:

pensemos, por exemplo, no modo como foi noticiado no Ocidente o desastre

de Chemobyl. A explosão foi, de uma maneira geral, considerada pelos

ocidentais como um incidente tipi camente russo, porque se partia do princípio

que a tecnologia russa é sempre inferior à norte-americana ou à da Europa

Ocidental. Uma parte deste chauvinismo pode ter a ver com aspectosestilísticos:

aos olhos do Ocidente, o design russo parece produzir sempre monos de cariz

utilitário, na medida em que transparece que o design "abaixo da linha"

continua a ser primário, dando origem a objectos muito vulneráveis a falhas

gerais repentinas. O ar desengraçado e primário do design espacial russo é, em

parte, resultado de um fraco design "abaixo da linha" no domínio da

electrónica a tecnologia russa ainda não chegou ao nível de desenvolvimento ,

de microprocessadores verificado no Ocidente. E provável que se tivesse

explodido uma nave espac ial russa a fé ocidental no design e tecnologia

espaciais não sofresse o mínimo abalo. Os nossos preconceitos acerca da

superioridade da tecnologia ocidental não serão, talvez, inteiramente

justificados. Com linhas antiquadas ou não, as naves espaciais soviéticas têm

bons desempenhos.

Mas a tecnologia "abaixo da linha" exactamente porque se situa "abaixo

da linha" consegue camuflar os seus piores aspectos, entre os quais os

procedimentos menos cu idados. A ciência pode ser pura, mas, por vezes, a sua

aplicação é demasiado humana no que tem de falível. A explosão do Challenger

foi um choque, mas choque maior foi saber-se que a vu lnerabilidade da NASA

reside no grande primitivismo que, a par da maior das sofisticações, existe na

tecnologia espacial, essa tecnologia em que depositámos a nossa confiança.

Não obstante, a imagem popular, a ideia mais vulgarizada, e de alguma forma

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o Design e

bem fundamentada, da natureza da ciência e da tecnologia é a de que não se

utiliza o método de "tentativa e erro" na moderna tecnologia ocidental a partir

do momento em que algo entrou em fase de produção ou quando estão emjogo

vidas humanas ou investimentos avu ltados. Pressupõe-se, por exemplo, que os

protótipos de aviões não se despenhem, mesmo se estiverem a ser sujeitos aos

primeiros testes de voo. O lançamento de equipamento dispendioso é precedido

de testes laboratori ais e simulações que recorrem a modelos informatizados .

Além de que é sempre má publicidade um av ião comercial despenhar-se,

mesmo que se trate de um protótipo.

Os leigos também são tranquilizados pela certeza de que, se um engenheiro

utili za determinada coisa, há um cientista por detrás dele que compreende

como e porquê essa coisa funciona. Esta confiança é normalmente justifi­

cada, mas o método de tentativa e erro não abandonou por completo o design

"abaixo da linha". Por vezes, temos que utili zar materiais que desempenham

bem determinada função antes de sabermos porque é que o fazem.

Nos últimos trinta anos, a nossa confiança na tecnologia aumentou significati ­

vamente, porque se ass istiu ao amadurecimento de várias tecnologias visíveis

que alcançaram os mais elevados níveis de sofisticação e fiab ilidade. São disso

exemplo os automóveis e os aviões. Depois de uma vaga de desastres de av ião,

não se verifica um decréscimo signifi cativo de pessoas a quererem viajar.

Neste livro, far- se-ão outras referências ao design "abaixo da linha", mas va le .

a pena resumir as características da relação existente entre engenharia de

produto, estil o do produto e consumidor.

I O design "abaixo da linha" é demasiado complexo, variado e está

frequentemente envolto num mistério demasiado profundo para poder

interessar o consumidor leigo. Alguns defendem que, muitas vezes, o

design e a engenharia são intrinsecamente complicados para poderem ser

compreendidos pelos leigos : nenhum leigo conhece a fundo o Boeing 747.

2 Se o ponto I é verdadeiro, não é menos exacto que o consumidor le igo

gosta de ter como certo de que, por baixo do invólucro estilístico, tudo

está bem e/ou é produto da tecnologia de ponta.

3 A relação entre os pontos 1 e 2 é, por um lado, expressa pelo des igner

enquanto estili sta e, por outro, pelo publicitário. Tanto um como outro

trabalham para fazer crescer a ideia de insuperabilidade de um produto e

das suas qualidades intrínsecas. De uma maneira geral, as actividades que

compõem a produção de objectos são mantidas separadas do estilo do

• •

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o Design e o Estilo

produto. Em tellllOS comerciais, não há vantagem em recordar às pessoas

as situações desagradáveis ou as incertezas que podem minar o fabrico.

Vejamos, por exemplo, o caso dos Boe ing e das Linhas Aéreas Japonesas

(JAL). O Jumbo 747 é considerado por muita gente, incluindo eu próprio, um

avião muito seguro. Mas um dos 747 das JAL despenhou-se e as perdas em

vidas humanas foram tremendas; a causa, aparentemente, foi uma porta­

-estanque mal fechada, falha que, apesar dos rigorosos controlos, não foi

detectada. Não houve, no entanto, qualquer razão e continua a não haver ­

para ter dúvidas quanto aos 747 em geral (as circunstâncias em que o avião da

JAL foi reparado foram excepcionais) . A companhia aérea japonesa não

dei xou de comprar av iões deste modelo e a imprensa do Japão continuou a

publicar artigos acerca de alegadas falhas em 747 posteriormente entregues.

As falhas encontradas têm sido rel ativamente pouco importantes. Na verdade,

em circunstâncias normais, estas pequenas falhas, de fácil correcção (como por

exemplo os extintores de incêndio pendurados ao contrário) não teriam

qualquer interesse noticioso, sobretudo nos casos em que a companhia aérea

efectua uma vi storia antes de pôr os aparelhos ao serviço. Só que a existência

de uma conjunção invulgarde acontecimentos provocou um interesse público ,

inusitado sobre o design "abaixo da linha" do 747. E que, para além da queda,

em 1985, do avião das linhas aéreas j aponesas, verificou-se também uma

disputa laboral com a própria JAL durante a qual , para dificultar a vida à

companhia, os empregados telefonavam para os jornais sempre que era

detectada uma falha, por mais pequena que ela fosse. A resposta daJAL, à boa

maneiranipónica, não deixou nada ao acaso: instituiu um sistema de manutenção

e verificação de acordo com o qual é destacada, para cada avião e durante a sua

vida útil, uma mesma equipa de peritos para assegurar a sua assistência.

Em 1989, após estes incidentes e uma nova queda (no Reino Unido) prota­

gonizados por Boeings (não 747), as autoridades competentes dos EUA e do

Reino Unido encomendaram peritagens aos sistemas de cablagem dos novos

Boeing. Foram detectados defeitos. O que é surpreendente não é o facto em si, ,

mas que o Mundo espere que os defeitos sejam totalmente eliminados. E claro

que os fabri cantes e as empresas de serviços devem aspi rar à perfeição, mas

quer estas entidades quer nós próprios, enquanto consumidores, cometemos

erros, muito provavelmente porque acreditamos nos mitos da tecnologia e não

tanto por aq uilo que a nossa experiência colectiva e senso comum nos deve­

riam ensinar. Exigir perfeição pode ser correcto e sensato; contar com ela pode

revelar -se fatal.

/

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o Design e o Estilo

Estilos agradáveis à vista

Estilo é a linguagem visual que indica a uma cu ltura que ela se está a orientar

de forma bem sucedida, segundo padrões produtivos de trabalho, de lazer e

institucionais. Organizar os assuntos assegura não só a continuidade de uma

cultura, mas também o seu crescimento e progresso. Mesmo um instrumento

estilístico tão simples como a arrumação é, frequentemente, tanto uma declaração

de intenções visual como uma característica necessária àquilo que é arrumado

para responder a uma função. As pessoas com inseguranças relativamente ao

seu espaço no Mundo tomam-se por vezes obsessivas na arrumação um

terreno muito organizado, uma nação demasiado alTumadinha ou, simplesmente,

o acto de varrer o lixo para debaixo do tapete tranquili zam-nos, dizem-nos que

continuamos no controlo das operações.

No momento em que este livro é escri to, a filosofia estilística reinante entre os

designers e alguns fabricantes determina que se coloquem os componentes

mecânicos ou de grandes dimensões de secadores de cabelo, tel efonias,

máquinas de barbear eléctricas, aparelhagens estereofónicas, televisores e

vídeos no interior de invó lucros plásticos de contornos suaves e de cor preta,

cinzenta ou branca. A forma destas caixas é geométri ca: paralelepípedos, ----._.

cilindros e até esferas. A prevalência do estil o, sobretudo nos artigos eléctricos, 17

coincide com o seu correspondente na arquitectura.

Há elegantes antecedentes históricos das "caixas pretas", patentes desde Paul

Cézanne, pintor do século XIX (considerado um dos pais do Modernismo),

passando por Johannes Itten (um dos mais influentes professores deste sécul o

na Bauhaus) e pela Braun, fabricante alemão de e lectrodomésticos.

Ora, o Modernismo tem tido uma projecção mediática alternadamente boa e ,

má, mas sempre e sobretudo enganadora. E hoje moda troçar da tese de que "a

função detellnina a forma", a qual tinha por base que um design honesto não

pretendia disfarçar aquilo que o objecto fazia, como funcionava, ou mesmo o

material de que era feito ou como tinha sido construído. Esta filosofia de design

foi outrora considerada honesta e democrática; e, dado o contexto político do

seu período mais influente talvez de 1914 a 1930 adequava-se a uma

política soc ialista e revolucionária.

Afinal de contas, se a política era de oposição aos costumes arreigados, a

estética teria de ser, ela própria, oposição.

No entanto, "a função determina a fo rma" era apenas um estilo. O argumento

de que o design modernista ia buscar a sua base à lógica da produção em série

não era verdadeiro (ver págs. 142 e 143). Tivesse o estilo dominante dos

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dos utensílios básicos de cozjnho, riqueza que alguns designers dos nossos dias procuram incluir no seu trabalho .

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o Design e o Esti lo

objectos e da arquitectura produzidos pela antiga ordem estabelecida, não

socialista, sido simples e funcional, e estou convenc ido de que os designers

com inclinações socialistas ou democráticas teriam ripostado com uma actuação

que favorecesse a elaboração, a figuração e a decoração. Ou seja, podemos,

consoante a óptica, considerar qualquer dos estilos ora opressivo, ora demo­

crático; tanto se pode defender o papel desempenhado pelo objecto, como o ,

facto de ele transmitir às pessoas a metáfora e a decoração. E quase um caso

de moeda ao ar.

Aquilo que continua a ser verdade é que qualquer das abordagens a formal

ou a elaborada tem uma integridade estética independente da ideologia que

a adopta. E, o que é mais, esta integridade pode ser violada. O Modernismo viu

a sua integridade violada a seguir à Segunda Guerra Mundial, sendo trans­

fOltllado em brutalidade e num utilitarismo barato, de segunda ordem.

Nos finais dos anos 70, aqueles que começavam a sentir-se espartilhados

declararam que a estética da caixa preta/cilindro branco era incaracterística,

anónima e que estava excessivamente banalizada. Os electrodomésticos,

sobretudo, eram vistos como possuindo "falta de individualidade", devido aos

aspectos práticos impostos pelo sistema de fabri co com formas de

produção relativamente simples. Houve também outros fac tores que condu­

ziram ao êxito da estética simples: aparelhos domésticos, como as batedeiras

ou misturadoras, os moinhos de café e as balanças, tendem a ser encarados

antes de mais como instrumentos, ferramentas, e não como ornamentos. No

entanto, alguns destes artefactos são, pela sua natureza, mais individualizados

e "expressivos" do que outros. Por exemplo, um martelo exprime a sua função

de maneira inequívoca: a de bater nas coisas; mas algumas ferramentas

modernas não dão, abertamente, ideia da sua função. Uma balança de cozinha

moderna, de linhas arrojadas, não exprime pesagem: é apenas uma pequena

espécie de estrado no qual se coloca uma tigela de plástico contendo farinha

ou manteiga, e que dá a leitura do peso através de uma pequena janela situada

na sua base, sob a forma de dígitos de cristais líquidos.

No entanto, um conjunto antiquado de pesos de cozinha exprime bem o acto

de pesar, utilizando pesos-padrão como bitola. Tem a mesma expressão que

sopesar duas coisas simultaneamente para lhes comparar o peso. Com a antiga

máquina, conhecíamos a sensação de pesar. Mas a moderna ferramenta é

provavelmente mais exacta, cómoda e higiénica

bonito objecto em si.

e, ainda por cima, um

Diz-se que o design do tipo caixa preta fez com que os consumidores se

senti ssem excluídos de um processo. Uma caixa preta evoca bruxaria. não

____ o

/9

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o Design e o Estilo

revela funções. A atitude expressiva que podemos atribuir a este estilo

encontra paralelo na atitude profissional paternalista da soc iedade oc idental:

arquitectos, advogados, méd icos e outros profiss ionais fazem-nos coisas em

vez de nos envolverem no que fazem. Por outro lado, parece ser verdade que

as pessoas, na maior parte dos casos, preferem ser poupadas aos pormenores

de design "abaixo da linha" do serviço que estão a adquirir seja este uma

intervenção cirúrgica ou uma aparelhagem estereofón ica.

Actualmente, verifi ca-se uma viragem em direcção à individualidade estilística.

Pode ser uma ironia relativamente à evo lução "abaixo da linha" da sociedade

ocidental, orientada para a globalização e o corporativismo, e a publicidade

"acima da linha" que tornou a Coca-Cola, a Peps iCola, o MacDonalds ou o

American Express conhecidos de toda a gente, do Colorado a Calcutá. Entre

os designers, há uma moda tendente a convencer os fabricantes de que o

individuali smo, o marketing e o design por segmentos e o facto de servirem os

interesses de uma minoria deverá tornar-se regra. Os fabricantes interessam­

-se pelas vendas por segmentos quando estas se revelam mais lucrati vas do que

as vendas em massa.

David Pye, escritor, designer e artis ta, esclarece a natureza da moda de design

... :____ no seu livro "The Nature and Aestethics of Design" (1974). A nova geração

20 cresce sujeita às "restrições, reais ou imaginadas", impostas pela geração mais

velha, sua progenitora. Inev itavelmente, o estilo da geração mais velha é ,

associado a "restrição", a " limitação". E por isso rejei tado. Mas, em breve, a

nova geração passou a progenitora da seguinte; ocorre um processo semelhante

de associação e rejeição, passando então a novíssima geração a descobrir a

qualidade da dos seus avós.

Simples . Demasiado simples, no dizer de David Pye. Mas há algo de verdadeiro

nesta observação. Além disso, e apesar de Pye não o di zer, a intensidade com

que uma geração rejeita o estilo de outra para poder defender o seu é garantia

de que esse estilo possui uma integridade própria . TellIlos como "moda" e

"estilo" são descartados de mane ira excess ivamente fác il , como se se referissem

a coisas superficiais porque efémeras . Não devemos perder de vista que a

mudança é tanto um sinal de questionamento, procura, inovação e especulação

constantes como de oportunismo.

O Modernismo tinha uma integridade de design que será redescoberta do

mesmo modo como, mil agrosamente, as pessoas estão agora a enaltecer os

sucessos alcançados pelo des ign nos trabalhos efectuados nas décadas de 1890

e 1950. Aq uilo que Pye descreve é outro aspecto do fenómeno emotivo da

saudade e da nossa propensão para olharmos para trás. O tempo, de facto, dá

"

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o Design e o Estilo

às coisas uma nova perspectiva, mas há outras razões pelas quai s os designers

e os estilistas se sentem muito mais à vontade para dizer bem de um estilo que

está pelo menos uma geração para além da dos seus pais: os designers'e arti stas

ambiciosos acham mais fácil louvar as virtudes dos que se reformaram,

morreram ou estão fora de circulação, Pais e professores só muito raramente

entram nessa categoria.

Terá a rejeição do Modern ismo um componente especial que tenha estado

ausente das rejeições anteriores? Alguns observadores têm comentado a

aparente falta de humanidade do trabalho de uma das maiores figuras do

Modernismo o arquitecto, pintor e des igner Le Corbusier. Esta aparente

falta de humanidade deriva do facto do estilo de Le Corbusier não se trans­

ferir facilmente de uma região do Mundo para outra e de poucos edifícios

seus possuírem conteúdo figurativo suficiente para que o gosto individual

se identifique com eles, excepção feita à ermida de Notre Dame-du-Haut.

A fa lta de humanidade da arquitectura modernista, associada à sua disseminação

(transformando cidades inteiras), provocou uma reacção popular. E as rebeliões

populares, ao cOlltr.ário das profiss ionais ou sectoriais, são muito raras em

arquitectura e em designo

Não tem havido uma corrente visível contrária à estética da caixa preta no

design de produto; à excepção de alguns designers, não parece ser sequer tema

de debate. Alguns consumidores podem ter-se cansado do estilo; outros, de

acordo com o princípio de Pye, podem tê-lo associado excess ivamente com a

sua infância. Mas, enquanto a arquitectura modernista transformou a vida de

milhões de pessoas, o mesmo não se passa com a estética da caixa preta. Na

maior parte das casas onde se pode, ou podia, encontrar aparelhagens estereo­

fónicas ou televisores de caixa preta, é provável que também haja tecidos e

estofos suaves, alcatifas, mobílias de casa de jantar de estilo escandinavo ou

reproduções várias. A caixa preta vulgarizada pelo design não tinha a

omnipresença da arquitectura da caixa de vidro. Sobrestimar o domínio de

um estilo de design sobre outro é, na cu ltura capitali sta ocidental, enganador. , E verdade que a caixa preta dominava uma categoria de artigos (eléctricos) ,

mas as casas contêm uma grande variedade de objectos e, consequentemente,

uma grande variedade de estilos.

Com o aparecimento de novos materiais (ver capítu lo 3), surgiram novas

liberdades para os estilistas. Coloca-se a ênfase, por exigência do mercado, na

facilidade e transparência de utili zação, na leveza, na segurança evidente, no

conteúdo narrativo. Designers e fabricantes dispõem de microcircuitos e têm

a liberdade de utilizar dispositivos electrónicos em vez de electromecânicos.

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o Design e o Estilo

o efeito desta liberdade estilística fac ultada pela ciência dos materiais na

corrente principal do design é abordado no capítulo 4. Aqui falaremos do

interessante e inovador trabal ho que emerge nos Estados Unidos, daquilo a que

podemos chamar o design "narrativo". Os arquitectos Michael Graves e

Robert Venturi tiveram uma enorme influência na criação das bases deste

estilo e, de entre os elementos da nova geração, que despontaram num

ambiente de expressividade, contam-se os profissionais f 011 Itados pela escola

Cranbrook de semântica de produto. .

O conceito de design "narrativo" merece que nos detenhamos sobre ele.

O gosto " popular" norte-americano do princípio da década de 50, tal como é

revelado pelo design doméstico desse período, tem paralelismos com a

evo lução verificada nos finai s dos anos 80 (é interessante referir que Helen

Drutt, galeri sta, coleccionadora e críti ca de arte, defende que o célebre estilo

Memphis foi um rapto intelectual do estilo dos lares norte-americanos da

década de 50).

Há uma casa em Filadélfia com uma colecção de objectos dos anos 50 que teria

deixado Andy Warhol verde de inveja. Frascos para bolachas, candeeiros,

cortinas, toalhas de mesa, aventais , relógios, cadeiras, lancheiras e conjuntos

.. de frasquinhos para especiarias têm vindo a ser reunidos por dois argutos

22 coleccionadores, numa casa situada num vu lgar bairro de construção em

banda. Todos os objectos são figurativos, coloridos, produzidos em série e

baratos. Podemos ver relógios em forma de televisor ou bule de chá, uma

telefonia em forma de vela Firestone, candeeiros com formas de animais e

bailarinas ou até a imitar a gruta de Belém. Háconjuntos de saleiroe pimenteiro

em forma de nus reclinados, em que os saleiros são nus femininos e os

pimenteiros masculinos. Todas as superfícies planas, sejam de mesas de

cozinha (com tampo de fórm ica e pernas cromadas) ou dos lados dos porta­

-guardanapos de papel , são embelezadas com motivos diversos, por vezes ,

abstractos, mas mais frequentemente vegetais ou animais. E uma demonstração

constante da arte de fazer com que um objecto sugira outro.

A narrativa, por vezes muito específica uma lancheira tratada como pão

de forma , é, mais frequentemente , genérica. Muita da decoração têxtil , por

exemplo, é quase étnica, representando mexicanos, mães pretas ou outros

povos exóticos felizes. Há referências a fil mes e a personagens da televisão. O

contexto destas pequenas narrativas está inserido noutra mais lata: a da

publicidade e as substruturas sobre as quais ela assenta, do cinema e dos

fi lmes à TV e à rádio, substruturas essas que fornecem por sua vez novas

imagens a serem inclu ídas nos padrões de designo Os candeeiros da época são

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Rádio em forma de velo de outoffiÓvel[EUA). Este tronsístor, oferto promocional , tem o

comando ligor/desligar e o sintonizador no

porte superior.

o Design e o Estilo

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fascinantes, pretexto para um trabalho de cariz utilitário, em que o exótico, o

decorativo e, não raro, o religioso, eram reunidos numa só peça. Consequen­

temente, esta representava uma súmula muito geral de gosto, sonho e crença,

Não é pouco, para um candeeiro! Pessoalmente, não gosto deles e não os quero

coleccionar. Mas a sua importância enquanto ornamentos com significado em

casas de pessoas normais e inteligentes era tal que hesitaria em troçar deles.

Na história das belas-artes, os Estados Unidos podem ser famosos pelos seus

abstraccionistas dos anos 40 e 50, mas um fio condutor constante na cultura

visual mais generali zada é o gosto pelos "trocadilhos" visuais, pela figuração,

a verosimilhança e a ilusão. Quer olhemos para a cu ltura subjacente ao frasco

de bolachas tão ao gosto das classes trabalhadoras, para a grande variedade do

artesanato e das artes decorativas , para o Disney World ou para a escultura do

edifício pós-moderno da AT&T em Nova Iorque, depara-se-nos por todo o

lado uma apetência pela expressão não linear das coisas.

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o Design e o Estilo

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o design popular dos EUA designavo-se noif quando se lhe reconhecia o gosto das classes trabalhadoras (exemplos de 195 1). tv\ais larde, o atitude de narrativa plástico passou o ser respeitado; era o pós"modernismo, criado por

designers de primeiro plano como Michael Graves.

Existe uma relação entre um relógio em fOi ma de bule (Tea Time) e o atendedor

de chamadas telefónicas, da autoria de Lisa Krohn e Tucker Viemeister, que

tem a f 011 lia de um li vro. Não se trata de menosprezar o trabalho de Lisa Krohn ,

nem subestimar a sua compreensão daquilo que está a fazer. Diz ela do seu

atendedor de chamadas premiado: "Trata-se de um telefone e atendedor

integrados; o Phonebook utili za a sua aparência quer como ícone quer como

manual de instruções. Viram-se as páginas, de plástico rígido, para passar do

modo de chamadas à reprodução ou gravação de mensagens, tal como folhear

uma agenda pessoal nos faz percorrer as suas várias utilizações. De certo

modo, o Phonebook foi a cobertura de açúcar da pílula tecnológica".

Estabelecendo a comparação entre um design contemporâneo sério e aquilo

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A famoso chaleira com apito de plóstico em forma de pássaro !Ale~i, 19861.

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Este protótipo de telefone/olendedor de chamados, desenhado por liso Khron e Tucker Viemeister (EUA, I 987),

serve se do imagem da agendo telefánico poro tornar o mâquino simpático. É mais um exemplo da narrativo estilístico

norte-americana.

que pomos de lado como uma manifestação do kitsch dos anos 50, veja-se o

rico filão que a procura popular de design narrativo constitui.

Abordagem diferente, mais subversiva e, finalmente, menos comercial , do

design narrativo, foi a de Daniel Weil com o seu rádio Small Door. Weil é um

judeu argentino com muita aceitação em Itália e que desenvolve em Londres

a sua actividade de designer. Small Door revela um olhar travesso sobre o gosto

britânico e o ambiente fora de moda dos seus lares. As entranhas do rádio estão

penduradas de uma plataforma de madeira as entranhas provêm do rádio

Roberts, famoso pela sua solidez, boa qualidade e design insípido. Os grandes

manípulos de plástico , com riscas tipo chupa-chupa, fazem lembrar as pequenas

confeitarias britânicas que vendem rebuçados de conteúdo duvidoso, fabricados

por pequenas firmas situadas nas profundezas da cintura industrial britânica.

O altifalante, disparatadamente colocado na extremidade de uma haste, é

coberto por um pedaço de chinlz cobrir horrores com um tecido decorativo

garrido é uma tradição enraizada na classe média-baixa de todo o mundo

ocidental. O rádio de WeiJ contém mais alusões e camuflagens do que o

atendedor de chamadas de Krohn. O objecto de Krohn é claro no seu voca­

bulário, pejo que será entend ido por muitas pessoas com grande facilidade.

O rádio de Wei l é muito intrigante, algo ridículo e provoca um certo diveltimento .

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o ródio Smoll Ooor, de Daniel Weil (Reino Unido, 1986), é um gozo o vários níveis _ Weil, estrangeiro em Londres,

divertia-se com o carácter antiquodo do indústria ingleso _

Não há artesãos autónomos?

Grande parte do êxito alcançado pela nossa cultura deve-se ao trabalho

colectivo das pessoas, à especialização e à fragmentação coordenada do

trabalho. Nenhuma pessoa isolada poderia, por si só, alimentar a complexidade

de um design avançado. Este facto é obviamente verdade no caso de um

Boeing 747, mas não é menos verdadeiro se falarmos de componentes

relativamente pequenos e insignificantes, como a nova geração de pára­

-choques que absorvem energia mecânica.

Todas as criações mais complicadas e valiosas da soc iedade moderna, quer

sejam produto de processos governamentais e administrativos de prestação de

serviços, quer sejam actividades práticas fabrico de rádios, vídeos,

automóveis ou artigos de plástico , implicam que as pessoas cooperem

objectivamente em segmentos do empreendimento. A cultura tem tudo de

cooperativo e cumulativo.

O êxito das culturas industriais produziu algumas reacções contra elas. Temos

necess idade de acreditar que ainda é possível ganhar a vida fazendo as coisas

à mão, de acordo com o nosso próprio ritmo e tendo perfeito domínio do

processo total. Os artesãos podem ser considerados pessoas que dirigem todo

o seu processo de trabalho, bem como a concepção dos seus artefactos.

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o Design e o Estilo

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fv'Iarta Rogoyska, lecedeira, trabalhando. A essência do artesanato ê o trabalho com um determinado material, o que

o artesão se dedica por completo. O designer pode dedicar-se o vórios ,

Qualquer que seja o resultado da abordagem de grupo, parece haver uma

necessidade profundamente enraizada de acreditar no valor, especificidade e

capacidade do indivíduo , Esta necessidade explica o interesse votado às

manifestações públicas de destreza manual e mental quer seja na exibição

de um virtuoso do violino ou no trabalho de um oleiro. Gostamos de ver as

pessoas fazerem coisas com habilidade.

O século XX assistiu à criação do mito do artesão e redefiniu , se é que não

reinventou, o seu papel. A natureza tanto do mito como do novo papel do

artesão é abordada no capítulo 6. Mas o grande argumento de promoção do

artesanato é a variedade do seu conteúdo narrativo, facto que é verdade tanto

para a camisa feita à mão como para o automóvel de luxo ou a peça de barro

feita à roda.

Por exemplo: o modo como encaramos os potes de barro feitos à mão tem

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o Design e o Estilo

A porle superior de uma loto de Coco-Colo é perfeito. Um ferreiro do século XVIII enlusiasmor-se-ia com a sua exoctidão

e com o focto de ~r incessantemente reproduzido_

seguramente que ver com o facto do pote ser um símbolo do modo de trabalho

de alguém e do seu estilo de vida. Poderíamos dizero mesmo de um automóvel:

compre-se um automóvel e estar-se-á, num certo sentido, a comprar um

símbolo, uma representação do modo de vida de várias centenas de pessoas.

Mas uma das diferenças que distingue o objecto nascido do design e destinado

a ser fabricado em série do objecto artesanal é o facto de um tentar disfarçar

a realidade do trabalho que lhe deu origem, enquanto o outro o pretende exaltar.

Ninguém gosta de ser recordado do barulho, da cadência do trabalho por turnos

ou da monotonia da produção fabril. Um pote feito à mão, pelo contrário, pode

dar-se ao luxo de ser transparente quanto ao seu fabrico . Entre o ceramista e

o pote não há necessidade de intervenção de designers, de publicitários ou de

técnicos de relações públicas.

Ao compralIDos cerâmica doméstica feita à mão, estamos a comprar uma

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o Design e o Estilo

entrada num mundo de trabalho que as pessoas respeitam e até invejam. Um

dos valores da tecnologia do artefacto é a circunstância de utilizar uma I ingua­

gem mais acessível: pode-se discorrer como foram feitos e concebidos um

pote, um cesto ou um pano. Somos capazes de entender o processo de fabrico,

mesmo que tenhamos uma completa falta de jeito de mãos. No caso dos

objectos que o design molda para a produção em série, o processo e a feitura

são um mistério para a maioria das pessoas. Não sendo designers, ver-se-iam

em apuros para explicar a génese de uma lata de Coca-Cola.

Os misteres "tradicionais" proporcionam uma representação reconfortante

num mundo cheio de perplexidade. Para tal, têm de assumir formas familiares.

A necessidade constante de formas tradicionais na cerâmica, no mobiliário ou

ainda nos objectos de ir à mesa é uma procura de familiaridade, de uma

linguagem visual com raízes. A grande força dos misteres tradicionais reside

na sua linguagem visual comum de formas e funções fami liares. Não interessa

se as pessoas de facto querem usar os bules, jarros ou taças: o que estão a

comprar é, antes de mais, um conjunto genérico de representações do tipo de

trabalho que as produziu, do modo de vida que as produz e de uma linguagem

visual facilmente entendível.

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2

ANOS DE DESIGN

o esti o em design desde 1900

o design do Ocidente é como é, em larga medida, dev ido à cultura capitalista

liberal na qual se insere e a qual serve. Assim sendo, uma resenha da "história

do design" no Ocidente tem de levar em conta a ideologia subjacente à história

recente do consumismo. O design, tal como o próprio consumismo, não é uma

activ idade nem amoral nem apol ítica. ,

Neste estudo, muito é elidido, abrev iado ou condensado. E claro , no entanto,

que, até à data, o des ign tem sido alimentado por uma ideologia que assenta no

conceito de crescimento contínuo. O crescimento contínuo, enquanto conceito

económico, tem sido equacionado em termos da própria noção de liberdade.

Comprar tanto quanto possível , tão frequentemente quanto possível, é consi­

derado um direito, quase uma necessidade. Eé uma atitude que tem beneficiado

o design ocidental. No entanto, uma tal interpretação do que é a liberdade pode, ,

por sua vez, tornar-se História. E este o tema da primeira metade deste capítulo.

A segunda metade contém uma breve análise das mudanças de estilo no designo

o direito de escolha

O design e os designers devem muito da sua actual projecção ao facto de

estarem inseridos numa sociedade capitalista e liberal em vez de estarem, por

exemplo, numa sociedade marxista-leninista. Nas sociedades assim designadas

(tanto quanto é possível existirem países verdadeiramente marxistas-leninistas),

tudo indica que as directivas de planeamento central praticadas nesses regimes

não estimularam o consumismo (excepto talvez como reacção à falta de bens

essenciais). E é o consumismo, muito mais do que o desenvolvimento da

indústri a pesada, que dá aos designers oportunidades "criativas". A razão é

simples: num ambiente industrial, a máq uina tem apenas que desempenhar o

seu papel; deve ser de utilização fác il e segura, mas não precisa de ter linhas

que a tornem sedutora aos olhos do consumidor ou que levem o potencial

comprador a adquiri-la. Numa economia de planeamento central não há neces­

sidade de uma dúzia de tipos de máquina, quando uma só chega perfeitamente.

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Noventa Anos de Design

Não é preciso um estilo metafórico ou dirigido à publicidade. O planeamento

central não encoraja virtualmente qualquer espécie de sensibilidade adicional

nem quai squer elementos de design "desnecessários".

O planeamento central também cerceia, com toda a probabilidade, as inovações

tecnológicas. E um dos êxitos do liberalismo económico do Ocidente fo i o

estímulo dado à tecnologia e, poss ivelmente, às artes os artistas são mais

ou menos livres de explorar as formas que lhes dite a fantasia .

No entanto, são as próprias liberdades do Ocidente que podem limitar tanto a

eficácia como a acutilância das artes. Nos regimes autoritários, os artistas são

frequentemente algumas das principais vozes da oposição e, portanto, a arte

que desafia a visão oficial é sofregamente desejada, nem que seja por causa da ,

sua diferença. No Ocidente, ser diferente é ser nOllnal. E também duvidoso

que, quando o artista está em oposição a seja o que fo r, a sua arte tenha assunto,

além do vigor nascido da diferença. Frequentemente, a arte tem de ser

construída por uma complex idade subtil e metafórica, de fOllna a ev itar a

censura fili stina, não deixando contudo de revelar, a todos quantos têm olhos

e ouvidos, uma visão alternativa das coisas . Os filmes do russo Andrei

Tarkovsky são disso exemplo.

O consumismo de tipo ocidental não começou, evidentemente, depois da

Segunda Guerra Mundial, nem sequer neste século. Simon Schama, no seu

"Embarrassment ofthe Riches" I , transmite-nos uma imagem convincente da

Amesterdão do século XVII em plena vaga consumista, com ruas e mais ruas

de lojas atulhadas de gente e mercadorias. Mas fo i a vaga de consumo emer­

gente nos EUA depois da Segunda Guerra Mundial que guindou o design e o

consumismo a níveis de verdadeiro excesso. Na base deste excesso estava o

extraordinário desempenho dos protagonistas da guerra durante o próprio

confl ito, nomeadamente os EUA .

Depois da Segunda Guerra Mundial, a obsolência integrada tomou-se uma

característica inerente à economia do Ocidente, talvez porque a experiência da

guerra tenha actuado sobre a tolerância, partilhada por des igners e fabricantes.

Dado o êxito na produção de armas, que foram em seguida destruídas, é

possível que esta atitude de "fazer e destruir" se tenha tornado uma ideia fixa

na cultura fabri l dos EUA. ,

Existia, assim, uma crença na ética do consumo em espiral. E esta a opin ião

da histori adora do design norte-americano, Kathryn B. Hiesinger, no seu

excelente ensaio introdutório a "Design Since 1945", catálogo da exposição

com o mesmo nome, reali zada no Museu de Arte de Filadélfia em 1983.

Diz ela: "A indústria americana identificava novo com bom e defendia

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Noventa Anos de Design

a obsolênc ia planeada como um bom princípio económico: o consumidor

americano espera produtos novos e bons todos os anos. Habituou-se à expo­

sição automóvel an ual .. . o nosso costume de trocar de carro todos os anos, de

comprar novos frigoríficos, asp iradores ou ferros eléctricos de três em três ou ,

de quatro em quatro anos é econom icamente saudável... E um hábito verdadei-

ramente americano, e assenta saudavelmente na nossa economia de abundância".

Grandes palavras, citadas por Hiesinger a partir de um livro chamado "Design

for Business", da autoria de J. Gordon Lippincott, publicado em 1947.

Acreditar que o novo é bom fundamentava-se numa crença nas virtudes e na

necessidade da concorrência. Não era, por si, uma crença nova, já que estava

bem enraizada no espírito empreendedor do século XIX e, nos EUA, na teoria

e prática de gestão comercial dos princípios do século XX.

A concorrência, no capitali smo liberal norte-americano, não era um laissez­

-faire; tinha uma estrutura, uma organização, uma ideo logia e um designo

Todos estes elementos foram reconhecidos e sistematizados por F. A. Hayek,

economista e sociólogo de origem austríaca que publicou, em 1944, o seu

agora famoso livro "The Road to Sei/dom".

A intenção da obra era criticar o planeamento central soc ial ista, sobretudo o

marxi sta-leninista (Hayek argumentava que acabari a quase de certeza em

tirania) , e defender o liberalismo cap itali sta. Hayek tem sido, a espaços, tão

denegrido como aclamado - e foi denegrido com o epíteto de fasc ista, o que

não dei xa de ser irónico tendo em vista o ataque ao fascismo que o seu livro

constitui. O livro foi um estrondoso êxito nos Estados Unidos . Teve um

sucesso menor e mais controverso no Reino Unido, o que é compreensível se

atentarmos em que a ortodoxia política britân ica entre 1945 e 1979 tendia para

ideais socialistas e de economia de planeamento central. Além disso, o Reino

Unido, como de resto vários outros países da Europa Ocidental, tinha monta­

do um esquema de segurança social que parecia então (como ainda hoje)

prestar um bom serviço à população. Por isso, os vigorosos argumentos de

Hayek contra o planeamento central ou governamental pareciam desajustados,

quando julgados à luz de um serviço de saúde nacional, planeado centralmente,

que parecia funcionar.

Não obstante, há muito de atraente no liberalismo de Hayek, porque ele fri sa

constantemente a desvantagem de co locar nas mãos de um punhado de pessoas

o poder de decidir como deve viver toda a gente. Uma análise das políticas

habitacionais em muitos países da Europa de Leste, no Reino Unido e nos

Estados Unidos pode mostrar quão desastrosa, e até tirânica, se pode revelar

a centralização da tomada de decisões.

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Noventa Anos de Design

Hayek enunciava a sua posição do seguinte modo:

1 "O liberal ismo defende o melhor uso poss ível das forças da concorrência

como meio de coordenar os esforços do Homem;

de deixar as coisas tal como estão" 2

- . . nao tem o propOSltO

2 "Numa sociedade compet iti va, o preço que temos que pagar por uma coisa,

bem como o ritmo a que podemos trocar uma coisa por outra, depende das

quantidades de outras coisas das quais, em adquirindo uma, privamos os

restantes membros da sociedade. Este preço nao é determinado pela

vontade consciente de ninguém" 3 .

O ponto 1 é extraordinariamente ev idente e existe uma grande quantidade de

provas empíricas que o sustentam: o consumismo, o design e o marketing de

bens em concorrência entre si produziram um grande leque de escolhas, que

manifestamente entusiasma, entretém e satisfaz o consumidor ocidental.

Para só falar dos automóveis, ex iste concorrência bastante entre europeus,

japoneses e norte-americanos para proporc ionar amplas possibilidades de

escolha. No entanto, mais ev idente ainda é considerarmos que a concorrência

nasce da coordenação e de que não é um salve-se quem puder. Para tudo o que

seja mais complicado de produzir do que os potes ou os cestos feitos à mão, as

pessoas têm de juntar-se para trabalhar, para projectar, para promover e para

vender. Isto explica um dos fenómenos patentes nos EUA, no Japão e na

Alemanha e que é o de grandes companhias competirem ferozmente entre si,

ao mesmo tempo que cada uma requer dos seus empregados lealdade e

empenhamento em relação à empresa com o intuito de a tornar a melhor.

Hayek tomou conhecimento da profunda investigação levada a cabo nos

EUA e, de facto, ainda antes, na Alemanha, sobre a maneira como as

pessoas podem ser encorajadas a trabalhar em conjunto de modo a competir

com outros grupos de pessoas igualmente a trabalhar em conjunto.

Podemos constatar que os norte-americanos, como os alemães, têm um talento

especial para a organização e para a racionalização. Em 1911, um norte­

-americano, de seu nome. Frederick Winslow Taylor, publicou um livro

chamado "The Principies of Sciell/ific Mallagement", destinado a tornar as

forças produtivas mais eficientes, e que, visto em retrospectiva, parece ter tido

como efei to sincroni zar o ser humano com o ritmo das máquinas quer

fossem tapetes rolantes ou filas de máquinas de escrever nos escritórios. Mas

as empresas, grandes e pequenas, depressa descobriram que esta abordagem

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Novenlo Anos de Design

atomística do trabalho, que tornava os trabalhadores componentes separa­

dos de uma máquina humana, precisava de ser temperada com melhores ,

métodos de gestão. E que se constatou que o moral dos trabalhadores andava

pelas ruas da amargura, a produtividade estava a diminuir e a rotação de

pessoal aumentava quando os trabalhadores sentiam estar a ser encarados

como coisas, em vez de pessoas com as quais se podia trabalhar.

Outros sociólogos se salientaram. Um dos estudiosos das relações de trabalho

foi George Elton Mayo, um australiano que emigrara para os Estados Unidos

e que se tornou chefe do Departamento de Investigação Industrial de Harvard

em 1926. Antes de desempenhar essa função, tinha sido contratado pela

Western Electric Company de Chicago para descobrir uma solução para a

insatisfação sentida pelos trabalhadores e para a baixa produtividade. Mayo

fez experiências com trabalho à peça, períodos de descanso e refeições

quentes grátis. Conclui u tendo posteriormente feito a sua demonstração

científica pela importância das atitudes da gestão na prossecução de boas

relações laborais. Estudou, em seguida, a importância de permitir às pessoas

trabalharem em grupos naturais e fez um cuidado trabalho de investigação

sobre a psicologia de grupo e os métodos através dos quais se podia estimular

não só a produtividade mas uma produtividade de qualidade.

Um tal design "abaixo da linha" (os designers contemporâneos encaram o

design como um processo, e o design da gestão e do moral do trabalhador

enquadra-se nessa visão) é um dos factores que tem peltnitido à indústria fabril

do Ocidente alcançar a sua meta de produção de artigos de qualidade.

O trabalho de Mayo e de outros contribuiu para o êxito da ética capitalista

liberal, que visa proporcionar aos clientes uma verdadeira escolha do que

compram.

Um moral fraco sabota a qualidade: torna o melhor impossível de ser

atingido 4 Numa economia concorrencial como contraponto a uma econo­

mia de planeamento central o conceito de "melhor" é, em larga medida,

definido não pelo produtor mas pelo consumidor. E, como a história da

soc iedade de consumo do pós-guerra parece indicar, o melhor é definido como

mais do que simplesmente "barato". "Melhor" indica também uma relação

qualidade-preço mais favorável, maior confiança no produto e melhor serviço.

O resultado, como se verá nos capítulos seguintes, tem sido a produção de bens

de consumo duráveis, possuidores de uma qualidadee de nívei s de desempenho

muito superiores aos requisitos normais do consumidor. As máquinas

fotográficas, os automóveis e os computadores têm desempenhos muito . . , .

superIores aos estrItamente necessarlOS.

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Noventa Anos de Design

Em sociedades não liberais, o indivíduo não é li vre de escolher o que quer,

antes tem que contentar-se com o que uma meia dúzia de planificadores

decidiu que devem ser as necessidades dos indivíduos. O resultado de tal

actuação parece ser sempre, na prática, um nivelamento por baixo em

serviço, em qualidade, em design e em variedade. O designer só entra em acção

quando os seus serv iços são requisitados para levar a melhor sobre uma oferta

da concorrência, no sentido de cativar o consumidor individual. O consumo em

espiral significa também asp irações em espiral consumo e aspirações

alimentam-se mutuamente. Não é de admirar que as autoridades dos países do

Bloco de Leste tenham escondido aos trabalhadores a existência de lojas espe-•

ciais reservadas aos membros do Partido (nas quais se vendiam géneros

ocidentais) e tivessem impedido a circulação de revistas, filmes e vídeos •

ocidentais que ilustram uma maneira de viver diferente. Censurar as aspirações

é um dos modos de evitar a censura da populaça. Aquilo que se desconhece não

se deseja.

A Segunda Guen'a Mundial, durante a qual todas as nações industriais se saí­

ram bem na produção crescente de armas, foi um enorme êxito para o planea­

mento norte-americano (ajudado, é claro, pela c ircunstância de ninguém ter

invadido ou bombardeado território continental dos Estados Unidos). As esta­

tísticas são impressionantes: no período de 1943 a 1944, os norte-americanos

completavam um navio por dia e um avião em cada cinco minutos; entre os

aviões, contavam-se grandes bombardeiros de longo curso, como os Super­

!ortress. A organização de fábricas e gabinetes para coordenar este tipo de pro­

dução guindou a arte do trabalho em equipa para uma nova dimensão. Os em­

pregados norte-americanos foram bombardeados com propaganda explicando

que estavam a participar na equipa que trabalhava com os "homens da frente".

Análises de tempos e movimentos decompunham todas as actividades nas suas

partes constitutivas, com a finalidade de optimizaro tempo de cada empregado.

Nesse momento da sua história, os norte-americanos provaram ser tão compe­

tentes no macro como no microplaneamento. A introdução do Plano Marshall

depois da Segunda Guerra Mundial foi simultaneamente sagaz e altruísta.

Permitiu voltar a pôr de pé a Europa mais depressa do que qualquer europeu

podia imaginar em 1945. Sem a ajuda (e protecção) dos Estados Unidos, a

evolução da Europa Ocidental teria sido mais lenta e talvez tão amarga como •

a de Leste. E inegável que a América precisava de uma Europa Ocidental

forte, capaz de funcionar como tampão face à União Soviética. Não obstante,

quem como nós cresceu num Ocidente moldado pelo Presidente Truman, em

vez de num Leste da lavra do secretário-geral Estaline, tem muito por que

estar grato.

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Noventa Anos de Design

Depois da Segunda Guerra Mundial, o conceito americano do esforço colecti­

vo, consubstanciado na "Empresa", sai u reforçado. Os recém-formados

ali stavam-se na AT&T, na IBM ou na Coca-Cola como se fosse para toda a

vida. "Sejam bons para nós que a IBM será boa para vocês". A Empresa exigia

lealdade aos seus empregados como o fariam pequenas cidades-Estado e, tal

como elas, dava grande importância a uma identidade uniforme, que regesse

toda a imagem e modo de actuação da empresa. A identidade institucional

teve implicações no design da arquitectura, do mobiliário e do equipamento

de escritório, bem como na imagem gráfica e na publicidade utilizadas

pela empresa.

A historiadora de design Esther McCoy explicou, no seu ensaio" The Ratio-

na/ist Period" 5 - termo que usa para a década de 50 -, que a exactidão,

a padronização e o comando racional das máquinas eram vistos como uma -'_ 0" .' _._ .~. _ _

necessidade éticâ para o bem da humanidade. No entanto, não diz quem fazia ,

essa apreciação. E pouco provável que os trabalhadores considerassem "ética"

a racionalização dos seus empregos e vidas. Eé manifesto que nem todos assim

pensaram tomaram-se contestatários, passavam a vida a mudar de

emprego, a adoecer ou a trabalhar devagar. Daí resultou uma rápida evolução

das ciências sociais ligadas à gestão de pessoal, no intuito de dar resposta a

uma necessidade económica de resolução do conflito existente entre

permitir que o trabalhador conserve a sua auto-estima enquanto ser criativo e

autónomo e os requisitos de produção tendentes a simplificar o trabalho

através de processos atomísticos (ver também págs. 147 e 155).

Parece que nos EUA o conceito de " lealdade à empresa" fazia parte de uma

crença quase generali zada (se bem que não exactamente aceite por toda a

gente) de que a lealdade era intrínseca ao trabalho em prol do bem comum. Foi

um conceito que deu bons resultados na Alemanha e que resultou (ao que

parece) extraordinariamente bem no Japão. Já no Reino Unido, provou ser um

conceito frágil, porque os trabalhadores eram fiéis à sua classe ou sindicato ou,

embora menos frequentemente , ao seu partido político. Daí que tenha obtido

piores resultados face ao esquema organizativo do todos-por-um da concor­

rência; não adoptou (certamente com algumas boas razões) a característica

mais significativa da cultura industrial moderna: a ética organizativa, que

tinha sido aperfeiçoada e era dominada pelos Estados Unidos.

As ciências de gestão e as teorias sobre a empresa não pellllaneceram

imutáveis. Os elementos mais feudais das grandes estruturas empresariais vão

sendo postos de parte, à medida que as empresas evoluem em direcção a um

sistema federal , em vez de centralizado. Decorre um intenso debate sobre o

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Noventa Anos de Design

modo como as empresas podem aprender a viver com a incerteza, sobre como

devem ou deveriam ser tomadas as decisões e a que nível se verificam as

tomadas de decisão mais eficazes. Parecemos estar a mover-nos sistemática e

animadamente para uma liberdade de consumo cada vez maiore para ambientes

de trabalho cada vez mais civi lizados, democráticos, interessantes e agradáveis.

O trabalhador-consumidor é, aparentemente, bem servido em todos os

aspectos pelo sistema capitalista liberal. Quem precisa de planeamento

central? Hayek é um herói, afinal.

Mas tal, como as ciências de gestão têm evoluído para uma situação em que o

modelo feudal vai dando lugar a um modelo democrático ou federal, também

o mundo exterior tem progredido. De uma maneira alarmante, a espiral de

consumo começa a parecer um vórtice. De espiral ascendente dirigida aos

prazeres materiais passou a ser uma espiral descendente em direcção à

poluição, ao desperdício e à cri se ambiental.

Além disso, há um círculo cada vez maior de gestores e políticos que começa

a aperceber-se de que a espiral de consumo tem, até ao presente, estado restrita

a uma vintena das várias centenas de países do Mundo. O que acontecerá

quando, no futuro , a ex-URSS e a China começarem a satisfazer a procura dos

seus vários milhões de consumidores? O capitalismo liberal, baseado num

planeamento central mínimo e num máximo de concorrência, toma-se cada

vez mais desconfortável quando encarado globalmente. Se os chineses imi­

tarem os excessos do Ocidente, eles irão estragar ainda mais o nosso Mundo.

Enquanto o Terceiro Mundo se manteve simplesmente pobre, não corria o

ri sco de entrar na esfera das liberdades e valores do consumidor ocidental. Mas

brasileiros e chineses da Formosa, indianos e chineses continentais estão a dar •

mostras de quererem aderir às liberdades do consumismo. E exactamente na

altura em que estamos a acordar para os enormes danos que estamos a pro­

vocar no meio ambiente devido à nossa ausência de planeamento central,

estão eles a começar a agredir violentamente o ambiente com o seu desejo de

usufruir de algumas das nossas liberdades.

Ironicamente, regi stam-se agora alguns pedidos dissimulados do Ocidente

liberal e capitalista (sobretudo dirigidos ao Banco Mundial), tendentes a

assegurar uma certa dose de planeamento central. E tudo indica que, para criar

um bem-estar maior, o capitalismo liberal tenha de ser moderado por uma

maior intervenção do planeamento central e que, em certa medida, as escolhas

dos consumidores tenham de se tomar mais restritas.

A cultura surgida da Segunda Guerra Mundial, e na qual o design ganhou asas,

baseia-se num misto de cooperação (do tipo descrito por Hayek) e de indivi-

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Novenlo Anos de Design

dualismo quero o meu carro, o meu pedaço de estrada, a minha casa, a

minha I iberdade de viajar de avião e assim por diante. São liberdades positivas,

liberdades cuja negação reforça os aspectos pessimistas da vida. E, no entanto,

algumas delas terão de ser, em certa medida, limitadas se através de meca­

nismos tributários ou de fixação de preços, em vez de recorrer a legislação

especial, eis o que não é ainda claro. Vejamos um exemplo muito simples.

Actualmente, 80 % das viagens são feitas pelos habitantes das vinte nações

mais ricas. O que aconteceria se os habitantes da China Continental, da ex-,

-URSS e da lndia começassem a ter dinheiro sufi ciente para viajar? Imagine-

-se o efeito sobre o meio ambiente dos seus próprios países e o de outros se mais

um bilião de pessoas começasse a deslocar-se de um lado para o outro .

Até agora, a ética da espiral consumista não tem sido posta em cheque porque

os "outros" países do Mundo são demasiado pobres para aderirem ao clube.

O consumo em espiral tem também vivido do facto de a maioria dos

consumidores não ter ainda percebido o que está a fazer. Não sabem como é

produzido aquilo que compram. A culpa não é deles. O componente compe­

titivo do mundo capitalista liberal depende da exaltação das virtudes de um

produto e não da enumeração dos seus defeitos. A publicidade tem garantido

que o divórcio entre as realidades situadas "acima" e "abaixo" da linha

continue a ser completo. Quem é que quer saber da violência no matadouro

ao trincar um bife?

O planeamento central (nas formas desenvolvidas sob o marxismo-Ieninismo)

não tem constituído uma alternativa satisfatória ao capitalismo I iberaJ , porque

os países do Bloco de Leste têm estado em falta perante consumidores e

ambiente, por igual. No entanto, os últimos anos da década de 80 testemunha-

ram interessantes alterações no Ocidente - uma certa predisposição dos

países ricos para estudarem formas de planeamento central supranacional que

protejam o ambiente, mesmo que em prejuízo da li berdade de produção (e,

portanto, da do designer). A União Europeia - com comissões centralizadas

estabelecendo as normas sobre ambiente, segurança e saúde, e ainda sobre

direitos do cidadão, normas essas cuja observância é obrigatória para os

países-membros constitui uma das evoluções culturais mais interessantes

dos anos 80, abrindo caminho ao surgimento da UE como uma entidade

comercial única.

Não pretendo, no entanto, "defender" ou sequer "prever" que se verificará uma

completa centralização do planeamento. Advogar um tal passo seria, à luz

do falhanço da política económica e social da Europa de Leste e da URSS, uma

tolice. Seja como for, tendo começado com Hayek, é salutar persistir, com ele,

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Noventa Anos de Design

nos avisos relativos ao planeamento central. Diz ele: "O planeamento à escala

internacional, mais do que o de escala nacional, não pode deixar de ser

uma 'razão da força', uma imposição de alguns sobre o co\ectivo de um

determinado tipo de padrão e aplicação do que os planificadores pensam ser

adequado para os outros".

A maioria de nós, no Ocidente, estará talvez tentada a concordar, mas o comen­

tário de Hayek era, na altura, inflamado e só parcialmente objectivo (não

esqueçamos que data da Segunda Guerra Mundial). A UE, por exemplo, impõe

muitas normas aos seus membros, para benefício do individualismo e dos

indivíduos dos Estados-nação que a compõem. Há casos de pessoas que, injus­

tamente julgadas em tribunais britânicos, têm recorrido ao tribunal europeu,

onde lhes foi feita justiça. A expressão "razão da força" não se aplica à UE.

A UE é um exemplo interessante de cooperação, porque os seus Estados­

-membros podem violar (e violam) os acordos celebrados com a UE sem

perigo de sanções militares. A UE não está, ela própria, livre de se autopenalizar

por ter sido intolerante ou até, ocasionalmente, corrupta; os seus burocratas e

políticos sabem que é do seu próprio interesse procurarem atingir políticas

justas e essencialmente liberais. O facto dos países membros poderem aban­

donar a federação por sua livre iniciativa introduz de facto um componente de

40 oferta e procura na política comunitária. A união política total seria, prova­

velmente, um erro. Como sempre, é necessário procurar um equilíbrio de

interesses e as federações e coligações são instrumentos úteis, apesar de

imperfeitos, para equilibrar interesses que precisam de coexistir.

Com efeito, se temos razão para temer o planeamento central por causa do

poder que confere a uns quantos, é uma realidade perene que são sempre "uns

quantos" que controlam, planeiam e exercem o poder. Numa economia de mer­

cado " livre", existe uma real centralização, assente nos interesses comerciais

de um punhado de empresas dominantes em cada sector industrial. Assim, sen­

do verdade que, por exemplo , as principais companhias petrolíferas competem

entre si, não é menos certo que apresentam uma frente unida contra tudo o que

pensam poder pôr em causa os seus lucros . Frequentemente, os seus interesses

entram em conflito com OutTOS interesses positivos, sobretudo os ambientais .

Claro que, como sempre, não há uma estratégia abrangente que nos possa dar

o melhor dos mundos . Só que o consumo irrestrito à escala do planeta há-de

derrotar-nos, porque a dimensão da população mundial e a dimensão das

exigências potenciais de cada indivíduo entrarão em conflito. A tirania de uma

burocracia mundial é, sem dúvida, um espectro horrível; mas, para preservar

a possibilidade de escolha e alargá-la ao resto do Mundo, parece inevitável

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• Noventa Anos de Design

termos que descobrir uma forma de consumismo ede escolha mais responsável

e madura e gerar um novo modelo, mais subtil , de oferta e procura.

O design, que actualmente funciona como uma forma alargada de publi cidade

ou como resposta a um simples problema de procura do mercado, terá também

de amadurecer. Os aspectos éticos e ambientais relativos a onde uma coisa é

fe ita, quem a faz eem que condições, deque é feita, como será util izadaecomo

será inutili zada ou reciclada tomar-se-ão parte tão integrante do design como '

são hoje em dia o estilo e a moda. Grande parte desta evo lução, necessária para

a sensibilidade do des ign (e da produção), é tornada possível pela evolução da

opinião pública, ela própria alimentada pela informação, cuj a existência ex ige,

como Hayek apontaria, uma sociedade li vre. Nenhum sistema garante por si

só essa liberdade. Ironicamente, a Grã-Bretanha, que redescobriu a liberdade

das forças de mercado, é hoje considerada por alguns jornali stas europeus

como tendo uma imprensa que é apenas livre a 50 %. O período do pós-guerra assistiu , em alguns aspectos, a uma históri a da

liberdade através do efémero. Talvez a próx ima evolução traga a liberdade

at ravés da qualidade, por via do conservadori smo, da conservação e de uma

maior ênfase nos interesses colectivos. O design enquanto profi ssão tornar-se­

-á, então, adulto, se puder contribuir para que os consumidores de todo o

Mundo dêem estímulo a estas novas aspirações colectivas (em contraponto às

ind ividuais) .

A economia norte-americana e o design do século XX

Desde 1941 que os Estados Unidos dominam o Mundo em terlflos económicos

e isso apesar do advento do Japão como superpotência. Mercê da dimensão das

suas Forças Armadas, continuam também a ser o "polícia do Globo".

Neste século, os Estados Unidos consumiram mais do que qualquer outra

nação. Paul Kennedy, hi storiador e autor de "The Rise and Fali ofthe Great

Powers" (1988), mede o crescimento daeconomia norte-americana em termos

da energia consumida. Os valores são na ordem dos milhões, calculados em

toneladas métricas de carvão ou equivalente. Ass im, em 1890, os EUA consu­

miram 147 milhões de toneladas, valor que, em 1938, ascendia a 697 milhões.

Nenhum outro país igualava este consumo.

A importância do poder económico dos Estados Unidos da América, para os

Aliados ocidentais que combati am as potências do Eixo na Segunda Guerra

Mundial, foi imensa.

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Noventa Anos de Design

Paul Kennedy refere "a mudança radi cal devida ao aumento de 800 por cento

na produção de armas nos EUA entre 1941 e 1943 ... " . Constata também que

o poderio norte-americano em 1945 era artificialmente elevado porque o res­

to do Mundo estava exausto ou subdesenvolvido. Nas palavras de Kennedy:

"Tal como os britânicos depois de 1815, os americanos tinham, por seu turno,

descoberto que a sua influência informal em muitas partes do Mundo se

tornava bastante mais complexa; como os britânicos, encontravam ' novas

fronteiras de insegurança' sempre que tentavam definir um limite. Era o

advento da Pax Americana" 6.

Também a Rússia, em resultado da guerra, pôde alargar a sua esfera de influên­

cia de maneira significativa; mas, com Estaline, a URSS agiu de modo dife­

rente dos EUA. Partes da Rússia tinham sido devastadas pela guerra e Estaline

agiu ao contrário do Presidente Truman na Europa Ocidental: subtraiu aos

países do Bloco de Leste matérias-primas, materiais de construção e maquinaria. ,

E difícil defender que tenha havido uma americanização de estilo na Europa

Ocidental. O estilo americano não domina o designo Existe um /ook declaradamente americano, muito diferente do alemão, italiano, francês ou

britânico, e constatamos que as diferenças entre os estilos nacionais evoluíram

marcadamente a partir do princípio do século XX. Na base está um gosto pelo

orgânico. E apesar da sua apoteose se ter verificado com as cadeiras "túlipa"

de Eero Saarinen (1910-1961), no princípio da década de 50, a preferência

pelas formas arredondadas e por uma espécie de gótico flamejante continua,

nos EUA, a ser endémica, na decoração de interiores, na indústria automóvel

e nos artigos para o lar. Este orgânico enriquecido, estética tipicamente norte­

-americana, é também dominante em grande parte dos trabalhos produzidos

nos Estados Unidos sob a designação genérica de artesanato. A cornucópia, o

seio , a forma orgânica em geral fornecem-nos um conjunto de metáforas

visuais sobre a associação que os norte-americanos fazem do excesso

material com a liberdade.

A forma escultural orgânica e arredondada tornou-se parte do vocabulário do

design de mobiliário de meados do século XX, devido aos trabalhos de Charl es

e Ray Eames. Em 1940, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque organizou

um concurso e uma exposição intitulados "Organic Design in Home Furnishings" . O prémio foi atribuído, em 1941, a dois designers , Charles

Eames e Eero Saarinen (q ue trabalhavam juntos na Academ ia de Arte de

Cranbrook).lnfluenciados por Alvar Aalto arquitecto finlandês, pioneiro

do des ign contemporâneo de mobiliário com utilização de contraplacado, que

tinha tido direito a uma expos ição retrospectiva, em 1929, em MOMA ,

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Noventa Anos de Design

Cadeira envolvente e bonqueta poro os pés, desenhados por Eero Saarinen poro o Knolllnlernotional. Assento de

pl6stico moldado, estruturo de aço, estofos de espuma. EUA, 1948. -

------".-Saarinen e Eamescomeçaram a fazer experiências, dobrando dois planos (uma 43

necess idade, se qu isermos criar um efeito de recipiente a partir de uma fo lha

ou placa plana) . Aparentemente, este efeito escultural não mereceu a apro-

vação de A alto; achava que os resultados estavam mais próximos da mol­

dagem em plástico e que um tal tratamento do contraplacado, prensando-o de

modo a dar-lhe forma côncava, "violava a li nguagem das fibras da madeira".

As clássicas cadeiras de Eames eram recipientes, largos e fundos, como uma -generosa casca de ovo aberta ao meio. E o equivalente no mobiliário ao

útero materno.

O namoro dos Estados Unidos ao design escandinavo sobretudo o

sueco -, na década de 20, deixo u marcas, já que este des ign é inspirado nas

imagens de rec ipiente e de útero materno. A forma protectora, aconchegante,

é a base tanto do design como da política social da Escandinávia.

A década de 1920, que assistiu a uma série deexposiçôes itinerantes suecas nos

Estados Unidos, coincidiu com um período alto para a economia. Depois da

Primeira Grande Guerra, os EUA encontravam-se em excelente situação

finance ira. Tinham grandes reservas de ouro, eram o maior fabricante mund ial

de produtos de consumo e al imentos e tinham um grande mercado interno

para estimular a produção em série.

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Noventa Anos de Design

Paul Kennedy assinala que a procura do consumo doméstico podia absorver o

acréscimo de produtividade e que, em 1929, por exemplo, os EUA produziam

4,5 milhões de veículos (enquanto a Alemanha se ficava pelos 1 I7 000). A

grave sucessão de crises na economia americana verificadas na década de 1930

arrastou as outras economias mundiai s. Apesar disso, os nívei s de consumo

dos anos 20 e a continuação de uma procura significativa na década seguinte

contribuíram para o desenvolvimento de uma clientela de design industrial

profissional no país, estreitamente ligada às ex igências publicitárias e

- ---promocionais de fabricantes de vários tipos .

O rápido crescimento da procura, sobretudo nos EUA, de produtos como

._rádios, aspiradores e frigoríficos, deu um grande impulso à profissionalização

do design como actividade por direito próprio. O impulso veio da indústria, que

se começava a aperceber das oportunidades comerciais que podia trazer o valor

acrescentado gerado pelo estilo e também pela utilização dos próprios produtos

para promoção da empresa.

Mas não devemos esquecer-nos das estatísticas de Paul Kennedy sobre

energia, porque esta, para além de ser a base da produção, é também um bem

de consumo em si, desde que haja um número suficiente de utilizadores que

torne rendíveis os custos associados à sua geração. Adrian Forty, hi storiador

de design, tem muito a di zersobre este assunto no seu 1 ivro "Objects ofDesire"

(1986), onde descreve a posição dos produtores de electricidade. Estes

descobriram desde muito cedo que tinham que "criar" o maior número possível

de utilizadores diurnos de electricidade para que houvesse um equi líbrio entre

os picos e as baixas de consumo que habitualmente se verificavam. O equipa­

mento gerador tinha que ser suficientemente potente para dar resposta às

necessidades energéticas dos picos de consumo, mas, se estes fossem muito

espaçados e de curta duração, haveria muito equipamento dispendioso parado

durante longos períodos. Foi por isso que a indústria geradora de electricidade

não perdeu tempo a encorajar o desenvolvimento (e o estilo) do maior número

possível de máquinas eléctricas.

O esti lo na indústria eléctrica tem uma história complicada, se não mesmo

contraditória:Mas os fabricantes de equipamento eléctrico foram dos primeiros

a perceber o potencial de um produto que, através do seu design, não só se •

publicitava como também promovia a própria empresa.

Um dos grandes êxitos do esti lo como forma de publicidade, e que estimulou

o crescimento do design industrial como profissão nos Estados Unidos, foi o

stream/ining. Este estilo imperou no período entre 1930 e 1945, referido pelos

hi storiadores dos EUA como a " idade do automóvel ". O carro torna-se parte

!

,

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Noventa Anos de Design

da casa, situação ilustrada pela integração da garagem na habitação. A influên­

cia dos esti los dos automóveis noutros aspectos do design torna-se cada vez

mais forte à medida que o tempo passa. Existe um tipo de mobili árioArl Déco,

de grande projecção nos anos 30, que ficou desde então conhecido como

StreamlinedModerne. Ostreamlining era um estilo generalizado, em que cada

objecto, grande ou pequeno secretária, rádio, isqueiro, automóvel ,

locomotiva adquiria uma forma muito esguia. Há quem faça notar que o

streamlining não trouxe qualquer melhoramento aos desempenhos do

automóvel, nem aos da locomotiva; mas, como expressão de progresso, as

novas linhas eram o supra-sumo.

Electrodomésticos como os aspiradores, os frigoríficos e as máquinas de lavar

foram adoptados mais rapidamente nos Estados Unidos do que na Europa. Em

resultado, as cozinhas tornaram-se cada vez mais mecanizadas e o conceito de

cozinha planeada, utilitária e moderna implantou-se nos Estados Unidos muito

antes de o fazer em Inglaterra, em França ou até na Alemanha. Este facto foi

um estímulo adicional para a simplificação do mobiliário e acessórios, tendo

os móveis metálicos tubulares entrado nas casas através das cozinhas. Na

década de 30, os designers industriai s norte-americanos ganharam projecção;

além disso, tinham menos pruridos em servir o comércio do que os designers

quase-industriais da Bauhaus, prisioneiros da atmosfera "medieval", de uma

escola que privilegiava as ideias em detrimento das actividades comerciais.

Apesar disso, registou-se uma dissensão cultural nos EUA. Philip Johnson,

nascido em 1906, foi mentor de uma exposição polémica no M useu de Arte

Moderna de Nova Iorque em 1934, "Machine Art". No catálogo da expos ição,

Johnson distanciou-se e à exposição do "estilismo" e do streamlining,

defendendo um vocabulário mais básico, e logo mais honesto, o da linha recta

e do círculo. Uma das tensões interessantes da idade da máquina é a que se

verifica entre o designer, enquanto intelectual querendo servir as massas, e o

fabricante e publicitário, fomecedores de uma comucópia consumista. O

primeiro declara: "dê-se-lhes a verdade", os outros ripostam: "nem pensar,

façam-se mas é coisas sexy".

Um dos primeiros designers industriais da América foi Norman Bel Geddes,

que montou um atelier de design industrial em 1926. Tornou-se especialmente

famoso pelo seu descomplexado streamlining em locomotivas e, antes disso, ,

pelos seus designs dos rádios Philco. A semelhança de outros designers que

surgiram nos anos 30, como Raymond Loewy e Walter Dorwin Teague, a sua

fOI II1ação era na área da arte comercial. Consequentemente, a ideia do objecto

encerrar a sua própria publicidade era evidente. A influência dos designers

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Noventa Anos de Design

industriais norte-americanos começou a difundir-se. Raymond Loewe que

tinha redesenhado o exterior de uma máquina reprográfica para a Gestetner

em 1929 e depois se lançou no campo dos automóveis e com o frigorífico

Coldspot da Sears Roebuck Company abriu um gabinete em Londres.

Desde a Segunda Guerra Mundial, apesar dos designers norte-americanos se

terem afundado em publicidade, consumismo e comércio (a moda de 1980 das

metáforas visuais e pós-modernas no design de produto apenas acelerou a

noção do "produto como veículo publicitário"), persistiu uma resistência

intelectual , corajosa e constante.

O designer industrial Eniot Noyes procurou defender a tese de que, para um

bom design, o uso que se faz do objecto deve ser mais importante do que

quaisquer considerações comerciais .

Era a utilização que tornava a nova ciência da ergonomia tão atraente para os

designers norte-americanos da década de 50. Também Henry Dreyfuss, que

mais tarde se tornaria o primeiro presidente da Associação de Designers

Industriais dos Estados Unidos, defendeu a ergonomia, nas suas obras

"Designing for People" (1955) e "The Measure of Man" ( 1959). Está

actualmente a ser explorada, em universidades da Pensilvânia e do Ohio, uma

nova versão desta ciência, sob a designação genérica de Semântica do Produto

(ver págs. 110-111 e 172-173).

As tendências estilísticas fundamentai s do design norte-americano do pós­

-guerra, distanciadas da ortodoxia da ética de Empresa, manifestam uma

preferência pelo orgânico, pelo literal e pelo figurativo. Num certo sentido, o •

fo sso entre a Europa e os EUA é caracterizado por uma maior aceitação, se não

mesmo apetência, dos consumidores europeus pelo design abstracto. Com

efeito, sempre que os designers europeus procuraram renovar o conteúdo

estilístico como no caso do gabinete de design Memphis, em Milão ( 1979-

-1983) houve uma tendência para tomar como modelo o design norte-

-americano. Em muito do que se tomou por radical, pós-moderno, novidade em

ornamentação ou neodecorativo no des ign europeu que fez moda nos anos 80,

sente-se a influência do design norte-americano dos anos 50 ou do actual e

pujante design proveniente do bairro italo-americano de Filadélfia .

Os plásticos laminados e os têxteis sintéticos dos EUA na década de 50, em

tons garridos e com decorações frequentemente exóticas, tinham todas as

condições para serem alvo de referências irónicas trinta anos depoi s. E, tal

como se d isse no capítulo anterior, a opção por um conteúdo de design de

linhas simples produz uma imagem mais intelectuali zada, mas ainda assim

muito literal, do novo design de produto. A maior parte do estilo em design é

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Noventa Anos de Design

resultante das exigências do mercado e da publicidade; nos EUA, tais

relações tendem a ser mais cruas e, por vezes, mais óbv ias do que na Europa.

Design e consumo na Europa

Os antecedentes económicos do design e do consumo na Europa são mais

complicados do que os dos EUA; o fac to dos países europeus terem, por duas

vezes, guerreado no solo uns dos outros pode ser visto como um factor ,

limitativo da evolução da tecnologia e do designo E opinião generalizada que

as grandes guerras são um estímulo, e não um obstáculo, para o desenvolvimento.

Mas trata-se de uma ideia não comprovada: a concorrência comercial produz

efeitos tão significativos no desenvolvimento em períodos prolongados de paz

como a rivalidade no aperfeiçoamento de armas em períodos de guerra intensa.

A fundação da UE deu origem a um mercado forte, ainda que não tenha

atingido - enquanto federação comercial - o poderio dos Estados Unidos

ou do Japão. Poderá rivalizar com ambas as potências, mas para que isso

aconteça é necessário um maior grau de união política. Tal como as coisas

estão, a UE tem muito a temer da parte do Japão, se bem que, como sempre

acontece em termos comerciai s, o medo não seja unil ateral. O arranque, em 47

1992, de um mercado único, com a supressão de todas (ou quase todas) as

barreiras alfandegárias, fortalecerá a UE como potência comercial e há quem

tema uma guerra comercial entre três superblocos a América do Norte, o

Oriente e a UE. Desde sensivelmente 19 14 a 1935, o estilo dedesign dominante

na vanguarda europeia era angular, vincado, agress ivo, mas, durante as

décadas de 20 e 30, foi contestado por vários sectores, incluindo a Ar! Déco,

em França, e o streamlining, que fazia furor nos Estados Unidos.

Aquilo a que agora chamamos, ou que pensamos intuitivamente ser, o Estilo

Moderno (modem style), sobretudo no que se refere ao mobiliário e servi ços

de mesa, tem linhas finas, depuradas e é, frequentemente, rematado a metal.

Podemos dizer que esse estilo recebeu um impul so considerável da Bauhaus,

lançada pelo arquitecto WalterGropius ( 1883- 1969)em Weimar, na Alemanha,

em 19 19; em 1925, mudou-se para Dessau e o design industrial desenvolveu­

-se como di sc iplina autônoma.

A Bauhaus, no entanto, não foi a única nem provavelmente a mais

importante instituição a influenciar o est ilo do design europeu. Pense-se

na indústria, sobretudo no potentado AEG (Allgemeine Elektricitats­

-Gesellschaft) , fundado em 1883 na A lemanha. Em 1907, Peter Behrens,

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Noventa Anos de Design

artista que se tornou des igner, fo i contratado pela AEG para tornar visualmente

coerente uma gama variada de produtos ferros eléctricos, aquecedores,

panelas de pressão, chaleiras, ventoinhas, etc. O design ou a tradição estilística

que estes objectos possuíam, quando Behrens aceitou o repto, baseava-se em

processos artesanais e na montagem manual, sendo, evidentemente, anteriores

à era da electricidade . Behrens dedicou-se a criardes igns que davam ex pressão

à tecnologia que tornava possível os produtos. A históri a da AEG é fasc inante

e é contada por Tilmann Buddensieg em "lndustriekultur, Peter Behrens and

the AEG "(1985). No entanto, a grande lição que a AEG colheu, com o passar

do tempo como frisou John Thackara , foi esta: "Vendo a concorrênc ia

a crescer e a sua superi oridade tecnológica a diminuir, a AEG apercebeu-se de

que, apesar de ser lógico padroni zar tampas, bases e manípulos, o impacte

desta estratégia nas vendas era desastroso. Seguiu -se um debate interno ... f indo

o qual ganhava fo rça a ideia de que ' mesmo um motor eléctrico precisa de

parecer um presente de aniversário'" 7 O resultado fo i simultaneamente

moderno (com a exaltação da máqu ina) e individuali sta (os produtos possuíam

suficiente carácter para serem reconhecidos como da AEG e não de outro

fabricante) .

Enorme influência teve também o breve desabrochar de uma vanguarda na

União Soviética onde, entre a Revolução de Outubro e o advento de

Estaline, se abriu uma fresta de liberdade, provocando uma explosão das artes

gráficas e da arquitectu ra. Em nenhum outro lugar, o moderni smo e o

abstraccionismo se encontraram mais estreita e genuinamente associados ao

radicalismo político do que nos trabalhos de Tatlin , El Liss itsky, Malev itch e

muitos outros . A Rússiadeu ao modern ismo, por pouco tempo mas com grande

vitalidade, um novo fulgor.

Mesmo os cartazes construtivistas, com as suas fOI mas abstractas e disposição

lógica, funcionavam como metáfora. A crueza tipográfica e as fOlmas rectilíneas,

frequentemente angul osas e fragmentadas, transmitiam uma sensação de

energia, de lógica e de mudança. O abstraccionismo russo abriu as janelas do

futuro: apresentou uma analogia visual de como se poderia sentir o futuro , em

vez de com o que ele se iri a parecer. A ruptura com a fi guração e a natureza era

lógica: se o que se pretendia era antecipar o sentido do futu ro, não hav ia razão

para fazê-lo com imagens do presente. O idealismo heróico dos artistas e

designers russos foi, em larga medida, aproveitado pela Bauhaus em meados

e fi nais da década de 20. Quando Estaline acabou com a vanguarda art ísti ca,

o modern ismo do Ocidente tornou-se apenas mais um estilo. Desfaleceu.

O modern ismo chiq ue surgiu mais ornamentado, mais luxuoso do que o que

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Noventa Anos de Design

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Os fronce~s André e Paul Vera eram designers de jardins que conjugaram o Natureza com o modernismo.

Neste desenho! 1920), o geometria fragmentado é reminiscenle do cubismo de Georges Broque.

tinha emanado da Bauhaus. Nos anos 20, apareceu aAn Déco - simples, ele-

gante, com formas curvas nos braços e pernas. Na década de 30, tornou-se

menos clássico e mais brutal, com os seus hexágonos, octógonos, cunhas e

cilindros. Misturou madeira, metal e vidro com folheados elaborados, parecen­

do frequentemente um estilo de mobiliário de cena. A luz fragmentada

constituía outro ingrediente: em hotéis, salões de baile, cinemas e bares, a luz

reflectia-se em superfícies lacadas, metais cromados e espelhos fumados

biselados.

Durante o mesmo período , dos primeiros anos do século XX a meados dos

anos 30, a Suécia criava uma filosofia de fabri co e design que dava

primazia à consciência social, género que se tornou um poderoso meio

para exprim ir o empenho na construção de uma soc iedade mais justa. Na

Finlândia, di z-se, o design era uma forma de expressão de nacionalidade (o

país só se tornou independente em 1917). A social-democracia é um

denominador comum dos quatro principais países: surgiram governos sociais­

-democratas na Dinamarca (1929), na Suéc ia ( 1932), na Noruega (1935)

e na Finlândia (1937). O pós-guerra viria a incluir neste grupo a Islândia, que

se tornou uma república em 1944.

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Noventa Anos de Design

Em Estocolmo, uma exposição de decoração de interiores realizada em 1917

teve, como fio condutor, o tema da responsabi lidade social , bem patente na

importante exposição do Funcionalismo realizada na mesma cidade, em 1930.

Esta exposição ev idenciou uma éti ca do design que reunia atitudes tradicio­

nais, relativamente ao artesanato e aos materiais, a princ ípios de clareza e de

modéstia. A diferença entre o design do Noroeste da Europa e o verdadeira­

mente nórdico residia no estil o com preocupações humanísticas deste último.

Como foijá referido, o design escandinavo teve um grande impacte nos meios

do design norte-ameri cano: realizaram-se exposições itinerantes de design

escandinavo nos EUA a parti r dos anos 20. No entanto, a tendência orgânica

do design foi também ajudada pela evol ução de técnicas aux i I iares de produção:

a gradual introdução das formas plásticas moldadas por injecção é disso

exemplo. Por razões que se prendiam com a maneira de retirar as formas de

plástico dos seus moldes, aquelas tinham que ser alTedondadas.

Sylvia Katz explica no seu livro "Classic Plastics" (1984) que a primeira

máquina de moldagem por injecção foi patenteada na Alemanha em 1926, mas

que passaria uma década antes que ela se tornasse capaz de garantir uma

produção completamente automática. Durante os anos 30, no entanto, popula­

ri zaram-se vários tipos de plástico, como explica Katz: "As casas dos anos 30

estavam cheias de copos para ovos quentes, galheteiros, appliques, batedeiras

e conjuntos de piquenique moldados por compressão em cores vistosas".

Depois da Segunda Guerra Mundial , a postura racional face ao fabrico e ao

estilo em design com uma abordagem mais "científica" do que "artística"

do estilo foi particul armente bem recebida na Alemanha Ocidental. Os

designers alemães, a par de alguns teóricos e executantes norte-americanos,

cedo compreenderam que a ergonomia tinha de ser levada muito a séri o.

O estilo enquanto ciência recebeu um impulso significativo devido às ex igências

das emergentes indústrias de aeronáutica civ il e mi litar: era fundamental (por

estritas razões de segurança) que o design dos cockpits fosse tal que piloto,

navegador e engenheiro de voo soubessem exactamente o que estavam a fazer

num ambiente cada vez mais sofisticado. A segurança dos veículos motorizados

tornou-se também um tema muito importante (que, no entanto, só em 1965

seria divulgado nos Estados Un idos através das críticas de Ralph Nader à

indústria automóvel americana, no seu livro "Unsafe AI Any Speed") e

contribuiu para consolidar a ergonomia como esqueleto do design industrial.

Hoje em dia, a ergonomia, com cada vez maiores preocupações ambientais,

é encarada como o fundamento do design industrial.

Um dos mais interessantes desenvolvi mentos do design verificados na Europa

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Noventa Anos de Design

nos anos 50 deu-se com a abertura da Hochschule für Gestaltung, em VI m, na

RFA, em 1955. Esta escola de design, projectada para suceder à Bauhaus,

introduziu , no seu programa de 1957, as di sciplinas de Matemática, Lógica e

Sociologia. Afastou ainda mais o design da arte, gerando um estilo que utiliza

constantemente a lóg ica e a racionalidade como metáfora. O seu expoente

mais notável é o designer alemão Dieter Rams. A VIm e Rams é atribu ída a

estética de caixa preta, objecto de tanta troça por parte da juventude pós­

-modernista dos anos 80. Era uma estética perfeita, e a justificação intelectual

do estilo tornava-se redundante, dado o êx ito da ciência e da lóg ica em que

se fundava. Nos anos 70, com o desenvolvimento dos microchips e da ciência

da miniaturização, a necessidade de dar a máquinas e equi pamento eléctrico

formas rigorosas e puras já não era justificável só pela razão o design de

caixa preta tornou-se apenas uma das muitas opções que a tecnologia solid

state do microchip tornava possíve is. , E talvez demasiado simplista fazer uma associação imediata entre a Bauhaus

de antes da guerra, passando pela escola de VIm do pós-guerra e o actual design ,

alemão, genericamente considerado ordenado, racional e depurado. E verdade

que muito do estilo alemão ocidental tende a exprimir ordem e disciplina,

levando, inclusivamente a que, durante a décadade 80, alguns jovens designers

se tivessem revoltado contra a ortodoxia, através de um design subversivo,

de um anti-designo Regi stou-se uma erupção repentina de exposições em

galerias, mostrando designs (sobretudo em mobiliário) que se manifestavam

contra a ortodoxia de classe média da Alemanha Ocidental. Mas a ordem e

racionalismo patenteados têm prestado excelentes serviços aos fabricantes e

exportadores alemães encorajando e reafirmando a crença dos consumi­

dores na qualidade e fiabilidade, bem como nos (excess ivos) desempenhos

de muitos produtos alemães, sobretudo os automóveis.

Os italianos foram dos que primeiro se aperceberam do rematado disparate que

consiste em procurar uma única estética de design, num Mundo em que a

tecnologia oferece tão grande variedade de processos e so luções. Das princi­

pais nações industrializadas da Europa, a Itália era, em 1945, a mais pobre;

mas, graças à ajuda financeira dos Estados Vn idos assoc iada ao apoio político

destinado a ev itar uma tomada de poder pelos comunistas, o país começou a

desenvolver-se economicamente . A Itál ia não era e continua a não ser um país

com muitas empresas de grandes dimensões; mas há excepções como a FiaI.

Em 1957, a criação da Comunidade Económica EUI'opeia, de que a Itália fez

parte, ajudou o país a expandir-se ainda mais e, entre 1957 e 1963, registou­

-se um boom económico, que teve grandes implicações no design industrial.

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Noventa Anos de Design

CochimbJ poro fumador desenhado pelo estúdio de design Porsche, no Áustria. O design Porsche, que assento numa

excepcional qualidade de fabrico, conjugo puritanismo e hedonismo.

Os booms são cíclicos; mas no sector industrial a Itália continuou a ter êx ito,

só que de uma maneira diferente de outros países industriais. Em primeiro

lugar, a sobrevivência de muitas empresas relativamente pequenas criou uma

cultura de Flexibilidade produtiva (podemos ainda hoje descrever a Itália

como uma cultura de pequenas empresas); em segundo lugar, a concorrênc ia

regional e entre cidades faz com que possa ainda ver-se a Itália como uma

federação em vez de um Estado unitário, o que parece alimentar a pluralidade

e a contestação; em terceiro lugar, a economia paralela, ou seja o trabalho gera­

dor de riqueza que escapa ao controlo do Estado (mas não das pessoas), con­

tribui de modo substancial para o êxi to itali ano. Estes facto res, aliados a uma

tradição segundo a qual, ao que se di z, "os intelectuais em Itália têm sempre

beneficiado de maior prestígio e influência do que nos países anglófonos" 8,

criam um ambiente em que, tanto os designers como os seus clientes, estão

dispostos a experimentar, a inovar e a filosofar. -E fácil e errado ridicularizar o designer italiano (que, com toda a

probabilidade, recebeu fOllllação em arqu itectura), chamando-lhe fi lósofo

louco. Os designers italianos são dos mais pragmáticos. Ettore Sottsass, uma

das figuras de maior projecção entre a década de 60 e os dias de hoje, é disso

exemplo. Em 1983, subverteu por completo a questão das vantagens da

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Noventa Anos de Design

Intervenção pós-moderno num dos símbolos do renascimento italiano do pós-guerra, o Fiol 500. Aqui transformado

em discoteca pelo designer italiano VincenzQ lovicoli.

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- -----' .. ' .. obsolência planeada como factor importante na vida do designer 9. Em vez de 53

dar a resposta esperada (a obsolência planeada é má para um design durável) ,

declarou : "A obsolência, para mim, é verdadeiramente o sal da vida". Só que,

nessa altura, a sua famosa confederação de designers, associados no estúdio

Memphis , acabava de alcançar a crista da onda, tendo registado três ou quatro

anos de êxito retumbante, devido aos elogios pelos seus designs loucos e

efémeros, que constituíam referência obrigatória da decoração e da novidade

no design pós-modernista dos anos 80. Se alguma coisa havia de mais indi-

cada para ilustrar uma redundância planeada era, sem dúvida, o estilo de

Memphis, com a espantosa vulgaridade, tão americana e anos 50, do laminado

de plástico.

Dos símbolos do design italiano do pós-guerra fazem parte a Vespa 10, lançada

pela primeira vez em 1946 e vendida aos milhares durante os vinte anos

seguintes, e o pequeno Fiat 500, produzido em 1957 ambos veículos

baratos, para o povo. A empresa Olivetti começou a melhorar a sua posição

através de uma série de bons designs industriais aplicados a máquinas de

escrever e de calcular, mantendo posteriormente a vantagem alcançada no

equipamento de escritórios e nos computadores.

E a Itália não parou. O Ocidente continua a procurar em Itália pistas para bom

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Noventa Anos de Design

design e o que o design italiano tem provavelmente de melhor é a capacidade

de debate e análise, são as contribuições ideológicas que lhe estão na origem.

Ao contrário da Itália, a França acompanhou os Estados Unidos, embora à

distância. Apesar de, no respeitante à industrialização, ter feito progressos

bastante rápidos após a Segunda Guerra Mundial, a França conserva ainda

aspectos antiquados no sector agrário da economia. Continua a existir um

grande número de agricultores de pequena propriedade ao contrário do que

se passa no Reino Unido, por exemplo. A França considera-se um líder cultural

da Europa, mas só a custo rivaliza com a Alemanha no aspecto económico. Nas

últimas três décadas, a França empenhou-se a fundo na investigação e desen­

volvimento nos sectores do armamento, aerospacial e da energia nuclear.

Como sempre, é muito difícil avaliar quais as vantagens reai s que um sector de

defesa fortemente subs idiado pode ter na inovação do design e no

desenvolvimento económico das indústrias do consumo. O design de consumo

francês é ... muito "francês". Quando pensamos em características nacionais de

design poroposição às internacional istas vem-nos logo a França à ideia .

O estilo francês é, em muitos aspectos, diferente e, por vezes, brilhante.

O Citroen DS 19 é disso exemplo, com linhas futuri stas exprimindo o virtuo­

sismo da técnica e o lado inovador do veículo; já em 1962, possuía caracterís­

ticas tão avançadas como a tracção dianteira.

Como sugere Paul Kennedy, politicamente, a França tem sido extraordi­

nariamente bem sucedida, garantindo uma projecção em termos de política

externa muito superior ao que o seu estatuto económico poderia fazer supor.

Os Estados Unidos podem ter ainda maior influência no Mundo devido à

dimensão da sua economia, mas a sua política externa empalidece, até quase

desaparecer, quando comparada à da França. Esta característica merece ser

focada, porque a França encara a cultura as artes, o design, a moda como

um importante meio de promoção nacional e como contributo para o reforço

da língua francesa, das ide ias francesas, dos interesses franceses face aos

Estados Unidos, à língua inglesa e à cultura anglo-americana.

Os primeiros-ministros e os presidentes franceses apoiam e são patronos

activos das artes e do design, facto gerador de um ambiente de confiança. Tal

como em Itália, toda a gente se mostra interessada na discussão de ideias

interesse partilhado por artistas, designers e industriais. Para dar só um

exemplo, em França há condições para que os funcionários públicos com

talento passem do Governo para a indústria, da indústria para as artes, das artes

para a indústria.

As críticas à soc iedade de consumo, surgidas no final dos anos 60, prosseguiram

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Noventa Anos de Design

Caneta poro o dedo, desenhado por Vincenzo Jovicoli. A Itólia aindo "dó os cortos' no que toco o tornor

o design divertido.

por toda a Europa e EUA durante a década de 70, coincidindo com recessões

causadas em parte pe los súb itos aumentos do preço do petróleo no momento

em que os países produtores descobriram que podiam inverter o sentido do

jogo face ao Ocidente . Na arte, assistiu-se a uma ruptura repentina com o

imaginário pop e a uma sucessão de movimentos que exploravam materiais

antitecnológicos. Foi também nos anos 70 que se começou a fazer sentir

gradualmente a necessidade de abordar o des ign e a produção de forma inte­

grada, para proteger os recursos e o ambiente.

A estratégia japonesa para penetur nos mercados europeu e norte-americano

começou a dar frutos nos anos 70. A indústri a britânica, em particular, perdia

para os japoneses a produção de motorizadas, automóveis, rádios e televisores.

O design e a qualidade de fabrico japoneses, aliados a preços baixos e à

fiabilidade de desempenhos, ass istência e prazos de entrega, encostaram à parede as antiquadas e complacentes empresas do Ocidente. Pior ainda era o

sistema de integração do design e inovação na produção, que permite aos

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Em design, os característicos nacionais são muitas vezes esfumados. Este conjunto $O leiro-pimenteiro foi desenhado

em 1987 por Martine 8ed in, que é francesa. Podemos detectar influências alemãs, suecos e japonesas no estilo, mos

não norte-americanos.

Na página 00 lodo: O design inglês é por vezes subversivo. Aqui, Georgina Godley apre5ento-nos um falo com um

design que se faz eco do símbolo lua/folo util izado por Edvord Munch, pintor cu jo tema constante foi o ciúme sexual

e Q neurose.

fabricantes japoneses lançar novos artigos a um ritmo espantoso, sistema esse

que continua a baralhar muitos ocidentais.

Paul Kennedy salienta 11 que os Aliados ganharam a guerra às potências do

Eixo devido à incapacidade destas em acompanharem o ritmo da produção

dos Aliados. O Japão está actualmente a desafiar todas as restantes econo­

mias com a velocidade com que introduz no mercado a inovação tecnológica,

Contra um concorrente cujos controlo de qualidade, gama de produtos, serviço

de entregas e assistência pós-venda são tão bons, qualquer vantagem que o

Ocidente possa ter em estética de design é marginal em termos de com-

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Noventa Anos de Design

, petitividade. E essencial um esti lo inovador, simbólico e metafóri co, na

batalha pela diferenciação do produto como parte integrante da publicidade

do produto; mas essa diferenciação só é útil se os outros elementos da equação

estiverem presentes; como mais de um fabricante de automóveis pôde constatar

nos anos 80, um veículo com bom aspecto não se vende se for propenso a

enferrujar ou se tiver uma assistência pós-venda ineficaz .

Contudo, os produtos estão a ficar nive lados "abaixo da linha" e a vantagem

do fabricante está em realizar um produto estilisticamente diferente (mas não

muito diferente). Melhor dito, muito depende do estilo do produto conseguir

transmitir a selecção de valores ideal os valores que o consumidor partilha.

O esti lo é organi zado em função da classe, profissão, aspirações e nível etário

do consumidor do grupo-alvo. Aquilo que os fabricantes exigem agora são

enormes quantidades de informação e uma das tarefas levadas a cabo no

Japão onde os fabricantes temem o crescente poder da UE é o estudo

de mercado, pormenorizando as características nacionai s do designo As

empresas japonesas de consultoria de design estão agora a implantar-se na

Europa para descobrirem quais são as características estilísticas mais importantes

para os consumidores de cada um dos países europeus.

Prevê-se que a década de noventa tenha mercados mais espec ializados, com

estilos cuidadosamente ponderados (vari ando o seu simbolismo), para atra ir

grupos de consumidores cada vez mais estudados. Os grupos de consumidores

(definidos pela idade, profissão, etc.) serão especificamente visados e descobrir­

-se-á que têm mais a ver entre si pelo M undo fora do que com grupos diferentes ,. ,

no seu propno paIs.

Não parece provável que as características nacionais desapareçam, sendo

antes de acreditar que se levantem vozes a favor do regionali smo e do naciona­

lismo, como resposta a um período de intemacionalismo no design o A ten­

dência mais provável do design e da cu ltura no final da década de 90 será

certamente o ressurgimento de uma procura conservadora e nacionalista no

Japão, numa crescente rejeição dos modelos ocidentalizados e americanizados,

e uma maior consc iencialização e apetência por um esti lo japonês destinado a

consumidores japoneses. Poderão aparecer tendências nacionali stas noutros

lugares, incluindo no seio da UE é que a hegemonia burocrática da "União

Europeia" poderá parecer sufocante no final da década.

Devemos também contar com um reconhecimento supranacional de que o

consumo pelo consumo possa não ser a característica fundamenta l da liberdade.

A ética do consumo em espiral ver-se-á obrigada, tanto por razões naturais

como económicas, a procurar um compromisso. O design holístico deverá ter

um papel importante na redefinição do conceito de li berdade.

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3 ,

COMO DUAS GOTAS DE AGUA

o impacte dos novos materiais

As novas tecnologias do final do século XX vêm estimular três alterações

culturais bem marcadas. Verifica-se a passagem de uma infra-estrutura pesada

para uma ligeira, por vezes até invisível. E regista-se ainda uma mudança mais

espantosa: a aproximação entre o que se parece com a Natureza e o que eviden­

cia ter sido feito pelo Homem. Está também a dar os primeiros passos uma

terceira tendência, o abandono dos recursos não renováveis. Começam a inves­

tigar-se materiais reutilizáveis, incluindo uma nova geração de plásticos na

indústria automóvel. Estas três tendências irão influenciar a natureza do design

enquanto estilo e tornar mais incisivo o debate sobre o modo como os designers

podem ajudar as pessoas a aceitar as novas tecnologias sem terem de disfarçar

o novo com uma roupagem do passado. Além disso, a ciência dos materiai s e

a tecnologia da informação apresentam-nos uma cultura em que as nossas

preferências se tornam mais complexas , menos materiais e mais espirituais, no

sentido secular. Shakespeare referiu-se-Ihe com uma metáfora perfeita: os

tempos modernos estão a tornar-se indistintos, como duas gotas de água.

Os valores do plástico

Uma caçarola de plástico contradiz a compreensão vulgar do que o plástico é

e de como se comporta: teme-se que derreta. Admitimos recipientes de cerâ­

mica ou de metal empiricamente, porque sabemos que o metal é feito numa

fundição e que a cerâmica foi cozida numa estufa. Ambos os materiais

passaram o teste do fogo e são adequados para a preparação de alimentos. Mas

o plástico não. E, no entanto, a caçarola toda em plástico é viável, apesar de

não ser ainda uma necessidade.

O termo "plástico" é demasiado genérico para um designer; não é científico,

porque há plásticos diferentes que desempenham funções francamente dife-

rentes - estão agora a ser desenvolvidos plásticos de alta temperatura J para

o ambiente quente dos motores automóveis, enquanto para sacos de compras

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Telefonedanlvklrk 2 élite, desenhado por Henning Andreosen (Dinamarca). Édjfíôl imaginar um material mais indicado

do que o plástico paro um aparelho como o telefone. Em objectos cujo finalidade tem de ser evidente, não é necessório expressividade adicional.

se utilizam plásticos menos nobres. Mas para o leigo, a palavra "plástico"

transmite uma série de valores que podem estar cientificamente ultra­

passados, mas que continuam a condicionar designers e fabricantes.

Através dos anos, o plástico foi entrando nas nossas vidas, como material de

substituição tem sido encarado como "fazendo as vezes" de materiais tradi­

cionais, sobretudo metálicos. Os baldes de plástico substituíram os de zinco,

a canalização de plástico tomou o lugar dos tubos de cobre e, mais recente­

mente, os plásticos substituíram o metal como principal material em chaleiras

e ferros de engomar.

Durante os anos 80, o plástico, sob a forma da (relativamente) nova fibra de

carbono e outros compósitos, começou a substituir algumas importantes estru­

turas metálicas em aviões e automóveis. E, contudo, o plástico continua a não

ser bem-amado, permanecendo, apesar da sua omnipresença, um material

sem protagonismo ao contrário da pedra ou da madeira, do papel ou do aço.

Os consumidores podem não gostar do plástico ou nem sequer reparar nele;

mas, se fossem instados, acabariam por admitir, com toda a probabilidade, a

sua superioridade sobre outros materiais mais antigos. Um balde de plástico é

superior a um de zinco porque é mais leve, de utilização menos barulhenta e

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mais duradouro, É difícil imaginar o moderno secador de cabelo noutro

material que não o plástico. O plástico tornou-se o material natural para uma

série de objectos: caixas de computador, calculadoras de bolso, rádios,

relógios, batedeiras, utensílios de cozinha e auxiliares como a película ade­

rente e os sacos para alimentos.

A engenharia molecular envolvida na variedade de materiais genericamente

abrangidos pela designação "plástico" é extraordinária, mas tem menos

interesse para a maioria das pessoas inteligentes do que a engenharia visível

utili zada, por exemplo, pelo carpinteiro. A subtileza da tecnologia do plástico

situa-se sobretudo "abaixo da linha". No seu melhor, o artigo de plástico tem

um ar de engenharia cuidada e o mais distante possível do produto artesanal

que possamos imaginar. Mas, mesmo nesse caso, a forma de plástico tem um

ar inerte - não envelhece de maneira agradável e tem um toque que não é

quente nem frio. Se o polirmos podemos limpá-lo, mas não conseguiremos

aumentar-lhe o brilho polir plástico não é como tratar a superfície de

algumas pedras e madeiras; o plástico não beneficia com o polimento.

Há vários aspectos a considerar na nossa relação quotidiana, intelectual e

afectiva com os plásticos. Em primeiro lugar, a distância entre o processo de

produção de artigos de plástico e a nossa compreensão da maneira como as

coisas são feitas. Por exemplo, o leitor, pessoalmente, não pode fazer grande

coisa a um objecto de plástico não o pode voltar a moldar, esculpir-lhe a

superfície ou intervir nele. E, enquanto a maioria das pessoas faz uma ideia

ou tem algum conhecimento dado pela familiaridade do mobiliário de

madeira ou dos edifícios de pedra do que poderá ser esculpir pedra,

trabalhar madeira ou até moldar barro e cozê-lo, a imaginação dos leigos tem

grande dificuldade em brincar com o plástico.

Em segundo lugar, até o som do plástico é desinteressante: não ressoa, não

vibra é apenas um ruído seco. Os objectos de plástico são misteriosos na

sua perfeição.

Em terceiro lugar, a sensação táctil dos artigos de plástico é, geralmente,

pouco satisfatória o plástico é macio e morno ao toque e não tem o brilho

da porcelana ou do aço . No entanto, os designers de produto estão a

trabalhar se bem que raramente de forma imaginativa para aumentar

a variedade de sensações táctei s, geralmente por meio de entalhes, relevos ou

nervuras nas superfícies manuseadas pelo utilizador. Uma das estratégias mais

vulgares adoptada pelos designers que procuram conferir vida à superfície do

plástico é a de lhe dar um padrão frequentemente copiando materiais

naturais, como a madeira ou o mármore. Um truque que nem sempre funciona,

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• Como Duas Gotas de Agua

mas cujo emprego é lógico: sentimos frequentemente uma textura através do

olhar antes mesmo de lhe tocarmos (apesar da maioria dos des igners ainda não

ter enfrentado o desafio do design táctil).

Não obstante, o plástico tem-se saído bem no seu papel de material de subs­

tituição, porque é possível fazer com que se pareça bastante com o material que

substitui. A maior parte das imitações são, de facto, bastante pobres, como se

o fabricante estivesse a esboçar um gesto em direcção à verosimilhança, em

vez de fazer um real esforço para a conseguir; mas, no seu melhor, o plástico

pode enganar muito bem. Existe uma variada gama de decorações de tecto

que noutros tempos teriam sido realizadas em madeira ou em gesso, mas

que são, na realidade, de plástico. A ilusão é tão bem fabricada que quase

se pode observar a porosidade do estuque.

O plástico pode assumir a aparência de outros materiais, mas não se lhe podem

dar (salvo algumas excepções e mercê de custos elevados) qualidades "rea is"

de textura, cheiro e lustro próprias da madeira ou do papel. O plástico é tão

incaracterístico que nos dá uma imagem de superficialidade e insipidez:

comida de plástico, pessoas de plástico.

Mas o plástico dos compósitos avançados tem grande cobertura na

imprensa embora ocasionalmente e por períodos curtos e entusiasma

toda a gente, mesmo os não-cienti stas. Os compósitos avançados são os

novíssimos materiais, a anos-luz do plástico do balde de cozinha.

Um material compósito é uma combinação de um ou mais materiais, ligados

entre si para aliarem as propriedades de ambos, podendo inclusivamente criar

propriedades compósi tas novas e únicas. O betão é um exemplo de compósito.

Na sua essência, os novos compós itos consistem em res inas poliméricas

misturadas com fibras de vários tipos como as de vidro ou de carbono. Cada

categoria de fibra possui as suas próprias características mecânicas. Assim, as

fibras de carbono são as mais rígidas e as de vidro as mais flexíveis. As fibras

utilizadas podem ser curtas (medindo cerca de 0,5 mm), longas (com

aproximadamente 12 mm) ou contínuas .

As características individuais dos compós itos resultam do que se passa inter­

namente, porque, como refere Ezio Manzini no seu livro "A Matéria da

In venção" (1988)*, tudo depende da qualidade'das interfaces entre os compo­

nentes e a matri z (por exemplo, uma resina polimérica). Há vários processos

de misturar fibras. Um dos mais eficazes é a técnica da pultrusão, em que as

fib ras são forçadas a atravessar uma câmara de resina para formarem fila­

mentos de compós ito de extraord inária resistência, dependendo da natureza

das fibras utilizadas.

* Edição do Centro Português de Design, 1993.

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Como Duas Gotas de Água

Os compósitos, tal como os plásticos reforçados, foram desenvolvidos duran­

te as últimas três décadas devido ao facto dos governos europeus, norte­

-americano e soviético terem entrado numa corrida aos armamentos; os av iões

militares tiveram de tornar-se mais rápidos e manobráveis e de passar a ter mais

"endurance". Exigia-se "baixa densidade (leveza), elevada resistência e

rigidez"2 Os militares queriam asas rígidas: a vibração das asas limita a

velocidade dos aparelhos. O professor J. E. Gordon, autor de "The New

Science ofStrong Materiais" (1976), dá-nos uma ideia clara da razão pela qual

os novos compósitos se tornaram uma área fundamental do ponto de vista

militar. O problema estava em que os materiais ex istentes utili zados na

aviação alumínio, titânio, madeira, aço e magnésio competiam num

plano mais ou menos equivalente. Uma estrutura de avião em qualquer desses

materiais acabava por ter o mesmo peso.

O coeficiente resistência-peso é vital em qualquer aeronave, mas a opção por

aviões mais rápidos ou maiores implicava necessariamente novos materiais. O

desenvolvimento de novos materiais para o design de motores aeronáuticos, no

intuito de tornar os aviões mais potentes para o seu peso, foi impulsionado

pelos fabricantes de armamento. Esta indústria, na generalidade tão esban­

jadora, consegue terum design espantosamente económico em alguns dos seus

componentes. O coeficiente potência-peso dos motores de um avião F-IS é

da ordem de 8 para 1.

Um compósito reforçado com carbono, de alto desempenho, é, em tellllOS

de peso, cerca de seis vezes mais resistente que o aço. Estes com pó sitos são

muito leves (cerca de 40 % mais leves do que o alumínio); os polímeros

reforçados a fibra de vidro proporcionam isolamento eléctrico, enquanto

outros compósitos oferecem resistência química e são insensíveis às

correntes magnéticas 3.

As empresas comerciais não teriam desenvolvido estas tecnologias em toda a

sua actual diversidade, nem a uma tal velocidade. Tinha de haver um imperativo

de naturezaeconómica: forneceram-no os dinheiros públicos mobilizados pela

vontade política de investir em força no armamento.

O Dr. Neil Waterman4, perito em novos materiais, aponta dois factos a

designers , engenheiros e industriais. Em primeiro lugar, as pessoas não

resolvem inventar novos materiais à toa, pondo-os numa prateleira à espera

que alguém passe por eles e os utilize se lhe der para tanto. Os materiais são

concebidos para finalidades específicas, como por exemplo a indústria

aerospacial. Em segundo lugar, materiais estruturais novos quase nunca

estimulam se é que alguma vez o fazem o aparecimento de produtos

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inteiramente novos, o que não é de admirar: a maior parte das coisas que

concebemos e construímos nunca funciona suficientemente bem, e a

investigação de materiai s tenta encontrar processos de tomar as máquinas

existentes mais duráveis e seguras.

Apesar de se ter já previsto um futuro radioso para estes materiais , e para nós

por tabela, no início da década de 80 os fabricantes começaram a preocupar­

-se com algumas dificuldades técnicas. Parte da reacção contra as novas

tecnologias resulta do facto de alguns tipos de indústria estarem dirigidos para

uma laboração mais pesada e de muitos dos procedimentos produtivos serem

padronizados os plásticos são moldados, ao passo que o corpo dos aviões

e dos automóveis é rebitado, soldado e aparafusado, Além disso, pode dizer­

-se que as linhas de produção são inflexíveis, essencialmente porque são

montadas para garantir um conjunto de resultados cuja qualidade pode ser

prevista ao pormenor. A produção fabril é o trabalhar a certeza (ver págs. 141

e 142). Consegui-la sai caro: é preciso tempo e dinheiro para montar as linhas

de produção, que não podem ser alteradas senão à custa de muito esforço. Até

há pouco tempo, havia ainda grandes dúvidas sobre a resistência ao impacte

dos materiais carbono-epóxicos, Na década de 70, o motor Rolls-Royce RB 211

tinha tido dificuldades com as hélices (desfaziam-se ao serem atingidas por

objectos em voo, como aves). A Rolls-Royce fa liu (renasceu e é hoje, de novo ,

um dos mais bem sucedidos construtores de motores avançados para aviões).

Em 1988, outras indústrias que se esperava adoptassem claramente os novos

materiais (como a indústria automóvel) tinham peritos que continuavam a

manifestar reservas quanto ao comportamento das novas estruturas face ao

impacte. Numa análi se pormenorizada sobre os plásticos e os automóveis 5, o

problema é apresentado nestes termos: "os sistemas metálicos absorvem a

energia do impacte, deformando-se de fonma gradual e controlada. Uma

estrutura compósita pode também reagir a uma grande quantidade de energia

estilhaçando-se, desde que o impacte seja longitudinal ou frontal. Mas os

choques podem vir de qualquer direcção embates laterais ou capotamento

dos veículos , situações em que se verifica uma tendência dos compósitos

para, ' muito simplesmente , se partirem ao meio "'.

Está a fazer -se muita investigação no campo das estruturas de aço e compósitos,

Também o alumínio, concorrente tradicional do aço, tem sido'desenvolvido

de novas maneiras para competir com os sofisticados compósitos de carbono,

boro e aramida. A Alcan desenvolveu uma estrutura de alumínio ligada por

colagem, posta à prova no Bertone X1/9, um carro de corrida. Os carros de

cOITida produtos de série limitada e, portanto, insensíveis ao preço -

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A Alcon procurou competir com os novos compósilos de carbono, boro e aram ido, criando estruturas de alumínio unidos

por materiais adesivos. Estas novos estruturas estõo potentes no automóvel desportivo italiano Berlone X1/9.

podem adoptar tecnologias que os automóveis produzidos em grande escala

não poderão utilizar completamente até finais do sécu lo. Existe um automóvel

alemão, o Tresser-I Roadster 6, que consiste num corpo de vidro reforçado a

plástico assente sobre uma estrutura de alumínio extrudido alveolar.

As dificuldades associadas àresistência ao impacte serão ultrapassadas porque

o peso continuará a ser um factor impoltante nos aviões, automóveis, camionetas

e camiões. A nossa paixão de viajar com pouca bagagem está a forçar a

evolução a orientar-se do pesado e grande para o leve e pequeno ou para o leve

e muito potente.

Os anos 90 parecem destinados a uma crescente utilização de técnicas de

construção e de materiais avançados. Uma das evoluções mais interessantes na

Europa foi o Airbus A31O-300 ter recebido uma cauda de fibra de carbono •

reforçada com epoxy e aramida gofrada. E 20 % mais leve do que a metálica,

o que se traduz numa poupança de combustível de 2 a 3000 litros por ano.

Os compósitos são caros. Thomas H. Maugh lI, divu lgador de assuntos

científicos, explicou, num artigo do "Los Angeles Times", que o alumínio

custa entre 4 e 6 dólares EUA por quilo, enquanto o preço dos compósitos hoje

utilizados nos aviões é de 50 a 80 dólares. Mas conseguem-se algumas

poupanças reduzindo as necessidades de mão-de-obra especializada e até

eliminando trabalho. Nas palavras de Maugh: "Se uma peça complicada tiver

que ser feita em alumínio, precisa de muita mão-de-obra e provoca muito

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desperdício. Além disso, uma tal peça pode associar I 000 elementos diferentes,

incluindo parafusos, porcas, anilhas, rebites, etc.". Ora, a moldagem com

compósitos consegue uma redução de 75 % nas peças.

Na década de 90, é provável que a fibra aramídica, cinco vezes mais forte do

que o aço, mas mais leve, mais flexíve l e mais res istente ao fogo , venha a

impor-se. Diz-se que estará para a indústria dos anos 90 como o nylon esteve

para a dos anos 50. A aramida resulta de uma fibra de base petroquímica,

sintetizada a partir de cloro e de hidrogénio para produzir um polímero que é

di ssolvido em ácido sulfúrico e bobinado em minúsculos filamentos com a

espessura de 20 mícron. Os filamentos são então fiados ou transformados em

pasta para plástico 7

A revolução da supercondutividade

Os plásticos reforçados avançados são uma das mais recentes inovações

tecnológicas; outra causa de entusiasmo na indústri a é a superconduti vidade,

que terá grande impacte no design de computadores. A sua história começa na

electrónica, prossegue em direcção à fotónica e pode acabar na biologia.

Fazer coisas com electric idade significa construir a aparelhagem que controla

o fluxo de electrões num ci rcuito. As resistências filtram-nos, os condensadores

armazenam-nos e os comutadores alteram-lhes o caminho. As máquinas rápi ­

das precisam de comutadores rápidos. Os primeiros computadores precisavam

de centenas de válvulas e de grandes quantidades de material condutor, como

o cobre, As máquinas eram grandes e pesadas . E, como se sabe, a libertação

do peso e da lentidão deu-se com a adopção do si lício como material de

substitu ição do fio condutor.

O silício funciona nOllllalmente como isolador, mas, acrescentando-lhe outros

materiai s, consegue-se fazer com que os electrões se movam com mais liber­

dade. Ao acto de lhe ad icionar outros ingredientes chama-se dopar ou drogar

o silício. As linhas de silício ass im modificado podem ser impressas em finas

plaq uetas de silício não dopado, formando circuitos semelhantes aos eléctricos.

E nos locais onde porções de silício com diferentes modificações se ligam

numa junção é poss ível fazer um comutador mais rápido do que um , .

mecalllco.

Daqui se partiu para o desenvolvimento dos transístores, que eram di spostos

sobre pedaços iso lados ou finas placas de silício , segundo sequências lógicas.

Associados a pequenas quantidades de outros materiais que funcionavam

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, Como Duas Gotas de Agua

como resistências ou condensadores, proporcionavam uma pequena placa

de circuitos. O design de computadores pôde, assim, ser desenvolvido, já que

os computadores dependem de cadeias de comutadores muito complexas.

Outra coisa mudou também: o design deixou de se centrar em componentes

isolados, passando a ser aplicado a unidades e submontagens. A natureza de

vários produtos alterou-se imediatamente - sobretudo do ponto de vista do

consumidor. Quando um rádio transi storizado ou uma aparelhagem este­

reofónica vai a arranjar, já não se põe a hipótese de que a peça defeituosa seja

trocada por outra igual, passando a substituir-se uma secção, uma submon­

tagem ou mesmo o aparelho completo. Os consumidores começaram a

habituar-se à noção de que "não vale a pena mandar arranjar isto; é mais barato

comprar um novo rádio/ferro/aspirador". A sociedade do " usar e deitar fora"

teve algumas das suas raízes no design "abaixo da linha". A engenharia

modular, que está subjacente a esta noção, foi o resultado do tipo de abordagem

à produção surgido nos anos 50.

Desde então, os componentes e as submontagens não cessaram de se tomar

mais pequenos, mais potentes e mais rápidos. As "coisas", incluindo os

electrões, andam tanto mais depressa quanto menor for a resistência. Em 1911,

tinha-se descoberto que, arrefecendo alguns metais quase até ao zero absoluto,

eles se tomavam condutores quase perfeitos. Os custos da refrigeração e da

aparelhagem necessária para o efeito são enolllles, mas alguns cientistas crêem

que os supercondutores funcionando à temperatura ambiente serão uma

realidade num futuro não muito distante.

O primeiro dispositivo a ser fabricado com novos supercondutores de alta tem­

peratura (o teImo "alta" é relativo) surgiu nos finai s de 1988, fruto da colabo­

ração entre a Un iversidade de Birmingham, no Reino Unido, e a Imperial

Chemical Industries (ICI). Consiste numa antena de rádio de micro-ondas que

transforma, de modo absolutamente eficaz, toda a energia que recebe.

A supercondutividade util iza-se sobretudo na microelectrónica e na infOlIl.ática;

é uma das chaves para fazer com que os computadores funcionem mais

depressa. Mais espectacular ainda é o seu papel nos comboios com levitação

electromagnética os que flutuam sobre os carris e os automóveis

eléctricos. Os supercondutores desempenham também um papel importante

em centrais eléctricas, equipamento médico e satélites. A supercondutividade

é uma pedra filosofai da tecnologia.

Mas porque a velocidade é, por excelência, o fim a atingir, até os electrões são

lentos de mais, razão por que se volta a atenção também para os fotões, porta­

dores de luz. Os fotões podem ser enviados através de lasers e alguns estrategas

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são de opinião que a fotónica usurpará o lugar da electrónica em muitas áreas.

A tecnologia "abaixo da linha" ficará, pois, ai nda mais distante da capacidade

de compreensão dos leigos .

As limitações da carne

A combinação da ciência e da tecnologia alterou a nossa percepção do que são

os materiais e do que o design e a engenharia podem alcançar. Um dos

pontos mais controversos no alargamento do âmbito da ciência e do design tem

sido a passagem dos materiai s "mortos" para entes com sentir. Os bioquímicos

não têm ficado atrás dos físicos e químicos industriais na abertura de novas

perspectivas no design dos novos materiais. Os bioquímicos poderão, por

exemplo, sonhar em cultivar computadores em vez de os montar.

As potencialidades da engenharia genética poderão ter um grande impacte na

cultura do designo Se ela atingisse a sofisticação da engenharia informática e

do design de software, modificaria a nossa relação com o Mundo natural de um

modo mais abrangente, mais rápido e ainda mais profundo do que a alteração

· . já produzida pelo computador e pelo satélite nas nossas relações geográficas . .... . _---68 Há uma marcada distinção, ditada pelo bom senso e pela evidência, entre

construir coisas e cultivá-las. A relação entre o ser humano e o "mundo" que

associamos a termos como "construção" e "engenharia" é diferente da que nos

é sugerida por "cultivar" e "tratar". A engenharia genética faz conflu ir as duas

categorias; reúne dois temas distintos na evolução da cultura ocidental.

Neste caso, o ritmo é dado pelos imperativos económicos da agro-indústria e

não pela vontade política de quem tutela o aJlllamento. Há um componente

"acima da linha" e outro "abaixo da linha" no "design" de animais. Criamos

gatos pela sua beleza; criamos animais domésticos não pelas suas linhas, mas

pela sua carne. Ambas as categorias são também criadas para render dinheiro. ,

E teoricamente possível identificar e em seguida remover genes para alterar

patas e asas, permitindo assim fazer um "design" dos animais que os torne mais

efi cazes produtores de alimentos.

Há quem se perturbe com a crueldade dos modernos processos de exploração

animal, mas a maioria dos consumidores desconhece-os, porque a maior parte

do design neste campo se faz já "abaixo da linha" temos uma percepção

muito limitada do processo que transforma um ser magnífico, como um vitelo, ,

em carcaça. E provável que, com o emprego da engenharia genética, a

produção de carne venha a ser ainda mais escondida, porque a alternativa

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seria prejudicial para as vendas. Os desenvolvimentos actuai s neste campo

são francamente reprováveis como, por exemplo, a produção de porcos

com mais carne e menos gorda, obtida pelo Departamento de Agricultura dos

Estados Unidos a partir de animais coxos e artríticos. Um porco assim produ­

zido é, de certo modo, um material compósito, já que se trata de uma criação

transgenética em que entram hormonas de crescimento humanas e porcinas.

E o Homem criou a máquina

Já em 1929 o cientista J. D. Bernal antevia uma possível síntese da física e da

genética no seu livro "The World, The FleshandThe Devi!". Bernal previu que

o corpo acabaria por ser dispensado, que os cérebros das pessoas seriam liga­

dos entre si através de máquinas, eludindo a morte com esta acção colectiva.

Um tal futuro parece bizarro e repugnante; mas, se não nos parece bem inter­

ferinllos na espécie humana, transformámos tudo o resto a níveis tais que

começa a esfumar-se a distinção entre "natural" e " não-natural". Isto é sobre­

tudo verdade na paisagem que, em alguns países, tem sido inteiramente forjada

para satisfazer os nossos desejos .

Nos Países Baixos e em Inglaterra, por exemplo, o atenuar da distinção entre

natural e artificial foi particularmente marcante. As alterações efectuadas nos

Países Baixos desde o século XVII, procurando ganhar terreno ao mar, e em

Inglaterra, com as "Enclosure Acts" (legislação sobre baldios, da década de

1790, que pellllitia murar terrenos baldios para uso individual) , contribuíram

para a criação de uma paisagem artificial. No século XVIII, a aristocracia

inglesa alterou a paisagem para estar em sintonia com detellllinadas visões , .

utoplcas.

Apesar disso, os holandeses e os ingleses estão habituados a uma clara

distinção entre o imaginário artificial e natural no seu trabalho - têm sabido

ver a diferença existente entre um homem, uma mulher, uma criança e uma

máquina. Apesar dos instrumentos mecânicos surgidos na física newtoniana e

nas fundições do século XIX terem um paralelismo com a Natureza

podemos ver o corpo humano como um sistema de alavancas e pistões , a

discreta identidade do Homem em contraponto à máquina nunca foi objecto

de confusão. Até agora.

Em "A Matéria da Tnvenção", de Ezio Manzini, há uma pequena fotografia a ,

preto e branco de uma biela 8 E feita de material compósito de fibras orien-,

tadas. E, simultaneamente, forte e leve. Não se parece com um instrumento

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mecânico do século XIX, fazendo antes lembrarum membro humano, reduzido

aos músculos, à maneira de um desenho de Vesalius, anatomista do século

XVI. O facto de podermos fazer coisas não só leves e fortes, mas também tão

à nossa imagem a ponto de serem quase inteligentes, é uma forma de feitiçaria .

Claro que sem falar de materiais compósitos e bielas musculadas

existem outros problemas relacionados com a distinção entre Homem e

máquina. Nos séculos XVIII e XIX, muitos homens, mulheres e crianças eram

postos a trabalhar como máquinas - um dado importante, porq~e o real ou

irreal, natural ou artificial, é em certa medida determinado pelo modo como o

encaramos. E o modo como olhamos para as coisas, os preconceitos que temos

em relação a elas são, ev identemente, um tema-chave para os designers que

procuram estabelecer pontes entre uma tecnologia intrigante ou ameaçadora

e uma enorme variedade de consumidores idiossincráticos.

Veja-se o caso de um braço robotizado, controlado por computador, a colocar

componentes electrónicos numa placa de circuitos; cada componente tem

uma centena de pequenos pinos que devem ser encaixados em cem peque­

nos orifícios. Os orifícios e os pinos têm de ser alinhados e não faria obvia­

mente sentido que o braço insistisse em esmagar, às cegas, o componente

sobre a placa; o braço está equipado com sensores que o fazem pausar, ajustar

a posição e tentar de novo passando a outra placa se, após a terceira

tentativa, continuar a haver uma fa lha na correspondência entre orifícios e

pinos. A concepção do software que contém as instruções do braço robo­

tizado é, sem dúvida, um triunfo do design; mas aquilo que é espantoso, em

teIII10S emocionais, é ver o braço a fazer uma pausa e, aparentemente, a

deliberar. Estamos a olhar para uma máquina a que podemos atribuir um

vislumbre de comportamento humano.

Na nossa cultura material, as relações animal/máquina e máquina/ser humano

são reveladoras da nossa relação com o que criamos. A distinção máquina/

/Homem tem serv ido notavelmente os nossos objectivos materiais e é uma das

razões que têm apoiado a nossa tendência para despromover os animais,

equiparando-os a máquinas, passo necessário para que eles se tornem instru­

mentos e não agentes. E o desenvolvimento das máquinas tem servido ainda

melhor os nossos objectivos porque, claro, as máquinas não têm sentimentos.

Não se pode violentar uma máquina a não ser em teIlllOS puramente materiais.

Mas, gradualmente, o mundo natural e hierárquico da nossa cultura material

está a mudar. As categorias estão a ser elididas por enquanto ainda não

de modo a causar uma revolução cultural profunda, mas o suficiente para

provocar algumas confusões.

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Nos relações entre pessoas e animais, o facto de maior fXlr1e dos elos entre nós e os restantes espécies estar hoje extinta , lerM1Qs poupado o uma série de prur idos éticos.

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Seja-me permitida uma analogia, socorrendo-me do ponto de vista de Richard

Dawkins, zoólogo e autor de "The Selfish Gene" (1976) e de "The Blind

Walchmaker" (1986) 9. Segundo ele, no que respeita à relação entre pessoas

e animais, o facto da maior parte dos elos entre nós e as restantes espécies estar

hoje extinta tem-nos poupado a lima série de pruridos éticos. Diz ele que o

último antepassado comum a homens e chimpanzés desapareceu há 5 milhões

de anos. Apesar di sso, partilhamos cerca de 99 % dos nossos genes com os

ch impanzés. Dawkins conjectu ra: "Se, em várias ilhas esquecidas do M undo,

fossem descobertos sobreviventes de todos os elos entre o antepassado comum

ao homem e ao chimpanzé, quem duvida que as nossas leis e convenções

morais seriam profundamente afectadas ... ? Duas situações poderiam verificar­

-se: teria de atribuir-se a todos esses seres a gama completa dos direitos

humanos (direi to de voto para chimpanzés) ou teria de se estabelecer um

complexo sistema tipo apartheid de leis discriminatórias".

A relação entre os seres humanos e a Natureza, sobretudo nas culturas cristãs,

tem ditado a separação do mundo material. Tem-nos aj udado bastante o facto

de os únicos outros seres com sentir os animais estarem suficientemente

distantes de nós para os podermos incluir numa única categoria que abrange

também o resto do Mundo. Quando nos sentimos sós, inventámos Deus.

Temos tido uma auto-identidade muito clara. Lembremo-nos de que os

cristãos fizeram Deus à imagem do Homem. Esta auto-identidade foi reforçada

pelas coisas que fizemos e criámos. Fazemos ferramentas, desenhamos orna­

mentos e criamos uma civilização materi al. Mas, mesmo quando criámos as

mais sublimes esculturas de nós próprios ou de outros aspectos do Mundo,

nunca houve o perigo de ficarmos confundidos com o que tínhamos forjado.

Era para nós ainda muito clara a distinção entre o "natural" e aquilo que era

feito pelo Homem.

Hoje em dia, porém, tudo no mundo material está a cair sob a alçada do nosso

desígnio estamos a começar a fazer o redesign de criaturas e também a

conceber computadores que poderão conduzir à possibilidade de um design da

inteligência. Os elos de que fala Dawkins estão a ser construídos por nós

próprios. Com efeito, é possível que os engenheiros genéticos façam dos

chimpanzés "ferramentas" inteligentes.

O desenvolvimento de máquinas inteligentes e úteis depende da inves­

tigação numa centena de áreas diferentes. Para que as máquinas se tornem

mais flexívei s no espaço de trabalho, terão de tornar-se também mais

sociáveis não deverão atropelar as pessoas nem danificar outras máquinas

dispendiosas. Tais capacidades são o mínimo que se pode ex igir a qualquer

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, Como Duas Golas de Agua

máquina à qual seja permitido deambular num espaço tridimensional.

Para dar a qualquer máquina (ou pessoa) este tipo de aptidão social são

necessárias regras de comportamento; a máquina/pessoa tem que as conhecer

e ser capaz de reconhecer quais as que se aplicam a cada situação. Saber quando

se podem quebrar as regras é uma actividade sofisticada e um pouco inteligente

de mais para estar ao alcance das máquinas contemporâneas. Para se ser social

é necessário ter também um sentir físico: saber como não esbarrar nas pessoas

implica determinar-lhes a posição e avaliar a rota de colisão. Existe uma série

de sensores para o efeito, mas para que as máquinas e os seres humanos possam

tocar-se com um certo grau de "inteligência" de parte a parte, as máquinas têm

que ter "braços" ou "mãos" possuidores de uma certa agilidade "mental" . Para

dar resposta a esta necessidade de fazer máquinas com algum grau de

flexibilidade sensorial, têm-se feito muitos progressos no desenvolvimento

de "materiais inteligentes".

E, assim, as acções "mecânicas" começam a parecer-se cada vez mais com as

de carne e osso. Por exemplo, uma liga feita de níquel e titânio é capaz de

memorizar formas: dobrar-se-á, assumindo uma forma particular, ao ser- lhe

aplicada uma corrente eléctrica, regressando ao seu fOI mato original quando

a corrente é desligada 10. O que é muito útil para dedos articulados.

Há, evidentemente, vários tipos de mobilidade. Myles Harris fala da sua

surpresa I I quando, tendo feito notar ao director do Instituto Turing que grande

parte dos mais potentes computadores nem por isso tinha grande mobilidade,

este respondeu: "Claro que têm. Podem ligar o número de telefone uns dos

outros muito mais depressa do que você se pode deslocar de um lado para o

outro". Esta resposta deu que pensar a Harris, que chegou à conclusão de que

a Terra tem actualmente um novo cérebro, cujos nervos são cabos de fibra

óptica e cujas células são satélites e antenas parabólicas. Estas divagações

poderiam ser postas de parte como devaneios antropomórficos não fora o

facto de os próprios peritos informáticos falarem da sua especialidade em

termos antropomórficos.

O grau segundo o qual os académicos de disciplinas científicas ou tecno­

lógicas se permitem discutir tecnologia em termos antropomórficos varia de

acordo com a atmosfera psicológica da discussão. Por exemplo, quando se

utilizam animais na investigação, a atitude normal é negar a ex istência, nos

animais, de quaisquer qualidades humanas. Assim, "não sentem dor como

nós", Hnão pensam como nós", "não podem ter prazer como nós" e "os animais

são incapazes de ter emoções como as nossas". Isto protege o experimentador

humano (o agricultor, o consumidor de produtos baseados em animais ou

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, Como Duas Gotas de Agua

testados utilizando animais, ... ). Não há lugar a má consciência porque o sujeito

foi transformado num objecto, através da eliminação do antropomorfismo a

favor de um "mecanomorfismo" (ou seja lá o que for que encontremos para

chamar ao oposto de antropomorfismo).

Estamos, no entanto, provavelmente mais empenhados em impedir que sejam

atribuídos sentimentos humanos às máquinas. E, contudo, é tal a distância já

percorrida que as metáforas de que necessitamos na nossa linguagem para

descrever o que está a acontecer na tecnologia moderna são geradas com base

no corpo humano. E é tal a indefinição entre "natural" e "criação do Homem"

que somos obrigados a tratar o novo "cérebro" da Terra quase literalmente

como se fora outro organismo susceptível de apanhar infecções. Veja-se

o exemplo do software de computador. Um extraordinário artigo, publicado

na revista norte-americana Science, tinha por título e subtítulo o seguinte:

"A praga dos vírus informáticos Bugs de software concebidos para se

reproduzirem nos sistemas podem criar o caos; é urgente protecção para

dados militares. Haverá vacina?" O artigo fala da rede informática como de

um corpo; descreve o "vírus" de computador como se fosse um vírus real.

Declara que um vírus informático é um programa que infecta outros,

modificando-os de maneira a que incluam uma versão de si próprio. "Como os

vírus autênticos, estes são portadores de um código genético, gravado, neste

caso, em linguagem-máquina. O código indica ao sistema anfitrião para inserir

o vírus no seu sistema lógico principal. Depois de instalado, o vírus infecta

silenciosamente todos os programas que consegue alcançar". O artigo apresen­

ta, com naturalidade, as nefastas consequências das doenças informáticas que

poderão levar em última análi se ao ataque dos computadores de um

país pelos de outro. Alguns meses depois deste artigo ter sido publicado, no

início de 1988, o conceito de vírus informático tinha-se tornado realidade e é

presentemente considerado um problema importante.

A infra-estrutura incorpórea

As redes informáticas, as bases de dados e os sistemas em geral proporcionam

uma nova infra-estrutura oculta, a mais recente num século que viu surgir uma

série de novos sistemas. Os primeiros foram os esgotos subterrâneos e o

caminho-de-ferro, depois a electricidade, a rádio, a televisão e os computa­

dores ligados em rede.

A passagem para uma infra-estrutura ligeira, quase incorpórea, está associada

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, Como Duas Gotas de Agua

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A orle do desenho industrial atingiu a sue apoteose em meados do século XIX: o celebração poético da máquina ere

o maneiro do modernismo celebrar o progresso.

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Nestas três imagens, percorremos diversos tipos de materiais e de construção. O sofá de alumínio e poliuretono, produto de alto tecnologia , desenhado por Jean Nouvel (0 0 lodo. em baixo), e a cadeira de plástico avançado de

f(orlelJ (nesta página) procuram, através do design, ultrapassar o natureza pouco simpático dos materiais de que são

compostos. A cadeira mexicano de inspiração tradicionol (00 Iodo, em cimo!, por outro Iodo, nõo é completamente

satisfatório, porque evidencio o seu método de fabrico e o suo estético anti-industrial de modo olgo excessivo.

à informatização e ao desenvolvimento de materiais leves, De facto, os efeitos

deste novo posicionamento face ao incorpóreo são já consideráveis na cultura

ocidental, A um nível relativamente generalizado, ass istimos a uma modi­

ficação de atitudes, em que o leve já não implica necessariamente falta de

qualidade, Trata-se de uma alteração cultural de peso.

A cultura ocidental, em especial a europeia, fortaleceu-se país a país, século a

século, por meio de uma acumulação de massa 12, Massa e peso alcançaram a

sua apoteose, quer como realidade irrefutável quer como metáfora; nos finais

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, Como Duas Gotas de Agua

do século XIX e princípios do XX os materiais mais importantes eram o

ferro e o aço, J. E. Gordon, no seu "The NewScience ofStrong Materiais", dá­

-nos uma visão rápida do poder metafórico do metal "pesado" e da indústria

"pesada" ao fazer-nos recordar que José Dzhugashvili mudou o seu nome para

Estaline, que quer dizer "firme" ou "rígido" e está associado ao ferro. Estaline

tiranizou o seu povo de modo a fazer da URSS um império produtor de ferro

ede aço. Nikita Khrushchev , seu sucessor, ficou verdadeiramente entusiasmado,

durante a sua visita aos EUA, quando passou por Nova Jérsia a confusão

de fumo, instalações fabris, ferro e aço excitaram a sua sede de poder.

Gordon sugere que as pessoas são mais felizes a trabalhar a madeira do que o

metal e que as instalações de metalurgia pesada são lugares tradicionalmente

lúgubres, onde se aliam poder e política. "Ex iste", di z Gordon, " um real funda­

mento para a tese de que o aço é uma espécie de agente de uma opressão

industrial sem rosto, o fluido vital de fábricas satânicas . As metalúrg icas

são realmente lugares insuportáveis". O desaparecimento das fundições dos

Estados Unidos e da Europa não é, seguramente, causa de desgosto: o que

aflige as pessoas é a perda de postos de trabalho e o consequente desperdício

de inteligência e aptidões o que é um assunto muito diferente.

A mensagem do metal, a metáfora do metal, não é uniforme o ouro, a prata

e o estanho têm passado e qualidade, enquanto o utilíssimo alumínio, por causa

da sua leveza, é menos dominador do que o ferro ou o aço. Mas, se segu irmos

o raciocínio de Gordon e nos debruçarmos sobre o panorama doméstico, é

interessante notarmos que, enquanto no mobiliário se aceita a madeira pesada,

o mesmo não sucede com o metal pesado excepto no jardim. Mesmo as

construções de metais leves não têm tido um grande impacto no lar, excepto

talvez na cozinha. A frieza e o carácter inerte do metal têm-no tornado menos

aceitável para o gosto doméstico do que a madeira.

O peso é associado a opressão: o passado é pesado, o futuro é leve. Mas peso

é também segurança. A relutância manifestada pelas grandes instituições,

como os bancos e as câmaras municipais, em prescindir das suas imponentes

fachadas e entradas prende-se com a necessidade de transmitir uma imagem

de confiança. Os bancos começam agora a libertar-se de alguma da sua

pompa e de certas manifestações exteriores de segurança; mas esta mudança

só é possível devido à sofisticação de cofres electrónicos, câmaras de vídeo

e alarmes inteligentes .

Página 00 lodo: Esta criaçõo de Eva Jiricno (Colecção Zeev Aram) sugere o estético do suporte de garrafas, lÕo 00

goslo de IYV:lrcel Duchomp iver capítulo 4].

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, Como Duas Gotas de Agua

Num sentido mais lato, estamos a habituar-nos à ciência do incorpóreo do

mesmo modo insidioso com que nos acostumámos à teoria da evolução ou

da ainda mais antiga Revolução Copérnica. Os rumores que nos chegam

das histórias contadas pelos físicos podem ter contribuído de algum modo para

esta situação, sobretudo agora que os escritores Saul Bellow, Ian McEwan,

Tom Stoppard e John Updike 13 começaram a estabelecer ligações entre nós

e a nova ciência, As certezas, se não foram exactamente destruídas, tornaram­

-se pelo menos mais diáfanas, de contornos mais difícei s de fixar. O panorama

da física das pequenas partículas revelou-se uma vanguarda muito mais

interessante do que, por exemplo, aquela que os surrealistas apresentaram, no

princípio do século.

Na peça de Tom Stoppard "Hapgood" (1988), somos levados a pensar no

electrão não como um daqueles modelos ordenados, racionais, feitos com uma

espécie de bolas de bilhar, mas antes como borboletas esvoaçando na cúpula

de uma catedral. E os indivíduos modernos são, de algum modo, por via da

tecnologia, dos novos materiais, da antiga arte e da sua irrequietude mental e

física, como a visão que Stoppard dá do electrão: fugidios.

Esta nova "leveza" no contacto, esta mobilidade trouxe-nos prazeres tangíveis .

Um indivíduo moderno pode viajar a 100, 1000 ou 1700 km por hora no

Concorde, ouvindo Mozart e sonhando. Ou pode passear pelas ruas , ouvindo

Wagner ou música rock, Tudo isto nos é trazido pela ciência dos materiais; a

música descartável, instantânea, portátil , está sempre presente entre nós e o

Mundo. O walkman da Sony permite-nos deambular entre a arquitectura

metafísica da música, mantendo simultaneamente alguma presença física

numa actividade corpórea, como andar, guiar um carro ou moldar barro.

A facilidade de uso e a leveza da nova tecnologia são potencialmente

subversivas da ordem social, bem como da democracia. Por exemplo, é difícil

imaginar que uma sociedade moderna, e funcionando com esse símbolo da

modernidade que é a informação, negue aos seus cidadãos a posse de micro­

computadores, modems, telemóveis e telecopiadores. Mas estes instrumentos

são um anátema para os países autoritários, porque são difíceis de controlar.

Tal como a obra impressa, a nova tecnologia subverte a autoridade. Por outro

lado, assistimos à utili zação das novas tecnologias por aqueles que dominam

e talvez o desenvolvimento mais questionável seja a vigilância electrónica de

prisioneiros. As consequências morais e políticas da cultura do leve tornar-se­

-ão cada vez mais ricas e empolgantes à medida que o século avança,

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4

• O PANORAMA DOMESTICO ACTUAL

o design e o ar

Do ponto de vi sta doméstico, a cultura moderna deveria parecer-se com uma

pirâmide invertida. Os inúmeros aparelhos produzidos pelas mega-indústrias

giram em torno da casa. No entanto, é provável que a maioria dos consumidores

apenas faça uma ideia reduzida do ponto até onde a nossa sociedade teve de ir

para nos proporcionar mais conforto. Alguns melhoramentos o fornecimento

de um sistema de saneamento adequado, por exemplo - devem-se a pessoas

com visão que reconheceram a necess idade imperiosa de dotar a sociedade de

infra-estruturas comuns, em prol do bem comum. Outras comodidades meno­

res, como as batatas fritas em palitos prontas a ir ao fomo, provocam mais

estranheza.

Aquilo que o consumidor ignora é a di versidade dos processos necessários

para obter a tal batata frita para ir ao fomo. Se pegarlllos numa batata frita e

pensarmos de onde veio , temos uma perspectiva extraordinária. Uma simples

passagem em revista do percurso da batata, da fábrica até ao supermercado,

revela-nos o seguinte :

1 a existência de uma indústria energética para apoiar o fabricante;

2 uma indústria petroq uímica para produzir os agentes de refrigeração;

3 uma indústria de polímeros para produzir a embalagem;

4 um conjunto de designers gráficos e consultores de publicidade para ajudar

a vender o produto acabado.

E isto ignorando a fase anterior ao fabrico , durante a qual os cientistas, após

aturados esforços, descobriram como resolver o problema de produzir palitos

de batata que pudessem passar do estado de congelação para um forno quente

sem ficarem incomestívei s. A própria batata terá sido cultivada numa

estação agronómica e protegida do pulgão da batata e de outras moléstias

pelos cuidados de uma indústria agroquímica.

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o Panorama Doméstico Actual

Num certo sentido, esta perspectiva 1 é falsa: as indústrias energética, química,

petrolífera, as transportadoras e o comércio retalhista não foram criados propo­

sitadamente para obter um produto tão insignificante . Pelo contrário, a sua

existência e contínuo desenvol vimento permite o constante aparecimento de

uma grande variedade de soluções cómodas, como a do nosso exemplo. No en­

tanto, estes novos pequenos nadas, ao aumentarem a escolha e a liberdade do

consumidor. estão também a contribuir para a diminuição dos recursos da Ter­

ra e consequente espoliação do planeta. Claro que isto não é razão para impli­

carmos com as batatas fritas. Saindo da cena doméstica, temos as indústrias da

Defesa, que constituem um exemplo mais alarmante, perdulário e inconcebível.

Que o consumidor médio "inteligente" não estabeleça a ligação entre as

realidades da produção "abaixo da linha" e as comodidades domésticas

"acima da linha" não é surpreendente. O mundo do consumo tem-nos sido

vendido como simpático e criativo; o mundo da produção, mais duro,

competitivo e, em alguns aspectos, mais destrutivo, tem sido disfarçado; não

costuma sentar-se à mesa connosco.

Apesar disso, os homens que criaram as batatas fritas prontas a ir ao forno

devem tê-las levado muito a sério; as batatas fritas foram objecto de design,

foram uma realização tecnológica, a sua promoção e quota de mercado foram

motivo de satisfação ou preocupações, de promoção ou despromoção de gente.

Durante um tempo, foram o uni verso criativo das vidas de algumas pessoas;

para muitas outras, a sua produção foi o ganha-pão. Talvez seja bom não nos

determos excessivamente na procura da razão de ser de um determinado

produto; será melhor aceitar, por agora, que a produção e o consumo não têm

uma finalidade, que são um fim em si mesmos.

A razão mais positiva que podemos dar a nós próprios à laia de explicação do

aparente absurdo do nosso gigantismo e excesso tecnológicos é também a mais

óbvia: tentamos, em cada momento, moldar o Mundo para dar satisfação aos

nossos prazeres, removendo, tão completamente quanto possível, as possibili­

dades do Mundo nos causar danos. Ao mesmo tempo, vamos procurando, se

não a redenção individual, pelo menos a alienação, distraindo-nos a fazer e

vender e a fazer ainda mais incessantemente, sem outro objectivo. A

proliferação exponencial da trivialidade é, provavelmente, um inevitável

subproduto da necessidade que temos de nos mantermos ocupados.

Neste capítulo, pretende-se explorar a relação entre o consumidor e os objectos

domésticos vulgares . Uma segunda parte trata especificamente da moda de

comerciali zar o design através da utilização de metáforas, em voga no final

dos anos 80.

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I

Instrumentos que prolongam o corpo humano

Temos em nossas casas uma variedade de instrumentos engenhosos com os

quais podemos cozer, aquecer, cortar, perfurar. O mundo material molda-se

sob os nossos dedos, nas bancadas da cozinha e da bricolagem. As ferramentas

são intellllediários entre a nossa imaginação e o mundo físico; as novas

Ferramentas são um símbolo da nossa capacidade de imaginar uma transfor­

mação e em seguida actuar em função dessa imaginação.

Os dispositivos de comando à distância são particul armente divertidos,

proporcionando-nos um poder semelhante ao do mago Merlim. As portas

automáticas abrem-se à nossa frente, sem precisarmos de levantar um braço,

com o ar de quem divide águas. Há um componente de diversão na pressão de

um controlo remoto, percorrendo canais de televisão, ou piscando um olho

mágico ao automóvel para que ele tranque ou destranque as portas. Durante

um ou dois segundos, poderia sentir-se prazer em premir o botão decisivo e

ver, na televisão, o M undo a ir pelos ares.

A finalidade do comando à distância é poupar esforço fís ico e tempo. Haverá

com certeza uma razão qualquer por detrás do facto de ter sido a televisão, o

gravador de vídeo, o automóvel e a porta da garagem a serem tocados por essa

mag ia, enquanto a chaleira e o fogão e léctricos, as máquinas de lavar loiça e

roupa continuam à espera de cair nas boas graças de Merlim. Esta pequena falta

poderia explicar-se pelo facto de tai s máquinas precisarem de ser carregadas,

sendo portanto a ad ição de um comando um bónus relativamente menor, donde

de produção antieconómica (aliás, empresas como a Philips e a Sharp estão a

tentar integrar estas funções numa casa " inteligente").

E ass im, enquanto não chegarmos à conclusão de que o tempo de qualquer

mulher é tão valioso como o de qualquer homem, é pouco provável que

os dispositivos de comando à distância desperdício económico e

ecológico tenham uma presença preponderante na cozinha.

O engenho utilizado para nos pouparmos ao esforço de desligar manualmente

o televisor é um desperdício decadente de recursos, só descu lpável porque os

controlos remotos beneficiam os idosos e os deficientes (sendo que, em

qualquer caso, não é a pensar em mãos artríticas ou trémulas que eles são

desenhados).

Contudo , há muitas invenções que merecem aplauso. Esquecemo-nos frequen­

temente da grande contribuição do design industrial na produção de coisas que

funcionam bem e do nível de êx ito das culturas tecnológ icas na redução do

sofrimento físico e mental associado ao trabalho árduo. O contributo do design

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o Panorama Doméstico Actual

para a eliminação do trabalho pesado é uma das suas virtudes fundamentais. , E este serviço, tanto prático como moral , que dá conteúdo e valor ao trabalho

de um designer, ou, mais exactamente, do designer que acompanha a par e

passo a tecnologia. A engenharia "abaixo da linha" e a ciência aplicada forne­

cem as bases, o designer faz a ponte entre elas e o utili zador leigo, garantindo,

entre outras coisas, que o produto pode ser utilizado em segurança.

O design só pode ser avaliado globalmente através de referências ao contexto

cultural. Actualmente, os processos de design, produção e comercialização

estão orientados para o sexo do comprador potencial. Os pressupostos de

design baseados no género estão subjacentes ao panorama doméstico. E não se

trata apenas de conhecer o sexo que costuma utilizar determinado instrumento;

importa também saber qual dos dois vai às compras.

No que diz respeito à compra de utensílios para o lar, as mulheres têm mais

influência do que os homens. Continuam a ser as mulheres que fazem a maior

parte do trabalho doméstico e quase todo o que se refere às crianças. Sem falar

do facto de, para além disso, muitas delas contribuírem com pelo menos um

terço do rendimento familiar.

Antigamente, o trabalho doméstico puxava excessivamente pelo corpo.

Recordamos um comentário anónimo, cheio de eloquência e amargura, feito

em 1870: "Para a mulher, a casa é militância; para o homem, é repouso" 2 A

medida exacta desta militância pode avaliar-se pelo trabalho que o tratamento

de roupas implicava. Christina Hardyment, autora de "From Mangle to

Microwave" (1988) 3, cita as instruções dadas por uma certa Mrs. Beeton para

uma barrela "s imples". Eis um resumo:

Segunda-feira, pôr os lençóis e a roupa branca de molho em água morna

com soda. Terça-feira, logo pela manhã, acender o lume, ferver a água;

passar por água cada peça; esfregá-Ia, torcê-la. Mergulhar as peças numa

tina de água quente; ensaboar cada peça. Colocar então a roupa noutra tina

de água; esfregar e ensaboar outra vez nos locais necessários, passar por , agua e torcer.

Depois, ferver a roupa durante hora e meia com soda na tina de cobre. Em

seguida , enxaguar em água quente limpa, depois em água fria, espremer

bem e pôr a secar.

Um verdadeiro pesadelo, sobretudo se nos lembrarmos que o vestuário do

século XIX era bastante mais compl icado do que esta simples roupa branca; o

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o Panorama Doméstico Actual

pesadelo aumentava na proporção directa da complicação das outras peças,

ainda por cima feitas apenas de materi ais naturais, que são um inferno para

manter com bom aspecto.

E, em seguida, havia ainda que engomar. .. .

Os engenheiros e des igners que projectaram as máquinas de lavar e de secar

roupa, bem como a grande variedade de ferros de engomar ligeiros, têm vindo

a aliviar substancialmente o trabalho da dona de casa, em conjunto com os

químicos, os técnicos de produção fabril e os fabricantes de têxteis, que

desenvolveram fi bras sintéticas, detergentes e vestuári o simples e durável. E,

mais recentemente, os aspectos de segurança do equipamento têm registado

grandes progressos.

Mas nem todas as mulheres se regoz ij am com a sua vida doméstica, nem

reclamam mais gadgets ou artefactos di spend iosos e de utilização mais fác il.

Algumas, como Christina Hardyment, são de opinião que o tratamento de

roupas, por exemplo, não deveria sequer ter sido melhorado de modo a ocupar

um lugar menos pesado no panorama doméstico: "Se as lavandarias se

ti vessem tornado mais eficientes e baratas", o lar teria sido ali viado de um

grande fardo.

Sabemos que os cozinhas do século XIX eram lugares de trabalho árduo, mos tinham uma grande riqueza visuol no design e no estilo. liberta do sofrimento Q que estavo associado, merece hoie o preferência de muita gente.

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o Panorama Doméstico Actual

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o desenho de Stephon ie Rowe sugere o exi stência de um componente de monstruosidade nos rotinas domesticos

modernos. Menos extenuantes que antigamente, não deixam por isso de ser limitativos.

A omnipresença dos dispositivos destinados a poupar trabalho é de facto uma

bênção, comparada com a falta que faziam há um século; mas também é verda­

de que o tempo gasto pelas mulheres na lide doméstica parece não ter dimi­

nuído muito, Porquê? Porque aexistência de sabrinas para tapetes, aspiradores,

máquinas de lavar e uma impressionante panóplia de produtos químicos para

limpar, polir e tirar nódoas tornou o trabalho doméstico uma tarefa diária

constante, Além disso, o bombardeamento da publicidade adverte constante­

mente que a segurança e saúde das crianças podem estar em perigo se não for

tudo limpo, A limpeza atingiu a dimensão de uma neurose e, como tal, propor­

ciona uma sempre renovada oportunidade de mercado para os empresários,

Adrian Forty, autor de "The Objects of Desire" (1986), vai mais longe,

Segundo ele, as próprias linhas dos aparelhos domésticos pretendem levar as

mulheres a passar mais tempo do que o necessário em tarefas caseiras,

persuadindo-as de que esse tipo de trabalho é nobre, uma vez que os respecti ­

vos aparelhos e instrumentos são bonitos,

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o Panorama Doméstico Actual

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A fealdade pode lazer sentido. Este aparelho doméstico transmite uma mensagem de "trabalho pesado·, que procuro ser atraente tonto para homens como poro mulheres.

o design industrial retirou às tarefas domésticas a penosidade que tinham no

século passado, mas mantém-se o "pressuposto tirânico" (que nem designers

nem fabricantes acharam ser do seu interesse questi onar) de que o trabalho

doméstico continuará a ser fe ito, de graça, pela mulher, individualmente. Não

há estilo nem redesign metafórico de aparelhos que venha alterar essa situação.

O cepticismo de Forty é justificado. A comercialização de dispositivos para

poupar trabalho encerra em si um logro - design e marketing são unha com

carne. Mas basta-nos recordar a descrição de Mrs. Beeton sobre o dia da

barrela para constatar que a qualidade do trabalho doméstico melhorou

extraordinariamente para muita gente. Claro que, como diz Forty, ter máqui­

nas que poupam trabalho não é a mesma coisa que ter cri ados; mas o próprio

desaparecimento desta classe é demonstrativo da extraordinária redução dos

aspectos penosos do trabalho domésti co (ver também págs. 147 a 150).

A sugestão de Hardyment de que as tarefas domésticas deveriam ser contra­

tadas fora de casa apenas faria deslocar o lado penoso da questão para outras

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paragens: é mais do que provável que as pessoas que a desempenhassem

fossem mal pagas e constituíssem uma classe itinerante de pessoal auxiliar.

A profissionalização das tarefas domésticas pode, pois, não ser uma solução

de design tão atraente como parece; é seguramente menos atraente do que uma

situação em que as mulheres ganhem tanto como os homens, condição que

tornaria economicamente sensato que homens e mulheres partilhassem

equitativamente o trabalho desenvolvido em suas casas.

Muitas mulheres têm as suas carreiras e gastam menos tempo em tarefas

domésticas do que as que não as têm ou que não trabalham no exterior. Das

que ficam em casa para serem mães, por exemplo , há algumas que

argumentam ser a maternidade uma vocação, um fim em si mesmo: o trabalho

que está associado à situação, incluindo a I ide da casa, é considerado importante,

trazendo reali zação pessoal e constituindo também um fim em si mesmo.

Tudo depende das condições em que esta actividade é desenvolvida (ver págs.

147 a 150). De entre as condições fundamentais salienta-se a autodeter-

minação escolheu-se fazê-lo ou não se teve alternativa?

E, no entanto, os consumidores podem ser enganados independentemente de

quererem ou não fazer eles próprios as tarefas domésticas. Em geral, as pessoas

parecem preferir viver em casas com um ambiente muito diferente do da

fábrica ou escritório (apesar de o lar continuar a ser ainda, para a mulher, um

local de trabalho). O aspecto meramente funcional que caracteriza a fábrica e

o equipamento comercial não é considerado adequado para o lar.

As ferramentas da profissão de doméstica são tornadas tão femininas quanto

possível, mesmo quando isso compromete o desempenho e a qualidade do

produto. O equivalente industrial ou comercial de quase todos os aparelhos

domésticos, seja uma torradeira, um aspirador ou uma máquinadelavar, émais

potente (logo, capaz de desempenhar o seu papel mais eficaz e rapidamente)

e mais durável. Na tentativa de tomar as coisas mais leves, mais ligeiras e mais

"femininas", os aparelhos domésticos são, frequentemente, bastante delicados.

O design básico, sobretudo aquele procura obter motores mais silenciosos e

melhorar isolamentos sonoros, tem sido negligenciado. O barulho de um

aparelho doméstico aspirador ou máquina de lavar e especialmente o

triturador de lixo é muitas vezes insuportável. Estas falhas demonstram as

limitações do conhecimento dos designers masculinos, que fazem muito

menos trabalhos domésticos do que as mulheres e que, portanto, baseiam as

suas decisões de design mais na aparência do que na função que os produtos

são diariamente chamados a desempenhar; enquanto designers, escolhem a

localização dos manípulos, botões, etc ., mas nem sempre se dão ao trabalho de

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o Panorama Doméstico Actual

A faca é uma ferramenta ambíguo: corto carne à mesa e no matadouro_ A tensão que lhe está subjacente é aqui

realçado pela associação do lômina com outro utensílio doméstico: o mola do roupa .

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experimentar o aparelho durante um período de tempo suficiente, pelo que são 89

negligenciados vários aspectos, incluindo o ruído. Verificam-se outras falhas

no design, algumas importantes, relativas à manutenção e limpeza dos aparelhos:

a sua reparação é frequentemente difícil (e dispendiosa) a manutenção

doméstica dos aparelhos não foi objecto de design - e dispositivos como as

batedeiras, a máquina de picar carne e os espremedores de sumos levam um

tempo impressionante a limpar (não se trata, neste caso, de um problema só de

género; os produtos "masculinos" como os berbequins são ainda um quebra­

-cabeças para os "amadores").

O design em função do género está, no entanto, em alta, e está marcadamente

presente em produtos como os de higiene começando na moda (poluidora

do ambiente) de tingir o papel higiénico para o tornar mais agradável à

compradora.

Um recente exemplo europeu de design sexista é o carregador de pilhas

doméstico. Os lares modernos utilizam muitas pilhas em rádios, lanternas e,

sobretudo, nos brinquedos das crianças. Os directores de marketing consideram­

-nas produtos de segunda ordem. Nos países do Noroeste da Europa, a maior

parte das pilhas são compradas por mulheres. As pilhas de usare deitar fora não

são baratas, mas as recarregáveis não são tão populares como seria de esperar.

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Os carregadores são máquinas fe ias: ficam bem na oficina ou na garagem mas

não na cozinha; por isso, dizem os autores dos estudos de mercado, não são

atraentes para as mulheres. Os designers responderam ao "desafio", feminizando

o carregador de pilhas, tornando-o mais fino, mais bonito e mais prático,

podendo ligar-se na cozinha a par do moinho de café e da batedeira.

Os designers tiram partido dos estudos de mercado; e os fabricantes, produ­

zindo de acordo com o sexo do comprador, parecem dar ao consumidor pe lo

menos um pouco do que ele (ou ela) quer.

Em contrapartida, as ferramentas comercializadas para os homens têm um

aspecto claramente mais poderoso, militarista e dinâmico. Também neste

caso o equivalente doméstico das ferramentas raramente tem a mesma quali­

dade das industriais, porque, dizem os fabricantes, têm menos uso. -E evidente que o facto de algumas ferramentas terem um ar agressivo não

resulta apenas de um estilo macho. Na maior parte das vezes, a função deter­

mina a forma. Não é possível fazer-se uma serra circular, uma serra de fita ou

um berbequim completamente isentos de agressividade. Uma foice ou um

martelo não podem ter um aspecto inteiramente seguro. Até uma faca de pão

contém uma ameaça implícita.

Estas ferramentas provocam uma certa emoção pela clareza com que manifes­

tam a sua função. Há também uma faceta positiva na sua existência foram

feitos para uma determinada missão que sedestina a preencher uma necessidade

real. Se não se for deficiente, não é preciso um comando à distância para a

televisão, mas são precisas estas ferramentas para alterar a face do Mundo.

Podemos não precisar de batatas fritas prontas a ir ao forno, mas para intervir

no Mundo são precisas ferramentas para cortar, fatiar, moer e furar. Não é

surpreendente que os designers gostem tanto de desenhar estas coisas -

desenhar uma ferramenta é partilhar uma necessidade real e agir de acordo

com valores de ajuda ao próximo para a execução de um bom trabalho.

As ferramentas têm também uma imagem de participação colectiva

as funções, que têm inevitavelmente de exprimir, encerram uma cultura do

fazer e uma cultura do poder: o poder de transformar. Assim , perante um

martelo, reconhecemos que serve para pregar, que é uma das ferramentas

fundamentais da civilização ocidental. Um martelo constitui uma necess idade

para construir um abrigo durável; encerra várias associações para transformar

uma parte do Mundo. Uma simples ferramenta amplia, pois, o poder de uma

pessoa. Alguns artefactos são -por comparaçao objectos pacíficos.

Destinam-se ao tempo de lazer, ao descanso, a serem aprec iados.

As ferramentas, por seu lado, são assertivas. E de que maneira! Tome-se como

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o Panorama Doméstico Actual

exemplo a arcaica foice. A filósofa Elaine Scarry aborda o assunto no seu livro

"The Body in Pain" (1985). O corte feito por uma foice, escreve ela,

produz uma transfOI mação muito maior do que a passível de ser operada por

um braço trata-se de uma alteração não só de escala mas também de

duração. O cereal ceifado é um testemunho da actividade de uma só pessoa -

conserva-se durante muito tempo depois da pessoa ter abandonado o local.

Mesmo o acto de acender um fósforo deixa um palito queimado como

marca do "acontecilnento".

As ferramentas são também instrumentos de ataque. Consequentemente, não

é muito difícil ver-se em cada ferramenta uma metáfora de uma espada de dois

gumes. Também este aspecto é bem explicado por Elaine Scarry, que aponta

o facto da maior parte das ferramentas serem também almas: "O martelo que

prega um homem numa cruz é uma arma, o utilizado para construir a cruz é

uma ferramenta" 4

Quase todas as ferramentas se podem tornar ai mas; Scarry diz que logo que o

martelo ou a faca tocam carne viva, a ferramenta torna-se alll1a. Quando toca

em carne inanimada, é de novo uma ferramenta: esculpe-se um pedaço de

madeira, fere-se uma pessoa ou um animal.

A mistura de metáforas, moralmente confusa, que ocorre sempre que as ferra­

mentas são desenhadas para se parecerem com armas é mais do que um apelo

às emoções machistas; é uma subversão da ordem social e moral que estabe­

lece a distinção entre a criação e a mutilação.

Porém, é natural que, sempre que os designers pretendam conferir segurança,

conforto, domesticidade, a expressão de poder seja rapidamente suavizada

ou eliminada. Assim, o automóvel do executivo tem assentos semelhantes

aos da sala e até no mais masculino dos veículos, o camião TIR, essa ima­

gem foi suavizada: hoje em dia, pode dizer-se que a direcção extraleve, os

comandos que obedecem a um toque, os assentos do tipo poltrona, o quarto e

ar condicionado integrados fizeram da cabina dos TIR um lugar mais

doméstico, mais pacífico, mais feminino. Esta noção torna-se irrelevante:

o que se obteve foi um ambiente de trabalho mais agradável e eficiente.

A alma da máquina

A civ ilização gerou muitas pseudoferramentas, objectos que se parecem

com ferramentas, funcionam como ferramentas quando utilizados por pro­

fissionais, mas que são mais frequentemente adquiridas por amadores que as

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compram por comprar. O extraordinário crescimento do lazer e dos hobbies

tem alimentado este fenómeno.

Em alguns casos é difícil dizer o que tem mais importância se o hobby, se

as coisas necessárias à sua prossecução. Na fotografia de amadores, por

exemplo, existe uma grande 'série de máquinas e acessórios para coleccionar. , .

E o hobby ideal para todos os que têm uma queda por "pinchavelhos" de

engenharia complicada; muita gente é fotógrafo amador apenas por causa do

equipamento. Na fotografia, tal como em outras actividades de lazer (pesca,

jardinagem, tiro, vela), o hobby é um bom pretexto para a compra do

equipamento; este, por sua vez, adquire coerência porcausa do hobby. O prazer

está nas emoções potencialmente fetichistas que o equipamento provoca no

utilizador. Um fétiche é a exaltação de um objecto inani.mado levado ao ponto ,

da reverência excessiva ou da adoração. E, por vezes, associado com

irracionalidade, obsessão e, é claro, sexo. E não é preciso muita imaginação

para perceber as conotações sexuais de brincar com uma máquina fotográfica

e tirar fotografias.

Parte deste fétiche é o excesso de qualidade integrada no objecto: qualidade e

desempenho que excedem as necessidades, como velocidades de obturador de

1/4000 e 1/8000 s. Grande parte da qualidade não é só excessiva como também

inutilizável, porque o dono do aparelho não sabe tirar partido dela.

A gama de equipamento à disposição do fotógrafo é muito vasta. Ao amador

nunca falta mais qualquer coisa para comprar, para querer, pela qual tenha de

poupar dinheiro: rebobinadores automáticos, indicadores de velocidade,

carregadores "nicad", bichas, objectivas de vários tamanhos, incluindo grandes­

-angulares, objectivas para macrofotografia, filtros (os coloridos e os pola­

rizadores) , sistemas deflash, tripés. Sem esquecer todas as caixas eestojos para

guardar tanto material.

Tudo tem um nome e um número e, na linha das observações relativas ao ,

design dirigidos aos sexos, verificamos que o material fotográfico tem uma

nomenclatura militarista: Nikon N4004 Decision Master; Canon F-i AE

Finda; Minolla X-700; Canon EOS 650. Poderia tratar-se de caças­

-bombardeiros com asas de geometria variável ou mísseis balísticos inter­

continentais de ogivas múltiplas. Se nos dissessem que os Asas de Portugal

voam em Canon F-i AE Finder, até podíamos acreditar.

Falemos apenas no prazer estético de manusear uma vulgar máquina fotográfica

Reflex de 35 mm com uma só objectiva. Primeiro, é poss ível que para os

homens haja paralelo entre a manipulação da máquina trocar as objectivas,

carregare descarregar a película, por exemplo e a operação de carregar uma

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arma. E a arma tem associações fálicas. De resto, tem havido muitos filmes

na história do cinema e da televisão que exploram, com vários planos acom­

panhados de sonorização, a preparação de uma aIllla antes do disparo.

Tanto nas ali nas como nas máquinas, há um triplo prazer ao locar num objecto

metálico (ou, o que é mais frequente hoje em dia, de componentes plásticos de

alta qualidade): constatar que é uma sofisticada obra de engenharia, tomar-lhe

o peso e ouvir os sons dos componentes deslizarem uns sobre os outros quando

rodam, engatam ou são armados. , E esta a sensação de mudar uma objectiva numa máquina de 35 mm: sente-se

o peso da objectiva quando a desbloqueamos e desatarraxamos do corpo da

máquina. Sentimos o peso precioso das duas partes principais, que devem ser

tratadas com cuidado - deixar cair qualquer delas seria danificar uma bela

(e cara) obra de engenharia. A limpeza das peças é aliciante. E há ainda a

riqueza do som das objectivas que entram e assilham no corpo: é um som suave

e cavo, como se batêssemos com duas meias cascas de coco uma na outra. O

encaixe das objectivas no corpo é de uma precisão que dá prazer.

Utilizando a máquina manualmente, um amador a sério pode desfrutar de mais

sons (o utilizador casual, a maioria de nós, serve-se de máquinas inteligentes,

à prova de erros, automáticas, não estimulando os prazeres mais sensoriais do ,

acto de tirar fotografias). E a sensação táctil que a deslocação do cursor da

distância focal provoca, muito diferente do movimento silencioso, suave,

oleado, da lente quando foca automaticamente. Para fazer avançar a película,

os dedos puxam a alavanca para trás, sentindo uma tracção mecânica agra­

dável; e, no momento de pressionar o botão do obturador, há um piscar mágico, ,

rapidíssimo. O premir do botão é deliberado, iITeversível. E tão definitivo

como o premir de um gatilho.

Durante séculos, uma das maiores ambições das culturas europeias foi conse­

guir uma precisão mecânica sem qualquer defeito (o engenho nos Estados

Unidos acabaria por satisfazer esta ambição em exclusivo, até a Alemanha e,

mais recentemente, o Japão, os terem alcançado). Este século foi bem sucedido

na sua busca da precisão as coisas fazem-se com tolerâncias cada vez

menores. A ciência, essa, tornou-se quase voluptuosa na sua precisão: os

químicos que estudam a fotossíntese das plantas medem as emissões de luz em

milionésimos de segundo. As objectivas e os aparelhos de medição para a

navegação, para a ciência e para a engenharia tornam-se cada vez mais

sofisticados , porque dessa sofisticação e da confiança que neles se pode

depositar depende o êxito de uma viagem, de uma experiência ou de

uma construção.

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o prazer estético e sensorial que nos dão os instrumentos bem feitos é quase

um subproduto da sua função, mas um subproduto de enorme potencial por

causa da relação que tem com um conjunto de valores básicos, associados à

verdade, ao absoluto e à constãncia. A beleza de uma máquina fotográfica de

precisão tem muito a ver com o facto das suas operações mecânicas serem

genuínas (a realidade que as fotografias transmitem é outro assunto). As

tolerâncias previstas não se relacionam simbolicamente com a função do

instrumento, sendo antes a própria função. O trabalho disciplinado da engenha­

ria não é apenas expressão de integridade, é o garante da integridade.

Tolerâncias apertadas são prova de um trabalho cuidado; e um trabalho

cuidado produz uma relação moral entre duas pessoas é a prestação de um

serviço positivo e fidedigno. Um mau trabalho é cínico, subversivo, niilista. A .

alma da máquina é a integridade do designer, bem como a do engenheiro e do

artífice que com ele trabalham.

A ironia está em que, como foi referido, no que diz respeito às máquinas

fotográficas, as fotografias não são, frequentemente, importantes. Ou não o

serão pelo seu mérito estético ou documental , mas antes como forma de experi­

mentar a máquina, de testar a sua integridade, a sua alma. Fora isso, as foto­

grafias não têm muitas vezes qualquer valor, são rapidamente postas de lado.

Uma das razões por que damos tanta atenção aos aspectos sensoriais de um

artefacto moderno, feito à máquina, é corrigir o preconceito de que os produ­

tos modernos são falhos de expressividade. Não é verdade que um objecto

produzido industTialmente tenha necessariamente de proporcionar menos

satisfação aos sentidos do que outro feito à mão. •

E, porém, verdade que poucos produtos industriais têm os mesmos atractivos

sensoriais que a máquina fotográfica acima descrita. Aquilo que lhes falta

não resulta necessariamente de imperfeições no desempenho global, nos

acabamentos e, mais raramente ainda, na sua decoração ou no brilhantismo da

sua expressividade. Por exemplo, em anos recentes, a cafeteira eléctrica cilín­

drica moldada por injecção tornou-se popular; pode ferver com segurança

uma quantidade pretendida de água e, como a pega está no lado oposto ao

bico, como num jarro, não queimamos os dedos com as últimas baforadas de

vapor, como acontece nas chaleiras convencionais.

Do ponto de vista da expressividade, esta cafeteira é bastante interessante.

Arredondada, bojuda, é semelhante aos utensílios que os astronautas levam

para o espaço (onde os objectos redondos são uma necessidade prática, já que

as arestas vivas são muito mais perigosas nesse ambiente). A cafeteira exprime

segurança. Mas, como objecto para manusear, tem a desvantagem de um

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o Panorama Daméstico Actual

assilhamento desajeitado da tampa e,em alguns casos, de uma certa indefinição

táctil dos interruptores. As peças não são fáceis de di stinguir sensorialmente.

São pormenores, mas neles pode residir o carácter mais ou menos atraente de

um objecto. Não é fácil tirar-lhe a tampa, que cai frequentemente para dentro

do jarro; dá a sensação de que a sua concepção foi mal-intencionada.

No entanto, a qualidade de produção e o design sensato dos objectos são, cada

vez mais, dados adquiridos. E, entretanto, os designers e os fabricantes procu­

ram novas maneiras de fazer produtos que, para além de atraentes, sejam

também fantasiosos. No intuito de prenderem a nossa atenção, eles (os que

procuram o nosso dinheiro) deixam-se convencer por estilistas de design de

que devem captar as nossas emoções.

Emoçõesface ao objecto

A geração de designers de produto formados na década de 80 cresceu no

ambiente da estética pós-moderna e tomou parte, apesar de não a ter iniciado,

na revolta contra o cu I to modernista pela forma clássica, considerada ideal.

Como pensam estes novos designers? Um director de design do sector de

pequenos electrodomésticos pediu ao ho landês Alexander Groenewege

ideias para uma gama de secadores de cabelo a comercializar pela Philips na

década de 90. Os produtos teriam de competir com os japoneses (em todo o

Mundo industrializado, é o Japão a dar as cartas). As qualidades gerais que

Groenewege tinha de procurar atingir eram óbvias, mas , de certa maneira,

contraditórias: qualidade sólida, mas com um toque de humor e persona­lidade. O des ign tinha de estar de acordo com o estatuto social do comprador,

reflectir algo do seu esti lo de vida . Os pormenores tinham de ser perfeitos e

o design inovador.

Não deixa de ser curioso, à luz das considerações tecidas sobre "instrumentos"

e "ferramentas", apreciar os comentários de Groenewege: "Portanto, o que

queremos é uma coisa agradável na mão e à vista e, como é um produto

que se usa perto da cara, a mente rejeita um design que se pareça com uma

pistola".

Groenewege considerou várias imagens; diz que, com o secador que concebeu,

pretende dar grande realce à fantasia: "Ao secar o cabelo, pensa-se em

pa lmeiras ondulantes nas praias do Pacífico, nos bailarinos de flamenco

espanhol, em gueixas japonesas ... Cada um faz as suas próprias associações".

Além disso, pretendia que o design tivesse uma beleza discreta quando fosse

deixado na casa de banho ou no toucador.

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Groenewege relembra os passos que deu para chegar ao seu secador a partir da

imagem do leque, objecto que se segura com a mão e não é tecnológico:

Sequência

- Não obedeci ao dogma "a função detellllina a forma" .

- Comecei pelo vento, não pelo que o produz.

- Em seguida, pensei em coisas que eram empurradas, puxadas, volteadas

pelo vento: penas, aves, aviões, asas, palmeiras, fo lhas.

- Junte-se estilo e vento, e tem-se um pavão,

- A cauda em leque do pavão é como o leque que as espanholas usam

para provocar a circu lação do ar. Mas um leque é também um meio de

comunicação, dependendo de como a mulher o segura, da sua proximi­

dade da cara, do modo como é colocado sobre a mesa; se é deixado cair

deliberadamente ao chão, ou se é fechado com um som seco.

- O leque encerra um carácter temperamental: ritmo, flamenco, tensão,

ternura,

- Na minha imaginação, reduzia a distância que nos separa do Japão (um

must de estilo e competitividade para o produto em causa) .

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A imagem da pistola estó presente

num número surpreendente de

aparelhos domésticos; mas isto

porque a pistola é uma formo

naturalmente útil. No entanto, este

tip::> de associação loi rejeitado p::>r

Alexonder Groenewege no seu

secador de cabelo Fon, desenhado

paro a Philips. O designer queria

fazer alusão oos leques, à

graciosidade, 00 voo, 00 ar.

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o Panorama Doméstico Actual

Tecnologia

- Precisava de um corpo vo lumoso para conter o motor. ,

- E habitual o châss is do motor e a caixa exterior formarem uma

só unidade; eu queria-os separados. Isto permite criar outros estilos ,

para a mesma unidade. E um passo em direcção a uma produção

flexível. A mesma unidade pode ser montada numa grande varie­

dade de formas, que atraem grupos diferentes de consumidores:

comerciali zação por segmentos.

- Desenhei também o secador de modo a poder dependurar-se pe lo cabo

eléctrico, porque os japoneses gostam de usar os secadores mantendo

as mãos livres.

Para além de ser um bom designer, Groenewege é desarmante na sua hones­

tidade. Tendo racionalizado (com certeza correctamente .. . ) a sua rejeição do

fo rmato de "pistola" para o seu secador, reconhece a importância fundamen­

tal da diferenciação de produto. Não quer que o seu secador se pareça com

versões ex istentes (e o seu cliente também não). Diz ele que os designs

existentes, como os da Braun ou da Atlantic Design, são muito bons, mas

"demasiado conhecidos ecopiados para que me surpreendam". A novidade -

e não a necessidade é o motor do desenvolvimento de produtos, sobretudo

no caso dos já implantados, ex istentes há muitos anos e relativamente aos

quais um aumento da ordem dos 3 % na quota de mercado pode significar

muito nos lucros da empresa.

Poucos des igners e seus clientes gostam de deixar um produto por melhorar:

estão sempre à procura de "falhas" nos produtos ex istentes para as poderem

"corrigir", justificando assi m um novo desenvolvimento. Nos produtos

implantados, estas falhas só muito raramente são pura imaginação, o que não

quer dizer que sejam fu ndamentais. Neste caso, a Philips tinha pretendido, no

brief de design, um secador com bocal perfeitamente integrado e variável; a

empresa não queria um modelo com bocais externos, de encaixar (que as

pessoas têm tendência para perder) .

Nem todos os produtos do nosso tempo pellnitem ser melhorados pelos

designers com a faci lidade dos aparelhos eléctricos ou electrónicos. Estes, pela

sua natureza, têm uma separação mais pronunciada entre design "abaixo" e

"acima" da linha. A bicicleta, por exemplo, tipifica perfeitamente um

instrumento que funciona como prolongamento do corpo humano e que é

muito difíci l de melhorar apesar das pessoas continuarem a tentar fazê-lo.

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Secador de cobelo poro homens, do Atlanfjc Design (Reino Unido), Claramente masculino no volumetrio e na sugestõo de máquina, vai buscar o seu requinte OOS estilos dos onos 30.

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Graham Vickers, jornalista de design e entusiasta do ciclismo, comenta:

"Basicamente inalterada há meio sécul o, a nossa bem conhecida bicicleta

constitui um desafio único, numa sociedade habituada a ver surgir novas

linhas nos seus objectos mais estimados". A bicicleta é intolerante para com

os caprichos dos designers porque, segundo Vickers, a mais pequena infelici·

dade do des ign provoca imediatamente danos ao c iclista. Tem havido re·

designs bem sucedidos, mas só depois de umareformulação das especificações

de design, como sucedeu ao ex igir-se uma bicicleta leve que se pudesse dobrar

ao meio para facilitar o transporte (o design, construção e especificidades dos

melhores quadros de bicicleta serão debatidos no capítu lo seguinte) .

O quadro da bicicleta é um bom exemplo de objecto modernista e é muito in­

teressante verificar como se recusa teimosamente a ser melhorado. Mas o que

é que o designer dos finais do século XX tem a opor ao modernismo? A respos­

ta mais imediata é que o des igner pós-moderno é contra o anonimato e o mis­

téri o; opõe-se à evidência do objecto e privilegia ass untos bem definidos, o

contar de histórias e a abertura de espírito. O objecto é substituído pela palavra.

Mas a resposta imediata é apenas parcial. Há outras razões que levam a que,

presentemente, se assista a uma procura insistente de objectos e edifícios

cheios de significado. Do ponto de vista intelectual, ex igir que os designers

pensem na expressão de significados e incluam representações metáforas

visuai s no seu trabalho deriva em parte de um certo cepticismo que está na

base do debate generalizado acerca do pós-moderni smo. Os indivíduos,

incluindo os designers, têm de ter justificações e cenários para aquilo que eles estão a fazer: a teoria pós-moderna tirou o tapete a algumas certezas antigas.

O teórico pós-modernista mais em voga na década de 80, pelo menos entre os

ingleses , holandeses e norte-americanos, foi o sociólogo francês Jean

Baudrillard. Este demonstrou, aparentemente, que "verdade" ou "falsidade"

absolutas não existem. Os filósofos já o tinham demonstrado , e teóricos de

outros ramos do conhecimento hav iam também chegado a esta conclusão.

Com efeito, no panorama da nova física, as apreciações subjectivas parecem

ter implicações em acontecimentos supostamente objectivos. Podemos, no

campo da física das pequenas partículas, dizer que a verdade reside nos olhos

e na mente de quem observa 5

Baudrillard concentrou as suas observações em alguns dos fenómenos que

caracteri zam as culturas consumistas contemporâneas: nomeadamente o im­

pacte e integração no nosso quotidiano da tecnologia da televisão, do vídeo e

da informática, com toda a info rmação que transmitem. O binómio tecnologia­

-informação tem contribuído para reforçar uma situação de "eles e nós", em

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o Panorama Doméstica Actual

que "eles" procuram influenciar-nos a " nós", descobrindo como somos, de

forma a venderem-nos os produtos que gostaríamos de facto de comprar

porque nos agradam. Trata-se de uma situação que se aplica ao fabrico e ao

consumo seja do que for produtos, política, ideias e a própria infollllação.

O ponto de vista defendido por Baudrillard tem aspectos atraentemente

sini stros, porque parece tornar realidade um certo tipo de ficção científica ou

de utopia à imagem do Admirável Mundo Novo, acrescentando-lhe um

estigma de que nos serviríamos alegremente para nos aterroriza! mos e irritarmos

a nós próprios. Baudrillard brinda-nos com uma visão da nossa cultura que a

mostra como uma galeria de espelhos. O sujeito, as imagens e os reflexos são

criados a partir da informação sobre nós próprios - as nossas esperanças,

medos, ambições, amores e desejos. Tudo isto é, aparentemente, reconvertido

em fa ntasias-factos sob a forma de produtos, publicidade e "notícias" . Começa

aqui um jogo de pingue-pongue: quase acreditamos na imagem de nós

próprios. Estas semicrenças tornam-se parte de nós . Este " nós", por sua vez,

é refl ectido e reapresentado pela galeri a de espelhos. Absorvemos um pouco

mais; a " realidade" desaparece e, com ela, a verdade e a fal sidade. Ou, segundo

as próprias palavras deBaudrillard, " no futuro, não seremos capazes de separar

a realidade da projecção, estatística e simulada, que dela fazem os meios de

comunicação" ("Simulacra and Simulations", 1981).

Não deixa de ser irónico, dado que na leitura de Baudrillard a Verdade é qui­

mérica, o facto de existir alguma verdade no seu ponto de vi sta. O êxito de

qualquer venda está na habilidade de dar às pessoas aq uilo de que elas gostam

ou querem, ou o que podemos convencê-las a gostar ou querer. Isto implica

não só evidenciar aquilo que torna desejável um objecto ou um político , como

também diluir uma realidade extremamente desagradável.

No entanto, Baudrillard exagera a natureza il usóri a da real idade contemporânea,

telev isivamente organizada, considerando-a absoluta. Não é verdade que não

consigamos fazer a distinção entre mentiras e verdades . Temos que reconhecer

a complexidade dos acontecimentos e da cultura contemporâneos. Mas um

dos aspectos da cultura dos finais do século XX ignorado por Baudrillard é a

extensão da investigação efectuada por uma grande diversidade de grupos de

pressão, ao serviço de quantos procuram desencaminhar-nos, enganar-nos ou

tentar-nos, levando-nos a aceitar o consumismo sem o questionarmos. A reali­

dade televisual da cultura ocidental ou ocidentalizada é apenas um aspecto -

dessa cultura. Há muita gente com presença de espírito e capacidade para

se subtrair à galeria de espelhos de Baudrillard, procurando, fora dela, as

pessoas que estão a dirigir toda a estrutura. Existem, em todo o M undo, grupos

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que trabalham para corrigir situações de dor, divulgar a exploração, combater

a tortura, eliminar a crueldade e todas as coisas que "eles" tentam esca­

motear. Entre os homens e as mulheres (sobretudo as que procuram desmontar

a galeria de espelhos montada pelos homens), há mais moralidade e mais dese­

jo de autonomia e individualidade do que Baudrillard está disposto a admitir.

Valores em mudança

Há designers que têm uma necessidade psicológica de enquadrarem o seu

trabalho em teorias excessivamente elaboradas e de significados complicados

por se sentirem comprometidos pelo seu papel de serv idores do fabricante. O

tornear da questão é um modo de se justificarem em termos criativos, j á que

uma maneira de procurar explicar os excessos e o consumo crescentes é preten­

der estar-se a contribuir para as qualidades estéti cas da vida. O design, com

todas as suas elaborações, comercializa a sua própria expansão, sob pretexto

de que é benéfico para o espírito humano.

Os designers e os arquitectos são exemplos típicos de pessoas que dependem

de justificações e significados elaborados para conferirem finalidade e estru­

tura ao seu trabalho. Muita da justificação técn ica é linear, assentando em

exigências de segurança, eficiência e economia; mas os estilos associados a

tais ambições técnicas necess itam de justificações mais elaboradas. Por vezes

o estilo, mesmo em arquitectura, vai buscar o seu significado, a sua razão de

ser, a requisitos de marketing ou de identidade institucional. Casos há em que

a ideologia que justifica um determinado estilo, preferindo-o a outro, é mais

elaborada, servindo para estabelecer valores que se pretende que o esti lo em

questão comunique ao grande público. -E notório, por exemplo, que o design de produto e de mobiliário na Dinamarca,

na Suécia, na Finlândia e na Noruega tem sido moldado por ideais sociais­

-democratas. Servir o conforto e a segurança do ser humano tem sido um

princípio organi zador do design escandinavo. A acred itar em BaudrilIard, esse

princípio é reforçado pela imagem que os escandinavos têm de si próprios, a

de pessoas preocupadas com um design norteado por princípios de bem-estar

socia l outra faceta da galeria de espelhos é o modo como agimos para pre­

enchermos a descrição que fazemos de nós próprios, o que é talvez uma razão

que penn iteencarar a hipocrisia como um instrumento para nos aperfeiçoarmos.

E, contudo, à década de 80 fa ltaram princípios e metáforas claramente

organizados. Até os arq uitectos, mestres na arte de elaborar cenários

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o Panorama Doméstico Actual

justificativos, se sentiram desnorteados, como revelam os objectos de consumo

que desenharam.

O reaparecimento do simbolismo na arquitectura e no design foi exaustiva­

mente defendido por Charles Jencks, arquitecto e teórico norte-americano a

quem se atribui a invenção, ou pelo menos a popularização, do conceito de pós­

-modernismo na arquitecturae no designo Outros, sobretudo o arquitecto norte-

-americano Robert Venturi , contribuíram substancial mente para a teoria de

design pós-modernista. Mas Jencks parece particularmente determinado em

tornar justificados os seus designs, conferindo-lhes uma razão de ser através

do seu significado simbólico. O seu melhor trabalho neste sentido é o interior

da sua casa londrina da época vitoriana, totalmente redesenhado por si.

Eu conhecia a casa só de fotografias. Um dia, Jencks teve a amabilidade de ma

mostrar. A minha impressão geral foi a de uma casa essencialmente simpática. , E confortável, idiossincrática e extrovertida, desde que se ignore parte do

simbolismo; caso contrário, torna-se bastante cansativa.

O cansaço resulta do modo quase desesperado como tudo tem de ter um

"significado" para justificar a sua existência. O interior simbólico torna-se

uma metáfora da neurose pós-moderna: se uma coisa não tem significado, não

devia existir.

Entra-se na casa por uma "Oval Cósmica" o vestíbulo tem um formato

ovóide (nascimento, primórdios do Universo); a toda a volta do tecto está

um fri so de caras, cada uma das quais representa uma figura importante da

história, entre as quai s Pitágoras, Hobbes e Jefferson.

Ciente do potencial absurdo das suas pretensões, Jencks faz um pequeno

exercício de autocrítica, troçando de si próprio naquilo a que chama a sua "casa

de banho cósmica".

Cada divi são da casa tem um tema - Inverno, Primavera, Verão, Outono -

que é desenvolvido por meio de estratagemas decorativos baseados em

referências literárias ou das belas-artes. O lado simpático de tudo isto reside

no facto de Jencks procurar exaltar os aspectos positivos da civili zação;

o interior é um reconhecimento dos frutos da erudição, do martírio , do

empenhamento político e da aplicação nas artes.

Em minha opinião, e apesar de Jencks revelar grandes ambições relativamente

à qualidade dos acabamentos, à decoração e ao design, o resultado físico

parece-me decepcionante. Jencks fala, com grande soma de conhecimentos,

sobre a importância de uma divisão ser composta por vários tipos de materiais,

de como o designer deve estar alerta para os diferentes modos como esses

materiais reflectem ou difractam a luz e de como esta pode modificar um

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Vista parciol da Solo de Verõo do coso de Cherles Jencks e MJggie Keswick, em Londres.

As cadeiras $un sôo fe itas de placas sobrepostos de MDF.

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o Panorama Doméstico Actual

ambiente . Mas as superfícies de Jencks não têm muito bom aspecto. Ele ou os

seus artífices parecem não conhecer os materiais ou não terem deles a

percepção necessária quase todas as superfícies são pintadas e há pouca

utilização de materiais naturais (ver também o capítulo 6).

A casa Jencks falha, quanto a mim, porque ele não demonstrou ter suficientes

conhecimentos do ofício e porque as ideias expressas tendem a ser excessi­

vamente literárias; falha também porque é neuroticamente sobre-rotulada.

Mas não deixa de ser significativa: ao procurar encontrar uma maneira do

design ser simultaneamente inovador e coerente, ao tentar uma abordagem que

exalte as realizações culturais e as experiências humanas inatas dos prazeres

das estações do ano, da convivialidade, etc., Charles Jencks oferece-nos uma

alternativa ao cepticismo pós-modernista de Baudrillard.

Jencks sabe que a maioria das pessoas está ainda pouco à vontade com a noção

de objectos inúteis que não têm referências para além do que são - muita da

pintura e da escultura modernistas é perturbadora devido à sua falta de signi ­

ficado. Claro que há muita gente que aceita bem o facto de um arranjo floral

ou de um seixo apanhado na praia não terem qualquer significado para além

de si próprios. Mas os artefactos realizados pelo Homem que não têm qual­

quer interpretação para lá de si próprios são desestabilizadores. A escultura é

mais bem tolerada se as suas formas forem familiares e se se relacionar com

um acontecimento, um mito, uma experiência religiosa, ou se, de algum modo,

representar qualquer coisa.

Há, no entanto, excepções importantes e reveladoras a uma tal generalização.

Este capítulo deteve-se no prazer estético da máquina fotográfica , realçando

as suas qual idades fetichistas enquanto objecto por direito próprio. E, em certa

medida, os prazeres experimentados pelo amador fotográfico ao sentir a forma

da máquina não são muito diferentes dos produzidos por determinados tipos

de escultura - são prazeres inerentes ao mundo dos próprios objectos. Desde

que um objecto tenha uma função, por mais nominal ou circunstancial que seja,

o simples facto de ter um significado basta para justificar a sua existência. Essa

justificação é então posta de parte, usufruindo-se o objecto.

O escultor William Tucker, no seu ensaio ''The Object" 6, começa por dizer:

"Se há palavra que sintetiza as aspirações do modernismo, desde cerca de

1870 até à Segunda Guerra Mundial, ela é certamente objecto". E, ev i­

dentemente, não foram apenas as belas-artes que alimentaram o culto do

objecto; com efeito, este culto tornou-se uma influência poderosa no design

industrial, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, quando o objecto de

consumo doméstico passou a ser comercializado como uma coisa em si.

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o trabalho de Dieter Rams (ver capítulo 2) é herança da escultura modernista;

trá-Ia para o interior das casas, criando assim um certo tipo de aJ1e doméstica.

A procura das característ icas intrínsecas do objecto foi, segundo Tucker, idea­

li sta. Tratava-se da procura de uma entidade cláss ica, da clareza e de um

absoluto que era, tal como uma lei científica, uno e independente de uma

personalidade, de um criador individual. Não se tratava de um compromisso,

e não se articulava nada que não fosse considerado belo.

Uma das razões pelas quais as ferramentas e instrumentos simples são tão

admirados , mesmo (sobretudo) por aqueles que não os utili zam, é a sua estética

formal, o seu arde existirem por si sós. Isto é sobretudo verdade no equipamento

de cozinha, em que é praticamente irrelevante o que as coisas são, dada a

importância de que se reveste a sua beleza formal.

Marcel Duchamp entusiasmou-se com um suporte de garrafas. William

Tucker é de opinião que Duchamp era especialmente sensível à integridade

formal que possuíam objectos como os seus famosos "prontos a usar" (os

alvéolos de suporte de garrafas, a pá para a neve e o suporte para chapéus). A

integridade era típica de um grande número de objectos úteis muito generali­

zados a partir do século XIX, objectos cuja economia e eficácia tinham sido os

únicos determinantes do designo

Tucker declarou, entusiasmado: "O poder formal e abstracto do suporte

para garrafas enquanto configuração total, ainda não encontrou paralelo na

escultura ... " (escreveu isto em 1972 e, se bem que possa haver pessoas que

o considerem tendencioso, parece-me uma definição do êxito - e das

limitações da escultura modernista) .

Uma das consequências da preocupação do modernismo pela procura de abso­

lutos estéticos é, em retrospectiva, extraordinariamente óbvia, o que torna a

mudança e a variedade mais difíceis de justificar. Se partirmos do princípio de

que esta série de formas e só ela, de que este tipo de texturas e só ele são os ideais

(negando todos os restantes), acabamos por fazer com que tudo se torne muito

parec ido. Foi o que aconteceu à arte abstracta e o que se passou com a arqui­

tectura cláss ica. Falando sem rodeios, esta uniformização é prejudicial para

o negócio. Os produtos começam a parecer-se entre si, dificultando a

dinâmica do capitalismo concorrencial não só no sector fabril mas

também na arte.

A expressão-chave "diferenciação de produtos" interessa a todos quantos tra­

balham em regime concorrencial, sejam eles pintores, escultores ou fabricantes

de máquinas fotográficas ou secadores de cabelo. Robert Blaich, director

executi vo de design industrial na Philips, disse a Alix Freedman do Wall Street

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o Panorama Doméstico Actual

lournal: "Os produtos são, hoje em dia, de tal maneira idênticos que, se lhes

tirássemos as etiquetas, não saberíamos qual a empresa que os produziu" 7

E assim se chega à semântica do produto, tema em que os Estados Unidos estão

a ser pioneiros. Este conceito refere-se aos produtos que patenteiam o que são,

o que fazem e o seu modo de utilização. Talvez os melhores exemplos de

produtos semânticos sejam, de facto, os das cozinhas do século XIX , e

imposs ível imaginar (num contexto de familiaridade com a cultura material,

evidentemente) um aparelho cuja finalidade fosse mais evidente do que um

batedor de claras manual.

Mas o design de objectos evidentes e de fácil utilização foi dificultado, no final

deste século, pela utilização da electrónica. O designer não lhe conhece a

finalidade nem tem a auxiliá-lo um imaginário que lhe permita transmitir a

função ao utilizador. Os dispositivos com rodas, engrenagens e manípulos

possuem uma lógica clara sobre o seu modo de operação, mas, mesmo se

desmontarmos as caixas do nosso computador, telefone, rádio, televisor,

vídeo ou telecopiador para lhes ver as entranhas, estas continuam a ter, para

a maioria das pessoas, o mesmo significado que os órgãos internos tinham

para os anatomistas do Renascimento.

Estamos, no entanto, perante dois aspectos diferentes: um é a intenção de

desenhar objectos funcionais e de utilização óbvia; outro, a diferenciação de

produtos. O artigo de Freedman no Wall Streetlournalfocou um ponto muito

revelador, que tem talvez mais sentido para os europeus do que para os norte­

-americanos: cita Michael S. McCoy, do Departamento deDesign da Academia

de Arte de Cranbrook, que afinflou que as primeiras tentativas de design

"expressivo" não tiveram necessariamente muito a ver com uma expressão

genuína da máquina. Os grandes estabilizadores traseiros dos carros norte­

-americanos dos anos 50 sugeriam velocidade, davam ideia de existirem para

ajudar a manter a estabilidade de um automóvel veloz. Na realidade, não

tinham qualquer justificação científica. Hoje, diz McCoy, a nova geração de

automóveis exprime os seus bons desempenhos através das linhas cienti­

ficamente estudadas da carroçaria. Mas estes carros (como o F ord Taurus) são

ainda uma minoria nos Estados Unidos. Têm um aspecto diferente dos da

concorrência. No Noroeste da Europa, onde a ciência e a expressão se fundiram ,

no design automóvel, os carros parecem todos iguais. E este o problema da ,

ciência e dos absolutos: gera-se um único tipo de sol ução. E, frequentemente,

uma resposta muito expressiva, mas distorce as regras da economia capital ista

da concorrência. Os fabricantes europeus de automóveis estão a braços com

um grande problema de diferenciação de produtos. Consequentemente, assi ste-

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-se a um frenes im na produção de diversos tipos de acabamentos de pintura,

carros de "edição especial" com nomes exóticos, com adição de grafismo e

com jantes trabalhadas. Não se trata propriamente de uma conspiração, na

medida em que as pessoas gostam de ser diferentes (até certo ponto) e que a

diversidade revitali za apetências adollllecidas. No entanto, tentar estabe lecer

diferenças nas motivações dos fabricantes e saber até que ponto querem

satisfazer os desejos ex istentes ou pretendem estimular novas apetências faz

com que o cepticismo de Baudrillard sobre a irrealidade do real se torne mais

aceitável aos nossos olhos .

Os objectos estáticos, ou aq ueles com que andamos de um lado para o outro,

e -que têm'entranhas eléctricas, são mais fáceis de abordar, já que as duas

intenções serem funcionalmente expressivos e terem um aspecto diferente

dos da concorrência se podem combinar, sem perda de integridade de

design nem de dinâmica de marketing. Os rádios e as estereofonias, por

exemplo, não transportam pessoas de um lado para o outro: são objectos que

não interferem mecanicamente com o Mundo, como acontece com os

automóveis. Não há perda de função pelo facto de se dar mais expressão

plástica a um rádio ou estereofonia; mas há potencialmente mais perdas, em

termos de eficiência e até de segurança, quando se decide aplicar a arte a

objectos que interagem mecanicamente com o ser humano e o mundo natural.

Os objectos estáticos e os manuseáveis dão-nos mais liberdade para fazermos

interpretações simbólicas, seguu mos os caprichos da moda ou os estilismos do

marketing (ou uma combinação dos três factores; as coisas, como as ideias, não

provêm de uma só fonte). Os designers defendem que, ao fazer com que um

produto exprima a sua função, há também que evitar torná-lo muito literal,

introduzindo-lhe uma nota de humor ou estabelecendo um paralelo entre o produto

e outro objecto (exemplo óbvio deste tipo de intervenção é o Phonebook de Lisa

Krohn e Tucker Viemeister, com a forma de uma agenda telefónica pág. 16).

O humor, a expressão e o paralelismo proporcionam boas hipóteses de tomar o

produto num elo entre dois imaginários o do des igner e o do utilizador. Os

objectos com estas características tornam-se, quase literalmente, poesia, porque

esta (como defende Philip LarkiIl 8) é o modo de descobrir as metáforas

apropriadas para estabelecer um elo entre a experiência de duas pessoas distintas.

Um dos exemplos que mais interesse suscitou no mundo do design foi uma im­

pressora de agu lhas desenhada em 1987 pelo norte-americano L10yd Moore.

As impressoras deste tipo eram quase semprefeiase terrivelmente barulhentas.

Claro que, a princípio, suportava-se a fealdade e o barulho. Mais, quase não se

dava por isso, porque a sati sfação devida à enolme eficác ia da máquina

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Estudos paro uma pequeno máquina fotogrófico dos designers Ross lovegrove e Julian Brown (Reino Unido). A estético da

escultura "abstrocto ' modern ista foi al iado às necessidades fís icos do util izodor: o formo de pedra achotodo

tornai) agradável de segurar e utilizar . Não há, neste caso, qualquer imogético agressiva.

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relegava para segundo plano quaisquer outras considerações: de facto, a com­

binação microcomputador/tratamento de texto/impressora de agulhas revolu­

cionou a escrita. A necessidade constante de mudança e de melhoramento aca­

ba, porém, por se afirmar; depois de termos uma máquina que funciona bem,

o objectivo seguinte é encontrar a melhor forma de relacionamento com ela.

A impressora de Moore é uma "escultura" assente num pedestal, fazendo

lembrar um púlpito. Pretende reproduzir a imagem do papel de impressão a

desfilar e capta igualmente a sua tensão firme e delicada, bem como a sua

(in)substancialidade. Como peça de design, é digna de aplauso. Curiosamente,

e se nos lembrarmos que este objecto é apontado como um bom exemplo de

"semântica", a impressora recebeu o nome de Elaine. Será que este objecto

expressivo é de facto um bom exemplo do que Forty e Hardyment, entre outras

pessoas, criticavam no design destinado às domésticas? Afinal de contas,

Elaine destina-se a tornar o local de trabalho mais agradável; mas quem é,

quase sempre, que bate à máquina? Uma mulher. E porquê chamar-lhe Elaine?

O design fica assim com a marca de uma série de pressupostos masculinos e

torna explícito um sexismo que estaria, de outro modo, oculto. A bela Elaine,

bonita de se ver, boa de tocar e trabalhadora leal os estruturalistas dos

departamentos de literatura das universidades de todo o Mundo teriam aqui

sem dúvida pano para mangas 9.

Posto isto, faz parte dos deveres do designer melhorar o mundo material

construído pelas pessoas em todos os seus aspectos, funcionais e emocionais.

A impressora de Moore, silenciosa, de fácil manutenção e bem construída

(não estava em produção na altura em que este livro foi escrito), representa um

melhoramento significativo .

A defesa, de cariz utilitário, da semântica de produto tornar algo mais fácil

de utilizar é sem dúvida positiva. No design do habitáculo de um

automóvel, da cabina de uma locomotiva ou de um cockpit, a finalidade do

design auto-explicativo é poupar vidas. Existe também (como foi dito já a

propósito de Jencks e do simbolismo) a necessidade de dar significados aos

nossos objectos e ambientes para assim criar uma certa sensação de finalidade.

Algumas discussões surgidas no debate do pós-modernismo/semântica de

produto são um pouco risíveis, pelo menos tanto como a autolatria da mais

nova geração de designers com o seu desejo de provocar emoções e de se •

exprimir através dos objectos. E duvidoso que a necessidade de um design

simbólico seja sempre tão premente como defendem alguns designers e que

as pessoas se deixem confundir durante muito tempo pela semelhança de

formas entre um micro-ondas e um televisor. Já a confusão dos comandos

de um e de outro é outra questão; e continua a ser importante desenhar

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o Panorama Doméstico Actual

instrumentos extremamente seguros e utilizáveis por deficientes e idosos.

A "ciência" da semântica de produto (o professor Reinhart F. H. Burter, da

Universidade do Estado do Ohio, afi rma que a sua equ ipa está a analisar o

assunto de uma forma sistemática, para lhe "retirar o componente de acaso")

parece correr o perigo de não dar a devida atenção a temas de design ainda mais

importantes. Por exemplo, Bill Stumpf, cujo trabalho para Herman Miller é

bem conhecido, fez uma palestra em Amesterdão, em 1987 10, em que manifes­

tou as suas reservas sobre a nova moda de realçar a metáfora no designo

Stumpf não rejeita o papel da metáfora no des igno O trabalho que executou para

Herman Miller gira em torno da domesticidade, diversão e idiossincrasia no ,

local de trabalho. E sua opinião que há demasiados produtos que impedem a

interferência humana nas máquinas. Argumenta que é cada vez mais difícil

para cada um de nós fazer a manutenção do nosso próprio equipamento. Insiste

que as coisas deveriam funcionar melhor (ver também págs. 142 e 143),

conceito que engloba a possibilidade de podermos substituir peças avariadas

sem termos de recorrer a pessoal técnico especializado. Este tipo de re­

avaliação do design desafia, evidentemente, a hegemonia dos fabricantes -

uma hegemonia, um poder que assenta na obrigatoriedade de deitarmos fora

coisas que, "aparentemente, não vale a pena arranjar".

Pode bem acontecer que osdes igners, enquanto estilistas, estejam simplesmente

a substituir um tipo de caixa plástica por outro, demonstrando, uma vez mais,

o poder que o dinheiro (através de grandes empórios industriai s) tem de alterar

sucessivamente a "cara" daquilo que apresenta ao público, ao mesmo tempo

que mantém o controlo do seu principal interesse fabricar em grandes

quantidades, da forma mais conveniente e proveitosa possível para si próprio.

Stumpf porém, subverte intencionalmente ou não algo que os novos ,

designers muito prezam: a sua impoluta honestidade. E que não há margem

para dúv idas que a semântica de produto não só diferencia o fabricante, como

reflecte a identidade do designer. Quanto mais elaborado for o objecto, mais

evidentemente funcionará, para o designer, como veículo publicitário. O

design é também um negócio concorrencial de grandes dimensões e o trabalho

de Stumpf traz implícita uma grande dose de subversão relativamente a esta

atitude. Na referida conferência de Amesterdão, em que explorou a relação

entre educação e des ign , afirmou que o conforto é uma característica da boa

educação e definiu-o como uma ausência de irritação. O conforto ex iste

quando as infra-estruturas são dados adquiridos , quando não há imposição.

Deverá, então, o design ser confortável? Ser impositivo ou manter-se em

segundo plano? Servindo, mas sem irritar? Não será me lhor deixar o espalha­

fato para os artistas?

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DESIGN DE LUXO

o uxo do design

Os desafios que o consumismo coloca à ecologia resultam claramente da

escala a que é praticado. De uma maneira geral, quem desenha e produz para

os muito ricos não corre o risco de trazer grandes males ao Mundo, porque o

clube dos ricos não é assim tão grande (claro que a utilização continuada do

marfim, peles raras e embutidos de madeiras exóticas são excepções a uma tal

generalização l. E, no entanto, desenhar para os muito ricos é um quebra-cabeças com interesse.

Porque se os designers têm de criar - de acordo com a expectativa da maioria

dos seus clientes artefactos com ar de serem verdadeiramente caros,

luxuosos e até únicos, que devem eles fazer para conseguirem preencher

requisitos tão exigentes?

Mais intrigante ainda é este aspecto: como imaginar objectos que valem

mesmo muito dinheiro? Por exemplo, uma refeição que custe 50 dólares pode

considerar-se melhor do que outra que custe 25. Mas será possível que, custan-•

do 500 dólares, seja 20 vezes melhor? E óbvio que, para além de um certo limiar - bas tan te baix o - , se começa a pagar mais do que a necess idade

básica de uma alimentação adequada. Os ricos, como a maioria de nós, entram

rapidamente numa espiral aquisitiva. Mas, mesmo assim, haverá um ponto em

que o espírito inventivo do designer não consegue acompanhar esse ritmo e

em que a sua capacidade para criar novos estímulos esmorece. Aquilo que fica , aos ricos por comprar é a Natureza, a arte e as outras pessoas. E, contudo, os

designers, os retalhistas e os próprios ricos não desistem. O mundo do design

de luxo desenvolve-se num esforço cada vez maior para ir buscar lucros aos

ricos e manter uma distância feita de exclusividade e luxo relativamente

ao resto do mercado consumista.

I A expressão "design de luxo" é utilizada aqui para abranger duas categorias

principais de design e produção de objectos domésticos ou de lazer, a que

demos o nome de objectos paradisíacos e objectos de figuração.

Objectos paradisíacos: objectos destinados a serem comprados pelos ricos.

Objectos de figuração: objectos destinados a serem comprados pelos que

gostavam de ser ricos.

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Design de Luxo

Há muitos exemplos de objectos paradisíacos que apenas podem ser com­

prados pelos ri cos, de que os automóveis fe itos à mão, os ve le iros da classe

America's Cup e os aviões particulares são os mais notóri os. Ex iste também

todo um universo de versões caras de objectos vulgares : malas de viagem,

vestuário, acessórios ebibelols . Todos eles são dirigidos ao clube internacional

dos ricos . Ex istem subdivisões no interior deste clube, incluindo a que

distingue ricos e novos-ricos. Os novos-ricos, ai nda des lumbrados com a

novidade do facto, têm proporcionado uma miríade de oportunidades comerciais.

Nicholas Coleridge, no seu livro "The Fashiol1 COl1spiracy" (1988), refere o

cúmulo do exagero na elaboração das listas de presentes de Natal "Para

homem" e "Para senhora" da loja Nierman-Marcus, de Dallas :

1960: avionetas (para ele e para ela)

196 1: juncos chineses (para e le e para ela)

1967: camelos (para ele e para ela)

1970: Thunderbirds (para ele e para ela)

197 1: sarcófagos (para ele e para ela)

O hábito mantém-se hoje em dia, mas há também muitos exemplos de

objectos como os sedutores objets d' ar! de Aless i que são caros mas

dirigidos tanto aos profissionai s liberais com rendimentos confo rtáveis ou com

acesso ao créd ito como aos ricos propriamente ditos. Sem que isto implique

uma crítica a Alessi (referi mos os seus produtos por serem de facto muito

desejáveis), constatamos que os seus objectos estão para um consumidor

cri terioso mas de poucas posses como os da loja de um museu para um

consumidor que, embora conhecedor de arte, seja relati vamente pobre.

Visitem-se grandes museus, actual mente com um estatuto próx imo do das

igrejas (como o Metropolitan Museum de Nova Iorque) e admirem-se os seus

tesouros , cuja posse é quase tão inacessível como o reino dos céus. No entanto,

podemos ir à loja do museu e comprar uma lembrança, uma figuração daquilo

que não podemos possui r. Os artefactos de Alessi oferecem o mesmo género

de possibil idade, a compra de uma figuração de um mundo onde não consegu i­

mos entrar, o mundo dos verdadeiramente ricos.

Em 1982, dois empresários norte-americanos, Addie Powell e Nan Swid,

fundaram uma empresa em Nova Iorque que organiza colecções de serviços

de mesa desenhados por arqui tectos famosos. Segundo Powell, produzem

"s ímbolos de sta!U a preços acessíveis". Num anúncio de uma das lojas podia

ler-se: "Leve para casa um original de Richard Meier por muito menos

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Design de luxo

dinheiro" I Tanto o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque como o

Metropolitan têm artigos das colecções de Swid Powell.

Querer "produzir símbolos de statu a preços acessíveis" não é necessaria­

mente mau existe uma falta de generos idade em troçar das pessoas que

querem ter qualquer coisa para se ex ibirem, sobretudo quando a maioria de

nós gosta de as possuir. Além disso, nada indica que desenhar símbolos de

status acessíveis conduz a um design inferior tudo depende do ponto de

partida do designer.

Por exemplo, o BMW 316i é um símbolo de statu acessível; é o modelo mais

barato da BMW (é evidente que acessível é um termo relativo, mas este

automóvel, quando comparado com um Rolls-Royce, um Ferrari ou um

Porsche nos automóveis, os mais óbvios símbolos de statu , o 3l6i

manifesta o mesmo tipo de qualidade a um custo muito inferior). Tem-se

descrito o BMW como parecendo ter sido esculpido a partir de um bloco de aço

maciço. Comprar um não só revela bom gosto, mas representa também uma

compra acertada: é um bom produto no que diz respeito à segurança, à qual idade técnica e aos acabamentos. Os designers tomaram como ponto de

partida a concepção de um bom automóvel cuja qualidade perceptível iria

agradar aos potenciais clientes. Por outro lado, a maior parte do design de

invólucros exteriores seduz o comprador, prometendo-lhe mais do que o

objecto na realidade oferece.

Existe outra categoria ou subcategoria do design de luxo que inclui produtos

como as bicicletas feitas à mão bicicletas fabricadas individualmente,

segundo os requi sitos do cliente, para que possam ter um desempenho pelo

menos tão bom como qualquer outra para a finalidade pretendida, por exemplo,

para cicloturismo ou provas de montanha. Outros exemplos são as canas de

pesca, as armas de fogo e os arcos-e-flecha de fabrico especial. O que determi­

na a pertença ao grupo dos possuidores deste tipo de objecto não é a riqueza

por si só, nem o desejo de se lhe associar, mas sim o conhecimento profundo

de um passatempo levado a sério, ao ponto da paixão. Assim, uma pessoa de

parcos recursos poderá poupar bastante ou privar-se de outras coisas para

obter o objecto que a fará alcançar os melhores resultados no passatempo da

sua preferência.

O elemento-chave em coisas como as boas bicicletas de corrida ou de turismo

tem a ver com a primazia da função. Se o desempenho de um instrumento for

de importância crucial, as considerações de tipo metafórico, de sensualidade,

cultura, marketing e exibicionismo não têm grandes hipóteses de integrar o

design nem sequer o estilo do produto. A bicicleta especializada é disto exem-

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Design de luxo

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A tecnologia e o morkeling criaram um estilo que opregoo ·culturo· e -dinheiro·. Actuolmente, os museus trotom este

tipo de objectos de uma forma que tende o elev6·los à categoria de ·orte" .

pio. Além disso, as qualidades técnica , de design e de acabamento necessárias

ao fabrico de uma boa bicicleta funcional colocam-na numa classe à parte.

Graham Vickers escreveu muito sobre design de velocípedes e criticou os

fabricantes e designers que tentaram melhorar a concepção bás ica da bici ­

cleta. Têm vindo a surgir alguns designs engenhosos, mas, afirma Vickers,

trata-se normalmente de soluções inteligentes para problemas criados pelos

próprios designers. O essenc ial numa boa bicicleta, quer seja de corrida ou de

passeio, é o quadro. Vickers explica que as suas qualidades são a rigidez e a

leveza. As variáveis incluem os ângu los do quadro, que são determinados pela

finalidade a que se destina a bicicleta. "Variam-se os ângu los do quadro para

permitir diferentes tipos de resposta ... Um quadro com um ângulo de 74° e um

garfo de 1,5 polegada permite uma resposta rápida ao esforço muscular". Mas

uma tal configuração é desconfortável num terreno acidentado em que " um

ângulo de 71 ° ou 72° e um garfo até 2,5 polegadas conferem uma melhor

absorção do choque, mas uma resposta mais lenta".

Claro que a qualidade do trabalho do artífice é importante. Diz Vickers: "No

Reino Unido, as empresas familiares de construção de quadros funcionam

muitas vezes quase em rotura financeira. E contudo o artesão trad icional conti­

nua a orgulhar-se de fazer um bom trabalho".

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Design de Luxo

Em todas as categori as do design de luxo, o conceito de perícia profissional do

artesão é importante . Os barcos à vela são feitos à mão; as malas de couro são •

muitas vezes de produção manual; sapatos, choco lates e equipamento despor-

tivo são fe itos ou acabados à mão. Frequentemente, a produção manual é, em

termos económicos, a única alternati va. Se um produto tiver uma clientela

restri ta (mas suficientemente ri ca para poder pagar bem), sai mais barato

uti lizar artesãos doque investir em maquinaria " inteligente", mui tod ispendiosa.

De qualquer modo , chega-se à conclusão de que ter uma fábrica che ia de

máquinas inteligentes muito dispendiosas ex ige uma mão-de-obra mui to

dispendiosa e inteligente (se bem que em número reduzido) para a manter

operacional.

Mas, para além da sua necessidade económica, a presença de mão-de-obra

manual ind icia a presença de um ti po especial de serviço. Como disse David

Pye (ver págs. 140 a 144), grande parte do trabalho artesanal implica um ri sco

de falhas, pelo que o trabalhador tem de estar especialmente alerta. Além

disso, faze r bem seja o que for, manualmente (embora recorrendo a tantas

máquinas e d ispositivos quanto poss ível), requer de facto. uma grande dose de

altruísmo - o artesão está frequentemente a trabalhar integrado numa equi pa

e existe um empenhamento no produto que está muito para além do interesse

pessoa l do artesão individual.

No entanto, e sem tentar sugerir que o capitali smo é prejudicial ao design, é

absolutamente verdade que uma das características subjacentes ao design de

luxo para além de criar os melhores arte factos poss íveis fazendo uso das

melhores capacidades humanas é fazer alarde do dinheiro.

A deificação do dinheiro

O primeiro aspecto com que deparamos ao apreciar o esquema mental dos ri cos

é o facto destes constitu írem uma entidade que ignora fronteiras nacionais. Os

retalhistas de Londres, Paris, Nova Iorque e Milão sabem que os ricos, seja qual

for a sua nacionalidade, têm mais em comum entre si do que em relação às

classes mais desfavorecidas dos seus próprios países. O norte-americano

Lewis H. Lapham, editor da revista Harpers e autor de "Money and Class in

America" (publicado em 1988)2, descreve, com conhecimento de causa, a

sensação de se ser ri co. Afirma que se parte do princípio de que "o Mundo

existe para nos apaparicar" . O Mundo sorri aos ricos . Os chefes de mesa

ex istem para representar a opinião do M undo e "a sua deferência amável

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Design de Luxo

Existe um sem-número de obiectos de consumo com elevados desempenhos e excelente qual idade de fabrico ó disposição de q uem os posso pagar. Q uem seNe os ricos esforço-se por dor-lhes "exclusividade". Esta máquina Nikon é fol heado o ouro.

No página 00 lodo: Jorro desenhado por fv\orcello fv\orondini (Itália, 1983) poro a empresa cerâmico alemã

Rosenthol. Troto-se de um bibelotde prooução limitado.

confirma a cada homem a imagem que este tem de si próprio". Lapham

argumenta que, nos EUA, o dinheiro tudo pode e é um fim em si mesmo. Os

objectos que compramos, por mais elaborados que sejam, nunca conseguem

fazer justiça plena ao deus-dinheiro. Sugere que, para os norte-americanos, o

simples facto de uma coisa ser mais cara contribui para a sua imagem de

eficácia: assim, um avião de transporte de 13 biliões de dólares terá necessa­

riamente de ser melhor do que um de 10 biliões. Nos Estados Unidos da

América, o dinheiro tem um poder imenso: os muito ricos podem comprar as

coisas mais extraordinárias "é difícil imaginarmos algo que não possa ser

comprado ou vendido nos EUA: a Presidência, uma cadeia de televisão, uma

vida mais longa, um juiz concelhio, um lugar de embaixador. .. " . Se os

europeus ricos têm ou não mais limitações no que podem comprar com

dinheiro é di scutível. Podem comprar cadeias de televisão e de jornai s, e são

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Design de luxo

hábeis na "compra" de situações que lhes conferem um poder suficiente para

defender a sua esfera de interesses.

Segundo Lapham, o facto de possuírem muito dinheiro faz com que os ricos

se sintam diferentes quanto à sua própria mortalidade. Ousaria Deus abater as

figuras de proa da Mobil Oil, da IBM, dos Estados Unidos? E Lapham acres-,

centa uma nota interessante: "E precisamente esta superstição que está na

origem de toda a tinta que continua a correr a propósito do naufrágio do Titanic.

Tal como o navio, que era feito à sua imagem e semelhança, os magnatas que

se encontravam a bordo, entre eles um Astor e um Widener, eram suposta­

mente invencíveis ... Dois dias depois, em 17 de Abril de 1912, o Empress of

lreland afundou-se no estuário do rio São Lourenço, afogando 1000 passageiros.

Ninguém recorda o acontecimento, porque as vítimas faziam parte de um

estrato anónimo, sem projecção social".

Os r icos podem dar-se ao luxo de requi s itar trabalhos especiais e

desnecessários dois ou três criados de mesa, homens ou mulheres cosendo

manualmente os estofos de pele que irão equ ipar os seus automóveis, eles

próprios laboriosamente feitos à mão.

Se um cesto de comida se destinar a piqueniques, é importante que seja feito

à mão. A exclusividade, característica que ser rico permite desfrutar, resume­

-se normalmente a poder comprar-se os serviços e o servilismo de outras

pessoas. Isto não significa necessariamente que quem serve os ricos seja sobre­

explorado; pode até ser bem pago e merecer a estima e o respeito dos seus cole­

gas artífices. Pode inclusivamente, já que o dinheiro não é obstáculo, ter a sorte

de exercitar o melhor das suas capacidades na produção de coisas para os ricos.

O poder de deter direitos exclusivos sobre o trabalho de outra pessoa é atraente,

porque a posse do tempo de outrem é inestimável. Todos as restantes vertentes

de um objecto podem ser copiadas, produzidas em série e mesmo horror

dos horrores popularizadas. ;

É isto que marca a diferença entre a década de 1980 e a de 1890, a de 1909 e

até a de 1949 a capacidade do design industrial e dos fabricantes produ­

zirem bens que não podem ser melhorados, independentemente do dinheiro

que se tenha. Os ricos sentem a sua exclusiv idade constantemente ameaçada.

Não deixa de ser irónico o facto do presidente da Aston Martin Lagonda,

construtora de automóveis exclusivos, vir declarar que um BMW é tão bem

concebido do ponto de vista técnico como qualquer dos seus próprios auto­

móveis, quando a diferença de preço pode atingir os 100 mil dólares. Mas,

numa época como a nossa que é tão notável na capacidade de produzir bons

artigos para as massas (veja-se a lata de Coca-Cola), a diferença qualitativa

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Design de Luxo

da maior parte dos objectos é inevitavelmente muito reduzida. Este é, ironi­

camente para o socialismo, um dos êx itos do capitalismo.

Para além de determinado preço, relativamente baixo (quando comparado com

outros períodos da hi stória), os ricos não podem comprar melhores máquinas

fotográficas , computadores pessoais, chaleiras eléctricas, televisores ou grava­

dores de vídeo do que o leitor ou eu. O que podem, isso sim e é o que faz , .

o comerCIO - , é acrescentar "extras" desnecessários ao objecto. Pode

mandar-se dourar uma máquina fotográfica, ou mandar pôr uma pega de rubi

na chaleira. Por outras palavras, pode inventar-se um produto exclusivo e é o

que fazem algumas lojas. O elemento de design nunca é inovador; dá-se a um

design existente uma roupagem exótica a um preço intimidatório. No Natal de

1988, a Dunhill, uma das lojas para ricos mais sofisticadas, com sucursais

espalhadas pelo Mundo inteiro , propunha, sob a designação "The emft of

Giftmanship" ("A arte de bem presentear"), uma grande variedade de artigos

de luxo , tais como uma carteira de homem de pele de avestruz, uma garrafa de

bolso com forro da mesma pele, uma caixa de charutos de tuia e um relógio

milenar com mostrador Champagne. Até os nomes faziam parte do valor acres­

centado: "champagne", por exemplo, designa a cor do mostrador do relógio.

Objectos paradisíacos

Na Europa, os objectos paradisíacos mais conhecidos, que transpiram qualidade

e exclusividade, são os veículos automóveis. Em 1988, a Landor Associates

realizou um inquérito acerca de marcas, regido por dois critérios: a familia­

ridade do consumidor com a marca; em que conta o consumidor tinha o

produto. Na Europa, a Rolls-Royce atingiu o 15.0 lugar em termos de familia­

ridade, mas o 1.° em termos de qualidade. Por outro lado , a Coca-Cola, a única

marca mundial que está na boca do Mundo, ficou no 66.0 lugar em termos de

qualidade talvez porque, como comentou a revista The Economist, as

pessoas se preocupavam com o seu teor de açúcar.

A Porsche é uma das marcas que se associam aos muito ricos e à qualidade. A

maioria das pessoas conhece-a através dos automóveis Porsche. Mas existe

também uma empresa separada, a Porsche Design, cujo gabinete é em Zellam-,

-See, na Austria. Os seus designs para empresas como a Poltrona Fmu (Itália),

a Artemide (Itália) e a InterProfil (Alemanha) abrangem a iluminação, o mobi­

liário e os acessórios. Estes acessórios, tai s como sacos e malas de mão, óculos

de sol e cachimbos, são comprados pelos ricos e pelos que a isso aspiram. São

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Design de Luxo

Paro quem tenho posses pa ro adquirir O Kjneo, os afirmações promocionais do Porsche, do tipo·O espaço tem limites.

A liberdade também ", sôo uma confirmação reconfortante do legitimidade do privi légio .

bem fabricados, exactos e rigorosos no seu design pequenos objectos de

peIieição que publicitam, eles próprios, o seu êxi to e excl usividade. Este gabi­

nete de design também desenhou "brinquedos" só acessíveis aos ricos,

incluindo um barco de recreio com motor fora de borda, o Kineo .

O Kineo tem um design cuja metáfora fundamental é a estética da máquina;

parece-se com o tipo de máquina que só o dono de um empório industrial ,

poderia apreciar devidamente. E como que uma síntese visual da eficiência

germânica, da obsessão futurista pela velocidade e doflirt do pós-modernismo ,

anterior à Segunda Guerra Mundial. E intimidatório e agressivamente fálico.

Aplicam-se, com demasiada facilidade, conotações sexuais ao des ign de alta

tecnologia. Mas este objecto transmite uma imagem de afirmação sexual e de ,

pujança que só a beleza, o dinheiro e ajuventude podem dar. E um objecto ideal

para desfrutar as alegrias do Mundo.

E is a descrição do Kineo, incluída no catálogo Porsche intitulado "Liberties

and Limits" (1986/7): "O design invulgardo seu convés é baseado em critérios

puramente ergonómicos e funcionais (sobretudo no que diz respeito à liberdade

de movimentos sob o convés), contendo igualmente alusões estéticas a sím­

bolos de agressividade, tais como submarinos e torpedos. Estes elementos,

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Design de luxo

ASTON MARTIN

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A As/on NkJrlin lagando constrói corros desportivos velozes e de excelente qualidade. feitos à mÕo. Idealmente, um

As/of] Mar/in deve pertencer o um jovem piloto aviador, louro, inglês, herdeiro do memório do Botalho de Inglaterra e do Spitfire.

funcionalmente exteriores, foram esti listicamente incorporados nele". A men-,

sagem é sobranceira e desafiadora. E interessante notar também o tipo de

exclusividade irradiado pelo catálogo, que demonstra elitismo intelectual e ,

patenteia a raridade da riqueza. E quase fi losófico, quase intelectual no seu

rigor é como se Kant se tivesse tornado ch iquee Wittgenstein um designer­

-herói (o que está a acontecer, aliás 3). Vejam-se as afirmações e citações em

vários pontos da brochura. Por exemplo:

o espaço tem limites. A liberdade também.

A liberdade pode parecer ilimitada, mas claro que não é. Rudolf Virchow,

médico e erudito , disse: "A liberdade não é o capricho de fazer o que nos

apetece, mas sim saber agir de forma razoável".

A razão ostensiva para a inclusão no catálogo destas e de outras citações é

sugerir, sem excessos de argumentação, a adequação do design Porsche. Este

tem as suas raízes no estilo depurado da Bauhaus. Emprega um certo ar de

simplicidade como representação da razão e da lógica, ao mesmo tempo que

introduz uma série de pormenores estéticos que não podem ser justificados

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Design de luxo

pela razão (cf. pág. 142 e a análise de David Pye das contradições inerentes à

habitual argumentação "a função determina a forma"). As referências à

liberdade e aos seus limites são, assim, uma maneira elegante de ir contra o pós­

-modernismo (como o demonstrou Graves) e as experiências excessivamente

permiss ivas; admitindo simultaneamente que, embora o design Porsche tenha

as suas raízes nos ensinamentos da Bauhaus, não adere rigorosamente ao

"antiquado" dogma modernista.

Igualmente significativo é o alcance político destes comentários: dirigem-se

não a meros consumidores, mas à classe social superior, que detém o poder e

para quem o debate sobre limites é, mais do que uma especulação filosófica, ,

um tema de interesse prático. E quase como se as metáforas empregues pelo

design Porsche sugerissem um propósito oculto um design que articula

poder, controlo e domínio de um modo semelhante ao das pinturas ou estátuas

equestres ao longo dos séculos.

No Aston Martin, de design britânico, as metáforas visuais são semelhantes:

o Aston Martin V8 e o V8 Vantage Volante são veículos grandes e agressivos.

No entanto, as metáforas ocultas estão lá. O fabricante de automóveis Aston

Martin Lagonda produz o único carro do Mundo inteiramente feito à mão (não

confundir com os apenas montados à mão). Existem alguns carros de luxo, de

grande qualidade, em que se faz manualmente a montagem de peças prensadas

ou fabricadas por máquinas. No Aston Martin, o châssis e a carroçaria são

formatados e moldados por operários que batem as peças com malhos. Grande

parte do motor (que é montado à mão) é fabricado nas próprias instal ações a

partir de peças em bruto fornecidas por uma empresa subcontratada. As caixas

de velocidade, a transmissão e o equipamento eléctrico são também fornecidos

do exterior é que fazer à mão a lâmpada de um farol seria uma idioss in­

crasia invulgar, mesmo para um britânico.

Se uma pessoa quiser, pode visitar a fábrica e assistir à construção do seu

próprio carro. Poderá então gozar todos os prazeres associados ao facto de estar

tanta gente a exercer as suas extraordinárias capacidades especialmente para

si. Uma experiência que não é, evidentemente, barata.

Feitos à mão

Seria errado pensar-se que os artesãos envolvidos na criação de artefactos

dispensiosos e únicos para os ricos são necessariamente subservientes; não

são, com certeza, explorados. Com efeito, a criação de um artefacto por uma

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Design de Luxo

equipa de pessoas altamente qualif icadas e habilidosas que trabalham para

um indivíduo é complexa e, enquanto acto laboral , envolve valores que po­

dem ser muito estimáveis . Vamos, pois, analisar mais pormenorizadamente a

criação de um outro tipo de "objectos paradisíacos": a tapeçaria moderna.

A transfOI Illação de quadros em tapeçarias para os ricos é um negóc io flores­

cente. Pintores como Helen Frankenthaler (EUA), David Hockney (GBI

lEU A), Sir Eduardo Paolozzi (GB) e Frank Stella (EUA) viram já os seus

quadros passados a tapeçaria. Porquê? E por que razão •

sem com ISSO

desmerecer os eminentes artistas atrás referidos seria particularmente

surpreendente ver o trabalho de Georg Baselitz passado a tapeçaria? As obras

dos pintores acima referidos, e de muitos mais ainda, foram traduzidas pela

Edinburgh Tapestry Company, uma das poucas empresas de tapeçaria do

M undo 4 A PepsiCola, por exemplo, encomendou-lhes um conjunto de onze

tapeçarias, cada uma delas baseada numa ilustração de Frank Stell a.

A tapeçaria difere da pintura porque o tipo de estruturação e construção da

superfície encaixa mais facilmente e se identifica com mais naturalidade com

outras superfícies presentes numa sa la, feitas ou fOljadas pelo Homem. Ao

passo que um quadro constitui , diz-se, um ambiente em si mesmo ,

- sotem

a ver consigo próprio, não com os restantes objectos da divisão em que está 5.

Os efeitos da refracçãci e da reflexão da luz são também diferentes. A superfície

não porosa da tinta reflecte a luz; os fios da tapeçaria absorvem-na e ela parece

dançar no seu interior. A cor é, assim, av ivada, razão pela qual a tapeçaria pode

ser um meio de extraordinária riqueza. A crueza dos materiais, o tipo de fio

utili zado, bem como a densidade da urdidura são factores determinantes da

natureza da textura. E, ao alterar a textura, pode-se, literalmente, modelar a luz.

O dinamismo da superfície têxtil e a riqueza das cores entusiasmam os pin­

tores. Na Edinburgh Company, o directorexecutivo, James More, explica que

ele e os colaboradores passam tempo a conversar com o artista, falando sobre

o trabalho e debatendo possíveis imagens para serem transfollnadas em

tapeçarias. Gostam, como é natural , de viver por momentos a experiência de

um arti sta.

Depois de escolhida uma imagem, é realizado um cartão e os fios da urdidura

no tear são impressos com uma cópia a tinta. Os tecelões guiam-se pelas

marcas de tinta à medida que avançam, centímetro a centímetro, pela imagem

fora. O primeiro quarto da tapeçaria é fu ndamental , porque detellflina a gama

de matizes, tons e texturas do resto da composição. Ao contrário da pintura, a

tapeçaria não é um suporte que se possa ir trabalhando em toda a extensão;

implica, sim, um percurso linear, passo a passo como escalar uma

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Design de Luxo

montanha. Na Edinburgh, trabalham três ou quatro tecelões numa mesma

tapeçaria; estabelecem um consenso que "encadeia" o trabalho de cada um no

dos outros e que, fazendo constantemente referência ao trabalho original do

pintor, os impede de fugirem cada um para seu lado.

Os tecelões insistem em que fazem traduções e não cópias. Odeiam a repro­

dução servil de uma imagem pintada. A utilização de texturas análogas e a

criação da cor é, evidentemente, crucial. Sabe-se que na fábrica Gobelins, em

França, há fios de L7 000 matizes diferentes, mas a Edinburgh possui apenas

cerca de 1500. Os teceLões têm que misturar fios e, com a combinação de três

ou quatro de várias cores, entrelaçados de modo mais ou menos apertado, é

possível conseguirem-se matizes subtis. A técnica de misturar cores em

tapeçaria é, de certa maneira, pontilhista.

O processo mental de traduzir um quadro de Frankenthaler ou de Stella numa

tapeçaria situa-se entre os dois extremos da cópia e da invenção. Por um Lado.

os tecelões seguem o pensamento de outra pessoa; por outro. têm de raLer ul3~

trabalho de interpretação na criação da tapeça ria. -

'.lQ..) li a. VUlI v c1>:1}J\V"-'lV d \".,VlI .)IUCI ai no Pl I..\U;:::;-'I,)I\7 J II C I IlClJ. \.,('Ud ll ll \ J li

pinta, sabemos que a superfície que resulta ~la s suas pinceladas se deve tanto

a factos acidentais como a uma deliberada e consc iente dec isão do artista. Por

exemplo, se dermos uma cor e a suavizarmos com outra aplicada por cima -

cobrindo-a parcialmente não poderá dizer-se que tenhamos escolhido cada

centímetro do efeito resultante antes de termos pintado, ou mesmo enquanto

pintávamos. Podemos gostar do resultado global e decidirmos deixá-lo como

está, mas não foi nossa a escolha de todas as justapos ições visíveis, ponto por

ponto. O mestre tecelão, no entanto, ao recriar na tela essa zona esbatida, tem

que pensar cu idadosamente em todas as coisas que o pintor " resolveu de uma

assentada"; tem que recriar os efeitos acidentalmente criados pelo pintor em

actos deliberados, como os causados inicialmente pela velocidade do pincel, -pela gravidade, pela consistência da tinta e pela temperatura da sala. E por esta

razão que as tapeçarias têm geralmente um ar ligeiramente hirto; não são

produtos espontâneos.

Com efeito, e apesar de acharem que se trata de uma tradução e não de uma

cópia, os tecelões da Edinburgh mantêm-se fiéis aos esbatidos, aos pingos, às -linhas quebradas e às sobreposições . E sem dúvida um trabalho de inteli-

gência e interpretação, contendo porém um factor de cópia. A tapeçaria não

tenta nem pode afastar-se da pintura original: não é um fac-símile

daquela, nem a pintura é apenas um esboço da tapeçaria. As ideias do pintor,

as suas escolhas e percepções constituem a maior parte do universo do tecelão.

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Design de Luxo

Os mestres tecelões demonstram capacidades e uma perícia de virtuosos, tão

raros nas belas-artes actualmente, Eis algumas:

- profundo conhecimento da cor;

- capac idade para interpretar as texturas;

- sensibilidade para as linhas;

- excelente capacidade de observação.

Nenhuma destas capacidades se ganha por rotina, cada uma exige uma com­

binação de experiência, aprendizagem e intuição. Requerem inteligência e o

dom de uma imaginação sensível e emotiva que permite ao artífice colocar-se

no lugar do artista. Os mestres tecelões não são desprovidos de ego, mas o seu

objectivo é de natureza colectiva fazer jus à obra original. São, pois, na

melhor acepção do termo, servidores da pintura e co-Iaboradores do pintor.

Conseguiram este estatuto não por se terem tornado artistas, mas através do

rigor na aplicação das suas capacidades e do seu trabalho. Depois de um artista

decidir que quer uma obra traduzida para tapeçaria, passa a estar nas mãos,

olhos e imaginação do artífice. Este estatuto de igualdade decorre do desempenho

de papéis diferentes.

Não obstante, a moda contemporânea, na generalidade, opõe-se ao artesão e ao

virtuosismo. Considera tais manifestações um saber de segunda categoria.

Independentemente das outras qualidades que possam ter, as pinturas de

Julian Schnabel e de Georg Baselitz não podem ter pretensões a grandes

manifestações de virtuosismo.

Os tipos de pintura preferidos como motivo para tapeçarias pertencem a uma

de duas categorias, ou a ambas: optimismo e decoração. Os quadros de David

Hockney são normalmente optimistas e decorativos - as suas representações

dos efeitos da luz sobre os objectos, as suas pinturas de flores ou de naturezas

mortas de sabor doméstico têm a intensidade de um instante capturado na tela.

Outras obras, como as de Frank Stella ou Helen Frankenthaler, são certamente

decorativas e não são subversivas. Muita da pintura abstracta, independen­

temente das teorias que rodearam o seu aparecimento enquanto produções de

arte, é na verdade uma glorificação do papel de parede - sem que sejam piores •

por ISSO. ,

A própria tapeçaria é uma arte decorativa. E um objecto que se relaciona com

outros, que "encaixa" bem com eles é um revestimento mural.

Mas a facilidade de transformar um Hockney ou um Stella em tapeçaria e a difi­

culdade de o fazer a um Baselitz tem raízes mais fundas. Fazer uma tapeçaria

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Design de Luxo

é um acto construtivo e deriva de um enorme empenhamento humano: anos de

aprendizagem de técnicas, seguidos de centenas, talvez milhares de horas

passadas na realização de uma só tapeçaria. Um tal investimento em tempo e

habilidade revela uma crença no valor do objecto como algo que merece a ,

pena produzir. E, por conseguinte, um meio completamente inadequado para

manifestações subversivas, para intervenções antiarte, ou para gestos de

troça (tão em moda) contra a burguesia. Passar um Baselitz para tapeçaria

seria provocar um choque entre dois sistemas incompatíveis de valores. O

trabalho colectivo, recolhido, construtivo e laborioso dos mestres tecelões não

tem nada em comum com o desprezo pelo cuidado, atenção e escrupulosidade.

Retiraria também a um Baselitz aquilo que mais claramente tem a seu favor:

um carácter imediato, que põe quem o contempla em contacto directo com o

gesto físico do artista.

Claro que, por arrastamento, poderíamos redireccionar os valores da arte

decorativa, que incluem frequentemente uma demonstração de perícia e a

intenção de trabalhar para agradar. A importância do gosto colectivo pela

perícia é assunto para o próximo capítulo.

Então, porque é que as pessoas compram tapeçarias de Stella? Desde meados

dos anos 50 que os grandes quadros abstractos têm tido excelente receptividade

por parte de grandes clientes institucionais. Grandes e coloridas, muitas vezes

sem tema definido, são abstracções que ligam bem com outros artefactos

contemporâneos, como as cadeiras Barcelona.

As tapeçarias podem ser mais do que isto: cliente e passantes dão-se conta do

valor monetário de tanta perícia e trabalho manual. Como investimento, as

tapeçarias têm a vantagem de, mesmo que as pessoas detestem o tema, terem

de reconhecer a perícia posta na sua execução. O contabilista da empresa pode

estabelecera preço do que foi comprado em termos de horas, contos, centímetros .

Uma tapeçaria fornece muita materialidade a um mundo materialista.

Melhor ainda é a combinação da rica e virtuosa substancial idade da tapeçaria .

com o facto de provir de um artista conhecido. Assim, as tapeçarias Had

Gadya, de Stella, reali zadas para a PepsiCola, são acompanhadas por um catá­

logo bem concebido , que contém o historiai da Colecção PepsiCola, de Frank

Stella, da Edinburgh Tapestry Company e das ilustrações para as tapeçarias.

Stella é apresentado como inovador; os tecelões, com toda a propriedade,

como mestres artesãos. Mas, não vá dar-se o caso de alguém pensar que a obra

de Stella surge da nada, explicam-se os antecedentes históricos do seu tra-,

balho. E-nos dito que a sua série de quadros se baseia no imaginátioconstrutivista

russo e na canção-parábola da Páscoa judaica, Had Gadya. A linhagem dos

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Design de luxo

tecelões de Edimburgo tem as suas raízes mais profundas no estúdio de

William Morris, de Merton Abbey.

As tapeçarias têm outras qualidades, como a durabilidade. Uma tapeçaria

moderna durará, com toda a probabilidade, 500 anos, e pinturas com um déci­

mo desta idade estão já a causar dores de cabeça a muitos restauradores. Tem

ainda vantagens práticas, como a de suavizar a acústica de uma sala.

Mais importante que tudo o resto, são acessórios agradáveis. Na generalidade,

os objectos cuidadosamente realizados podem causar emoção, podem ser

kitsch mas raramente são cínicos, se é que alguma vez o são.

O design de luxo, sobretudo na área da arte e do artesanato, é geralmente con­

servador e não subversivo, circunstância que se deve em parte ao facto deste

tipo de trabalho ser encomendado. Poucas pessoas ou empresas se dispõem a

encomendar obras que ameacem ou subvertam a sua escala de valores.

Existe uma distinção entre o trabalho desnecessário que é executado por ser­

ventes ou por artesãos tradicionais ou quase tradicionais e aquele que é reali­

zado por artesãos-artistas. O tipo de trabalho manual de que os ricos gostam

destina-se a agradar-lhes a eles, não ao artífice. O "artista" ou "designer­

-artífice", que analisaremos no próximo capítulo, é independente de mais para

poder ser considerado como pertencendo à categoria do design de luxo. Os

produtos de fabrico manual comprados pelos ricos são conformistas, conser­

vadores e claramente em sintonia com o capricho do cliente, não resultando

de um impulso de criatividade por parte do artífice. O design de luxo é

conservador porque os membros do clube dos ricos, para além de quererem

parecer diferentes dos pobres, procuram ser vistos como pertencendo ao seu

próprio grupo. Afinal, um dos denominadores comuns da sociedade é o facto

de quase toda a gente querer pertencer a uma classe ou grupo; a função dos

objectos materiais é representar essa pertença.

Objectos de figuração

Alguns dos objectos que adiante veremos são de marcas conhecidas em alguns

países da Europa ou em alguns Estados dos EUA, nos meios das profissões

liberais, dos aspirantes a ricos edos jovens atentos ao design e que a ele aspiram

(e, portanto, a um estatuto). Entre estes objectos de marca contam-se a Mont

Blanc, a Bang & Olufsen, a Bodum, a televisão de bolso Panasonic, a fotoco­

piadora de mão Copy Jack 96 e a máquina de barbear Braun.

O aparecimento, na década de 80, do "design" como actividade na qual partici-

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Design de luxo

par, como co isa a adquirir, acompanhar ou discutir, parece ter paralelo no

interesse que despontou nas décadas de 60 e 70 pelas belas-artes. Nessa altura,

as belas-artes tornaram-se um bem de consumo de massas, por via dos milha­

res de livros, dos milhões de postais e da cobertura agressiva, pedagógica e

impositiva, se bem que contraditó ri a, que as belas-artes receberam nos jornai s

e nas rev istas. Houve mesmo um período no início da década de 70 em que o

slogan era: "Somos todos artistas" . O design ainda não chegou tão longe.

No entanto, surgiu como um sério "objecto" cultural por direito próprio. Hoje

em dia, passa-se com o design o mesmo que com as obras de arte, que encerram

em si a possibi lidade de serem, elas próprias ou outras semelhantes, colocadas

num museu e, portanto, levadas a sério, como exemplo profundo da cultura

contemporânea. Antigamente, os objectos vul gares de uso quotidi ano só rara­

mente acabavam por ir parar a um museu; mas, hoje em dia, desde que a sua

proveniência obedeça aos padrões da moda, há toda uma variedade de objectos

"estilo design" máq uinas de escrever, de barbear, chaleiras eléctricas,

microcomputadores, te lev isões de bolso, canetas que são coleccionados,

ex ibidos, catalogados, classificados e elog iados . O design não é apenas comér­

cio, coisa do aqui e agora: graças à cultura museológica, é também cultura, é

também intemporal, é também clássico a palavra de louvor preferida.

A maioria das pessoas não pod ia, até ao presente, sonhar em possuir objectos

com um tal status.

Senão, vejamos: os museus coleccionam e ex ibem os mesmos produtos que

enchem as pág inas de rev istas de luxo e sobre os quais escrevem os gurus. E,

se estivermos sufi cientemente atentos, podemos comprar exactamente as

mesmas coisas: a projecção feita não só pelos meios de comunicação mas

também pelas entidades oficiais relativamente à chaleira Alessi, à caneta

Mont Blanc, à copiadora de bolso Copy Jack 96 torna cada um destes objectos

numa metáfora de si próprios. Ao comprarmos um, estamos a adquirir uma

fracção de algo com mu ito maiores dimensões a cultura contemporânea

oficial.

Tem-se o privilégio de possuir uma coisa que está presente nos melhores am­

bientes e é co leccionada pela melhor soc iedade. E este privilégio é um bónus

para o facto de o objecto (tal como os acima referidos) ser, ele próprio, bem

feito, bem desenhado e tanto em termos funcionais como estéticos

verdadeiramente bom.

E aqui está outro aspecto que torna estes objectos de fi guração desejáveis. O

consumismo é alimentado, tornado fascinante, pela publicidade. Os estrata­

gemas publicitários e promocionais cri am expectati vas, que, sobretudo anti-

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Design de luxo

gamente, eram geralmente ilusórias . Os objectos reais não conseguiam pre­

encher as expectativas que neles se colocavam, em parte porque elas funcio­

navamcomo "objectos" em si produtos da imaginação que, porconseguinte,

existiam apenas na mente dos consumidores individuais. Por outro lado,

alguns dos produtos do final do século XX estão muito próximos da per­

feição em termos de forma, tacto e modo de funcionamento; e, o que é mais,

preenchem pelo menos as expectativas materiais anunciadas pela public idade.

Não modificam a vida, mas é verdade que, cada vez mais, a fonte de desa­

pontamento não é o produto em si. Até agora, pensava-se que só os ricos

podiam comprar o tipo de coisas que não nos desapontam. Como já se disse,

um dos crescentes êx itos da tecnologia é proporcionar uma democratização

da excelência.

A qualidade do design beneficiou e continua a beneficiar desta interessante

aura cultural. Investe-se muito talento na produção de objectos de todo o tipo,

mesmo os mais "vulgares", que não só são bem desenhados, mas também

bonitos. Entre eles contam-se talheres, puxadores de portas, máquinas de

escrever, relógios e canetas. O facto de haver quem os coleccione, quem sobre

eles escreva, de serem objecto de debate, analisados em pOl menor, bem como

o facto de se reconhecer existir uma iconografia do design, um vocabulário,

deu seriedade ao assunto e ao fabrico em série. Estas qualidades diferem, na

escala e na profundidade de investigação, de tudo o que antes ex istiu, incluindo

a Bauhaus.

O cepticismo, é claro, abunda. No final de 1987, a revista norte-americana Spy

publicou um artigo sobre design, a que chamou Yuppy Porn. A introdução

diz quase tudo:

, , , E compacto. E sintético. E muito discreto. , E duro, mas pode ter o toque da borracha. , E preto ou branco ou cinzento ou prateado.

Foi desenhado por alemães ou italianos, ou por pessoas que gostavam

de ser alemãs ou italianas. , E provavelmente electrónico, talvez digital.

Não ex istia quando éramos crianças.

A sua qualidade é elevada mais elevada do que o necessário.

Não é uma necess idade. Precisa de ser exp li cado.

Não foi barato.

Sentimo-nos um pouco tolos e entusiamados quando o comprámos.

Sentimo-nos um pouco culpados, mas orgulhosos de o exibirmos.

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Design de Luxo

o artigo sustenta (e quem o negaria!) que estes objectos são usados como

emblemas para afirmar o estatuto dos seus proprietários. São também sinais de

pertença.

Podemos ser levados, por uma questão de rivalidade ou inveja, a querer

competir com os nossos amigos, comprando objectos de design de luxo; mas

querer ser associado a determinado grupo é perfeitamente compreensível e

funciona, num certo sentido, como reverso da rivalidade.

Existe também uma outra particularidade: na medida em que a publicidade é

o conto de fadas dos adultos, há qualquer coisa de desestabilizador na noção

de tornar reais os bonecos dos anúncios esses objectos lindos e de os

fazer passar do papel ou do écran para as nossas mãos. A fantas ia e o objecto

real tornam-se um só. Mas pode ainda ser pior que isso. A maior parte dos

objectos acima referidos não encerra qualquer componente de necessidade;

são concebidos não para servir, mas para provocar excitação. São, e les

próprios, objectos da fantas ia. E assim, a sua criação, promoção, aquisição e ,

louvor tornam-se um estranho exercício de estimulação e satisfação. E aqui

que pode aplicar-se a metáfora da "pornografia".

Mas relacionar o design de luxo e a decoração Uá que estas são a versão

moderna de uma arte aplicada) com a pornografia parece ser um pouco

excessivo. A pornografia será uma actividade privada, introvertida o seu

vocabulário poderá ser partilhado, mas os seus objectivos são furtivos. O

mundo da pornografia não parece deixar margem para "cortesia", "espírito" ou

"encanto", conceitos que trazem implícito no seu significado noções de

"partilha" e "comunidade" . O des ign base ia-se no acto de partilhar: é uma

actividade colectiva, como o são os seus objectivos; não procura a sati sfação

furt iva do indivíduo, mas o gozo público de muitos indivíduos.

Na Europa, designers como George Sowden (GBlltáli a) e Matteo Thun ,

(Austrialltália) estão empenhados numa abordagem de des ign que está na mo-

da, é actual e mesmo yuppy, mas que é também exaltante e bem-humorada -

é um design bem-intencionado. Nenhum de les acredita na abordagem ortodoxa

do design de produto, orientada por estudos de mercado. Thun e Sowden não

desenham de acordo com os conceitos dos vendedores . Ambos troçam, ainda

que suavemente, da abordagem dos alemães, eficiente, redutora e totalmente

condicionada pelo mercado. Distanciam-se da estética quase bauhausiana que

se diz caracterizar a Braun. Com efeito, Thun chega ao ponto de negar ser

um designer de produto: "Sou um arqu itecto. Não sou um designer industrial

ou de produto conforme ao modelo alemão. As abordagens são muito diferentes.

Não se trata de ser ' melhor ', mas é como se estivéssemos a comparar vinho a

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3eorge Sowden desenhou esta máquina de café em aço inoxidável poro a Bodum, em J 987. Sowden exploro métodos de produção avançados poro :onseguir designs decorativos o preço razoóvel. O raio de ocção do artesõo continuo o reslr ingir-$e,

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Design de luxo

Coca-Cola". O objectivo de Thun é fazer com que o seu trabalho promova ou

apoie o "bem-estar", enquanto George Sowden pretende retirar a violência do

âmbito do designo "Quero objectos que me façam sentir feli z, em segurança.

Nos anos 70, o design de produto era cheio de violência ... até os telefones

pareciam prestes a acelerar como o Concorde".

Sowden, tal como Thun, formou -se em arquitectura. Na sua sociedade de

design com Nathalie du Pasquier retira uma enorme satisfação da universa­

lidade do seu trabalho desenhou sapatos, tapetes, relógios, mobiliário e

teclados para computador. O seu trabalho para a Bodum é particularmente

interessante, porque se serve de tecnologia avançada para imitar o trabalho

artesanal. A cafeteira, as fruteiras e os suportes para copos que Sowden

desenhou para a Bodum são feitos de aço inoxidável. O metal é perfurado e

cortado em plano, utilizando um scanner para ler o desenho e um laser para

realizar a decoração perfurada. A gama de decorações possíveis é enorme e é

económico produzir umas quantas peças com um padrão e outras tantas de

outro. Diz Sowden: "Faz-se à máquina algo que até há pouco tempo só podia

ser feito através de técnicas de artesanato. O que significa que falar de uma

estética da máquina deixou de fazer sentido". Além disso, baralha o conceito

de estética do artesanato. Contudo, o polimento destes produtos Bodum é feito

14 manualmente e é o componente mais dispensioso do processo.

A parte mais rica da estética de Sowden reside na decoração que usa paraembe­

lezar a superfície ou nela penetrar.

Matteo Thun procura comunicar através da forma e não de um padrão. Pegando

no bule que desenhara, Thun disse: "Repare. Aqui, a pega é uma varanda. A

tampaé o telhado, a baseéa cave. O primeiro andar está aqui". E, seguidamente,

pegando num tabuleiro: "A pega é como uma ponte. Uma ponte permite-nos

andar entre dois pontos. Debruçallllo-nos. Olhar."

Tanto Thun como Sowden tentaram fazer a síntese entre a perfeição possível

conseguida através do uso da máquinae a intervenção potencialmente anárquica

do artista, designer ou artífice. Procuraram uma estética de design que se pre­

tende reconfortante, não subversiva, criando, em quem o aprecia, uma sensação

de segurança e bem-estar. Esta estética tem um charme di screto e reflecte as

aparências quotidianas da vida contemporânea; adopta as marcas superficiais

dos materiais modernos, das paisagens urbanas e da tecnologia electrónica,

tornando-as numa decoração abstracta e não nostálgica.

O design suave, aliado aos antecedentes cul turais do design e do fabrico de

alta qualidade, atinge tipos sucess ivos de objectos. A fábrica alemã FSB, que

produz maçanetas de portas, empregou vários arquitectos e designers europeus

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Design de luxo

I

. A fábrica alemã FSB organizou um concurso, convidando alguns dos mais famosos arquitectos e designers do /35

Mundo o produzir uma linho de maçanetas poro portos. As do fotografia SÕO de Hons Hol1ein (Áustria).

de renome para revitalizar a sua gama. Alessandro Mendini, Dieter Rams,

Mario Botta e Hans Hollein são alguns deles. Dos Estados Unidos, trouxe Peter

Eisenman e, do Japão, Shoji Hayashiu e Arata Isokazi. Estes e outros foram

reunidos em 1986 num seminário para debater com a FSB a filosofia do design

e a respectiva aplicação a maçanetas de portas.

Quando chegou a altura de lançar as gamas do produto, a FSB editou um

livro-catálogo que documenta o seminário. Esta publicação, chamada "Door

Handles - Workshop in Brakel", traça uma panorâmica das bases inte lectuais

e culturais da sua produção, que eleva a modesta maçaneta ao nível de um ,

objecto cultural plenamente idealizado. E um esquema fascinante e com

muitas vertentes: associa personalidades importantes e de alto nível cultural,

o que é bom marketing; dá uma imagem de seriedade à forma como a em­

presa encara o design, o que é igualmente bom marketing; tem uma base sólida,

porque os designs, com toda a probabilidade, são de facto bons. A FSB existe

para ganhar dinheiro, mas fá-lo através de bons produtos. Além disso, faz sen­

tido considerar-se que a atenção di spensada aos pOllllenores físicos e mate-

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Design de luxo

riais contribui para fazer com que as pessoas se sintam melhor. As maçanetas

bonitas ficam assim justificadas.

O nosso exemplo, com pessoas a discutirem os méritos de maçanetas, não

deixa de ser engraçado. Além de que o catálogo contém exemplos perfeitos

de estereótipos nacionais: Dieter Rams, alemão muito lógico, vê o processo

de design em tellllOS de um triângulo equilátero; o designer italiano Mendini,

por seu lado, considera-o labiríntico, enquanto o norte-americano Peter

Eisenman fala com fervor de experiências "verdadeiras" e "autênticas".

Outro exemplo diz respeito ao fabricante alemão de cerâmicas, Rosenthal, que

encomendou trabalhos à ceramista e designer têxtil norte-americana Dorothy

Hafner. Esta goza de sólida reputação no mundo do artesanato dos EUA e

trabalhou para a Tiffany and Co. Como George Sowden, tem especial talen­

to para a decoração de superfícies.

O envolvimento cultural que costuma acompanhar um trabalho de talento

como o seu é interessante. Em 1987, uma exposição itinerante organizada pelo

museu Het Kruithuis, dos Países Baixos, apresentou obras suas e um crítico

norte-americano, John Perrault, escreveu um ensaio que é um bom exemplo

de como a "alta cultura" está desejosa de se tornar uma forma de marketing.

Já falámos do catálogo Porsche, com a sua utilização de assuntos filosóficos ,

136 e políticos aplicados como decalques para conferir decoração conceptual aos

-, " "

produtos, e vimos também o caso do seminário da FSB. Em Inglaterra, a

agência de publicidade de grande êxito Saatchi and Saatchi já prefaciou os

seus relatórios anuais com ensaios eruditos de apoio ao elevado valor moral da

publicidade enquanto actividade 6. Um desses ensaios foi buscar inspiração

a excertos do "King Leal''' , de Shakespeare. Mas neste ensaio de John Perrault

as referências culturais são ainda mais transparentes. Por exemplo, em relação

ao trabalho de Hafner, Perrault não coloca uma questão intelectual; lança sim

um desafio de publicitário: "Qual é melhor como arte? Um grande quadro

destinado a ser encerrado num grande museu citadino, onde só pode ser visto

a certas horas e depois do visitante ter comprado um bilhete? Ou a loiça com

que estamos em contacto diário? O prato , a chávena e o pires, a travessa em

que podemos tocar, usar para além de olhar?".

Neste contexto, claro que sabemos qual será a resposta. Dêem-nos o serviço de

loiça! Tudo aquilo de que o "ensaio" necessitava para ganhar cariz publi­

citário era uma frase do tipo daquelas a que os leitores britânicos e norte­

-americanos estão habituados, e que os incita vivamente a comunicarem o

número do seu cartão de crédito: "Sim, mandem-me já o meu serviço de

jantar exclusivo de Hafner!!!".

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Design de luxo

o carácter genéri co, fraqueza do ensaio de Perrault, é também o seu ponto

forte. Porque não nos detemos sobre a expressão " um grande quadro",

tentando imaginar qual dos muitos grandes quadros deveríamos estar a

considerar. Um trabalho de Jackson Pollock? De Gustav Courbet, Titiano ou

Balthus? Serão todos os grandes quadros de valor e conteúdo equivalentes?

Admirável como é o trabalho de Hafner, é provável que ela fosse a primeira

a dizer que não hesitaria na escolha entre os seus pratos e, digamos, um

Courbet. Suponho que Perraultse referia apenas aos grandes quadros modernos,

muitos deles com tanto significado como um serviço de loiça. Perrault preten­

de que a sua argumentação gire em torno do conceito de propriedade. E é o

conceito de propriedade individual que caracteriza o consumismo e o designo

A propriedade tornou-se um valor e um fim em si mesma. Em termos consu­

mistas, é extraordinariamente importante poder-se manusear, tocar, acariciar ,

e contemplar qualquer coisa que seja nossa. E uma característica necessária

do design de consumo e não da verdadeira arte. Não interessa minimamente se

somos donos do Vermeer para que estamos a olhar ou do retábulo de altar

feito pelo alemão Tilman Riemenschneider. O nosso relacionamento imagina­

tivo com a obra ou o nosso entendimento do seu conteúdo espiritual ou em­

pírico não é afectado pelo facto de sermos, ou não, seu proprietário. .

O design, no entanto, tem outra intenção e comerciali zação. Destina-se a ser

vendido e consumido individualmente . Acontece que uma das tácticas do

marketing moderno consiste em tentar elevar tais objectos ao nível de arte,

comparando-os a ela e, claro, como já referimos, convertendo-os em divisa

forte da cultura através da sua exposição em museus.

A acreditar no argumento de Perrault (e ele não está só), para fazer com que a estratégia funcione, é prec iso fingir que não há hierarquias na arte. Se somos

capazes de afi, mar que a escolha não se faz entre o sério e o banal, mas entre

a "arte" que está nos museus e a "arte" que está em casa, estamos a dar a ideia

de que um prato é equivalente a qualquer outra obra artística. Uma tal equiva­

lência, a pretensa democracia de objectos "de arte", é uma estratégia útil para

comerciali zar o design como design de luxo.

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-VALORIZAR A PRODUÇAO MANUAL

Artesanato de ate ier e significado do seu esti o

Um dos argumentos do capítulo anterior era que a expressão "feito à mão" era

poderosa porque implica uma relação de poder entre o comprador e o exe­

cutante. Esta relação é tradicional; é antiquíssima e nela o cliente exprime a

sua superioridade financeira (e "moral") sobre outrem, exercendo a sua

capacidade de comprar trabalho desnecessário. Outro argumento, não con­

traditório e contemporizador, refere-se à capacidade dos artesãos trabalharem

em equipa com um artista ou um designer-chefe, colocando o projecto do

grupo acima da sua própria expressão criativa, entusiástica e livremente.

Mas o tema deste capítulo é diferente. Nele abordaremos a inserção soc ial de

outro tipo de artesãos, cuja actividade, apesar de aparentemente tradicional, é

de facto uma invenção do século XX. Trata-se do trabalho desenvolvido pelo

artista ou designer-artesão de classe média, também chamado artesão de

atelier. O ponto de partida é a reali zação da criatividade e da expressão pessoal

do artesão, que, acima de tudo, segue os seus próprios designs e não os do

cliente, ou de outro artista ou designer.

O debate central faz-se em redor do fabricante individual e não do cliente.

Apesar disso, o papel do consumidor destas peças de artesanato de atelier

não deixa de ter importância e interesse.

A actividade artesanal é intrigante. Em certa medida é artificial, mas há a

realçar, como aspecto pos itivo, o facto de proporcionar uma alternativa esté­

tica ao design industrial e apresentar uma nova perspectiva num Mundo

por vezes excessivamente povoado pelas "realidades" do cepticismo deste

final de século. O artesanato é uma entre várias estratégias populares, que

permite aos homenS e mulheres inteligentes voltarem costas ao cepticismo e

enveredarem por caminhos de esperança.

O capítulo começa por uma breve descrição do trabalho e das ideias do

professor DavidPye. Os valores de que ele fala nos seus livros e que demonstra

no seu trabalho de marcenaria (nos torneados e entalhes) são fundamen ­

tai s para a ideologia da principal corrente do artesanato moderno. Além disso,

as suas ideias são de grande utilidade porque abrangem quero artesanato, quer

___ o

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-• -•

Valarizar a Produçãa Manual

o design industrial. Segue-se uma panorâmica geral do artesanato de atelier.

Apresento em seguida a minha teoriade que o artesanato contemporâneo é uma

invenção do século XX, debatendo o papel positivo daquilo a que chamei

"artesanato conservador". O papel do artesanato enquanto conjunto de esté­

tica alternativa encerra o capítulo.

David Pye ------_ ... , As vezes, trago comigo uma pequena caixa redonda de madeira. Cabe à von-

, tade no-eel,se. E uma bonita peça de artesanato, feita à mão, uma bela mani-

festação de inteligência na execução que encanta muita gente. A tampa tem um

padrão de estrias bem marcadas que reflectem a luz, ao abrir-se a caixa. O

rebordo da tampa tem pequenas pérolas esculpidas, que se destacam nitida­

mente da superfície; a sua fOI ma é perfe ita, não se alterando sequer no ponto

de contacto com a base da tampa.

O impecável encaixe da tampa transmite uma agradável sensação quando

a separamos do resto da caixa. O interior desta é liso, escuro e bem acabado;

o exterior tem uma suavidade que lhe é dada pelo efeito da luz em parte

reflectida e em parte absorvida sobre o pau-rosa delicadamente aceti­

nado, com tons de avelã e um toque de lilás.

A caixa é minúscula e tem pouca utilidade prática, salvo para guardar objectos

mínimos, mas é uma lição sobre as possibilidades de tratamento de superfícies

e um testemunho do alto valor da habilidade humana.

As manifestações de virtuosismo têm grande valor em si mesmas. Não preci­

samos de justificar ou tentar explicar o nosso enlevo ao escutallllOS um

brilhante violinista; do mesmo modo, a evidência física de como a mente, os

olhos e as mãos de alguém produziram, contra todas as dificuldades, um

trabalho de grande qualidade pode transmitir-nos um grande prazer. Aquilo

que admiramos é a capacidade de criar beleza no limite do risco. A essência de

trabalhar o risco está na emoção de evitar o fracasso.

Foi David Pye quem fez esta caixa. Pye nasceu em 1914. Formou-se em arqui­

tectura na Architectural Association de Londres e, até se alistar na Marinha,

durante a Segunda Guerra Mundial, especializou-se em projectos de edifícios

de madeira. Depois da guerra, foi convidado a ensinar na Escola de Design de

Mobiliário do Royal College of Art, onde passou a ser professor de Design de

Mobiliário, em 1963. Reforlllou-se em 1974. Em 1968, publicou "The Nature

andArt ofWorkmanship" e, em 1978, "The Nature andAesthetics ofDesign" _

,

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Valarizar a Produção Manual

David Pye, escritor, designer e artesão, é famoso pelo extroOldinôrio qoolidodedos suoscoixos esculpidos em madeiro.

iVleslre do superfície de madeiro, constatou que o conhecimento que os pessoas têm dos superfícies se encontro

otrofiodo pelo hábito de recorrerem o fotogrofias, em vez de efectuorem um reconhecimento empírico.

Há quatro áreas em que a influência de Pye, enquanto artesão, escritor e

professor, se revela frutuosa: sistematizou as noções de habilidade e as reais

diferenças e não as supostamente existentes entre o processo de fabrico

em série e a produção exclusiva ou limitada. Questionou, a nível prático e

filosófico, os conceitos de função e utilidade. Chamou a atenção para a

importância da superfície e de diversas superfícies em particular. Não deixou

que as suas ideias, nem as dos seus estudantes, se transviassem da trilogia que,

necessariamente, molda o design a saber, as propriedades científicas do

material, os conhecimentos do artesão e as qualidades que procuramos para

alcançallllos a civilização.

Mas se, para além das suas caixas e taças esculpidas, David Pye fosse recor­

dado por uma única coisa, essa seria sem dúvida a sua afirmação de que ex iste

uma distinção entre o trabalho do risco e o trabalho da certeza.

Vejamos, como exemplo, o acto de escrever com uma caneta. Corre-se sempre

o risco de borrar o papel ou de que a mão escorregue enquanto se escreve -

é o trabalho do risco. Do mesmo modo, quando apreciamos um violinista e nos

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~_. ' i

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Valorizar a Produção Manual

maravilhamos com a sua destreza, admiramos também a coragem de enfrentar

a possibilidade de fracassar. Com o trabalho da certeza, porém, depois de mon­

tado o processo de produção, os resultados são prev isíveis: se "x", logo,

necessariamente, "y".

Não obstante, fri sa Pye, existe no trabalhar a certeza uma certa dose de

risco os dispositivos e as máquinas (e agora o software de computador) que

proporcionam a certeza foram, também eles, produzidos através de diferentes

graus de tentativa e erro. Inversamente, a maioria do pessoal que confia na

relação que existe entre as mãos e o cérebro seja a fabricar mobiliário, potes

de barro ou painéis de carroçaria para um sofisticado carro de desporto -, inventa toda uma série de máquinas para lhes limitar o risco.

A utilidade comercial de trabalhar o risco está constantemente a ser reduzida

em indústrias evoluídas, à medida que os fabri cantes procuram mais sofis­

ticação para reduzir os fracassos. Mesmo assim, em projectos únicos e de

grandes dimensões, como a construção de centrais nucleares, trabalhar o

risco é muito valioso, porque grande parte do trabalho é novidade o design

ex iste, mas passá-lo à prática pela primeira vez requer a resolução de problemas.

Muito haverá que não foi previsto pelos engenheiros.

Ao estabelecer-se a di stinção risco/certeza, a subtileza está em desmontar a

falsa oposição mão/máquina constata-se então que usar ou não usar a

máquina é um mero pormenor. A característica fundamental que distingue

um tipo de trabalho do outro é o ponto da manufactura em que opera a

escolha criativa.

Pye destrói as opiniões vigentes. No seu livro "The Nature and Aesthetics of

Design" evidencia uma grave contradição contida na ideia de que "a função

determina a fo rma" (ideia feita que continua a ter muitos seguidores) . Faz ver

que o designer tem mais liberdade relativamente à forma do que à função,

subvertendo o único princípio moderni sta que se mantinha inviolável.

Argumenta ele que a capacidade dos dispositivos para trabalharem e produ­

zirem resultados depende menos da sua fo rma do que se pensa (mesmo num

par de esferas de rolamento "idênticas" há diferenças entre elas; além disso,

não são esféricas) e todos os nossos dispositivos têm tendência para funcionar

de modos que não são os desejados (os pneus dos automóveis gastam-se, os

tampos das mesas riscam-se, as facas perdem o fio, os aviões caem).

O debate sobre design, de tão repetido , tornou-se análogo à crítica literári a;

perguntamo-nos "o que querd izerdesign?" e não "o que faz?". E, concentrando­

-nos no significado, perdemo-nos num mar de palavras; o objecto real é esque­

cido, escapando a uma verdadeira análi se de aspectos como a durabilidade, as

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Valorizar a Produção Manual

sensações transmitidas, ou mesmo a segurança. A "finalidade" é concebida

pela mente humana, os "resultados" existem nas coisas. Pye diz que é prefe­

rível estabelecer uma prática de design baseada em resultados a adoptar uma

teoria assente em intenções.

Meio a brincar, Pye acha que passamos muito tempo a embelezar certas

coisas para compensar o facto de elas não funcionarem suficientemente bem. , E efectivamente só uma meia brincadeira, porque defende a seguir: "Dizer de

um des ign 'funciona!' não é mais meritório nem desprimoroso do que dizer

que determinado indivíduo nunca aldrabou ninguém". Em termos funcionais,

todos as improvisações funcionam, acabando por "desenrascar", mas o que ele

pretende de facto alcançar é um mundo em que as superfícies que trabalha­

mos revelem perícia e sejam imaginativamente civilizadas.

As superfícies são tudo para Pye, porque é na realidade o que podemos ver e

tocar. Em "The Nalure and Arl ofWorkmanship" ,diz: "A extrema pobreza de

nomes para designar as qualidades das superfícies tem, provavelmente, tido

o efeito de impedir uma compreensão generali zada de que elas existem como

domínio independente e completo, quer a nível da experiência estética, quer

de terceiro estado por direito próprio".

Pye diz que aquilo que pretendemos de uma superfície não é a expressão das

propriedades do material, mas as qualidades. As propriedades - continua -

estão lá e são imutáveis; as qualidades são subjectivas e encontram-se na

nossa mente. Podemos testar esta afillIlação muito rapidamente: ao dizer­

mos do carvalho velho polido que é quente, agradável e intemporal não

estamos a referir propriedades; trata-se de qualidades projectadas por nós (o

facto de existir uma relação causa-efeito comum a um grande número de

pessoas face a um pedaço de carvalho é assunto que merece ser analisado à

parte). A resistência à tracção ou a combustibilidade de um pedaço de madeira

são propriedades. Com efeito, a argumentação de Pye precisa aqui de ser

qualificada: os designers e os engenheiros esforçam-se de certo modo por

expressar determinados tipos de propriedades - uma barra de aço pode ser

feita de modo a desempenhar a sua função como componente de uma

construção e, simultaneamente, ao desempenhá-la, exprimir a sua flex ibilidade.

Seja como for, o artesão, ao trabalhar uma superfície, é em certo sentido um

artista: deixa a sua marca subjectiva no modo como decidiu tratar a superfície.

Um artesão deve também ser "cientista", além de artista. O que nos remete de

novo para o trabalho do próprio Pye enquanto artesão. Para se produzirem as

melhores superfícies e desempenhos, é preciso conhecer a fundo o material

com que se trabalha: o que é e como se comporta. Não se pode fazer, como

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Valorizar a Produção Manual

muitos designers e arquitectos, como se se estivesse a olhar o Mundo do alto,

especificando o que é ideal. Veja-se a profundidade dos conhecimentos de Pye

em relação à madeira neste pequeno extracto de um artigo escrito para a revista

era/ts, em Janeiro de 1981. Nesse artigo, Pye fala do estado de atrofia a que

chegou o conhecimento das pessoas relativamente à superfície, devido a

recon'erem a fotografias em vez de observarem directamente o objecto em si.

Fala, seguidamente, da maneira de preparar a superfície da madeira para o poli­

mento: "Todas as madeiras de folhosas têm canais de seiva ou poros, que são

tubos ocos que percorrem a árvore de alto a baixo. Se se aparelhar um cilindro

de madeira com esses canais dispostos paralelamente ao torno mecânico, os

poros ficarão expostos, aparecendo como pequenos sulcos, geralmente curtos.

Mas se, sobre esse cilindro, actuar uma raspadeira, assente horizontalmente

sobre um suporte em T, a sua extremidade, sendo paralela à maior parte dos

sulcos, prende em cada um deles à medida que estes rodam, retirando lascas

microscópicas da sua superfície".

o percurso do artesão

o trabalho de David Pye contém elementos do designer e do artesão. As suas

taças e caixas são f 011 nas fáceis de compreender, não apresentando qualquer

das complexidades com que alguns tipos de arte contemporânea desafiam o

entendimento;.Ele representa o design e não a arte aplicada ao artesanato. , E que, em tennos gerais, o mundo do artesanato contemporâneo divide-se

entre as pessoas que fazem objectos que podetn ser utilizados, ou que parecem

poder ser· utilizados, e as que produzem objectos que são manifestamente não

utilizáveis e que têm ambições de serem levados a sério como peças de arte.

Trata-se de uma distinção bastante imprecisa, porque mesmo em relação à

função pode haver um compromisso.

Por exemplo, os entusiastas do artesanato podem apreciar uma'função fracas­

sada. Uma famosa ceramista nOIte-americana, Betty Woodman, produziu

umas chávenas gràndes, lindas e abauladas. Sendo um prazer segurá-Ias com

ambas as mãos, tiveram grande êxito; mas eram terrivelmente ' instáveis

quando assentes nos pires. Nunca isso teve a menor importância. Um com­

prador declarou mesmo que essa falha das chávenas o tornava mais cuidadoso;

obrigava-o a fazer uma pausa e a pensar sobre o acto de beber o chá, tornando­

-o uma espécie de ritual. Porém, importa reconhecer que, apesar de grande

parte do artesanato ter a função num lugar bastante mais baixo na sua lista de

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Valorizar a Produção Manual

prioridades do que seria admissível no design, persiste em grande número

de ceramistas, tecelões e fabricantes de mobiliário a noção de que um bom

serviço ao cliente passa por um objecto ser capaz de bons desempenhos.

O mundo do artesanato divide-se entre os que têm uma ideologia conserva­

dora, dos quais Pye é um bom exemplo, e os que procuram uma vanguarda

das artes decorativas frequentemente baseada numa negação não só da função

mas também da primazia da habilidade. Assistimos, na década de 80, a um

acentuado crescimento da categoria dos arte factos não utilizáveis uma

proliferação de objectos que tendem para a pintura ou para a escultura.

Se bem que não gostassem de o ouvir~Bernard Leach e Michael Cardew são

um pouco os pais do crescimento verificado nos objectos de artesanato de arte.

Isto porque, desde o momento em que as pessoas se dispuseram a comprar

potes feitos à mão, não porque fossem baratos e úteis, mas porque gostavam

da sua aparência, surgiu uma tendência que permitia que os objectos de

artesanato se vendessem apenas pelo mérito da sua estética. E depois de

iniciado este processo, era (e ainda é) pouco claro onde se deve parar. Depois

de ter sido posta de parte a função como critério determinante, o artesão entra

por um caminho peculiar, em que não há regras: se um objecto já não tiver que

conter sopa, que suportar uma pessoa sentada ou que aquecer, porque não dar-.

-lhe uma fOllna qualquer, segundo a fantasia do seu criador?

Vejamos, por exemplo, o caso dos Estados Unidos. Existe neste país um dos

melhores artesanatos do Mundo e o artesão tradicional ou, melhor dito,

quase tradicional - nos EUA é uma figura prestigiada. Paralelamente, existe

uma significativa e crescente indústria <lê artesanato, quase todo abstracto

ou não figurativo, todo ele não funcional. O desenvolvimento deste fenómeno

nos Estados Unidos não é surpreendente, porque tem raízes numa invenção

peculiarmente americana: o expressionismo abstracto ' .

. Claro que o artesão, sobretudo o formado em escolas de arte, estava fadado a

fascinar-se pela evolução deste tipo de pintura mais ainda do que com a

pintura eUl·opeia abstracta dos anos 20 e 30, de características mais formais -

dev ido à presença do gesto, da marca da mão e do braço. A marca da mão é um

elemento muito importante no artesanato do século XX, como veremos

adiante. Os artesãos, ao olharem para a pintura moderna, aperceberam-se de

que a pintura não estava já a desempenhar nenhuma função particular,

limitando-se a estar presente. Quando reflectiram sobre o papel do trabalho de

artesanato, descobriram que, retirando a uma peça a sua função, o que resta é ...

uma coisa: "coisa" no mesmo sentido em que um Jackson Pollock é uma

"coisa" e, para todos os efeitos, sem muito conteúdo.

OSDM- l0

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....

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• I

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Valorizar a Produção Manual

,

Poucos materiais sõo tõo maleáveis como o borro; poucos permitem ao artista imortaljzar instantaneamente o gesto

de um momento em três dimensões. Este exemplo de cerõmico gestual é um traba lho de Irene Vonck !Países Baixosl.

Depois, como viram os artesãos, o que dá conteúdo a um Pollock ou a um

Kline é o gesto e a "expressividade" naturalmente, o artesão pensou: "Isso

posso eu fazer". O expressionismo possibilitou vários tipos de abstracções -, formalismos em que a textura, a cor, a fOllna e as linhas são elementos

fundamentais. De facto, era bastante próximo do que se passa com um arranjo

de flores.

Como não podia deixar de ser, muita gente envolvida em actividades artesanais

enveredou por esse caminho. Por exemplo, a ceramista holandesa lrene Vonck

faz recipientes a partir de rolos de barro. Não se trata de uma actividade que

requeira muita habilidade, apesar dos resultados serem extremamente atra­

entes para o meu gosto. Toscos e espontâneos, são um "pastiche" : à primeira

vista pensamos que foram ricamente embelezados pela modelação; olhando

mais atentamente, podemos ver os sulcos ondulados que as mãos da autora

produziram ao penetrarem no barro húmido e repuxando-o.

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Valorizar a Produçao Manual

Libertação face ao mercado

o final do século XX oferece ao artesão um ambiente económico especial para

trabalhar. O artesanato da cerâmica, da tecelagem ou da marcenaria da nossa

época é feito em condições diferentes das de outros tempos. Deixaram de ser

misteres, mudaram de categoria. Já não são executados pelas classes trabalha­

doras, pe los artesãos tradicionais e tornaram-se numa actividade criativa, ,

aparentada com a arte, realizada pela classe média. E aparentada com a arte,

no sentido em que os objectos produzidos são feitos e comprados sobretudo

para fins contemplativos . Além di sso, o sofrimento fís ico e moral que parece

ter feito parte, mesmo que só até certo ponto, da actividade do mister foi substi­

tuído pela liberdade criativa.

A libertação do sofrimento é uma das características que distingue a moderna

sociedade civilizada; pellllite uma cri atividade muito maior e é o fundamento

do prazer. As palavras de Elaine Scarry em "The Body in Pain", sobre o sofri­

mento no trabalho , são relevantes para o modo como vemos o trabalho do

artesão (ver capítulo 4, págs. 84 a 88).

Scarry de fende que o sofrimento intenso, como o da tortura, é destrutivo: à

medida que a dor aumenta, a nossa capacidade de pensar noutra coisa vai desa­

parecendo. "O sinal, contínuo e sintomático, de que o corpo sofre, simul­

taneamente tão vazio, indiferenciado e cheio de gritante advers idade, contém

não só a sensação de que 'o meu corpo dói' mas também ade que 'o meu corpo

está a magoar-me''',

A dor repetitiva, como a que é induzida por certos tipos de trabalho ou

doenças, reduz sem dúvida o nosso mundo, já porque apresenta uma barreira

entre nós e o Mundo, já porque vira o corpo sobre si mesmo sem cessar,

ameaçando constantemente negar-nos o mundo maior das ideias e dos prazeres.

Também o trabalho é uma espéc ie de sofrimento. Há-o de vários tipos, e o pior,

muito próximo da verdadeira tortura, é descrito por Karl Marx n' O Capita/ 2 ,

que documenta a rotina de uma mulher que, com 24 anos, fazia doi s mil

tijolos por dia. Era ajudada por duas crianças que transportavam dez toneladas

de barro, em viagens que se repetiam ao longo do dia; trepavam, por uma

vereda a pique, dez penosos metros, subindo pelas paredes molhadas do

barreiro e percorrendo ainda uma di stância de 35 metros. Um suplício.

A industrialização tornou provavelmente menos dolorosos determinados

tipos de trabalho, mas, como sabemos, estes eram e são um fardo para muita

gente. Simone Wei l, fi lósofa francesa cristã, trabalhou em fábricas na década

de 30. Num apelo aos operários que produziam componentes de fogões,

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escreveu: "Se o trabalho vos faz sofrer, gritem-no. Se há alturas em que não

o podem suportar; se por vezes a monotonia do trabalho vos agonia;

se detestam sentir-se obrigados a trabalhar depressa; se odeiam estar sempre

debaixo das ordens dos capatazes, gritem-no".

Mesmo no trabalho criativo, o prazer depende das condições em que ele é

feito. Em "The Nature alld Art 0/ Workmallship", David Pye recorda uma

conversa com um velho carpinteiro que trabalhava ao torno e fabricava

colheres de pau que eram vendidas nas feiras por tuta-e-meia: "Por esse preço,

só dava tempo para, acabada uma colher, dar uma olhadela para aconcha, outra

para o exterior e atirá- Ia, por cima do ombro, para a pilha, e passar à seguinte".

Pye duvida que possa haver prazer em tal trabalho, apesar das colheres serem,

sem dúvida, um regalo para a vista. No entanto, quando lemos a descrição do

trabalho de Pye feita por si próprio, vemos um homem embrenhado no seu ,

trabalho, gozando a minúcia que ele exige. E um prazer lê-la porque o trabalho

que descreve está isento de stress, salvo o relativo à concentração, necessária

em todo o trabalho do risco.

Quando um processo de trabalho se torna comercialmente redundante, desperta

novo interesse naqueles para quem os aspectos comerc iais não são importantes.

Na Europa dos anos 20, houve um renovado interesse pela tecelagem, a tingi­

dura e a olaria manuais. Este interesse, manifestado pelas pessoas da classe

média, verificou-se numa altura em que estas artes tinham quase desapareci­

do e a produção de panos e potes tinha passado a ser feita mecanicamente.

Na sua autobiografia "A Piolleer Potter" (publicada postumamente, em

1988), Michael Cardew explica que, quando em 1926, adquiriu a olaria

Willchcombe, em Inglaterra, era ainda possível produzir rendivelmente as

linhas básicas, como os alguidares e os vasos para flores de grandes dimensões.

Mas Cardew enfrentava a concorrência do comércio organizado. Os alguidares

tornaram-se menos populares, presumivelmente porque as fábricas podiam

fornecer alguidares metálicos mais baratos (com a vantagem acresc ida de se­

rem mais leves e resistentes do que os de cerâmica). Quanto aos vasos maiores,

constatou que também estes não podiam ser produzidos de forma com­

petitiva as fábricas faziam-nos mais baratos. Mas Cardew descobriu que a

produção de um objecto intermédio (entre o prático e a arte) era viável. Nasceu

assim uma gama de frascos decorados de grande utilidade, que se venderam

bem durante algum tempo não havia ninguém a competir neste campo.

Cardew, no entanto, não tinha deixado a Universidade de Oxford, nem largado

a sua vida académica e musical (era um apaixonado de Mozart) para ganhar a

vida como oleiro. Não lhe interessava a olaria como um negócio em si se

assim fosse, teria deitado mãos à obra para industrializar os processos. O que

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Valorizar a Produção Manual

ele queria fazer (apesar de não existir um mercado para o produto) eram gran­

des botelhas de barro para cidra. Levou esse projecto por diante e fez algumas.

Apresentou doze das melhores a que tinha atribuído preços por ele consi­

derados muito inflacionados ,na expos ição anual da recém-formada (1931)

National Society of Painters, Sculptors, Engravers and Potters (Sociedade

Nacional de Pintores, Escultores, Gravadores e Ceramistas) . A maior parte

vendeu-se no primeiro dia. Um triunfo e, também, uma libertação.

A libertação reportava-se às restrições da concorrência comercial. Os objectos

que são vendidos pelo seu valor estético não estão sujeitos à concorrência dos

preços. Este facto, só por si, tem implicações na natureza do processo de

trabalho. Retirarmos um produto do mundo da concorrência dos preços afasta­

-nos da alienação ilustrada por David Pye com o exemplo do fabricante de ,

colheres. E também facto r integrante de mais liberdade e autonomia no proces-

so de trabalho, libertando-lhe assim parte da sua carga de sofrimento. Se puder­

mos vender algumas coisas pelo seu mérito intrínseco, independentemente dos

que outros produtores estão a fazer, podemos então ter tempo para fazer o

produto como queremos . Mas; na-concorrência comercial, a economia com­

petitiva é como uma máquina, sendo ela, e não nós, que dita as leis.

Daí que um processo de trabalho só se torne interessante para um praticante da

classe média quando o elemento concorrencial desaparece; quando as res­

trições comerciais e económicas do preço e da eficiência produtiva são

fundamentais, a margem de manobra da autonomia, da livre escolha e da

criatividade vêem-se muito reduzidas.

Podemos resumir esta posição do seguinte modo:

O artesanato contemporâneo é necessariamente periférico relativamente

ao grosso da actividade económica. Se se tornar demasiado próximo da

actividade comercial, tanto a natureza do trabalho do artesão como a do

artefacto ficam comprometidas pela necessidade de serem competitivas,

em tel mos de preço, com o comércio.

Fazer artesanato é hoje muito diferente do que quando o artesanato era

um mister. O artesanato é hoje produzido como resultado de uma

escolha da classe média, como expressão de vontade própria destinada

a um público com dinheiro e informação suficiente para adquirir

objectos inúteis, destinados a serem contemplados. O que distingue o

artesanato do comércio é uma dim inuição da quantidade de dor associada

ao processo de produção e um aumento muito considerável do coeficiente

de prazer e de realização pessoal.

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Valorizar a Produção Manual

Há outro factor a considerar. Muitos artesãos vão buscar apenas uma parte -

às vezes muito pequena da sua subsistência ao artesanato, se bem que este

possa preencher os aspectos mais importantes da sua vida. A sua subsistência

pode ser assegurada pelo cônjuge ou pelo ensino. Alguns fazem desta actividade

um emprego a tempo inteiro, sobretudo nos locais onde a economia é sufi­

cientemente forte para permitir a existência de um número bastante de clientes

com poder de compra ou onde, como por exemplo nas cidades de Nova Iorque,

Chicago e Los Angeles, haja comerciantes e galeristas interessados em cons­

truir, para o artesanato, um mercado análogo ao da arte.

Realização pessoal

Examinemos com mais pormenor o prazer criativo e outros proporcionados

pelo artesanato de feição consyrvadora, pondo de lado o artesanato artístico,

movimento vanguardi sta por vezes contrário ao exercício da habilidade e ao

respeito pela função.

Entendo por conservador aquilo que tem formas imediatamente reconhecíveis ,

familiares; em que a perícia é valorizada; em que se verifica um desejo cons-

i50 ciente de servir o cliente, a par de uma intervenção criativa.

O que atrai as pessoas para o artesanato é a promessa de um "trabalho que re­

presenta um fim gratificante em si mesmo". Trata-se de actividades em que nos

embrenhamos de livre vontade, pelo prazer de termos a nossa atenção física e

mental completamente absorvida. "Perdermo-nos" no trabalho é entrar numa

espécie de alheamento activo. Todas as outras ambições que não a de prestar

atenção à execução e ao desenrolar do trabalho são temporariamente banidas.

Aos artesãos impressiona a ideia de um trabalho criativo e autónomo ávido de

ideais e ídolos do moderno trabalho criativo. Na sua procura de ideais e ídolos

do trabalho criativo, o artesão europeu e norte-americano tem procurado heróis

em potência, sobretudo no Japão. Na cerâmica, os mestres contemporâneos,

como o oleiro japonês Shoji Hamada, são adulados, sobretudo entre os norte­

-americanos, não só pelo que produzem mas pelo modo como trabalham; os

oleiros como Hamada têm uma actividade que é a verdadeira antítese do

penoso trabalho nas fábricas incluindo o sofrimento do trabalho organizado

das fábricas japonesas de automóveis, por exemplo. Um livro panegírico sobre

Hamada, intitulado "A Potler' s Way and Work" , da autoria de Susan Peterson,

torna claro que são de admirar, em pé de igualdade, tanto os artefactos como

O modo de produção. Hamada goza de uma grande liberdade no seu trabalho.

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Valorizar a Produção Manual

Um do~ moiores prazeres é entregormo-nos comp!etamente ao trabalho deixando-nos absorver por ele. A entrega é a principal meto do artesão moderno. A fotografia moslroJim Potterson 00 suo fábrica de papel em Wotchel, condado

de Somerset [Reino Unido).

• •

Tem tempo para decidir o que fazer, quando fazê- lo e a que ritmo (ao contrário ,

do fabricante de colheres de Pye) . E muito dado a comentários aforÍsticos

do género: "Estes são os melhores potes, se puderem ser feitos nas melhores

alturas" ou "fazer uma taça para chá significa não pensar em fazer uma taça

para chá".

E Susan Peterson passa à descrição de Hamada a fazer potes: "Com o pau, faz

girar a roda, que atinge seis revoluções antes de abrandar. O cone de barro

emerge irregularmente, mas é isso que ele pretende. Abre, com a sua mão ,

esquerda, uma forma no topo do monte. A medida que a taça surge, em forma

de sino, força ligeiramente o barro, provocando uma espiral irregular. De vez

em quando, apoia a palma da mão e dois dedos ao lado esquerdo da mole

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de barro e empurra-a suavemente, o que descentra a taça, dando origem a um

tremor ou provocando uma in'egularidade no topo. Hamada graceja com o

assistente e fala aos visitantes, explicando como se serve das mãos. Quando as

pessoas saem, acalma-se e fala, num tom diferente, sobre o seu amigo Kanjiro

Kawai e da poesia que escrevia, sobre o que costumavam fazer juntos. As

taças parecem surgir sozinhas do barro, sem pensar, que é a maneira que ele diz

ser a correcta".

Este tipo de abordagem quase mística pode ser exagerado: atrai muitos ociden­

tais e deve ser encarada com um pouco de cepticismo. No entanto, patenteia

uma realização pessoal que parece de facto ideal, desde que consigamos ler

nas entrelinhas Hamada beneficia de um grande apoio por parte dos apren­

dizes e da família, sobretudo da sua mulher. Sendo japonês, pôde contar com

a subserviência das mulheres que o rodeiam.

Percebe-se bem que uma opção como a de Hamada, verdadeira retirada para

um universo de auto-suficiência, o do trabalho dirigido por si próprio, seja atra­

ente. Uma das características da cultura contemporânea é exigir que o indiví­

duo se questione constantemente a si próprio e à sociedade, acto que não só

pode trazer vantagens como é também um instrumento necessário para a

sobrevivência cultural (ver págs. 100 e 101). Mas não há indivíduo nem cul­

tura que possam sujeitar-se a um questionamento exagerado: para que uma

actividade possa ser desenvolvida com alguma seriedade há que acreditar nos

seus valores inatos. As melhores actividades do Mundo são, obviamente,

aquelas de que gostamos. Nelas haverá trabalho que é não criativo; mas

também é possível gostar-se de trabalho não criativo, o que constitui um

importante aspecto do artesanato.

Na sua autobiografia, Michael Cardew analisa o esforço rotineiro de amassar

e preparar o barro antes de o colocar na roda. Escreve: "Cedo descobri que se

o fizesse com o ritmo e a cadência adequados, servindo-me do peso do corpo

em vez de apenas os músculos do braço, podia amassar barro durante muito

tempo sem me cansar. .. Cheguei à conclusão de que era um dos tais processos

manuais, automáticos, que funcionam como um bónus inesperado para o arte­

são". O conceito de trabalho gratificante, seja ele de natureza mecânica ou de

tipo francamente criativo, é uma aspiração de todas as classes de trabalha­

dores, mas que os trabalhadores mecânicos raramente atingem, porque o

prazer no trabalho, como todos os outros, depende (normalmente) da liber­

dade de esco lha.

O que para Cardew torna o trabalho menor de amassar o barro num prazer

é uma combinação de intel igência, habilidade e, sobretudo, liberdade de

-=

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Valorizar a Produção Manual

escolha. O que conta é o facto de ele ter querido fazer os potes, em vez de ter

sido obrigado a fazê-los. A preparação do barro não era uma obrigação

moral sua, já que tinha sido ele próprio a chamar a si esse trabalho: ninguém

lho tinha imposto.

O artesanato de atelier não resulta normalmente de uma divisão de tarefas: o

prazer, para o artesão, reside no facto de ser ele a encarregar-se de todo o

processo de produção porque, ao fazê-lo, está a opor-se ao método que coloca

a fábrica ou a instituição sobre o indivíduo, oposição que equivale a uma liber­

tação. O oleiro moderno, que na Europa é quase exclusivamente originário

da classe média, retira a sua liberdade filosófica e prática do facto de domi­

nar todo o processo. Alguns oleiros vão ao ponto de cavar o seu próprio barro.

No entanto, são poucos os que conseguem levar a sua independência até ao

I imite: seria preciso ser-se extremista para tentar produzir o gás ou a electricidade

que alimenta o forno, ou para tentar moer os minerais (previamente extraídos

pelo próprio) de modo a produzir o vidrado. A verdade é que qualquer cultura

fabril exige algum trabalho de cooperação e divisão de competências.

O facto do artesão moderno decidir trabalhar mais (em vez de menos) porque

isso lhe agrada é uma manifestação da sua liberdade económica.

O artesanato é um exemplo claro de uma instituição em que, segundo

Baudrillard, "a ideologia da competição dá lugar a uma filosofia de auto­

_ realização" 3

No entanto, no artesanato conservador, do tipo do de Pye, a realização pessoal é uma actividade tão pública como privada. A realização advém do facto de se

fazer um trabalho que os outros podem julgar, utilizando critérios geral­

mente aceites e partilhados por todos. A comunhão de critérios ajuda a redu­

zir o risco de arbitrariedade ao tomar decisões relativas ao próprio trabalho. ,

E a base do conhecimento.

O conhecimento técnico na arte ou no artesanato é comunicado pelo menos

de duas manei ras: como modo de tornar mais claro o conceito de metáfora

do trabalho e como "coisa" a ser admirada por direito próprio. Se, por exemplo,

adoptalll1os a olaria manual para fazer chávenas, canecas, frascos ou

tigelas estaremos a fazer coisas que encaixam numa tradição. Esta tradição

é rica e diversificada nas culturas que para ela contribuíram. Além disso,

as tradições fornecem critérios claros através dos quais se pode julgar

o trabalho contemporâneo.

Assim, quando dizemos que esta tigela é melhor do que aquela, conseguimos

estar de acordo sobre o que estamos a apreciar: talvez a tige la seja um pouco

atarracada, menos graciosa, talvez a proporção da base ao bordo nos pareça

---.-153

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-

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,

Valorizar a Produção Manual

menos feliz. Ou, em presença de um frasco com tampa, podemos argumentar

que esta não encaixa bem, que a pega é desagradável de segurar, ou que todo

o conjunto é pesado de mais para o seu tamanho. Ao olharmos para a deco­

ração, podemos avaliar a qualidade gráfica do motivo. Podemos tecer uma

série de considerações sobre a natureza e critérios que regem a decoração. O

facto de se conhecerem os critérios, o universo de "regras" existente, imprime

confiança e conduz a um bom trabalho. O artesanato deste tipo oferece uma

estrutura clara, objectivos consensuais, metas comuns.

Os critérios parti I hados são a base do reconhecimento da competência e, apesar

de apenas algumas pessoas possuírem a inteligência e destreza necessárias

para fazer um bom trabalho de talha ou de olaria, muita gente pode usufruir do

produto acabado. O prazer que experimentamos pode ser bastante intenso. O

que me entusiasma na pequena caixa esculpida descrita no início deste capí­

tulo é a sua demonstração de integridade a demonstração de um homem

que ama o seu trabalho, que o leva o mais a sério que pode. Ficamos com a

sensação de conhecer alguém através do seu trabalho. A ensaísta norte­

-americana Vicki Hearne, no seu livro "Adarn' s Task" (1986), escreve:

"Normalmente, a nossa percepção de que alguém sabe ou desconhece

determinado assunto tem, entre outras coisas, que ver com o nosso maior ou

menor interesse e respeito pelo assunto o que tem tanto a ver com a inteli-,

gência como com a integridade. E preferível que o mecânico que nos trata do

automóvel seja alguém que gosta de carros ... ".

Se fizermos qualquer coisa para que outra pessoa goste e perceba, os critérios ,

para o êxito deixam de ser arbitrários e passam a ser colectivos. E-nos pedido

que utilizemos a nossa imaginação moral e estética, colocando-nos perguntas ,

como: esta cadeira é confortável? E resistente? Fácil de deslocar? Qual é a sen-

sação ao agarrá-la? A sua decoração faz sentido? A decoração está presente

para embelezar ou antes para enganar, disfarçando a pobreza do design ou,

pior, uma deficiente execução?

Seria induzir as pessoas em erTO se, ao descrever o artesanato contemporâneo

como uma actividade da classe média, se desse a impressão de que se trata de

uma actividade elistista. Para começar, a "classe média" constitui a maioria na

Europa e nos Estados Unidos. Depois, uma das grandes atracções do artesanato

é poder ser levado a grandes níveis de perfeição como actividade amadora,

desenvolvida a meio tempo. O que dá força ao artesanato é a sua natureza

participativa; faz pouco sentido falar de um designer industrial amador.

David Pye chama ao tipo de amadores a que me refiro "profissionais a meio

tempo", mas estamos a falar do mesmo. Pye, no seu "The Nature and Art of

-•

,

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Valorizar a Produção Manual

, Workmanship", escreve: "E vulgar pensar-se que um homem não pode

aprender a fazer um trabalho em condições se, à partida, não depender dele

para a sua subsistência e se não adquirir depois uma longa experiência. Não é

verdade. Dois minutos de experiência ensinam muito mais a um homem ,

ávido de saber do que duas semanas conseguem ensinar a um indiferente. E

possível manter os períodos remunerados e os de criatividade separados, o que

pode até constituir uma vantagem". O próprio Pye é um amador; ganha

a vida como professor e escritor - nos seus tempos livres , esculpe objectos

de madeira.

Uma das características de uma revista como a Fine Woodworkillg é agregar

uma grande quantidade de pontos de vista concordantes, objectivos comuns e

até estruturas, partilhados pelos seus leitores (grande parte deles amadores). A

revista encoraja contributos tanto do público leitor amador como do pro­

fissional (encorajamento que não ocorreria numa revista de belas-artes de

estatuto equ ivalente). Esta área da actividade artesanal não é polémica nem ,

céptica. E inteligente e funciona dentro de um conjunto de regras estabelecidas.

Há uma diferença importante entre quem persegue um hobby e um amador.

Este não ganha a vida com este tipo de trabalho, mas poderá querer na

generalidade dos casos fá- lo mesmo vender a sua produção a um . -------

consumidor; o primeiro pode apenas querer fazer coisas pelo gozo que elas 155

lhe dão, não precisando de ser especialmente exigente consigo próprio.

o estilo do artesanato

Mas o que há então no estilo do artesanato contemporâneo conservador que

faz com que os consumidores o queiram, apesar da indústria contemplar

tão inteligentemente os seus desejos e necessidades?

O escritor mexicano Octavio Paz, no seu ensaio "Seeing and Using: Ar! and

Craftsmanship" (Col1vergences, 1987) aborda um ponto interessante. Dizele:

"O objecto industrial tende a desaparecer como forma para se identificar com

a função .. . O objecto industrial proíbe o supérfluo; o trabalho do artesão deli­

cia-se com o embelezamento. A sua predilecção pela decoração viola o prin­

cípio da utilidade" 4 Paz não é cem por cento rigoroso . O design e a indústria

ultrapassaram essa fase como vimos, o aparecimento das máquinas

comandadas por computadores fez surgir de novo a decoração, apesar de,

fazendo justiça ao escritor, não ter tido nunca a intenção de interferir com a

perfeita funcionalidade do produto. Em muitos produtos feitos à mão, o

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-

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C hávena e p ires feitos à mõo por ljerko N jers, ceramista do Jugoslávio, demonstrativos do papel que podem ter os

a rtigos domésticos de produção manual: o de preencherem uma necessidade de individua lismo e idiossinc rasia. Este

trabalho não subverte os valores decorativos tradicionais, ontes se base ia neles, dondo-Ihes destoque

No página ao lado: Venda o retalho. Esta cena de mercado, colhido em Fi ladélfia, é outro aspecto do estético anH­

-industrial adaptada pelo artesanoto.

embelezamento pode prejudicar a função, o que é sobretudo verdade na

grande variedade de pegas não ergonómicas que podemos encontrar em

objectos de barro e de vidro.

Mas a chamada de atenção de Paz para o facto de o objecto industrial ,

desaparecer na sua função é vital. E a este "desaparecimento" que o artesão-

-designer (permanece a dificuldade em encontrar uma terminologia

apropriada) resiste activamente. Assim, o artesanato dos movimentos do

século XX opõe-se ao design industrial em vez de o servi r ou valorizar.

O metaforismo do artesanato reside na sua expressão como modo de trabalho

e de vida, raro no panorama fabril moderno e nas economias ocidentais ou de

estilo ocidental. Os artesãos deste século serviram-se muitas vezes do exagero

de certas características iconoclastas do seu trabalho como uma diferenciação

de produto. Uma linha hesitante aqui , uma pega ligeiramente torta acolá

recordam ao consumidor que o objecto em presença é produto da mão.

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Nas sociedades fabri s e consumistas contemporâneas é relativamente fácil

ser-se iconoclasta no estilo: qualquer desvio da estandardização quase per­

feita da produção industrial é encarado ora como uma coisa estranha ora

especiaL A perfeição da superfície é sinal de uma cultura industrial: nas

fábricas, querestas produzam automóveis ou barras de chocolate, as superfícies

com defeito serão rejeitadas pelo departamento de controlo de qualidade,

independentemente de isso afectar ou não o desempenho do produto, a sua

durabilidade ou o seu sabor.

Os pequenos defeitos são mal tolerados no design "abaixo da linha" e a sua

presença é intolerável sempre que atente contra a segurança ou eficiente

funcionamento de uma máquina. E em todos os artefactos de que depende a

nossa saúde, segurança ou a própria vida, podemos ver que as linhas e

acabamento evitam qualquer suspe ita de imperfeição. As linhas dos

equipamentos de transporte, médicos, industriais e domésticos sugerem

suavidade, eficiência e ordem. Desde que sejam cumpridas as exigências de

suavidade da nossa sociedade suavidade das superfícies, suavidade de

funcionamento, design industrial de suave segurança e confiança podemos

dar-nos ao luxo da imperfeição.

A cerâmica e o vidro produzidos manualmente, em particular, têm feito da

"imperfeição" uma virtude. Podemos ver nestas páginas uma jarra de Lucie

Page 158: Os Significados do Design Moderno A Caminho do Século XXI - Peter Dormer - compartilhandodesign.wordpress.com

Em Cimo: Serviço de chá de fv\o rcello

tv\orondini (Itália), desenhado poro a

Rosenlhol (Alemanha).

À direito: A rudeza do jorro de lucie Rie

(Áustria/Reino Unido) só pode resultar

porque, no século XX, lemos garantido o

suavidade no maior porte do nosso

consumo.

No pógino 00 lodo: O ceramista norte­

-americano Flonk Fleming responde, por

meio do suo produção manual, â

necessidade insacióvel que se experimento

nos Estados Unidos por objectos com

conteúdo narrativo,

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Va lorizar a Producõo Manual

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Valorizar a Produção Manual

Rie, que é uma ode à imperfeição; uma chávena e um pires do fabricante

alemão Rosenthal, que é um óptimo exemplo de um bom design, perfeito,

previsível, sem falhas; e finalmente uma placa de grande qualidade de

execução, mas claramente feita à mão, cheia de conteúdo narrativo, do oleiro

norte-americano Frank Fleming.

A Rosenthal representa a estandardização e é a sua existência que permite a

produções como as de Rie sobreviver e prosperar. Se não tivéssemos ainda

atingido a perfeição dos artigos da Rosenthal, ninguém quereria as superfícies

esburacadas de Rie.

Extasiamo-nos perante as suas "imperfeições" porque sabemos que há sempre

uma alternativa. A procura de artesanato, como a de design, baseia-se na

necessidade de nos diferenciallllos dos impulsos gerais da sociedade, embora

sabendo que pertencemos a ela. Assim, para quem tem um armário cheio de

produtos industriais bons e bem comportados, o artesanato de atelier oferece

um extra reconfortante: uma valorização da estética do lar ou, se preferi! mos,

um contraste.

Existe ainda outra categoria de artesanato em que os objectos demonstram um

extraordinário virtuosismo e uma perfeição minuciosa com uma tal redun-•

dância de perfeição, que sabemos terem sido necessariamente feitos à mão, e

esta produção manual, das duas uma: ou foi levada a efeito sem ter em conta

imperativos económicos ou alguém muito rico se dispôs a patrociná-Ia. Podem

encontrar-se exemplos destes em algumas peças de joalharia e em trabalhos

de madeira ou metal.

De facto, um dos resultados interessantes da concorrência entre o artesanato e

o fabrico industrial é o de, em certas áreas do artesanato contemporâneo no

mobiliário de madeira, por exemplo , estatlllOS a assi stir a provas de

virtuosismo sem paralelo no tTabalho de artesãos de séculos passados. Os

modernos marceneiros decidiram competir com o rigor e previsibilidade dos

trabalhos industriais, indo a pormenores cada vez mais minuciosos. Samblagens

perfeitas não são já suficientes para distinguir o trabalho de uma máquina

moderna do da mão do artesão, já que são hoje em dia o produto rotineiro de

tupias automáticas. Alguns artesãos produtores de mobiliário em madeira,

sobretudo os norte-americanos, levaram muito longe a sua perícia técnica,

devido à perseguição que lhes é movida pelo constante aperfeiçoamento da

indústria. AdopG;am, pois, estilos que revelam deliberadamente samblagens

engenhosas, ou que requerem que a madeira seja trabalhada (esculpida,

dobrada ou torcida) de modo a produzir formas orgânicas ou intrigantes

superfícies geométricas. Muitas das grandes figuras contemporâneas da

-

.--

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Os cestos, como as pontes de ferro sem embelezamentos, evidenciam o lógica da sua rozôo de ser, coisa que poocos orlefoeles produzidos industrialmente cooseguem. Exemplor de David Drew, Reino Unido.

marcenaria são norte-americanas, entre elas Wendell Castle e Sam Maloof.

"Perfeito" e "imperfeito" são termos comparativos. Nem tudo o que é simul­

taneamente "não li so" e feito à mão é imperfeito. A cestaria de vime, por

exemplo, registou um renascimento nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha e

há uma perfeição "rude" nos objectos desta indústria que é mais do que

aparente. Um cesto feito à mão é um dos exemplos em que o estilo, a beleza

da superfície, o design "abaixo da linha" e a manufactura se fundem com uma

função bem definida e uma grande durabilidade.

Um cesto feito à mão, como o de David Drew que se pode ver acima, peca

apenas pelo custo da mão-de-obra que implica.

Além de serem termos comparativos, "perfeito" e "imperfeito" são também

/61

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Valor izar a Produção Manual

culturalmente específicos. Por exemplo, o tipo de cerâmica utili zado pelos

japoneses na sua cerimónia do chá é considerado muito bonito por eles, se bem

que aos olhos oc identais possa parecer deformado e primário.

Uma estética de oposição'!

, A que se res ume o mundo do artesanato na Europa e nos Estados Un idos? E

uma das tais "instituições" sem contornos definidos, que as soc iedades ri cas

com culturas amadurecidas podem suportar e que oferece um refúgio para as

inúmeras pessoas que, de uma maneira ou de outra, se opõem à sociedade em

que estão inseridas ou que, pelo menos, vivem descontentes com ela. Nada há

de automaticamente subvers ivo em tal opos ição, nem significa uma rejeição

total da soc iedade. O que o fenómeno do mundo artesanal contemporâneo ofe­

rece às pessoas é um pouco mais de espaço para se organizarem do modo que

desejam. Ao nível mais básico do artesanato como hohhy, podemos ver que a

actividade oferece aos indivíduos conformistas e conservadores uma opor­

tunidade de construírem o seu próprio mundo no tempo que lhes sobra, depois

de servirem a sociedade como escriturários, professores, técnicos de telefones,

etc. Outras pessoas foram mais longe, montando uma oficina de anesanato,

através da qual tentam, por vezes com êxito, viver todo o seu tempo de acordo

com um padrão e uma ordem que elas próprias determ inam e regulam. , E provável que outras pessoas, igualmente inteligentes e criativas, tenham

inveja dos artesãos; mas. por uma série de razões práticas ou de dever, seguem

carre iras sujeitas a ritmos impostos por tercei ros. E são estes "escravos" do

sa lário. inteligentes mas conrormistas, que formam a clientela dos artesãos

contemporâneos. O que os conformistas pretendem e lhes é fornecido por

tantos artesãos é uma estéti ca artesanal viva, revestida de formas

familiares: cerâmica com aspecto de ter sido feita à mão, com uma presença

animada e uma certa textura, mas quase tradicional no que respeita à forola;

o mesmo se passa com o mob il iári o e com os têxteis. , A sua maneira, este trabalho faz parte de uma estética do artesanato de opo-

s ição: opõe-se e é diferente daquilo que as lojas da Baixa e a tecno logia ofere­

cem. Estas podem fornecer perfeição; o artesanato inclui algumas fa lhas s im­

páticas (o artesanato contemporâneo, porque não precisa de ser funcional, pode

conter falhas de design ou de execução). O objectivo de grande parte do artesa­

nato não é a perfeição prosa ica, que podemos sempre adquirir noutro lugar.

Tem muito mais a ver com pôr outra vez as pessoas a comunicar entre si.

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Valorizar a Produção Manual

o virtuosismo daquilo que é feito à mão também é comunicação entre pessoas.

O mundo da tecnologia é que é mudo. Saber que alguém está a fazer uma co isa

espec ialmente para nós é importante, tal como é, do ponto de vista psicoló­

gico, ver num trabalho a marca da mão do executante. A tecnologia é efic iente,

mas profundamente anónima . .

O aspecto ant iquado da maior parte do artesanato é um componente essencial

para o seu êxito económico. Se a tecnologia se tivesse desenvo lvido de outra •

maneIra revestindo-se de texturas e formas de uma estética irregular,

orgânica, por exemplo -, o artesanato teria de contrapor um acabamento

suave e um aspecto de "feito à máquina".

Seri a, no entanto, inexacto concluir daqu i que há uma ruptura total entre o

artesanato e o design industrial. Estão em opos ição, mas não em todos os

pontos. De certa maneira, as formas do artesanato tiveram influência na

corrente principal de design influênci a que é poderosa na Escandinávia e

que, nos Estados Un idos, aparece e desaparece para vo ltar a aparecer de novo.

Uma breve análise do design escand inavo do século XX mostra-nos que o

design para o lar cerâmica, vidro, serviços de mesa, mobiliário e

estofos tem uma linguagem muito próxima da do artesanato. Mesmo

quando são feitos à máquina, os objectos conservam um aspecto de "feito à

mão". Se pensarmos que os países escandinavos tiveram quase sempre /63

governos soc iais-democratas nos últimos cinquenta anos, seguindo uma

política de bem-estar social tendente a criar um Estado ideal de classe média,

e se levarmos em conta que a metáfora do artesanato conservador é

acolhedora, humanista, reconfortante, não é surpreendente que a estética do

seu artesanato tenha conservado uma posição de domínio.

A influência do design escandinavo com a sua ênfase na ideia do côncavo,

da forma envolvente . é popular nos Estados Un idos desde a década de 20.

A apoteose da influência do design artesanal/côncavo/escandinavo sobre o

design norte-americano foi atingida nas formas do mobiliário apresentado

pordesigners como Charles Eames e Eero Saarinennos anos 40 e no princípio

da década de 50. Os seus designs continuam a ter influência: com efe ito, a

forma orgânica, a concavidade e o ventre materno são ainda poderosas

metáforas no design none-americano contemporâneo e não há dúvida de que

a década de 90 assiste a um revivalismo ou reinterpretação do !ook de Eames.

Persiste um outro subtema na história do artesanato, sobretudo nos Estados

Unidos, na Alemanha, nos Países Ba ixos e no Reino Unido. Tem havido

alguma oposição, por parte de certos artesãos, em aderir à corrente que pre­

tende serv ir o lar com formas famil iares: um número significativo de artesãos

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Valorizar a Produção Manual

tem rejeitado os valores conservadores e o artesanato conservador. Daí

surgiu um movimento anti perfeição e, sobretudo, um movimento anti­

-artesanato como produto de consumo.

No Reino Unido, na Alemanha e nos Países Baixos, homens como Ron Arad

(IsraeljReino Unido) e grupos como o Hard Werken (Países Baixos) têm

defendido que as ide ias são muitas vezes mais importantes do que os objectos.

Sobretudo em Inglaterra, registou-se um forte movimento na década de 70 para recusar o perfeccionismo. A maioria da geração de recém-formados de

escolas de arte inglesas não tem grande capacidade para desenhar, modelar ou

fazer bem seja o que for. Uma das razões para a (temporária) subalterni zação

da habilidade como ingred iente importante do artesanato está ligada com uma

atitude política. Se a maior parte do artesanato era comprada pela burguesia,

isso devia-se ao facto de encontrarem nele um certo consolo.

Havia um número significativo de artesãos que, nas décadas de 70 e 80, não

queriam proporcionar conforto aos seus clientes; preferiam incomodá-los. Os

jovens artesãos repudiaram a técnica porque esta era uma ex igência burguesa

e, sobretudo, porque era mais cómodo ignorá-la. Foram também eles que

subverteram as formas familiares.

Do ponto de vista conservador, a recusa de perfeição é mal vista. O reverso da

164 questão é que o vocabulário posto à disposição do artesão contemporâneo se

alargou. Existe hoje no Ocidente (especialmente em países cOmO o Reino

Unido ou os Estados Unidos, em que as velhas indústrias passaram, subita­

mente, à história) muito material "antigo" que fi cou de fora do mundo

tecnológico. Este "lixo" antiquado da indústria do século XX, que era, ainda

há tri nta anos , tecnologia competitiva, está agora disponível para ser

retrabalhado pelo artesanato como parte de um movimento estéti co de

oposição à actual tecnologia. Assim, o equipamento eléctrico primitivo e as

peças das antigas máquinas estão agora a ser integradas em objectos de

artesanato, por artesãos jovens.

A nostalgia, ingrediente tão importante no artesanato, ganhou terreno. Pode

também dizer-se que os artesãos que adoptaram essas técnicas de montagem

nos anos 80 estavam a repetir a estratégia de alguns dos primeil"Os arti stas

da "idade da máquina", como Marcel Duchamp fascinado pela beleza

da maquinaria e dos utensílios de cozinha do final da era vitoriana, e que o

demonstl"Ou cOm a sua recuperação do suporte metálico para garrafas,

em 1914.

O imaginário e os artefactos das indústrias do período do carvão são agora tão

ricos em significado artesanal potencial como as velhas olarias e cestarias.

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Valorizar a Produção Manual

Os jovens foram radicais, fil trando no entul ho urbano o imaginário anti­

burguês. Na essência, ajudaram o mundo do artesanato a alcançar a históri a

moderna. Em certa medida, o artesanato adaptou-se ao ritmo da mudança .

O mundo do artesanato é uma instituição reactiva - reage a mudanças e a

tendências, procurando oferecer uma vi são alternativa

de metáforas .

, . e uma nova sene

Na complexidade do artesanato contemporâneo existem outros ex tremos,

como seja a realização de objectos únicos, que patenteiam ostensivamente o

tempo que levaram a ser feitos e que se destinam a adquirir um estatuto de

"arte" de nível idêntico à síndroma do ovo de Fabergé.

Nos Estados Unidos, alguns escultores como Wendell Castle voltaram-se, com

êxito, para a produção de mobiliário e em seguida, à medida que evolu íram,

procuraram alcançar o estatuto de arte para as suas peças, produzindo mobi l iário

ostentatóri o, fabuloso na períc ia e nos materiais, qual encomenda de marajá

caprichoso. Castle, no entanto, não se deixou arrastar completamente pela

corrente da tendênc ia efémera, ao contrári o de mu itos outros designers­

-executantes, para quem o moderni smo tem sido uma grande fonte de

encantamento.

Sendo o pós-moderni smo encarado pelos arquitectos, des igners e pessoas da

área das artes aplicadas como uma extravagância optimista ou uma série de /65

golpes de mão à história para roubar bagatelas a esti los passados, não deixa de

ser irónico que, entre os académicos, o debate pós-modernista tenha gerado

opiniões que raiam o niili smo. Os excessos pós-moderni stas no artesanato

norte-americano cri aram uma "caldeirada" : bo las co loridas, pirâmides,

pormenores egípcios e/ou romanos e outro tipo de decoração gratuita foram

requisitados para tornarem os objectos fe itos à mão em quase-esculturas.

E assim, talvez com algum pessimismo, o final do século XX vem encontrar

os arti stas, os designers, os artesãos e talvez a maiori a de nós debatendo-se com

uma situação desestabilizadora. Somos excluídos da verdadeira vanguarda da

cultura contemporânea; fomos todos marginalizados . O fulcro da vanguarda

contemporânea no Ocidente não é o artesanato ou a arte nem o debate entre

moderni smo e pós-modernismo; o fulcro é a física teórica e a tecnologia apli­

cada. Quantos de nós estaremos aptos a penetrar no panorama conceptual da

nova física ou à vontade na construção de software para computador?

E ainda há mais. Porque, estando à margem da principal corrente da cultura A

contemporanea excluídos não por falta de talento mas por completa

ignorância , estamos livres para encontrar interesses e diversão onde

pudermos. Daqui o êx ito continuado do artesanato do sécul o XX.

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7

OS FUTUROS DO DESIGN

Conservacõo e conservadorismo ,

Na década de 1990, mais designers e fabricantes irão descobrir o que alguns

já afirmaram: que há dinheiro e consideração a ganhar em assuntos

ligados ao ambiente. Os políticos estão cada vez mais Verdes e o conceito

lato de design que contempla todas as implicações do fabrico, desde as

matérias-primas até ao fim da vida útil dos objectos, constituirá, nos finais da

década de 90, uma parte importante da ortodoxia do design e da empresa. Os

princípios de tal prática farão parte do ensino dos diferentes cursos de arte,

design, tecnologia e gestão. E os designers passarão mesmo a questionar-se

(sem necessidade de intervenção dos grupos de pressão) sobre o impacto do

seu trabalho no ambiente.

No Ocidente, é impossível um design holístico e sensível aos valores ambien-

tais, sem envolver cons iderações materiais. O que vai acontecer - e está já

a acontecer é bem claro: as pessoas vão querer ser mais saudáveis e

conservar a diversidade da Natureza, integrando-a no seu crescente bem-estar

material e desejo de variedade.

Em certa medida, a preocupação pela conservação e ecologia decorre natu­

ralmente do fenómeno consumistado período que se seguiu à Segunda Guerra

Mundial. No capítu lo 5, assinalámos que existe hoje uma democratização

no design industrial que faz com que a tecnologia ofereça produtos de uma

qualidade que nem mesmo os ricos, com o seu maior poder de compra, podem

ultrapassar. No entanto, se os ricos tiverem acesso a um melhor ambiente, a

lógica do alargamento da qualidade para os menos ricos fará do ambiente e

dos benefícios que este proprociona a próxima etapa de interesse para o

consumidor. Cada vez mais pessoas se mostram descontentes com o que

aconteceu aos lugares onde passavam as suas férias no estrangeiro, aos locais

de lazer dos seus fins-de-semana, à qualidade de vida das ruas onde moram.

Depois de terern enchido as suas casas e garagens, dirigem agora o olhar

para o exterior. A inveja e a recusa em se deixarem ficar para trás são

ingredientes tão úteis para devolver o verde ao Mundo como o foram para o

fazer chegar ao estado actual.

A hegemonia do publicitário objecto tanto de entusiasmo como de repulsa

/67

7

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Os Futuros do Design

por parte dos teóricos pós-modernistas sofrerá um revés parcial, que não

se deverá à autodisc iplina ou à legislação, mas aos esforços insistentes de

grupos de pressão variados; estes poderão apresentar aos consumidores os seus

pontos de vista, procurando influenciá-los, desde queos meios de comunicação

se conservem relativamente livres. Uma tal situação, por sua vez, irá influen­

ciar os retalhistas, que colocarão novas exigências aos fornecedores.

A crescente consciencialização do mundo como objecto em si mesmo, que tem

de ser considerado, acarinhado e protegido, é um exemplo de pensamento

positivo que rebate o pess imismo tão em voga e a ironia elitista desenvolvida

por alguns teóricos pós-modernistas dos anos 80.

Não é provável (nem desejável) que diminuam as necessidades que as pessoas

têm de variedade, de distracções e, naturalmente, de emprego. Mas é possível,

até provável , que a moda em design privilegie objectos de maior durabilidade

e com maior qualidade. Já há hoje quem considere que o pós-modernismo está

a ficar ultrapassado; fa la-se de um novo tipo de moderni smo, de linhas mais

sofisticadas, mas integrando mais durabilidade e melhor qualidade de cons­

trução no design e na especificação de produto. Grande parte do design pós­

-modernista, especialmente na arqu itectura, parece excessivamente temporário

e in substancial. A insubstancialidade não serve uma geração que está consciente

168 da vulnerabi lidade do planeta. Em presença de um consenso cada vez maior

quanto à necessidade de conservar, protegere desenvolver com cuidado, pode­

mos com realismo prever o aparecimento de um estilo que expresse valores

conservadores, em vez de irónicos.

Publicidade e ideologia

Muito se tem escrito sobre o poder da publicidade. Em "The Want Makers"

(1988), Eric Clark anali sa sistemas utilizados para orientar produtos em função

de grupos específicos de pessoas, entre eles o ACORN (A Classification of

Residencial Neighbourhoods) e o V ALS (Values andLifestyles). Estes sistemas

identificam quem quer o quê e quem tem posses para o adqu irir. Como diz

Clark: "Só funciona nos casos em que a quantidade de dados reunidos sobre

as pessoas é quase inimaginável e em que há computadores para os ordenarem

e processarem de inúmeras maneiras e de acordo com outras tantas com­

binações". O facto é que estas informações e os meios de as tratar existem e

são utilizadas no ACORN e outras classificações do mesmo tipo.

Como sabemos, há vários tipos de publicidade, cobrindo um espectro sofis-

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ticado e de qualidade, que vai dos Sp01S de 45 segundos às promoções do tipo

"está aqui, venha buscar". Comparada com a da Europa do Noroeste, a publi­

cidade tel ev isiva nos Estados Unidos é directa, curta e centrada em preços

baixos. Mas, nas suas fOI mas mais elaboradas, um anúncio ilustra todo um

mundo: apresenta o serviço ou o bem a vender, numa situação em que todos

os restantes elementos e pessoas (ou animais) foram cuidadosamente

seleccionados, trabalhados, iluminados e ensaiados. Isto é óbvio-quando nos

detemos sobre o assunto. Mas é importante, apesar de tudo, porque é esse

controlo total do minimundo apresentado no anúncio que o torna atraente,

raiando a emoção, através da beleza tocante que se vê mas que é inatingível. ,

A publicidade é um mundo complexo. E verdade que os criadores publicitários

lidam com ficções, mas estas têm de sensibilizar pessoas reais de um mundo

real. Vimos que Jean Baudrillard, na sua teoria da "galeria de espelhos" (págs.

100 e 101), defende que somos cada vez menos capazes de fazer a distinção

entre quem somos e as representações que essas ficções fazem de nós. Mas será

verdade? Diz-nos a experiência que somos realmente capazes de fazer essa

distinção, e que por vezes ela nos magoa.

Tomemos, como exemplo, a fealdade. Tal como a cor da pele, condiciona a vi­

da das pessoas de maneiras que elas preferem não reconhecer. Quem diz que .

as aparências não importam e que o que contaé a beleza interior não está aretra- 169

tar a prática do quotidiano. A fealdade é repulsiva; a repulsão faz parte do signi -

ficado de fealdade. Assim sendo, as pessoas feias são condicionadas quer pela

rejeição, quer pela necessidade de adoptar estratégias através das quais possam

ultrapassar a sua fa lta de atractivos físicos, recorrendo a outros meios. Podem,

por exemplo, procurar ser mais simpáticas do que a general idade das pessoas ou

tentar obter uma riqueza material superior à média (e, assim, comprar favores).

As pessoas feias são inevitavelmente de segunda classe nas modernas socieda-

des consumistas. Todos os dias, nas revistas, na televisão e no cinema, lhes é

recordado o que não têm e não terão nunca: beleza. A felicidade material

centra-se na beleza e nos concomitantes prazeres da carne. Todos os haveres

materiais são, por comparação, meros paliativos. O consumismo baseia-se na

venda desses paliativos e, no coração do consumismo, está a fotografia.

A fotografia profissional, um negócio cujo pivot é a publicidade, vende dois

bens - a beleza e o produto específico que está a ser publicitado. A fotografia

profissional alimenta a dor com o prazer. A dor é a impossibilidade de as

pessoas feias se tornarem bonitas; o prazer está em ver a beleza (ver beleza é

sempre um prazer). Prazer que, evidentemente, é destruído pela pena e o

sentido de perda.

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Os Futuros do Design

No seu li vro "Beauty in History" (1988), Arthur Marwick explica que, a partir

da década de 60 caracteri zada pelas viagens internacionais, pela info rmação

electrónica e pela tecnologia dos satélites ,a explosão verificada no campo

da in formação visual e a comerc ialização da juventude têm fe ito aumentar

enormemente a nossa percepção da beleza e fornec ido oportun idades inéditas

para a formulação de comparações. O nosso sentido da discrepância, da

imperfeição fís ica, tem sido potenciado.

A fotografia ocupa um lugar de especial importância no consumismo; as foto­

grafias profissionais estabelecem padrões de beleza,"fixam" o bem de consumo:

estamos dentro do padrão ou falhámos. Em contrad ição com Baudrill ard,

estamos francamente cientes da diferença entre o real e a ficção, ou entre o real

e outro aspecto do real. , E fác il distinguirmos como somos de como "eles" são num anúncio, porque

conhecemos os factos. Sabemos como vivemos, com que nos parecemos,

quanto di nheiro temos e estamos, portanto, consc ientes da di stância que

nos separa da ficção que nos é apresentada. Mas, fora isto, ficamos à mercê do

poder da publicidade; a não ser que tomemos uma postura activa. Por exemplo,

a menos que saibamos como é fabricado determinado produto, não fazemos

ideia da moral que lhe está assoc iada. Há um grande número de consum íveis

/70 que encerram uma série de verdades ocultas: os produtos de limpeza domés­

ti ca líquidos, abras ivos, ceras são altamente nocivos para o meio

ambiente, tanto na sua produção como na sua inutili zação (lançados para os

esgotos e, portanto, rios e mares); são também testados exaustivamente em

an imais, provocando muito sofrimento. O mesmo se passa com diversos

produtos de higiene. Claro que nada di sto transparece no anúncio. A função da

publicidade é garantir que várias realidades desagradáveis sejam perfeita­

mente separadas das agradáveis.

Apesar di sso e do design gráfico não ser tema neste li vro, vale a pena referir

que os designers gráficos têm desempenhado um papel de interface entre o

anúncio e a real idade . As be las embalagens que produzem transpõem para o

quotidiano do supermercado um pouco de brilho. Povoam-nas de animais

brincalhões, trabalhadores felizes, ou qualquer outro elemento que desem­

penhe um papel na di sjunção entre ambas as realidades .

Mas a publicidade, sobretudo a telev isiva na Europa, está a deslocar os seus ,

centros de interesse. E mais ou menos ponto assente, em doi s dos três pólos

mundiais de public idade, Nova Iorque e Tóquio, que o terceiro, Londres, é o

centro cri ati vo. Uma das razões é a extraordinári a quantidade de dinhe iro gasta

pelo Governo britânico em publicidade telev isiva, durante a década de 80,

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Os Futuros do Design

para promover a venda das grandes empresas estatais de serviços. Depois de

privatizadas, mantiveram, em geral, a publicidade como parte de um vasto

programa de promoção, no que foram imitadas por outros sectores. Os

anúnc ios não vendem apenas um objecto ou conjunto de serviços, vendem

também uma ideologia. A Imperial Chemical Induslries, a British Petroleum

e a British Gas procuram por todos os meios demonstrar que têm do Mundo

uma visão moderna, que conjuga humanismo e tecnologia. Valem-se de

produções grandiosas, herdei ras de uma tradição de cinema britânico que

teve início na propaganda sóbria do Post Office Film Unil do final dos anos 30.

A evolução da publicidade ideológica é interessante, porque reforça a ideia

de que as pessoas - o público , os consumidores - se preocupam, de facto,

com os valores. Até que ponto estaremos dispostos a acreditar numa ideologia

de empresa protectora, humana e ambientalista é mais discutível (sendo

mesmo desejável um certo ceptici smo vigilante). Seja como for, numa época

que alguns escritores caracterizaram já como desprovida de valores ou

preocupada apenas com o materialismo, é de realçar o crescimento da

propaganda dos valores registado nos anos 80.

Ouro de lei

O publ ic itário está em vantagem relativamente ao designer de produto. Os

objectos do designer têm de fu ncionar; podemos testá-los e encontrar-lhes

fa lhas. Além disso, as expectativas do consumidor são cada vez maiores . O

designer passa a vida a responder à questão: "Porque é que as coisas não

funcionam melhor?"

Na produção, cada vez menos é deixado ao acaso; a década de 90 assistirá

seguramente ao crescimento de sistemas sofisticados programas

informati zados, que delineiam estratégias, desenvolvem tácticas, codificam

procedimentos e os decompõem em sistemas lógicos. Podem aplicar-se a

quase todos os processos produtivos, incluindo o ensino e a medicina. ,

Também o design se pode incluir nesta categoria. A medida que os fabri-

cantes e os consumidores se tornam mais exigentes, diminui a margem de

aceitação relativamente a deslizes do designeI'. E tal como os médicos de

clínica geral que podem recorrer às vantagens proporcionadas por

sistemas informáticos avançados , que os ajudam a lembrar-se de questões

vitai s, contribuindo para um diagnóstico correcto , também os designers

beneficiarão de apoios semelhantes. Vem, portanto, a propósito relembrar

171

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Os Futuros do Design

o tema da semântica de produto, que tratámos no capítulo 4.

Klaus Krippendorf, catedrático de Comunicações na Universidade da

Pensilvânia, e Reinhart Butter, catedrático de Design Industrial na Universidade

do Estado do Ohio, têm, em conjunto com os seus departamentos, trabalhado

na exploração das qualidades simbólicas e ergonómicas das formas . Essencial­

mente, a semântica de produto explora a relação entre o designer, o objecto e

o utilizador, e a que ex iste entre o objecto/utilizador e o meio. Como dizem

Krippendorf e Butter: "O designe r cria formas que são auto-explanativas". A

evidência faz parte da utilidade das estratégias e sistemas avançados, porque

em design é o óbvio que tende a dar asneira . Por exemplo:

- Fazer com que objectos diferentes tenham aparências diferentes .

Quando são demasiado parecidos, podem provocar desastres. Exemplos

disso são os equipamentos de emergência ou as situações potencial ­

mente críticas no habitáculo de uma locomotiva, nos cockpits de

aeronaves, nas salas de operações e de controlo de centrais eléctricas.

- Fazer um objecto de utilização segura. O regulador quente/frio dos

chuveiros é, manifestamente, uma área de perigo a água a escaldar

pode matar. Outras preocupações incluem certificar-se de que o utili­

zador sabe que parte de um objecto se destina a ser por ele manipulada

e quais as que lhe estão vedadas.

- Ajudar as pessoas a tirar o melhor partido de um objecto. Os progra­

mas de soft.vare para microcomputadores são, na sua maior parte,

subutilizados.

- Ajudar as pessoas a sentirem-se bem.

Krippendorf e Butter dizem t que não se dedicam à produção de estilos; e que,

tão-pouco, o seu trabalho se prende com uma nova espécie de funcionalismo

psicológico. Passemos por cima destas declarações. Seja por que razão for,

quem põe em prática a semântica de produto preocupa-se muito com a imagem

e emprega uma linguagem decalcada da científica.

Mas a deficiente promoção da semântica de produto não deve escamotear a

importância do seu conteúdo. O conteúdo simbólico dos objectos pode tomar­

-se o aspecto mais importante de um design, ao ponto do sImbolismo com­

prometer a utilização (mas nunca a segurança). Claro que o simbolismo, a

estética e o gosto se fundem num só; mas é surpreendente o número de objectos

pouco conseguidos que são muito aprec iados, apesar do seu deficiente

desempenho ou de estarem ultrapassados.

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Os Futuros do Design

Encontram-se alguns exemplos clássicos nos meios de transporte. Há pessoas

que preferem guiar o Volkswagen "carocha", barulhento, feio e pouco espaçoso,

cuja origem remonta ao final dos anos 30. No Reino Unido, ainda há quem

queira comprar o Citroen 2CV, caixote de cartão sobre rodas, trepidante e ins­

tável. Nos EUA, apesar das imitações japonesas, mais baratas e tecnologica­

mente mais evoluídas, a Harley Davidson é imbatível em popularidade.

Vale a pena frisar que, em certos tipos de objectos, especialmente os associa­

dos ao trabalho ou à cozinha, a fealdade é uma vantagem simbólica. Funciona

de várias maneiras. No exemplo do "carocha" ou do 2CV, faz parte a estética

da resistência os carros destacam-se dos restantes veículos e, sobretudo

no caso do 2CV, é sinal de que o condutor não leva a sério a condução

nem idolatra os automóveis. No entanto, a fealdade pode ser reveladora da

primazia da segurança sobre a estética, como vimos no capítulo 4, no exemplo

da cafeteira (págs. 94 e 95). Dentro de certos limites, a fealdade pode também

transmitir avanço tecnológico: tem um aspecto horrível, mas isso é porque

a novidade não permitiu ainda habituarmo-nos ao objecto.

O simbolismo desempenha um papel importante na desmistificação dos

objectos tão popular entre os jovens designers do final dos anos 80, dando-,

-lhes uma razão para existir (capítulo 1, pág. 17 e capítulo 4, pág. 94). E

absolutamente verdade que a tecnologia evolui a um ritmo que a nossa /73

compreensão não consegue acompanhar; mais ainda, há tanta tecnologia

invisível (capítulo 4, pág. 81). A invisibilidade não é necessariamente sinónimo

de compreensão difícil, mas, se não virmos como uma coisa se move, é difícil

adivinhar-lhe as entranhas. O interior de um transístor antigo não diz nada à

maioria das pessoas, excepto quando se acciona o botão de selecção de banda

e se vêem as peças do condensador mover-se. "Procurar o posto" tem, assim,

um significado visível.

Mas a menor compreensão dos objectos gerados pelas novas tecnologias não

nos deixa inconsoláveis: as suas vantagens são muitas e estamos muito ocupa­

dos com outras coisas que não o modo de funcionamento dos aparelhos

electrónicos. Desde que sejamos capazes de os pôr a funcionar. ..

O microcomputador é um dos exemplos mais interessantes de um aparelho

cujo funcionamento é incompreensível e com o qual é difícil trabalhar. Na qua­

lidade de cidadãos sensíveis e vigilantes, fazem-nos falta garantias sobre as no­

vas tecnologias, especialmente a informática. Queremos ter a certeza, por

exemplo, de que o computador não está a ser utilizado contra nós. Não há

design de hardware nem semântica de produto que possam compensar o temor

ou a suspeita de que esta ou aquela máquina seja, de algum modo, mal-

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• I N

Os Futuros do Design

-intencionada ou traiçoe ira. A poss ibil idade do Estado ou do nosso banco

se servir do computador em prej uízo dos nossos interesses é uma questão

fundamental de po lít ica e dos dire itos do cidadão e que ultrapassa a

competência do designo

No entanto , os designers podem contri bu ir para que utili zemos o computador

na sua plenitude. Raros são os microcomputadores util izados para mais do que

o simples tratamento de texto, e poucos são os programas de tratamento de

tex to utili zados em pleno. Nem o hardware nem o software são concebidos

para se rem de fác i I ap rend izagem (apesar do panorama se ter alterado bastante

com as inovações da App le Macintosh).

O des igner moderno está perante um enorme problema: tem de encontrar for­

mas e processos que permitam a indivíduos cujas competências, capacidade de

concentração e tolerância são imprevisíveis utilizar sistemas que, na sua

essência, são extremamente complicados. A tarefa do designer não é de modo

nenhUlll facilitada pe la circunstância de as culturas europeia e norte-americana

terem reso lvido que tudo. inclu indo a aprendi zagem, pode ser isento de dificu l­

dades. O que nem sempre é ve rdade . Apesar de tudo. esperamos que "coisas"

e "processos" sejam concebidos de forma a que a compreensão dos primeiros

níveis seja fácil; e que a transição de um níve l de complex idade para o seguinte

seja lógica e tenha Ullla imaginação moral baseada naquilo que o utilizador já terá presum ivelmente apreendido. Emprego o termo "moral " dei iberadamente,

porque " moral" implica o acto solidário e imaginativo de nos "pormos na pele

do outro" que é a base de todo o ensino.

As tarefas dos designers são ainda mais dificultadas pelo facto dos grupos de

consumidores se rem compostos por gerações dife rentes, com níve is de " leitura

de produto" também dife rentes . Os adolescentes de hoje são ve rsados em

computadores de muitas mane iras as tex turas, sons e formatos dos

computadores são-lhes fami li ares. Muitas pessoas mais velhas, apesar de

terem já "reparado" no equipamento. tê- Io-ão ignorado e continua a não

lhes ser familiar.

As pessoas mais ve lhas podem ter necessidades psicológicas e emoc ionais

di ferentes das dos jovens; podem não aceitar bem as manifestações visíveis da

mudança. Podemos caricaturar esta situação pensando no caso de consumidores

que vêem com bons ol hos o forno micro-ondas , mas que o preferem com a

aparência dos fogões ant igos. A verdade é que muitas pessoas, inclui ndo as

crianças (sobretudo as muito novas). prefe rem ordem e estabilidade a modi ­

ficações constantes. Enquanto membros de uma sociedade saturada de telev isão

e de vídeos, podemos ter-nos habituado a alterações súbitas do imaginário e por

isso gostar da artificia lidade dada pelas image ns da telev isão; mas, uma vez

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Os Futuros do Design

que somos capazes de estabelecer a di stinção entre a TV e o nosso mundo (pese

embora Baud rillard), parecemos preferira constância e a ordem (desenvolvendo

grandes esforços para as consegui r).

o design e as raízes da sociedade

Independe ntemente do que possamos dizer sobre a re lação existente entre um

objecto e as emoções, a mente e a imaginação de um consumidor, vale a pena

observar a relação que o design tem com a ideologia da cultura que o produz.

Com efe ito, é a relação ideológica entre o objecto e o consumidor que está

subjacente aos debates sobre o design e os ri cos (capítulo 5) e sobre artesa­

nato versus design (capítulo 6) .

No se u ensaio "Whal is aI Slake in lhe Dehale on Poslmodernism?" (1987) 2,

Warren Montag salienta o facto de apesar das visões da soc iedade contempo­

rânea patenteadas pelos principais intervenientes no debate serem muito inte­

ressantes e importantes elas se "s ituam a uma di stância de tal modo grande

dos diversos objectos que pretendem descrever que as reai s espec ificidades

acabam por fi car amalgamadas num conj unto harmonioso mas imprec iso".

Entre essas espec if icidades contam-se as que se re lacionam com as insti tuições

e estruturas que conferem signifi cado, ordem e autoridade ao nosso quoti­

diano. Será o mesmo questionarmo-nos sobre o al cance do capitali smo em s i

e, no extremo oposto, sobre o vocabulário da forma de um objecto (onde pôr

os interruptores)? A prime ira abordagem é demasiado di stante, a outra próx i­

ma de mais. O que é que gera as ideologias que fornecem a base para o

s ignificado e em que se fundamentam os valores do nosso trabalho des ign,

ciência, arte, fabrico?

As nossas raízes não se encontram na public idade nem na te levisão; estes

gémeos são de facto refl exo das ideologias que nos mantêm unidos, mas não

são geradores de va lores - partem do que já ex iste.

Poder-se-ia pensar ser o final do século XX a era do ceptic ismo; a ser verdade,

a sociedade oc idental estaria perante uma cri se moral. Porque, na sua forma

ex trema, o cepticismo mina tudo e todos; leg itima todos os actos de crueldade,

neg ligência e intolerância, porque nega a tudo a razão de ser ou a finalidade.

Os valores são destruídos se os fin s forem a bitola. Deus dava-nos um pro­

pósi to, Marx também. Hoje vivemos uma s ituação pós-Deus (alguns de nós)

ou pós-Marx.

No entanto, ex iste uma diferença profunda entre a teori a céptica e a ex peri ência

humana. As vidas humanas contêm uma grande vari edade de experiênc ias que

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7

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Os Futuros do Design

não dependem da noção de finalidade. Perguntar qual é o objectivo do amor

que se tem pelos filhos não tem, em termos práticos, qualquer significado. A

emoção posta na crença, compromisso ou participação naquilo que podemos

definir como "fins em si mesmos" rebate o cepticismo, tomando a própria

questão céptica vazia de significado.

São fins em si mesmos, por exemplo: uma profissão interessante, jardina­

gem, desporto, companheirismo, ouvir histórias ou tentar descobrir como

funcionam os quarks. A maior parte, senão todas as coisas que nos dão prazer

e são um fim em si mesmas, depende da cooperação de outras pessoas ou da

sua concordância sobre o "direito" que nos assiste de levá-las por diante.

Os nossos direitos, no entanto, são garantidos pelas limitações e regras

contidas nas nossas instituições sociais.

O filósofo contemporâneo que melhor compreendeu e articu lou a importância

das raízes, e que melhor do que ninguém explicou o conceito de instituição, é

Roger Scruton, professor de Estética no Birbeck College de Londres. O seu

livro "The Meaning ofConservantism" (1980) contém um capítulo chamado

"The Autonomous Institution", que me foi muito útil 3.

Scruton cita vários exemplos de instituições, como o desporto de competição,

a família, o direito e a educação. Vejamos o que ele nos diz acerca do desporto

(e confronte-se com as págs. 150 a 155 deste livro): "O objectivo de uma

equipa é, evidentemente, ganhar. Mas a vitória é definida pelas regras do jogo

e não pode ser alcançada fora da instituição que a define ... Os elementos de uma

equipa podem ganhar dinheiro; mas, para os aficionados, o interesse do futebol

reside no jogo e no seu resultado ... O futebo l (o hóquei, o basquetebol , etc.) é ,

também uma instituição. E uma estrutura que sobreviverá aos praticantes

individuais e que estabelece entre eles um laço transcendente de pertença".

Mais adiante, no mesmo capítulo, Scruton fala de um exemplo mais lato, mas

igualmente coerente. "Veja-se a sociedade rural dos EUA. Não é nem bárbara,

nem civilizada, nem decadente. Não tem qualquer interesse especial para o

Mundo em geral; mas, apesar disso, parece viver bem consigo própria. Pode­

mos encontrar nesta sociedade uma prol iferação de clubes e associações e

mesmo de velhos hábitos artesanai s que desapareceram na Europa. Este facto

deve-se em parte à falta de interferência governamental. O Estado federal não

é dado a arregimentar os seus cidadãos de formas que lhes sejam estranhas. E

embora o caos resultante, feito de excentricidades infantis, possa ser pouco

atraente para quem está de fora, é manifesto que tem um grande poder de

consolação para todos os que nele participam".

Alcançamos os nossos valores e significados através da grande variedade de

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-

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Os Futuros do Design

actividades colectivas e empresariais; retiramos consolo e prazer da procura

dos fins em si mesmos. Louvamos as nossas instituições e os valores que elas

defendem através de rituais, de decorações e do seu tratamento simbólico em

artefactos e naarquitectura. As instituições são fonte de significados simbólicos.

Os bons designers institucionais compreendem implicitamente o conceito de

ideologia da instituição. O design institucional, sobretudo as suas manifes­

tações do final da década de 80, oferece mais às empresas do que uma alteração

de logotipo. Hoje em dia, quando um gabinete de design recebe uma encomenda

para reformular a imagem de uma empresa, os designers começam por fazer

um levantamento dos valores defendidos pela empresa. Fazem perguntas ao

pessoal e à Administração sobre o trabalho que desenvolvem, sobre o moral,

os objectivos da empresa, a qualidade da comunicação interna e as caracterís­

ticas específicas da empresa. A finalidade do exercício é preparar um relatório

destinado à Administração, que incide sobre o momento que a empresa

atravessa e o estado em que ela se encontra, ajudando-a a aproximar-se dos

seus ideais; e criar designs que representem ideais e ideologia, tanto inter­

namente, junto dos empregados, como externamente, junto do público. Entre

os valores genéricos, contam-se o serviço, a eficiência, a confiança e a cortesia.

O design da identidade institucional não se cinge a este levantamento interno

e à representação gráfica dos ideais da empresa; é também a aceitação do 177

facto de todas as organizações, sejam elas privadas, públicas ou estatais, se

fundarem nas grandes instituições sociais, incluindo a Lei. Há, sem dúvida,

muita hipocrisia em certas empresas que, como algumas pessoas, apenas

fingem agir de acordo com os valores que o público gostaria de as ver seguir.

Contudo, este fenómeno está para além do nosso âmbito.

Para os designers, o que interessa é que, numa era de cepticismo, as socieda­

des prestam uma atenção cada vez maior às regras, obrigações e instituições

sociais que garantem continuidade e proporcionam serviços em toda a sua

complexidade moral. Nunca tantas pessoas sejam elas descritas como

cidadãos ou consumidores - foram tão bem servidas, protegidas, apoiadas

(o facto de não o serem em quantidade ou qualidade suficientes é outra

questão; no cômputo geral, tem-se registado um certo progresso l. Além disso,

neste final de século, assiste-se a um grande interesse pela resolução das

obrigações sociais a nível supranacional, como é o caso das questões ambientais

acima referidas.

Se atentarmos na casa simbólica de Charles Jencks (págs. 103 e 104 l, podemos

dizer que o contexto, a instituição de que ele se serviu para dar significado ao

seu design era demasiado grande toda a civilização do M undo, com uma

OSDM-12

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Os Futuros do Design

significati va porção do Cosmos à mistura para que nada fa ltasse. Mas a sua

intuição estava correcta; e, de certo modo , a necessidade de definir o presente

através de referências simbólicas ao passado é um ingred iente que pode con­

tribuir para a aceitação e humanização de todo o design, sobretudo o do lar.

Uma das acções mais importantes ao alcance dos des igners é simbolizarem

a continuidade e manifestarem quer na forma, quer nos materiais e

processos utilizados para moldar o design o reconhec imento de que o

objecto tem um determinado impacte no Mundo. Não se trata aq ui de defender ,

o saudosismo, ou ceder às ex igências das modas. E, sim, defender a importância

de garantir a familiaridade do des ign e de pôr em prática a imaginação moral.

S6 uma imaginação deste tipo está em condições de garant ir que um design terá

utilidade prática e que considerações mais vastas, incluindo as ambientai s,

serão inc luídas na prossecução dos objectivos de des igno

An imador é constatar que o empenho moral em querer mudar as coisas para

melhor é maior do que nunca. E mais importante ainda que um tal

empenho é equili brado pelo reconhec imento de que todas as mudanças

devem ser cuidadosas e baseadas, não no capricho momentâneo, mas

no conhecimento sobretudo no que deri va da investigação e da ciênc ia

aplicada das implicações do nosso querer sobre a nossa saúde, as outras

/78 espéc ies e o Mundo em geral.

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NOTAS

CAPÍTULO 2

I Sehama, Si mon, "Tlle Embarrass/IIelll oj Riclles", Collins, 1987.

2 Hayek, F. A. "Tlle Road to Sel/do/ll", Ark. 1986, p. 27.

3 Hayek, F. A., oI' cir .

4 Ver: Barnell, Corre lli, "Tile AI/dir of War", Maemillan, 1986, para elementos

sobre este assunto, relativamento à indústria britânica de armamento.

5 MeCoy. Esther, "Tlle Ratiol/alisr Period", in catálogo High Style, edição

conjunta do Withney Museum 01' American Art, de Nova Iorque e de Martin

Books, Nova Iorque, 1985, p. 131. Diz ela: "A exactidão era uma necessidade

do design de grande parte do mate rial ut ilizado em combate durante a Segunda

Guerra Mundial e, como era de esperar, o hábi to de utili zar tolerâncias decimais

prossegui u no design do tempo de paz".

6 Kennedy, Paul , "Til e Rise ({Ird Fali oftlle Grear POlI'ers", Unwin Hyman , 1988.

p. 359. Foi no desempenho do seu papel de "polícia do Mundo" que os EUA se

tornaram uma ameaça para a integridade de outras cu lturas. O Japão, por seu

lado, tem s istematicamente evitado tomar panido nos negóc ios estrange iros, /79

talvez porque seja prej udicial para o comércio.

7 "Desigll Maga:ille", Junho de 1985.

8 Braun, Emily, "I/(Ilian Arr ill rire 20rll Cellll/ry", Prestei, 1989.

9 Sottsass, Ettore, "Design and Theory'·. in catálogo "Desig ll Sillce

Ph iladelphia Museum of Art, 1983, p. 3.

1945" ,

10 Hebd idge, Dick, "J-/iding ill rhe Ligllr", Routledge, 1988, pp. 77- 115. Hebdidge

escreveu o que chama um dossier sobre a motorizada italiana, que inclui um

debate animado sobre o sexo das máquinas.

11 Kennedy, Paul, OI'. cit., pp. 355-356.

CAPÍTULO 3

I Manzini , Ezio, "Tile Morerial ojll1\'e11lio,,", Areadia, 1988, p. 131 ("A Matéria

da Invenção", Centro Português de Design, 1993). O livro contém um grande

número de abordagens poéticas a vários assuntos: "A domest icação do fogo, que

começou há tantos milhares de anos, está agora concluída. O novo objecto

quente doméstico já não nos queima os dedos".

Page 179: Os Significados do Design Moderno A Caminho do Século XXI - Peter Dormer - compartilhandodesign.wordpress.com

180

Nolas

2 Gordon, J. E., "The New Science ofStrong Materiais", Pengu in, 1976, pp. 173-

-205. Ver também Fiore, L. e Gianotti , G., "Designing Malter", in "The

Material of Invention" (versões italiana e inglesa), op. cito

3 Mack, John, "Advanced Polymer Composites", in revista Materiais Edge de

Janeiro de 1988, pp. 17-23, e edições seguintes desta revista bimensal publicada

por Metal Bulletin Joumals Ltd.

4 Waterman, Neil , "Materiais for Profit", in revista Engineering de Janeiro de

1988, pp. 16- 18.

5 Mack, John, "Advanced Polymer Composifes" , op . cito

6 Mack, John, "Passion, Power and Polymers: improved materiais in cars", in

rev istaMaterials EdgedeMarço/Abril de 1988, pp. 33-42. O automóvel TreserI

é fabricado por uma pequena empresa dirigida por WalterTreser, um dos "pais"

do Audi Quattro. A utilização de compósitos na indústri a automóvel está a

ganharforça. Prevê-se (Financiai Times, de 23 de Agosto de 1988, p.12) que a

produção em série de carros famili ares, com utilização de quantidades

significat ivas de materiais termoplásticos, seja importante na década de 90.

O exemplo em questão é um protótipo chamado The Vector, produzido por GE

Plastics - notável porque demonstra que a produção em grande escala é

exequ ível, mas, mai s interessante ainda, que os termoplásticos podem ser

reciclados: "Os painéis do corpo, depoi s de terem desempenhado um importante

papel, dando forma e protecção na sua primeira vida, podem ser derretidos sem

que o mate ria l perca uma grande percentagem das suas propriedades. Assim,

numa segunda vida, pode tomar-se, por exemplo, um componente do acabamento

interior do veículo".

7 Ver também Bloch, Robin, "Advanced Composite Materiais" , tese apresentada

para o doutoramento em Planeamento Urbano (Departamento de Planeamento

Urbano e Regional da Universidade da Califórnia), Berkeley, 1984. Bloch

explora a re lação entre o desenvolvimento de novos compósitos e a indústri a do

armamento. Na altura em que preparava esta tese, os compósitos pareciam ter

poucas hipóteses fora da esfera da defesa e do armamento, mas o final dos anos

80 viu ressurg ir o investimento no sector.

8 Manzini , Ezio, "The Material of Invenfion" , op. cit., p. 66.

9 Dawkins, Richard, "The Blind Watchmaker", Pengu in , 1988; "The Selfish

Gene", Oxford University Press , 1976.

10 Harris, Myles, "Pygmalion Moulds a Mind: Computers and artificial

intelligence", in rev ista Spectator de 14 de Maio de 1988, pp. 9-12.

II Harris, ibid.

12 Gordon, J. E., "The New Science of Strong Materiais" , op. cito

Page 180: Os Significados do Design Moderno A Caminho do Século XXI - Peter Dormer - compartilhandodesign.wordpress.com

Notas

13 Ver: Bellow, Saul, "More Die of Hearlbreak" (botânica); McEwan, Ian,

"A Child in Time" (matemática, física); Stoppard, Tom, "Hapgood" (física das

pequenas partículas); e Updike, John , "Roger' s Versiol!".

CAPÍTULO 4

I Cf. Bloom, Allan, "The Closillg of lhe Americal! Mil!d" , Simon and Schuster,

1987, pp. 75-77 . Bloom descreve a sua consternação ao constatar que, havendo

gra ndes cabeças a investir esforço político, c ientífi co e cultura l em

empreend imentos grandiosos, os resultados práticos, em tennos de consumo,

são de uma mediocridade espantosa.

2 Anon , "A Funher Notion or Two abolir Domestic BUss", 1870, c itado por

Hardyment, Christina in "FromMal!gle to Microwave" , Polity Press, 1988, p.l .

3 Hardyment, Christina, "From Mangle lO Microwave" , op. cil ., pp. 1-19 .

4 Scarry, Elaine, The Body in Pain, Oxford Uni versily Press, 1985, sobretudo o

capítulo Pail! and Imagining.

5 A explicação mais imaginativa do comportamento subjectivo das pequenas

partículas na física é-nos dada pelo dramaturgo Tom Stoppard na sua peça

"Hapgood" , Faber, 1988. Vertambém: Hawk ing, Stephen W. , "A BriefHistory

of Time", Bantam Press, 1988, pp. 53-61.

6 Tucker, William, "The Object", in revislaSllIdio Inlemational, de Fevereiro de

1973, pp. 66-69.

7 Freedman, Al ix M., "Forsaking lhe Black Box: Designers Wrap Producrs in

Visual Melaphors", in Wall Srreel Journal, de 2 1 de Abril de 1987. Roberl

Blaich, di rector executivo do Departamento de Design Industrial da Philips, é

citado por Freedman. Blaich vi u veladas algumas ideias pelo Departamento de

Marketing, como a de um rádio em forma de dois batuques africanos. Blaich

disse a Freedman: "O maior risco não é tecnológico, mas psicológico. Somos

ainda uma grande empresa com muitos conservadores na gestão de produtos".

8 Larkin , Philip, "Required Writing: Miscellaneous Pieees 1955-1982", Faber

and Faber, 1983, pp. 80-82.

9 Para saber qual a interpretação de um romancista sobre o que um estruturalista

faria com Elaine, deve ler-se "Niee Work" , de David Lodge, Secker& Warburg,

1988. Lodge, professor de literatura e conhecedor do processo de desconstrução,

demonstra-nos, de maneira lúc ida e divertida, a importânc ia de encontrar um

bom nome para um produto (pp. 154-156). "Elaine" é manifestamente um mau

nome.

-

/8/

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-

' . . -,. 182

Notas

10 Stumpf, William, "Are melaphors ellollgh lo keep )'011 warm 011 a cold

winter's l1igh!?". Palestra apresentada no Congresso de Design Icograda/

/I CS ID/ I FI, em Amesterdão, Julho de 1987. Stumpf receia que a centralização

na imagética visual e nas metáforas prejudique a func ionalidade.

CAPÍTULO 5

I Reed. J. D. e Tynan, W., "Tileir Plales are Smasili/lg", rev ista Time, de 17 de

Dezembro de 1984, p. 90.

2 Lapham, Lewis H. , ';MoJ1ey and Class il/ America: Notes anel ObSerVGliol1s 011

oI/r Ci\'i/ Religio/l" , Weidenfeld & Nicholson, 1988. Lapham dec lara estar

interessado na "melanco lia habitual de cidadãos que se proc lamam os mai s

fel izes e libertos de todos os que pisaram a Terra. Nunca na história da

humanidade tantos foram tão ricos; nunca na história da humanidade as mesmas

pessoas se sentiram tão pobres",

3 Ver Duffy, Bruce, "Tile World as I FOl//ld Ir", romance publicado por Secker

& Warburg, 1988.

4 A Edi/lbl/rgil Tapes/r)' Campan)', também conhec ida por Doveco/ S/I/dios,

mergu lha as suas raízes numa companhia fundada em 1912 pelo 4.º Marquês de

BlIte. Foi influenc iada pe las ofic inas de William Morris, em Merton Abbey,

perto de Wimbledon (Londres) . Os primeiros doi s mestres artesãos dos estúdios

Dovecot vieram de Merton Abbey.

5 Dormer, Peter, "Fra/lk S/ella Pai/1/i/lgs as Tapes/ri ', in Apallo , Fevereiro de

1989, p. 110. l ames More, directorda Edinburgh Company, vê a tapeçaria como

uma peça de mobiliário.

6 Dormer, Peter, UThe New Adl'errising", in revista Creati\'e Revirlv, Dezembro

de 1987, pp. 14-17. A través da judic iosa uti I i zação da ci tação do "K i/lg Lear"

(Shakespeare) "Reason not the need", a célebre agênciade public idade Saalchi

& Sao/c!Ji defendia, no seu relatório anual de 1982, que a publicidade

competiti va era provavelmente a maneira mais efi caz de fa zer com que

o design, bom ou mau, chegasse ao grande público.

CA PÍTULO 6

I Como contraponto, ver Harrison, Charles, "Abs/rac/ Expressionislll 11", in

revista Sflldio In/emarianal, Fevereiro de 1973, pp. 53-60.

2 Marx , Karl , "O Capi/al", entrada 593.

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,

Notas

3 Baudrillard, Jean, "The System ofOhjects" (1968), in Se/ected Writings, Poli ty

Press, 1988 , p. 12.

4 Paz, Octav io, "Col1vergences", Bloomsbury, 1987, pp. 50-67. Paz tem uma

atitude descomplexadamente romântica re lat ivamente ao artesanato. Por

exemplo: "O artesão não se define a si próprio em termos da nac ionalidade ou

rel igião. Não é leal a uma ideia ou imagem, mas a uma prática: a sua arte".

CAPÍTULO 7

I Ver documentação relativa à conferência Producl Semantics, real izada em

Helsínquia, na Uni versidade das Artes Industriais, de 16 a 19 de Ma io de 1989.

A expressão "semântica de produto" é atr ibuída a Reinhart Bulter.

2 Mantag, Warren, "Whal is at Slake in lhe Dehate 011 Postmodernism ?" ,

in "Postmodernism and its Crilics", ed ição de E. Ann Kaplan, Verso, 1988.

Montag capta a essência da incerteza pós-modernista ao dizer: "Actuamos no

âmbi to de uma conjuntura específica que vemos transformar-se perante os

nossos olhos. Será talvez por via da nossa própria inte rvenção, mas a

transformação dá-se de maneiras que acabam sempre por escapar às nossas

intenções ou controlo, requerendo ass im intervenções ad injinilum".

3 Scruton, Roger, "The AulOl1omous Institution", in The Meaning ofCol1serva­

tism, Penguin, 1980, pp. 14 1-60.

-ILUSTRACOES ,

Ed Barber, págs. 27, 29 e 15 1; União Britânica para a Abolição da Vivissecção

(organismo inteiramente pacífico ' ), págs. 12 e 7 1; Fisher Fine Art Ltd., Londres,

pág. 6; Hori zon (fotografi a de Malcolm Hughes), pág. 119; Andy Keate, pág. 18;

Galeria Yu Chee Chong, Londres, pág. 49 (fotografia de David Cripps), pág. 75 .

---/83

. -.

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, INOICE REMISSIVO

Os nLÍmeros em itálico referem-se a ilustrações .

A "abaixo da linha" 11, 13, 16,20,35 ,58,68,82, 158

"acima da linha" 11 , 20, 68

a arte de bem presentear 120-1

a função determina a fonna 17-8, 142-3

Aalto, A. 42

ACORN 168

AEG 47-8

Airbus A310 65

Alcan 65

Alessi 114, 130;25

alumínio 63-5

amador 144-5; ver Ib. hobby; bricolagem

americanização 42

Andreasen, H. 60

184 animais 70-4; 71

anonimato 11 ,60, 162

antropomorfismo 73

Apple Macintosh 174

aprender, aprendizagem 174

Arad, R. 163

aram ida 66

artesanato 9

artesanato de atelier 153

Art Déco 45 ,47-8

arte ver belas-artes

Artemide 121

artesão-artista 129

artigos básicos 13,88

aspirações 36

Aston Martin 120, 124; 123

AT&T 23

Atlanric Design 98; 99

autonomia 149, 150

B barulho 88

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Baselitz, G. 125, 127-8

batatas fritas 8 1-2

Baudrillard, J. 100- 1, 105,108, 153, 169, 170,174

Bauhaus 17, 45,47-8,123-4, 131-2

Bedin , M. 56

Bel Geddes, N. 45

belas-artes 8

beleza 169, 170

Bernal , J. D. 69

Bertone Xl/9 64; 65

bicicletas 98, 100, 115-6

bioquímicos 68

Blaich, R. 106

BMW 11 5, 120

Bodum 133

Bolta, M. 134

Butter, R.F.H. 111 , 172

c cadeira mexicana 76

caixa preta, estética da 17,19, 20,21

Cardew, M. 145 , 148, 152

Castle, W. 160,165, 177

Centro Português de Design, ver "A Matéria da In vellção"

cepticisll10 139, 175

Challenger (vaivém espacial) 13-4

Chemobyl 14

Clark, E. 168

Coca-Cola 29

colectivo (critério; trabalho) 41, 154

Coleridge, Nicholas 114

compósitos 62-6

computadores 67 , 70; v(rus 74

concorrência 34

conhecimentos 127, 153; ver lb . feito à mão, trabalho de alta qualidade

conservação 41 , 167

conservador 150, 163

COnSUlTIlSmO, consumo 7, 8, 9, 31, 36, 38

Le Corbusier 21

Courbet, G. 136-7

crescimento económico 31

critérios 153-4

cultura capitalista 3 1

cultura cristã 72

____ o

185

Page 185: Os Significados do Design Moderno A Caminho do Século XXI - Peter Dormer - compartilhandodesign.wordpress.com

·c _____ _

índ ice

D design de luxo 9, la, 11 5-37

design popular 24

design: alemão 50- 1 . ,

escandinavo 43' ,

europeu

francês

hol ístico

ital iano

47-55;

54' ,

58, 167;

51-4' ,

por sexo 84, 89 , 95-8;

o design quase arte 137;

o design, objeclo cultural 130; orgânico 42,46

ver rIJ. EUA, metáfora, simbolismo

dinhe iro 11 7-121

dor 147

Orew, O. 16 1; /6/

Oreyfuss, H. 46

Orult , H. 22

Ouchamp, M. 106,] 64

Ounhi ll 12 1

Ou Pasquier, N. 134

/86 E

Eames, C. 42-3

ecológico 8

economia de mercado 40

Ed inburgh Text i]e Company 125

Eisenman, P. 134-6

electricidade 44

empresa. a 34, 35, 37. 46

Empress of Ire land 120

engenharia 11- L 3

engenharia genética 68

"escravos" do salário 162

cscultura 105.] la

estética ela caixa preta 17, 19, 21

estética de oposição, o artesanato como 162-5

esti lo doméstico norte-americano 22

esti lo, eSlilismo 10-30 EUA: capitalismo 33; economia 41-7: dinheiro 11 8; gosto popular 22-4;

Se2.unda Guerra Mundial 32.36.40-2 ~

Europa 47

excesso 7

exclusividade 120-3

!

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express ionismo 146

express ionismo abstracto 145

expressiv idade 19,20, 139; Fel' Ih. design por sexo, metáfora

F fami liaridade (de fonmas) 30, 105

fea ldade 169, 173

feito à mão, trabalho manual 29, 11 7, 124-9, 139, 148

ferramentas, instrumentos, utensílios 83-91 , 95, 100

Ferrari I 15

fe rro 78

fétiche 92, 105

finalidade, propósi to 175

fins em si mesmos 176

Fleming, F. 160; 158

Forty, A. 44,86, 110

Frankenthaler, H. 126-7

Freedman, A. 106

FSB 134-5; 135

G gestão 37-8

Gobelins 126

Godley, G. 57

Gordon, J. E. 63

Graves, M. 22, 124; 24

Groenewege, A. 95-98; 9ó-7

grupos de pressão 101

H habi lidade, ver conhecimentos, períc ia

Hafner, D. 136

Hamada, S. 152

Hand Werken 163

Hardyment, C. 85, 88, 110

Harris, M. 73

Hayashiu, S. 134

Hayek, F. A. 33-4,38-41

Hearne, V. 154

Herman Miller I 11

Hiesinger, K. B. 32

hipocrisia 100- 1

I/Obby, bricolagem 92, 95, 162

Hockney, D. 125

índice

___ o

187

Page 187: Os Significados do Design Moderno A Caminho do Século XXI - Peter Dormer - compartilhandodesign.wordpress.com

.•. •

188

, Ind ice

Hollein, H. 134; 135

humor 26, 27, 108

I l avicoli, V. 55,53

identidade institucional 37, 177

imaginação 14

imaginação moral 175

imaginário, imagética 96; ver Ih. metáfora, individualismo 38,10 1-2, 152-3

indústri a agrícola, agro-indústria 68

indústria pesada 31

InterProfil 121

Isozaki, A. 134

J JAL 16

Japão 55-8,95-8

Jencks, C. 103-5, 110; 104

Jiricna, E. 79

Johnson, P. 47

justificações 102-3

K Karte ll 77 Katz, S. 50

Kawai , k. 152

Kennedy, P. 4 1-4,54-5

Krippendorf, K. 172

Krohn, L. 24, 108; 26

L Landor Associates 12 1

Lapham, L. H. 117

Larkin , P. 108

Leach, B. 145

lealdade 37

liberalismo 33-4

ligeira (estrutura) 69,63

Linhas Aéreas Japonesas 16

Lippincott, J. G. 33

Loewy, R. 45

Lovegrove, R e Brown, J. 109

luxo, ver design de luxo

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M mães, maternidade 88

Maloof, S. 160

Manzini , E. 62, 69

marcenaria de alta qualidade; revista Fine Woodworking 155

marketing 20

marketing por segmentos 20

Marwick, A. 170

Marx, K. 147,175

marxista- leninista 3 1

Maugh 11 , T. H. 65

Mayo, G. 35

McCoy, E. 37

McCoy, M. S. 107

Meier, R. 114

Memphis 8, 22, 46

Mendini, A. 134, 136

metáfora 13, 16, 19,30,56, 78,9 1, 110, 124, 156, 163;

e significados 102-11 ; 18;

ver Ih. imaginário, simbolismo

microcomputador 174

moda 20

, Indice

modem s/yle 47 189

MOMA 42, 114

Montag, W. 175

More, L. 108 •

Morandini , M. 119; 159

More,J. 125

museus 8

N

Nader, R. 50

narrativa no des ign 22-3,26

NASA 13

natural/não-natural 72-4

Nikon 1/8

Njers, L. 156

Nouve1, J. 77

Noyes, E. 46

o objectivo 100

objecto, características intrínsecas do 98, 107-8

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.•... ~. - - --/90

índice

objeclOs de fig uração. w'r design de luxo

objecros paradisíacos, I'el" design de luxo

obsolência 32

p

Paolozzi , E. 125

Patterson, J. 15 1

Paz, O. 155

PepsiCola 125, 128

perFe ição 16

períc ia do artesão 27-8,42, 103;

ver lb. qualidade de acabamento, conhec imentos, habil idade

Perreault , J.

peSS lIllI smo

Peterson, S.

136-7

168

151

Philips 95,98 , 106

planeamento central 31 -3,38

Plano Marshall 36

plásticos 50,59-66

Po llock, 1. 136, 145-6

Poltrona Frau 121

pornografia 132

Porsche Design Company 12 1-4; 52, /22

portabi lidade (transportabi lidade) 80

pós-moderno 94-5,10 1, 165, 175

Powell , A. 11 4

precisão 93-4

propriedade 137

propriedades das superfíc ies 143-4; imperfei to/perfeito 58,158-160

protóti po IS

publicidade 8,23,46, 132, 169, 170- 1

Pye, D. 20- 1, 123, 140-4; /4/, 154-S

Q

qual idade 92-5 ;

ver th. trabalho de al ta qualidade, períc ia, conhecimentos

R radiotransístor-vela 23

Rams, D. SO, lOS, 135-6

real ização pessoal 150-5

retalhislas 119- 120

revista Crafts 144

ricos, os 114-5; I'U tb. dinheiro

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Rie, L. 158; /59

Riernenschncidcr, T. 137

Rogoysha, M. 28

Rolls-Royce 64, 12 1

Roselll",,1 136, 160; /59

Rowe, S. 86

Rú ss ia, ver URSS

5 Saarincn, Ecro 42, 163; 43

Saatch i & Saatehi 136

Scarry.E.9 1, 147

Scham<l, S. 32

Schnabcl. J. 127

Scruton. R. 176

segurança social 33

semântica de produto 106-7. 110, 172-4

servidores R5-7

silício 66

simbolismo 1 03-R; l'er 117. metáfora

sistemas avançados 17 1-2

sobrevivênc ia 7

social -democracia 49

Sottsass , E. 52

Sowdcn. G. 132, 134, 136; /33

Sp-" 13 1

Stella, F. 125. 127-8

Stopparcl. T. 80

Slorey, P. 6

.\'lreamlilliJ/g 45

StU lllpf. W. III

substituição. reI" plüstico

Suécia 49

supercondutiviclade 66-8

Swid,N. 114

T táctil 61

tapeçaria 125-8

tarefas caseiras 83-8 Tarkovsky. A. 32

Taylo r. F. W. 34

Teague. W. D. 45

tecnologia I 1- 17, 59-80

, Indice

19/

!

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índ ice

tentativa e erro J 5

T hackara, J. 48

T hun, M. 132, 134

T itanic 120

trabalho 30,35 , 116, 120

trabalho de alta qualidade 94; traba lhar o risco 14 1-4; trabalhar a certeza 14 1

trabalho doméstico 83-8

tradição 30

T resser-! Roadster 65

Tucker, W. 106

U Ulm 50

União Europeia 39,40, 47,5 1,58

URSS 14, 38,42, 48,78

V valores em mudança 102; partilhados 8,9, 177

VALS 168

vanguarda 8, 48,78, 145, 149, 165

Venturi, R. 22, 103

Vera, P. e A. 49

/92 Vickers , G . 100, 11 6

Viemeister, T. 24, 108; 26

virtuosismo 140, 160, 162

vivissecção

Vonck, I.

W

/2

146; 146

Warhol, A. 22

Waterman, N. 63

Wei l, D. 26-7; 27

Wei l, S. 147

Woodman, B. 148

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Biblioteca - Unesp - Bauru Processo: 521/45/01/07 C R$S-3po Procedência: Marcos Antonio da Silva Torres - ME Ltda FAAC . Incorporado em: • 'W'-<.IG'G

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