OS IMPACTOS DA REFORMA PROTESTANTE NA EDUCAÇÃO

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  • 7/24/2019 OS IMPACTOS DA REFORMA PROTESTANTE NA EDUCAO

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS- UNICAMP

    Brbara Ferreira Russo

    OS IMPACTOS DA REFORMA PROTESTANTE NA

    EDUCAO

    Campinas/2012

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS- UNICAMP

    Brbara Ferreira Russo

    OS IMPACTOS DA REFORMA PROTESTANTE NA

    EDUCAO

    Monografia apresentada Faculdade de Educao

    da Universidade Estadual de Campinas, como

    exigncia parcial para concluso de curso de

    Graduao em Pedagogia, sob orientao do Prof.

    Dr.RenJos Trentin Silveira.

    Campinas/2012

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECADA FACULDADE DE EDUCAO/UNICAMP

    Rosemary Passos CRB-8/5751

    Russo, Brbara Ferreira, 1990-R921i Os impactos da reforma protestante na educao /Brbara Ferreira Russo. Campinas, SP: [s.n.], 2012.

    Orientador: Ren Jos Trentin Silveira.Trabalho de concluso de curso (graduao)

    Universidade Estadual de Campinas, Faculdade deEducao.

    1. Educao Histria. 2. Protestantismo. I. Silveira,Ren Jos Trentin, 1963- II. Universidade Estadual deCampinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo.

    12-265-BFE

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    DEDICATRIA

    Dedico a todos que se interessam e acreditam na educao. E em especial ao

    meu marido Henrique, pelo apoio e pela pacincia. Aos meus pais, Gilberto e Neiva

    que sempre me incentivaram e apoiaram minhas escolhas.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo primeiramente a Deus, por me dar condies e disposio para

    realizar esta pesquisa

    Agradeo imensamente ao meu orientador, Prof. Dr. Ren Jos Trentin Silveira,

    pelo seu voto de confiana, por sua exigncia e por me auxiliar a aprimorar meu

    trabalho e minhas pesquisas sobre o tema escolhido.

    Agradeo ao Prof. Dr. Jos Luis Sanfelice, pela disposio em atuar como

    segundo leitor deste trabalho.

    Agradeo tambm minha famlia, pois influenciou imensamente em quem sou

    hoje e na pedagoga na qual me formei.

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    De minha parte, se pudesse ou tivesse que

    abandonar o ministrio da pregao e outrasincumbncias, nada mais eu desejaria tanto quanto

    ser professor ou educador de meninos. Pois seique, ao lado do ministrio da pregao, esse

    ministrio o mais til, o mais importante e omelhor. Inclusive tenho dvidas sobre qual deles o melhor [...].

    Martinho Lutero

    Martinho Lutero (1483-1546)

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    RESUMO

    Esta pesquisa se dedica a investigar as influncias da Reforma Protestante na

    Educao, principalmente na Alemanha do sculo XVI.

    No perodo medieval a Igreja Catlica tinha hegemonia cultural e educacional e

    o ensino por ela controlado era, em grande parte, privilgio do clero e dos filhos de

    famlias nobres.

    Martinho Lutero (1483-1546) se rebelou contra a Igreja Universal de Roma,

    dando incio ao que posteriormente seria chamado de Reforma Protestante. Esta

    Reforma exprime, sobretudo, necessidades sociais e polticas concretas, trazidas pelas

    transformaes na base material da sociedade, das quais resultou o advento do

    capitalismo. Entre essas necessidades estava a de instruo popular e de um ensino

    universal. nesse contexto que Lutero ir considerar a educao como um dever do

    Estado e a alfabetizao das massas populares como requisito para que os fiis tivessem

    acesso direto s Escrituras sagradas. Portanto, o advento da Reforma opera uma

    profunda revoluo educacional.

    Como, porm, essa Reforma impactou a educao? Este o problema essencial

    da presente pesquisa, de natureza bibliogrfica, que procurar abord-lo atravs de

    textos e documentos que elucidam o sculo XVI e dos prprios escritos de Martinho

    Lutero.

    O trabalho est estruturado em trs captulos: o primeiro se dedica exposio

    do contexto histrico da Reforma Protestante na Alemanha, destacando o papel da

    religio, a mudana na concepo do trabalho e a pedagogia humanista; o segundo traz

    alguns dados biogrficos de Martinho Lutero, os quais so importantes para ajudar na

    compreenso de seu pensamento; o terceiro discute aspectos do pensamento pedaggico

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    de Lutero, dentre os quais se destacam: a defesa da escola para todos, pblica e

    obrigatria, mostrando o dever do Estado em manter as instituies escolares; aspectos

    do currculo escolar; a importncia do oficio do educador; as posies de Lutero sobre

    as relaes de gnero e a educao da mulher; a dimenso ldica contida nos mtodos

    de ensino propostos pela educao reformada. Na concluso procuro mostrar os avanos

    e permanncias no mbito educacional presentes em Lutero e alguns dos principais

    impactos deixados na educao pela Reforma.

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    SUMRIO

    INTRODUO 01

    CAPTULO I- CONTEXTO HISTRICO DA REFORMA PROTESTANTE NA

    ALEMANH 06

    1. O conceito de trabalho 08

    2. O papel da religio 12

    3. A pedagogia dos humanistas 15

    CAPTULO II- MARTINHO LUTERO: ASPECTOS BIOGRFICOS 20

    CAPTULO III. A ESCOLA PARA TODOS: PBLICA E OBRIGATRIA 27

    1. A pedagogia luterana 28

    2. De quem o dever de educar? 29

    3. O ofcio de ensinar e o currculo escolar 31

    4. As relaes de gnero, a educao da mulher 34

    5. A dimenso ldica na proposta educacional reformada: mtodos de ensino 36

    CONCLUSO 40

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 44

    ANEXOS 46

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    INTRODUO

    Ao ler a bibliografia sobre o tema, vejo o quanto so imensas as influncias da

    religio sobre a educao, em diversos povos, e como, tambm em nossa cultura

    judaico-crist ocidental, ela deixou marcas significativas ao longo da histria.

    Com a Reforma Protestante, ocorrida na Europa no sculo XVI, houve

    modificao de conceitos, valores, vises de mundo e um dos aspectos dessa mudana

    foi com relao educao.

    Durante a Idade Mdia, o saber oficial consistia na doutrina crist e culminava

    na teologia. A cincia, sendo vista como um dom de Deus era privilgio do clero. A

    Igreja at mesmo chegara a abrir escolas episcopais para leigos, mas, em suma, havia

    um monoplio eclesistico da instruo.

    A sociedade de ento, na qual a Igreja Catlica tinha a hegemonia, estava

    sofrendo abalos em seus fundamentos polticos e morais, j que passava por

    transformaes econmicas e culturais, impulsionadas pelo advento do capitalismo e

    pelas exigncias da burguesia comercial, dos intelectuais humanistas, das camadas

    populares, enfim, dos setores que se envolviam mais diretamente nessas transformaes.

    As mudanas culturais e morais so, em grande parte, reflexo das

    transformaes econmicas. So essas mudanas econmicas que vo dar origem

    burguesia e ao capitalismo e que, no plano religioso, vo exigir uma nova tica, abrindo

    espao para a Reforma.

    Essas transformaes, aos poucos, introduziram um novo modo de produo

    que, antes artesanal e voltado predominantemente para a subsistncia, passou a ser cada

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    vez mais voltado produo de excedentes destinados ao comrcio, visando ao lucro e

    acumulao. Isso gerou tambm uma sensao de mobilidade social que antes, pela

    forma como se estruturava a sociedade feudal, no existia: os que possuam a terra, que

    eram o clero e a nobreza, possuam tambm os servos que trabalhavam em seus

    domnios em troca de sustento e proteo. Com essa nova camada de comerciantes

    surgindo, atravs dessa nova forma de produo, o dinheiro ganhou lugar de destaque

    na economia e o trabalho passou a ser visto como meio de mobilidade social, inclusive

    pelas camadas populares.

    A instruo at ento no era difundida universalmente. Com a Reforma e outros

    movimentos herticos, houve uma propagao da mesma, com o fim de que cada um

    pudesse ler e interpretar pessoalmente a Bblia, sem a mediao do padre, por exemplo.

    Como diz Manacorda (1989) promoveram a difuso da instruo a fim de que cada um

    pudesse ler e interpretar pessoalmente a Bblia, sem a mediao do clero

    (MANACORDA, 1989, 194).

    No somente a instruo daria s camadas populares acesso leitura pessoal da

    Bblia, mas tambm essa universalizao do ensino seria importante para a nova camada

    de trabalhadores existentes, por ser uma instruo preocupada com a sua utilizao para

    a vida prtica. Vemos que esse pragmatismo, nova caracterstica dessa universalizao

    do ensino, vem ao encontro das necessidades surgidas a partir das mudanas ocorridas

    na base econmica da sociedade, as quais incluam a instruo da nova camada de

    trabalhadores.

    Com os valores da velha e da nova sociedade se defrontando, e a escola

    assumindo um papel social na formao dos indivduos, as concepes de mundo vo se

    alterando, como j dito.

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    Lutero, um dos maiores representantes da Reforma na Alemanha, propunha

    instituies escolares pblicas, afirmando o direito-dever de todo cidado em relao ao

    estudo elementar, lanando assim as bases da educao originalmente autnoma e

    dando oportunidade a cada um de se aproximar de forma pessoal aos textos sagrados.

    Com efeito, para ele, a educao da juventude era a razo principal da nossa

    existncia (apud, JARDILINO, 2009. p, 85) e no haveria pecado maior do que no

    educar uma criana.

    Para Lutero, a educao no era somente um meio de se achegar a Deus, mas

    tambm uma forma de auxiliar as cidades a terem jovens aptos a governar. Para tanto,

    deveriam ser bem instrudos e capazes, o que estava em conformidade com o plano de

    Deus para suas criaturas. Como ele diz em um de seus discursos:

    Seno existissem nem a alma nem o Paraso nem o Inferno, eainda se no se devesse levar em considerao apenas asquestes temporais, haveria igualmente necessidade de boasescolas masculinas e femininas, e isso para poder dispor de

    homens capazes de governar e mulheres em condies deconduzir bem suas casas (apud, CAMBI, 1999, p. 249).

    H, nessa afirmao de Lutero, tambm um sentido conservador, de reproduo

    dos papeis sociais de gnero, algo que ainda no era suficientemente questionado

    naquele momento.

    No centro da vida escolar deveria estar o mestre, que pode at mesmo substituir

    a famlia, no caso da mesma se mostrar incapaz de desempenhar adequadamente seu

    papel formativo, pois a ignorncia inimiga da f. Esta uma diferena importante em

    relao ao pensamento predominante na Idade Mdia, perodo no qual o conhecimento

    era visto como uma ameaa para a f, e no uma ferramenta de acesso a ela, como

    defende Lutero.

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    Podemos observar, portanto, como o pensamento reformista permeia as bases e a

    viso de mundo da sociedade alem, definindo outros padres e conceitos e

    repercutindo na histria ocidental.

    A pesquisa aqui relatada procurou responder seguinte pergunta: Como a

    Reforma Protestante repercutiu na educao? A delimitao estabelecida foi

    Alemanha dos sculos XV e XVI, contexto no qual procurei analisar como se deu a

    relao entre a Reforma e a educao, focando principalmente a universalizao da

    instruo bsica como resposta necessidade de alfabetizao das massas visando a

    atender s demandas polticas, econmicas, sociais e religiosas.

    Em minhas anlises, procurei adotar uma perspectiva histrica, amparada em

    alguns manuais de histria da educao, como os de Mario Manacorda (Histria da

    Educao: da Antiguidade aos nossos dias, 1989) e Franco Cambi (Histria da

    Pedagogia, 1999), mas tambm em textos cujos autores se dedicaram a um recorte mais

    preciso da poca, como Lucian Febvre (Lucien Febvre : histria,1978)e Pierre Chaunu

    (O tempo das Reformas (1250-1550) II. A Reforma Protestante, 1975), entre outros.

    Busquei, tambm, na medida do possvel, utilizar escritos do prprio Martinho Lutero.

    O texto encontra-se estruturado em trs captulos. No primeiro, trato do contexto

    histrico em que se d o advento da Reforma, mostrando a Alemanha nos sculos XV e

    XVI, as mudanas na base econmica da sociedade e as dinmicas sociais sendo

    moldadas a partir desse movimento, o incio do capitalismo, o papel da religio e a

    mudana no conceito de trabalho,. No segundo trago alguns aspectos biogrficos de

    Martinho Lutero, personagem que protagonizou a Reforma Protestante. No terceiro,

    abordo algumas caractersticas fundamentais da proposta educacional da Reforma,

    destacando: a afirmao pioneira do dever do Estado em manter as instituies

    escolares; aspectos relativos ao currculo escolar; o oficio do educador, que segundo

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    Lutero seria o mais oneroso de se praticar; aspectos das relaes de gnero, presentes

    nos textos de Lutero, relacionados educao da mulher; e, por fim, a dimenso ldica

    da pedagogia da Reforma, associada aos mtodos de ensino por ela preconizados. Na

    Concluso, respondendo ao problema que motivou esta pesquisa, procuro mostrar os

    impactos da Reforma Protestante, seus avanos e permanncias, por mim constatados,

    na educao e que, em boa medida, se fazem presentes ainda hoje.

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    CAPTULO I - CONTEXTO HISTRICO DA REFORMA PROTESTANTE NA

    ALEMANHA

    Para realizar o presente trabalho fez-se necessria uma analise de como se deu

    historicamente o processo de transformao da sociedade europeia, em particular no

    caso da Alemanha.

    A Alemanha, em 1517, segundo o historiador Febvre (1978) era formada por um

    conjunto de cidades e principados ainda sem unidade, o que fundamental para

    analisarmos o contexto reformista. Os alemes falavam diferentes dialetos,

    praticavam diversos costumes, formavam uma nao no sentido medieval da palavra,

    pois no eram agrupados solidamente em um Estado bem unificado e centralizado.

    No havia um rei na Alemanha, ao contrrio do que j ocorria h muito na

    Frana e na Inglaterra, pases que sabiam como, nos momentos de crise, reunir energia

    em torno de seu monarca e de sua dinastia. Na Alemanha havia um Imperador, mas este

    era apenas um ttulo, e seu imprio apenas uma demarcao territorial, na qual at

    mesmo os bispos tinham mais voz. Como esclarece Febvre (1978):

    [...] Nesse pas, sua autoridade decaa cada vez mais, isso sedava por que a prpria grandeza impossibilitava a atuao dessesoberano de outra poca. Ela o mantinha subjugado aosverdadeiros senhores dos pases germnicos; os prncipes, ascidades (FEBVRE, 1978, p 82).

    O que preocupava os prncipes, que tinham sobre o Imperador grande

    superioridade, era a fortuna de sua casa, a riqueza de sua dinastia. Eles possuam

    concentrao poltica e territorial, formando assim, segundo Febvre (1978), uma

    Alemanha principesca.

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    As cidades alems no sculo XVI encontravam-se em pleno esplendor. Havia

    cerca de vinte capitais densamente povoadas e gloriosas, com suas prprias instituies,

    indstrias, artes, costumes, igrejas e com uma burguesia em franca atividade.

    Em meio a esses domnios principescos, existia uma outra Alemanha, um pas

    aberto entre as muralhas, dominado por senhores vidos por riquezas, com camponeses

    incultos e grosseiros e por vezes miserveis, primitivos, estranhos cultura urbana.

    Dessa forma, este pas fragmentado deixava os prprios alemes em uma situao de

    sofrimento, como esclarece Febvre (1978):

    Os alemes, to orgulhosos de suas fortunas, de seusentido dos negcios, de seus xitos vistosos, sofriamcom essa situao. Sofriam por no formarem mais queum pas dividido, feito de pedaos e fragmentos, semchefe, sem cabea: um amlgama confuso de cidadesautnomas e de dinastias mais ou menos poderosas(FEBVRE, 1978, p 85).

    A organizao de poderes se dava da seguinte forma: diante do Papa, o

    Imperador tinha seu papel tradicional a desempenhar, de chefe temporal da cristandade,

    respeitando, porm, a autoridade papal. Entretanto, todas as camadas da sociedade

    alem estavam insatisfeitas: os burgueses e os camponeses, por pagarem muitos

    tributos; os prncipes e os nobres, pois cobiavam os belos e vastos domnios da Igreja

    alem e almejavam mais poderio.

    Para a burguesia, a busca por dinheiro, por lucros, por riquezas, passa a ser o

    novo ideal. A mentalidade artes, da Idade Mdia, colocada em questo, pois essa

    prtica no gera lucro suficiente. A noo do justo preo, mantida por magistrados

    encarregados da manuteno e da boa qualidade visando somente ao consumidor, estava

    expirando, o que favorecia ainda mais a explorao dos fracos e pobres. A Igreja no

    agradava a essa nova classe que estava surgindo, pois segundo Febvre (1978), sua

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    mentalidade ainda medieval, com suas proibies e tradies, representavam um entrave

    ao seu desenvolvimento e um peso inoportuno.

    A Europa se torna um mosaico de diversidades sociais e culturais, sacudida pela

    quebra de valores da Igreja Catlica medieval e pela ascenso da burguesia, abrindo

    caminho para o desenvolvimento de pequenos burgos, vilas, comrcios, para a

    ampliao de portos e a criao de indstrias, tornando-se, assim, palco de grandes

    agitaes e reivindicaes polticas e religiosas populares.

    Por sua vez, o avano na conscincia social, aliado ao desenvolvimento da

    hermenutica bblica, ajudam a transformar os movimentos religiosos em movimentos

    sociais e populares relevantes para a transformao da sociedade em curso.

    O grande clima de insatisfao social, dessa Alemanha inquieta e divida, ansiava

    por um homem com voz suficientemente forte para levantar em um movimento unnime

    os alemes. Dezenas de projetos de reforma so realizados no Imprio, em fins do

    sculo XV. Nenhum, porm, teve xito, pois quanto mais se falava em aumentar a fora

    do Imperador, em criar um exrcito imperial, uma justia imperial, finanas imperiais

    slidas e eficazes, mais restries apareciam.

    Podemos ver ento que a Alemanha, conforme diz Febvre (1978), alm de

    desunida, era uma nao heterognica, repleta de inquietaes sociais. E a partir deste

    contexto de transformaes econmicas e sociais que vemos a Reforma Protestante

    florescer.

    1.O conceito de trabalho

    A sociedade feudal era esttica e, nela, o trabalho manual era realizado

    basicamente pelos servos e artesos, numa produo voltada essencialmente

    subsistncia, tanto sua e de sua famlia, quanto dos nobres e do clero, proprietrios das

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    terras. Somente o trabalho intelectual, praticamente restrito ao clero, era valorizado.

    Com o advento do capitalismo comercial, essa concepo do trabalho ter que se

    modificar, e a Reforma trar os ingredientes ticos e religiosos necessrios a essa

    mudana.

    Segundo Manacorda (1989), nos sculos XV e XVI constitui-se um modo de

    vida mais dinmico e mundano, enquanto na base material da sociedade desenvolve-se

    um novo modo de produo, que acabar por revolucionar o das velhas corporaes

    artesanais.

    Com isso, h uma evoluo quantitativa da instruo, fortemente exigida pela

    inveno da imprensa e pelo desenvolvimento econmico e social verificado nesses

    sculos. Comea-se a falar em uma instruo til tambm para as classes subalternas e

    produtoras, ao mesmo tempo em que o trabalho manual produtivo passa a ser visto com

    mais respeito.

    As classes destinadas produo, cujos membros eram, antes, tratados

    simplesmente como servos, agora passam a ser consideradas alvo da evangelizao,

    devendo, assim, ser includas na instruo. Diz Manacorda: De fato, agora que

    comea a se propor novamente o problema do como e quanto instruir, a quem

    destinado no tanto ao domnio, mas produo (MANACORDA, 1989, p. 193).

    Vemos, portanto, como a concepo de instruo til passa a permear tambm o mbito

    do trabalho, atuando no sentido de valoriz-lo. De fato, passa-se a olhar com outra

    perspectiva as camadas subalternas e o trabalho por elas realizado.

    Com as transformaes econmicas, que provocaram mudanas no modo de

    produo, agora voltado para a produo de excedentes visando ao lucro, e com o

    incremento do comrcio e da produo agrcola em pequenos latifndios, a burguesia

    em ascenso passa a olhar para o trabalho como algo a ser valorizado, incentivado,

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    inclusive por se tratar de um meio para a salvao do homem. Tal interpretao se ajusta

    como uma luva s mutaes por que passava a sociedade naquele momento.

    Afirma-se, assim, uma viso positiva do trabalho como algo, embora oneroso

    para o homem que o pratica, tambm portador da oportunidade de mobilidade social, de

    ascenso por meio do esforo pessoal, viso essa amparadas no humanismo, como

    veremos mais a frente.

    Essa nova mentalidade sobre o trabalho encontra respaldo em novas

    interpretaes bblicas, sobretudo dos escritos do apostolo Paulo. Em sua Segunda Carta

    aos Tessalonicenses (captulo 3, versos 7-8), por exemplo, considera que o trabalho

    edifica aquele que o pratica, sendo este digno de seus frutos. Ele diz: Bem sabeis como

    deveis imitar-nos. No vivemos de maneira desordenada em vosso meio, nem

    recebemos de graa o po que comemos; antes, no esforo e na fadiga, de noite e de dia,

    trabalhamos para no sermos pesados a nenhum de vs. (BLBLIA, 2009 p. 1171).

    Vemos a um estmulo religioso que fundamenta e fortifica a nova concepo de

    trabalho, contrria que at ento predominava na sociedade servil e esttica e que o via

    como um castigo de Deus pelo pecado cometido pelo homem. Essa nova concepo do

    trabalho, que anda junto com as transformaes por que passava a sociedade, representa

    um estmulo aos trabalhadores (e, consequentemente, produo) e fornece os

    fundamentos ticos e religiosos para o novo modo de produo, o capitalismo.

    Antes o trabalhador produzia para seu prprio sustento, podia se ver no produto

    de seu trabalho, pois este era por ele controlado e repleto de significado. No entanto,

    esse trabalhador no era sociamente valorizado. Em meio a essas mudanas na base

    material da sociedade e a necessidade de produo em grande escala, tornou-se

    indispensvel uma nova viso do trabalho, a fim de justificar as novas relaes de

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    produo e a obteno de lucros. Para tanto, era preciso reler as cartas de Paulo. Na

    sequncia da passagem anterior (versos 10 a 12), diz o apstolo:

    Porque, quando ainda estvamos convosco, vos mandamos isto,

    que, se algum no quiser trabalhar, no coma tambm.Porquanto ouvimos que alguns entre vs andamdesordenadamente, no trabalhando, antes fazendo coisas vs.A esses tais, porm, mandamos, e exortamos por nosso SenhorJesus Cristo, que, trabalhando com sossego, comam o seuprprio po. (BBLIA, 2009, p. 1171).

    Assim como em outras passagens, aqui Paulo se refere ao trabalho como algo

    edificante, proveitoso e mesmo necessrio para justificar a retribuio com o alimento.

    Dessa forma, no perodo em questo, passa-se a enfatizar esta interpretao mais

    positiva do trabalho, que aponta para a possibilidade da mobilidade social por meio do

    esforo pessoal. Tal mentalidade vem ao encontro das mudanas econmicas que

    exigiam tambm mudanas sociais e culturais. De uma sociedade esttica, passa-se a

    uma outra, na qual, aparentemente, existem mais perspectivas e opes de ascenso.

    Novamente citando Paulo, desta vez em sua carta a Timteo, no captulo 5, verso 18, ele

    diz: Digno o obreiro do seu salrio. (BBLIA, 2009, p. 1172).

    Essa interpretao mais positiva do trabalho ser adotada, aprofundada e

    difundida pelos reformadores, visto que essa nova mentalidade era necessria para a

    consolidao da nova sociedade.

    A Igreja Catlica no negava inteiramente esta interpretao que dava valor do

    trabalho, mas preferia enfatizar outros aspectos, tambm legitimados biblicamente,

    como a valorizao da humildade, dos pobres, o alerta para os perigos das riquezas, a

    importncia de se esperar em Deus, como afirma o apstolo Tiago no captulo 5 de sua

    carta, versos 1 a 3:

    Eia, pois, agora vs, ricos, chorai e pranteai, por vossasmisrias, que sobre vs ho de vir. As vossas riquezas estoapodrecidas, e as vossas vestes esto comidas de traa.

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    O vosso ouro e a vossa prata se enferrujaram; e a sua ferrugemdar testemunho contra vs, e comer como fogo a vossa carne.Entesourastes para os ltimos dias (BBLIA, 2009, p. 1194).

    Ou, nas palavras do evangelista Marcos, no captulo 10, verso 25, que diz:

    mais fcil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino

    de Deus. (BBLIA, 2009, p. 983). Vemos nestes excertos como seria interessante para

    a Igreja Catlica dar esse tipo de nfase s riquezas, pois, na sociedade at ento

    instalada, a maioria do povo, as classes subalternas dificilmente conseguiriam ter acesso

    a tais bens. Naquela sociedade feudal esttica, portanto, era necessrio valorizar a

    humildade, o conformismo, a resignao de todos.

    Acredito que o contexto histrico onde so lidas as escrituras determina, em

    grande parte, a nfase dada pelas interpretaes, as quais esto de acordo com as

    necessidades dos interpretes e da sociedade, em cada momento histrico, pois os

    mesmos ensinamentos podem legitimar e sustentar perspectivas diferentes.

    Nos sculos XV e XVI, com o Protestantismo, que possui suas bases no

    humanismo, as necessidades individuais passam a ser vistas como relevantes, o esforo

    pessoal a ser valorizado como meio para adquirir o prprio sustento atravs do trabalho

    e se enfatiza a necessidade de um relacionamento pessoal com Deus atravs da leitura

    individual da Bblia, sem intermdio de terceiros.

    2.

    O papel da religio

    Segundo o historiador Jos Jardilino (2009), estudar o campo sociorreligioso da

    Europa dos sculos XIV e XV pisar em um terreno minado, pois interpretaes

    variadas se movimentam, desde o ponto de vista de um historiador catlico pessimista

    catastrfico, at o de um historiador protestante otimista,propenso a ver na Reforma

    um movimento de volta s origens da espiritualidade crist. Nas palavras de Jardilino:

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    O clima religioso do sculo XV retrata uma igreja doente emtodo o seu organismo, cabea e membros, e chamando pelaReforma, mas sem o prognstico de uma catstrofe, como a queestava para acontecer (Jardilino, 2009, p. 17).

    A Alemanha antes esttica, hierarquizada, feudal, na qual a escolarizao podia

    ser restrita a poucos, passa a ser uma sociedade em que a educao bsica se torna um

    aspecto importante tambm para as massas e no somente para o clero.

    A religio possui um papel estratgico na ao do homem na construo do

    mundo e de sua identidade. Com os avanos cientficos, particularmente nas teorias

    fsicas, levantam-se questes sobre o sentido da vida, a origem do universo e do

    homem, as quais fazem com que os indivduos questionem a religio, tal como ela ento

    se apresentava. Um dos aspectos questionados, por exemplo, era a celebrao das

    missas em latim, que poucos entendiam e das quais muitos participavam apenas por

    devoo e costume. De fato, um dos alicerces da Igreja Catlica era a manuteno das

    tradies e da ordem feudal instalada.

    O colapso no mundo medieval trouxe a necessidade de pertencimento, de

    identidade, de objetividade, pois at ento o subjetivo, o inexplicvel e a f serviam de

    justificativa para todas as perguntas relacionadas aos temas acima mencionados. Houve

    uma ruptura na forma de entender a relao entre o homem e a natureza, e a religio

    ento passou a desempenhar uma nova funo social: a de estabelecer valores que

    conduzam racionalizao das condutas dos indivduos naquele novo tipo de sociedade.

    A sociedade feudal estabelecia relaes de poder em que os donos da terra, os

    suseranos, utilizavam os vassalos como servos que trabalhavam em troca de proteo e

    de um lugar no sistema de produo. Nesta sociedade esttica, a nobreza, detentora de

    terras, arrecadava os impostos de seus vassalos, enquanto o clero detinha o poder

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    espiritual e tambm financeiro. Alm disso, a moral estabelecida, a forma de pensar e de

    se comportar eram moldadas pela religio.

    Segundo Manacorda (1989), grande parte da populao era desprovida de

    educao. Apenas os filhos dos nobres estudavam e esse ensino era marcado pela

    influncia da Igreja. Ensinavam-se o latim, doutrinas religiosas e tticas de guerras. A

    cultura, de maneira geral, era influenciada pela religio, j que a forma de pensar, de

    agir, as formas de trabalho, os hbitos e costumes nas relaes interpessoais, tudo isso

    era, em grande parte, ditados pela religio. De fato, a sociedade atribua grande

    importncia Igreja, pois esta era tida como guia para recorrer em todas as

    necessidades. At mesmo os prncipes e o Imperador estavam abaixo das autoridades

    papais. Vale lembrar que a Igreja tambm possua grande poderio econmico, por ser

    grande detentora de terras.

    Para demonstrar a funo ideolgica da religio, marcante na sociedade, Marx

    (1972) diz: A religio no passa de um sol ilusrio que gravita em volta do homem

    enquanto o homem no gravita em volta de si prprio (apud JARDILINO, 2009, p.

    17).1 O autor realiza um grande salto, o qual, obviamente, no seria possvel no

    contexto que estamos estudando, pois sua crtica mostra que a religio tem um papel de

    legitimar, justificar e deformar a realidade, e que deixa marcas na cultura e na viso de

    mundo da sociedade. Para ele, a religio tem, na verdade, um papel contraditrio: ao

    mesmo tempo em que falseia a realidade, tambm a revela, pois explicita a condio do

    oprimido que vive da alienao religiosa. Como se a religio fosse uma necessidade

    para o homem suportar as condies de explorao e misria em que vive, algo a que se

    1A crtica de Marx religio , em grande parte, baseada na posio de Feuerbach sobre esse tema. Aesse respeito, ver: MARX, 1991.

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    apegar e que o sustente, mesmo que se trate de algo ilusrio. A superao dessa

    alienao religiosa exigiria a superao das condies reais de explorao que tornam a

    religio necessria. Mas a presena dessa alienao e sua crtica tambm mostram a

    necessidade dessa superao. Como afirma Marx, (1991): A exigncia de abandonar as

    iluses sobre sua condio a exigncia de abandonar uma condio que necessita de

    iluses..

    Tal anlise, acredito, nos ajuda a compreender tambm o caso da sociedade da

    Alemanha do sculo XV, pois as questes econmicas se refletem diretamente nas

    questes sociais e culturais permeadas pela religio. Se um certo catolicismo era

    necessrio como alienao religiosa para que fossem suportadas as condies reais de

    explorao reinantes no feudalismo, alteradas essas condies por consequncia se

    modificaram tambm os mecanismos da alienao religiosa. A Reforma e o

    protestantismo vm, portanto, responder a essa nova realidade. E uma das formas pelas

    quais isso ocorrer ser pela introduo de uma nova concepo do trabalho.

    3. A pedagogia dos humanistas

    O humanismo uma corrente de pensamento e um movimento cultural que

    coloca no homem sua preocupao principal. Segundo Manacorda (1989), nenhuma

    outra cultura se no a humanista teria sido to sensvel aos problemas de formao do

    homem.

    O humanismo busca na racionalidade seu alicerce, entendendo que os interesses

    dos indivduos devem ser sempre considerados. Segundo Chaunu (1975), ele foi um

    instrumento de conhecimento e um meio de pensamento, no qual o sujeito colocado

    como centro. O autor revela que, nas universidades e com a secularizao do saber, o

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    humanismo contesta a autoridade imposta pelos conclios e pelo papa. Dentre as

    principais caractersticas do humanismo, podem-se destacar a afirmao do indivduo e

    a busca pelo retorno aos clssicos.

    Os estudos nas escolas humanistas baseavam-se no trip gramtica, dialtica e

    retrica. Nesse contexto, o retorno aos clssicos era uma reao escolstica e

    pedagogia medieval. Segundo Cambi (1999), essa nova pedagogia mudaria a imagem

    da infncia e da juventude, valorizando sua autonomia, na sua diversidade, ingenuidade,

    dando uma nova viso da criana que permear toda a cultura moderna e

    contempornea.

    Neste contexto, podemos perceber, segundo Jardilino (2009), duas tendncias

    bem determinadas neste modelo pedaggico do humanismo renascentista: uma

    tendncia que reivindica a liberdade do homem para desenvolver todas as suas

    potencialidades, longe dos obstculos que o prendiam, como regras e disciplinas. Isso

    porque, sendo o homem naturalmente bom, no deveria se privar de nada, mas sim,

    guiar-se pelo livre-arbtrio. O objetivo era alcanar o pleno desenvolvimento humano

    nos saberes, nas artes, nas habilidades fsicas e nos conhecimentos tanto prticos como

    tericos.

    Na escola medieval, a cincia estava relacionada com a arte e o formalismo

    dialtico. Na pedagogia humanista, por sua vez, a cincia se traduz como um saber

    positivamente conhecido. Representa conhecimentos das coisas e dos seres, enfocando

    saberes sobre a natureza e o mundo fsico, sobre o homem e sua histria. O que persistiu

    da pedagoga escolstica, predominante nas escolas monsticas que visavam, sobretudo,

    a conciliar a f crist com o pensamento racional, foi a presena da dicotomia entre o

    bem e o mal, com a ignorncia representando a expresso do mal.

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    A segunda tendncia pedaggica humanistas-renascentistas dessa poca aquela

    enfatizada por Erasmo de Rotterdam, pensador que esteve muito prximo do

    pensamento da Reforma. Um dos escritos importantes de Lutero consiste em uma carta

    direcionada a Erasmo. Em um primeiro momento, ambos mantiveram relaes de

    cortesia. Posteriormente, essas relaes se transformaram em um debate acirrado sobre

    temas teolgicos que os levou ao rompimento. Lutero buscou se reconciliar, mas no

    era de seu feitio tomar a iniciativa em situaes como essa. Ele mesmo se considera

    uma pessoa colrica. A referida carta rica para analisarmos as consideraes de

    Erasmo sobre a Reforma, e estar nos anexos deste trabalho.

    Segundo Jardilino, o pensamento erasmino sobre educao, embora circunscrito

    na Frana, estava em sintonia com as aspiraes da sociedade europeia de maneira

    geral, visto que seus escritos indicavam que, para ele, havia uma necessidade de um

    conhecimento cientifico universal, preocupando-se com a formao do professor mais

    do que com a do aluno, devendo o primeiro possuir um conhecimento enciclopdico.

    Para Erasmo, o saber simplesmente um recurso pedaggico do qual o professor lana

    mo para ensinar seus alunos, os quais deveriam aprender o essencial para praticarem o

    discurso e a retrica, seja pela oralidade seja pela escrita. Os professores teriam a funo

    de formar o gosto dos alunos pelo melhor. Esses no precisavam conhecer todos os

    autores e conceitos, mas atravs de uma boa explicao do professor, esses

    conhecimentos lhes poderiam ser acessveis.

    Para Erasmo, o estudo das lnguas possui um lugar de destaque, o que

    permanece como tradio no currculo da escola da Reforma. Na referncia de Jardilino:

    Mesmo considerando que a lngua nacional continuava sem oprestgio devido nos estudos, a pedagogia da Renascena aospoucos vai lhe dando melhor guarida, permitindo que os

    estudantes se expressassem para expor suas ideias e explic-las;

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    porm, o latim, continuava como estatuto de melhorinstrumento para a Educao. (Jardilino 2009, p. 39).

    Durante a transio da pedagogia medieval para a pedagogia da renascena,

    vemos a introduo de novos recursos pedaggicos, alguns em vigor at os nossos dias.

    Para Erasmo, para entender a arte de escrever no bastava o exerccio da leitura. O

    estudante deveria dedicar-se tambm escrita, valendo-se tambm da transcrio de

    ditados, ou cpia de palavras erradas para fixar a grafia correta. Os primeiros esboos

    do caderno de caligrafia, por exemplo, foram compostos nessa poca, com o ttulo de A

    Histria do Vocabulrio, no qual o aluno poderia exercitar sua escrita.

    Sabemos que as tendncias pedaggicas refletem as mudanas sociais de seu

    tempo. Erasmo e os demais humanistas estavam contribuindo para uma sociedade mais

    polida, o que, segundo Jardilino, era uma necessidade e uma exigncia para a ascenso

    social.

    A mobilidade social, fruto das rupturas econmicas ocorridas da sociedade, fez

    com que, pelo menos num primeiro momento, diminusse a distncia entre diferentes

    classes. As classes com maior poder aquisitivo sentiam-se prximas nobreza, gerando

    uma sensao de satisfao e um furor por ser bem sucedido.

    neste contexto que vemos nascer o pensamento pedaggico da Reforma, com

    Lutero na Alemanha e Calvino na Sua. Entretanto, neste estudo iremos nos deter

    somente ao pensamento do primeiro.

    Lutero compreendeu que a educao bsica seria uma das pilastras para sustentar

    o novo edifcio que viria a ser a Modernidade, reivindicando das autoridades a criao

    de um sistema educativo, uma escola universal para todos, em especial para os filhos e

    filhas dos camponeses, camada social mais frgil frente s mudanas ocorridas.

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    Antes, porm, de analisar seu pensamento pedaggico, convm relembrar alguns

    aspectos de sua vida que tambm auxiliam na compreenso desse pensamento.

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    CAPTULO II - MARTINHO LUTERO

    Segundo Chaunu (1975), a histria da igreja no pode ser somente uma histria

    coletiva, pois isso seria trair a verdade, visto que essa histria tambm a aventura

    individual de cada alma na sua relao com Deus, isto , a histria dos pecadores, dos

    santos e dos profetas, sem deixar de considerar que somos simultaneamente pecadores,

    santos e profetas.

    Lutero est no centro da Reforma. Desde que descobriu a salvao espiritual

    pela f, props uma nova hermenutica bblica, causando uma ruptura na forma

    tradicional de interpretar as Escrituras, antes acessveis apenas ao clero. Reivindica,

    ento, a universalizao desse acesso, de modo que todos possam compartilhar das

    verdades reveladas.

    Nasceu a 10 de novembro de 1483, em Eisleben, na Saxnia, Alemanha. Era

    uma localidade bem longnqua, com poucos professores, poucas escolas e uma

    implantao universitria tardia, longe do oeste alemo que era culturalmente denso.

    Sua famlia o batiza, como de costume, com o nome do santo do dia, Martinho. Ela

    passa por um processo de ascenso social, graas ao trabalho e inteligncia de seu pai,

    Hans, que segundo Lucian Febvre (1978) queria ser temido e amado, pois era severo,

    mas tambm terno.

    Nos sculos XV e XVI a principal forma de ascenso social era por meio da

    linhagem, pois as terras eram passadas por herana para o primognito da famlia. Hans

    Luther s seria realizado completamente atravs de seu filho Lutero. Este, porm, foge

    para o convento, rebelando-se contra o pai, que no se agradava com o meio de vida

    escolhido pelo filho. Lutero dir, posteriormente, que foi a severidade da famlia que o

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    fez ser tmido e querer estar em um convento, mas nunca contestou a pureza das

    intenes de seu pai. Em 1520 se reconciliam.

    Lutero inicia seus estudos na escola latina de Mansfeld. Ao conclu-los, passa

    algum tempo em Madeburgo e em Eisenach, onde tem o primeiro contato com a Bblia,

    que ele consultava na sala dos copistas. Ali se relaciona com grandes mestres,

    terminando seus estudos em gramtica e latim. Segundo Chaunu (1975), esse jovem j

    demonstrava uma grande piedade e inquietude em seu relacionamento com Deus.

    Esta inquietude se revela conforme se desenvolve sua relao com Deus, atravs

    da crena na justificao e na salvao atravs da morte e ressurreio de Jesus Cristo.

    Chaunu (1975) nos mostra que a educao de Lutero foi influenciada pela devotio

    moderna (devoo moderna), que compreende o apelo ao texto, mas, mais ainda, o

    apelo imagem, o que era muito presente na poca em questo. Vale lembrar que,

    tambm nessa poca, publicado o livro A Imitao de Jesus Cristo, de Toms de

    Kempis,convidando o cristo a participar da cruz de seu salvador e mostrando que a

    relao de Deus com o homem s pode ocorrer se for absolutamente gratuita. Com

    Jesus julgando os atos da humanidade, no se faz necessria mediao de terceiros,

    como a Virgem Maria e os santos.

    Chaunu (1975) revela que, por razes sociais e pedaggicas, o ensino tradicional

    da Igreja esfora-se por manter as pessoas mansas, espera de uma punio de Deus.

    Lutero, que viveu dentro deste contexto, descreve-o dizendo:

    Nunca era possvel fazer penitncias suficientes, nem cumpriras santas obras necessrias e por que, apesar de tudo,continuamos aterrorizados com a clera de Deus, aconselham-nos a virarmos para os santos que esto no cu e que se situamcomo mediadores entre Cristo e ns, ensinam-nos a rezar amada me amada me de Cristo, lembrando-nos que ela derade mamar a seu filho e que ela poderia muito bem pedir-lhe

    para moderar sua clera contra ns e assegurar sua graa(apud, CHAUNU, 1975, p. 78).

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    Aps concluir o mestrado em Erfurt, Lutero comea a estudar direito a pedido

    do pai, e nesse mesmo ano, 1505, ingressa na Ordem dos Eremitas Agostinianos.

    Alguns anos depois ordenado e celebra sua primeira missa e passa a lecionar filosofia

    moral em Wittenberg, ao mesmo tempo em que prossegue seus estudos de teologia.

    Mais tarde, torna-se bacharel e, depois, em 1512, doutor em teologia, passando a

    lecionar sobre os Salmos na Universidade de Wittenberg, onde ocupa a ctedra de

    Escritura Sagrada e faz prelees exegticas sobre os livros da Bblia. Foi tambm

    nomeado Superior no Convento.

    J em 1517, Lutero afixa as 95 Tesessobre as indulgncias e defende sua

    teologia em uma reunio dos Agostinianos, na porta da igreja castelo em Wittenberg,

    recusando-se a se retratar. Segundo Jardilino, Lutero entende a justia de Deus como

    uma justia passiva, com a qual Deus nos justifica pela f. Dessa forma, bate de frente

    com as autoridades papais e dos conclios. A Igreja Catlica, nesse momento histrico,

    impe a seus fiis indulgncias e penitncias que o cidado deveria pagar por sua

    salvao. Lutero entra em confronto com a Igreja, discordando dessa prtica, pois

    entende que a salvao se d pela graa de Cristo.

    Cabe esclarecer que Lutero escreve, primeiramente, 97 teses, as quais so

    destinadas a um jovem telogo, seu aluno. importante darmos ateno especial a esse

    acontecimento, pois, segundo Chaunu (1975), a historiografia tradicional se apega a

    uma cronologia curta, isolando as 95 teses, anteriormente citadas, das 97 escritas.

    Todas, no entanto, constituem um nico documento. Seu aluno deseja o bacharelado em

    teologia e Lutero escreve as Teses para que ele possa argumentar. As 97 teses possuam

    um contedo sobre a Teologia Escolstica e seu ttulo era Disputatio Contra

    Scholasticam Theologiam. Contudo, os professores da Universidade se recusaram a

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    lev-las discusso pblica. As 95 afixadas, na porta do Castelo em Wittenberg,

    poderiam ter outro impacto e possuam um propsito mais especfico do que o de se

    posicionar diretamente contra as indulgncias e a venda da salvao realizadas pela

    Igreja. Em uma de suas proposies, a de nmero 86, por exemplo, Lutero afirma que a

    fortuna do papa maior do que a de qualquer poderoso rei da Lbia, e que ele deveria

    construir a baslica de So Pedro com esse dinheiro e no com o dos cristos pobres.

    Lutero se apega graa de Deus, no reservando ao homem nenhuma

    participao na sua prpria salvao. Considera uma quimera o homem conseguir amar

    a Deus sobre todas as coisas, pois isso s poderia acontecer pela Sua misericrdia (tese

    5). Apoia-se na carta que Paulo envia aos efsios (captulo 2, versos 5 a 8), dizendo:

    Porque pela graa sois salvos por meio da f; e isso no vem de vs, dom de Deus.

    No vem das obras, para que ningum se glorie (...) somos criados para as boas obras,

    as quais Deus preparou para que andssemos nelas (BBLIA, 2009, p. 1152). Nessa

    mesma direo, afirma em sua tese 40: No nos tornamos justos ao fazer aquilo que

    justo, mas depois de nos termos tornado justos que praticamos justia.

    As teses 41 a 53 marcam a ruptura com Aristteles. Lutero afirma que a forma

    silogstica nada compreende das coisas de Deus, o que tambm representa grande

    ruptura com o passado, aps trs sculos de predomnio do pensamento escolstico.

    As 95 teses mostram concluses de uma experincia de vida crist. Segundo

    Chaunu (1975), a formulao Luterana oportuna e popular, e comea a expressar-se na

    forma de sermes que, retomados e modificados, sero multiplicados pela imprensa a

    partir de 1518. Sero lidos, traduzidos, difundidos e divulgados. Notamos, portanto, a

    relevncia da imprensa que surge nesse perodo tambm para difundir as ideias

    reformistas. Tal surgimento ser, tambm, um dos estmulos universalizao da

    instruo.

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    As crticas de Lutero coincidem em muitos aspectos com as do humanismo

    cristo. Lutero vai contra o egosmo de uma piedade que escapa vontade de Deus, que

    negocia e que troca. Censura, assim, as indulgncias e as penitncias, pois, segundo ele,

    quem teme o inferno corre para ele. O medo, na realidade, nunca produz nada que tenha

    valor, no sendo essa a motivao adequada para nos relacionarmos com Deus.

    Em 1520, escreve trs documentos fundamentais para a Reforma Protestante:

    nobreza crist da nao alem, O cativeiro babilnico da Igreja e A liberdade do

    cristo, os quais contribuem para que a Reforma se alastre pela Alemanha e Frana.

    Posteriormente, publica escritos sobre diversos temas sociais, mas relevantes para nosso

    estudo, pois tratam sobre sua viso de educao, organizados em Obra Selecionada, v.5

    sobre o ttulotica: fundamentos, orao, sexualidade, educao e economia.

    Tendo sido excomungado em 1521 pelo papa Leo X, pois se recusara a renegar

    seus escritos, e, no ms seguinte, condenado como hertico e proscrito, por fora de um

    edito, Lutero sequestrado e ocultado no Castelo de Wartburg, onde permanece cerca

    de um ano e onde d incio a traduo do Novo Testamento para o alemo. No ano

    seguinte, esta traduo publicada, juntamente com a obra Sobre a autoridade

    temporal.

    nessa poca que mantm correspondncias com Erasmo, nas quais discutem a

    doutrina da Reforma, em especial a polmica do livre-arbtrio. Em 1524 acontece uma

    revolta dos camponeses e Lutero escreve uma Carta aberta aos conselhos de todas as

    cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas crists. Em 1525 escreve

    Contra as bordas, criticando essa revolta. Nessa carta, considera que os camponeses

    deveriam ser impedidos de praticar tais atos contrrios ordem - inclusive por

    meio de violncia. Ele no mediu suas palavras, o que acabou servindo de

    justificativa para a violenta represso da revolta que ocorreu subsequentemente,

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    revelando algo importante sobre a postura poltica elitista de Lutero. Pois todo o

    tempo aparentemente busca ter uma atitude democrtica de ampliar o acesso

    leitura da Bblia e quebrar os privilgios do clero, entretanto apoia a nobreza contra

    os camponeses de maneira devastadora, em nome de manter a ordem social

    vigente.

    Ainda em 1525 escreve tambm O cativeiro da vontade, contra Erasmo. Neste

    ano casa-se com Catarina von Bora. Um ano mais tarde, nasce seu filho Hans e escreve

    a Missa Alem. Lutero passa a lutar contra enfermidades e intensa depresso. Escreve

    Castelo Forte, no mesmo ano em que nasce sua filha Elizabete. Posteriormente publica

    contra as ideias de Zungulio acerca da interpretao teolgica sobre a Eucaristia.

    Em 1526 foi estabelecido, pela Dieta de Spira, que os cidados de cada Estado

    eram livres para seguir a f que o seu prncipe achasse correta. Disso resultou um rpido

    crescimento do luteranismo. Porm, numa segunda assembleia, em 1529, compareceram

    em maioria os prncipes catlicos perante Carlos V e revogaram a deciso anterior,declarando a f catlica a nica legal, impedindo, desta maneira, o ensino luterano em

    todos os Estados. Isso causou uma grande intolerncia contra os luteranos, os quais

    passaram a ser designados como protestantes, pois os mesmos reagiram a tal decreto.

    Tambm em 1526, nasce sua filha Madalena, e Lutero publica o Grande

    catecismo e o Pequeno catecismo. Em 1530 morre seu pai.

    Como Lutero havia sido excomungado, no pde comparecer Dieta de

    Augsburgo, organizada na tentativa de pr um fim s divises religiosas do Imprio.

    Neste contexto, Filipe Melanchton, colaborador de Lutero, apresenta a obra Confisso

    de Augsburgo, uma declarao das convices luteranas, considerada um dos textos

    mais importantes para a Reforma. Nesse mesmo ano, Lutero publica o Sermo para que

    se mandem os filhos escola. Entre 1532 e 1539 escreve sobre os pregadores

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    infiltrados e clandestinos. Publica a Bblia alem completa, redige os Artigos de

    Achmalkald como seu testamento teolgico e, posteriormente, escreve contra os

    judeus em Contra os sabatarianos. Escreve tambm sobre osConslios da Igreja e a

    Exortao orao contra os turcos.

    Ao fim de sua vida, redige seu testamento e ainda as obras: Sobre os judeus e

    suas mentirase Contra o papado de Roma, uma instituio do diabo. Lutero morre em

    1546, em Eisleben, um ano aps o Conclio de Trento, que instaura a Contra-Reforma

    Catlica.

    Podemos observar facilmente a vastido da obra de Martinho Lutero, bem como

    o fato de que, tanto essa obra quanto sua vida, refletiram as circunstncias histrias por

    ele vivenciadas. Por conseguinte, a Reforma por ele liderada tambm representou uma

    resposta s necessidades trazidas por essas circunstncias. No h duvidas da

    importncia desse personagem para a histria. Em seguida, procurarei me aproximar um

    pouco mais de suas posies educacionais, esforando-me por identificar e compreender

    os avanos e permanncias que se podem verificar em seu pensamento pedaggico.

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    CAPTULO III - A ESCOLA PARA TODOS, PBLICA E OBRIGATRIA

    Jardiliano (2009) relata que muitos consideram Lutero no s como um agente

    que propiciou uma reforma religiosa, mas que permitiu tambm a libertao das mentes

    aprisionadas pelo escolasticismo, transformando-se em um grande reformador

    educacional e pedagogo da modernidade, pois possibilitou a criao de um novo sistema

    escolar que defendia o direito universal educao.

    De fato, Lutero produzia textos que alertavam e exortavam os poderes polticos

    para que criassem escolas pblicas em cada municipalidade. Alm disso, em seus

    sermes lutava para mudar a mentalidade medieval, que muitas vezes impedia os

    prprios pais de colocarem seus filhos na escola.

    Para Lutero, a ignorncia era um grande mal e a prosperidade da cidade estava

    diretamente ligada educao. Ele diz:

    [...] o progresso de uma cidade no depende apenas do acmulode grandes tesouros, da construo de muros de fortificao, decasas bonitas, de muitos canhes e da fabricao de muitasarmaduras [...] o melhor e mais rico progresso para uma cidade quando possuem muitos homens e muitas mulheres beminstrudos, muitos cidados ajuizados, homens bem instrudos,honestos e bem educados (LUTERO, 1995, p. 309).

    Segundo Jardilino (1995), no contexto do sculo XVI, as escolas estavam

    abandonadas, as universidades eram pouco frequentadas e os conventos enfrentavam

    profunda crise. Lutero exortava no somente as autoridades criao de escolas, mas

    tambm os pais que no se preocupavam que seus filhos estudassem sob o argumento

    de que j no iam seguir a vida clerical. A mentalidade era enviar os filhos para os

    estudos somente se os mesmos fossem se tornar padres. Lutero condena veementemente

    esse pensamento, pois o contexto social havia se alterado. Por isso, era importante

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    tambm que aprendessem uma profisso. H, aqui, uma clara relao entre a defesa da

    instruo para todos e as mudanas na base material da sociedade. A posio de Lutero,

    favorvel instruo universal, no pode ser interpretada apenas do ponto de vista

    religioso e tico, mas tambm em sua relao com as mudanas na base material da

    sociedade. Ele afirmava: o que se aprendeu at agora nas universidades e conventos a

    no ser ficar burro, grosso e estpido? Houve quem estudasse vinte, quarenta anos e no

    sabe nem latim, tampouco alemo (Lutero, 1995, p.306).

    1. A pedagogia Luterana

    A escola da Reforma uma outra escola do humanismo, mais pragmtica.

    Distancia-se do projeto pedaggico renascentista-humanista, pois se prope um projeto

    de educao universal. Anteriormente Reforma, no havia surgido essa preocupao

    com a universalidade do ensino. Vemos, portanto, que as mudanas no contexto

    sociopoltico, como mostra Jardilino, exigiram essa nova forma de capacitar os sujeitos

    para a nova realidade do sculo XVI, isto , para as novas condies do trabalho e da

    produo.

    Sobre o financiamento da educao, Lutero afirma que seria muito mais

    importante fazer doaes em seu favor, do que, a cada ano, levantarem-se grandes

    somas para as armas, as pontes, as estradas e inmeras obras. Mais importante que tudo

    isso seria destinar esses recursos para que a juventude tivesse professores bem

    preparados. Para Lutero, no priorizar a educao era um pecado cometido pelos pais e

    pelas autoridades: pelos pais, por no enviarem seus filhos s escolas; pelas autoridades,

    por sua omisso da responsabilidade de educar os jovens. Segundo Jardilino:

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    As exortaes do reformador esto dentro de um quadro maior,de um contexto sociopoltico e econmico que exigia uma novamaneira de formar o sujeito para aquela sociedade. Formar ecapacitar pessoas no para viverem na erudio do palcio, maspara darem conta das grandes exigncias que se avizinhavampara a sociedade do acelerado sculo XVI (JARDILINO, 2009,p. 47).

    Lutero reconhecia que a reforma da educao associava-se a uma reforma

    poltica: o Estado deveria arcar com o nus da educao de seus cidados. Segundo

    Jardilino, essas ideias so o arcabouo da modernidade. Em primeiro lugar, porque

    rompem com a poltica de exclusividade da educao a uma aristocracia; em segundo

    lugar, porque, ao proporem uma escola inclusiva voltada a todos, tanto pobres como

    remediados, pressupunham a obrigatoriedade de se buscar uma nova metodologia de

    ensino.

    Jardilino afirma que essa pedagogia prope-se uma perspectiva mais ldica;

    altera-se a concepo da criana, como veremos adiante, que at ento era considerada

    como pequeno adulto; almeja-se, ainda, uma escola para alm do conhecimento

    especulativo do humanismo renascentista, pois se entende que a aprendizagem deve ter

    um interesse e um fim: a verso luterana da escola para o trabalho.

    H, aqui, uma noo de que a educao possibilita o trabalho e, dessa forma, a

    ascenso social, noo essa que ser assumida posteriormente pelo liberalismo. Essa

    ideia defendida por Lutero se propaga rapidamente, produzindo e generalizando acrena de que o acesso escola pode aumentar as possibilidades de ascenso social.

    2. De quem o dever de educar?

    Para Lutero, a educao tarefa igualmente secular e religiosa. Sendo assim,

    educar um dever dos pais e uma responsabilidade do Estado. Aos primeiros cabe

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    educao moral dos filhos, dando-lhes a oportunidade de adquirir um bem maior, qual

    seja, a salvao. Negligenciar esse dever seria incorrer em pecado. Ao Estado cabe a

    educao formal, mediante a instaurao, sustentao e o controle da escola pblica,

    gratuita e obrigatria para todos.

    Assim, era inadmissvel que pais e autoridades no cumprissem sua

    responsabilidade e esse desejo divino de educao para a juventude. Podemos ver,

    portanto, o contedo sociopoltico no projeto pedaggico da Reforma. Segundo

    Jardilino, ao afirmar o direito escola, indica a responsabilidade do poder pblico no

    processo de formao do homem moderno.

    Vale lembrar que, neste contexto, no existia mais a obrigatoriedade de enviar os

    filhos aos conventos, o que trouxe, de inicio, um grande problema para a educao da

    juventude. Isso porque, como no existe mais a perspectiva dos filhos se tornarem

    padres ou freiras, os pais passam a imaginar que no h mais necessidade de os mesmos

    serem instrudos. Da as inmeras exortaes de Lutero para que enviem seus filhos s

    escolas, enaltecendo a importncia e a relevncia da educao. Em suas palavras:

    [...] todas essas grandes obras [ofcios, governos, principados]podem ser realizadas por teu filho, podendo ele tornar-se essapessoa til, se o encaminhardes para essa carreira e omandardes estudar. E tu podes participar de tudo isso,investindo teu dinheiro de modo excelente (LUTERO, 1995, p349).

    Lutero argumenta que a educao, embora crist, deve ir alm da formao

    eclesistica e que, para tanto, preciso que os pais, no apenas enviem seus filhos

    escola, como tambm ajudem a custe-la, quando for o caso. Isso poderia ser feito por

    meio de doaes a essa causa primordial. Considera, tambm, que a razo principal de

    nossa existncia a educao da juventude e que no existe nenhum pecado maior

    perante Deus do que negligenci-la contra as crianas. Em suas palavras:

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    De que nos valeria se, no mais, tivssemos e fizssemostudo e fssemos todos santos, mas deixssemos de fazertudo aquilo que a razo principal de nossa existncia: aeducao da juventude? Em minha opinio, nenhum

    pecado exterior pesa tanto sobre o mundo perante Deus e

    nenhum merece maior castigo do que justamente o pecadoque cometemos contra as crianas, quando no aseducamos (apud, Jardilino, 2009, p. 85).

    3.O ofcio de ensinar e o currculo escolar

    Para Lutero, o ofcio de ser professor s no era mais importante do que o de ser

    pastor, pois ambos dignificavam o homem. Ele diz:

    [...] se pudesse ou tivesse que abandonar o ministrio dapregao e outras incumbncias, nada mais eu desejaria tantoquanto ser professor ou educador de meninos. Pois sei que aolado do ministrio da pregao, esse ministrio o mais til, omais importante e o melhor. Inclusive duvida sobre qual deles o melhor (LUTERO 1995, p. 359).

    Cambi (1999) afirma que, com o protestantismo, tem-se o princpio da

    pedagogia como direito-dever do cidado em relao ao estudo, no estando mais o

    indivduo condicionado a uma relao mediada pelo princpio da autoridade, segundo o

    qual a verdade era monoplio de alguns (clero). Uma vez alfabetizado, ele poderia ler as

    Escrituras, interpret-las e se relacionar com Deus de forma autnoma.

    Sobre a formao dos professores, vemos que a obra educativa de Lutero um

    verdadeiro elogio ao ato de ensinar. Por conseguinte, para ele, a preparao daquele que

    ensina tambm se faz primordial. Da a necessidade de que haja gente especializada

    para educar as crianas, em vez de confiar essa tarefa simplesmente aos mais velhos

    que, por vezes, no possuem aptido para ela. Deve-se evitar esse equvoco, pois, do

    contrrio, as crianas nada aprendero a no ser encher a barriga (apud, Jardilino,

    2009, p. 86).

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    Para Lutero, mesmo que os pais fossem aptos a assumir esse papel e desejassem

    faz-lo, eles no teriam tempo nem espao em face das outras atividades e servios

    domsticos dos quais devem se encarregar. Portanto, preciso manter educadores

    comunitrios para as crianas, pois seria oneroso demais para um cidado comum

    cumprir tal tarefa. Certamente, as famlias mais ricas so privilegiadas em face dessa

    exigncia, pois tm condies de manter um educador para seus filhos. Lutero afirma

    que ser da competncia do conselho e das autoridades dedicar maior cuidado e o

    mximo de empenho juventude (apud, JARDILINO, 2009, p. 87).

    Para Jardilino, no contexto em questo, a educao passaria a ter novas

    exigncias, tais como preparar os jovens para ofcios e preparar professores

    qualificados, j que um ofcio oneroso:

    [...] Existe a necessidade de formar professores afinados comessa nova perspectiva de formao. A diviso de classes,mencionada por Lutero, nessa nova sociedade, deve continuar,mas agora com maiores possibilidades de ascenso, desde que o

    estudo seja prioridade. Os mestres-escola no devero mais seconformar em ensinar aos filhos dos pobres a leitura, a escrita eo clculo, pois isso s j no basta. (JARDILINO, 2009, p. 68).2

    O professor j no somente o erudito que conhece toda a literatura dos antigos;

    o estudo das lnguas resinificado para atender s necessidades de comunicao e de

    conhecimentos do comrcio entre os povos, caracterstica do novo contexto social.

    Para ensinar e educar bem as crianas e a juventude, como j foi dito,

    necessrio gente especializada. Lutero advoga um estudo mais prolongado e intensivo

    para as pessoas que se qualificam para os cargos de professor, de pregador e outras

    funes, chegando mesmo a defender que se dediquem exclusivamente aos estudos.

    2

    A ideia de que a diviso de classes pode continuar e que o acesso instruo permite a ascenso socialser, posteriormente, um dos pilares principais da concepo liberal da educao.

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    Quando analisamos a biblioteca proposta por Lutero, tambm podemos ver as

    orientaes curriculares por ele recomendadas. Segundo Jardilino, animado com os

    avanos do humanismo, com o progresso das artes grficas e com a publicao de

    muitos livros, ele exorta as cidades no somente a criar e manter bibliotecas, mas

    tambm a que ingressem no universo da cultura, implantando acervos da formao

    geral. Dizendo que as bibliotecas so um grande veculo na municipalidade, adverte os

    conselhos da necessidade de difundir essa cultura para o povo. No entanto, de certa

    forma, tambm recomenda uma censura ou, pelo menos, uma seleo, como ele diz,

    no que se refere aos critrios de escolha das obras que devem compor o seu acervo. Ele

    diz:

    Meu conselho, porm, no que se ajunte toda a sorte de livros,indiscriminadamente e que se pense somente na quantidade delivros. Eu iria fazer uma seleo [...]. Em primeiro lugar deveriafigurar a Sagrada Escritura em latim, grego, hebraico, alemoou em outras mais lnguas. Depois os melhores intrpretes e osmais antigos, ambos em grego, hebraico e latim, onde quer quepudesse encontrar. Depois livros teis para aprender as lnguas,

    como por exemplo os poetas e oradores, sem perguntar se sogentios ou cristos, gregos ou latinos. Pois deles que se deveaprender a Gramtica. Depois deveriam vir os livros sobre asartes liberais (Aritmtica, Msica, Geometria, Astronomia) eoutras disciplinas. Por ltimo tambm livros jurdicos e demedicina, embora tambm aqui se faa necessria uma seleoentre os comentrios. Entre os mais importantes, porm,deveriam constar as crnicas e compndios de Histria emqualquer lngua que seja. Pois estes so maravilhosamente teispara entender o curso do mundo e para govern-lo, mas tambmpara enxergar os milagres e obras de Deus (LUTERO, 1995 p.324).

    Neste trecho vemos que Lutero avana em relao ao perodo anterior - da

    Escolstica - no sentido de recomendar tambm a leitura de obras no-crists, pois no

    se deve ter esse tipo de preconceito ao se ler um livro com o objetivo de aprender a

    gramtica, por exemplo. interessante essa abertura para acolher livros gentios, pagos.

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    Tal atitude parece indicar um esforo de superao do conflito entre f e razo,

    predominante no perodo anterior.

    O estudo da lngua, vemos ser importante e relevante, tambm algo presente naproposta educativa reformadora, como consequncia dos ideais do movimento

    humanista, com a propagao do Renascimento na Alemanha. Tambm como forma de

    alcanar o objetivo inicial reformador: que os cristos tivessem no somente livre

    acesso Bblia, mas fossem capazes de interpret-la sem mediao. A aprendizagem

    das lnguas seria, ento, um instrumento para a garantia da liberdade do cristo no

    conhecimento da Escritura.

    O novo currculo proposto, portanto, tem a Bblia como cerne do ensino e, para

    melhor estud-la, prope o aprendizado das lnguas antigas, como o hebraico, o grego,

    alm do latim, consideradas santas e necessrias para um estudo mais aprofundado do

    Velho e do Novo Testamentos.

    4. As relaes de gnero, a educao da mulher

    Podemos destacar, dentro dos temas abordados por Lutero, tambm a ateno

    com as condies das mulheres. Segundo Jardilino, Lutero demonstrava preocupaes

    com o destino das mulheres que eram violentadas ou, no caso das mais pobres, que se

    tornavam prostitutas. Em seu texto A nobreza crist da nao alem, exorta

    eliminao dos bordis, incentiva o casamento, trata dos assuntos matrimoniais,

    noivado, relao sexual, adultrio e divrcio.

    Lutero defende a criao de escola para mulheres em todas as cidades. No

    entanto, apesar desses e outros avanos, h tambm permanncias em suas posies. E,

    no que se refere questo de gnero, considero que Lutero teve ao menos uma

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    permanncia significativa: a educao feminina, para ele, deveria priorizar o preparo

    para o exerccio das tarefas domiciliares. De todo modo, preciso reconhecer que ele

    valoriza a educao de ambos os sexos. E, ao no preterir as mulheres, demonstra uma

    mudana de postura, embora relativa, em relao a elas. Em suas palavras:

    [...] tambm o mundo precisa de homens e mulheres excelentese aptos para manter seu estado secular exteriormente para queento os homens governem o povo e o pas, as mulheres possamgovernar bem sua casa e educar bem os filhos e a criadagem(Lutero, 1995, p 318).

    As mulheres e os homens devem ter acesso escola igualmente, entretanto com

    distintos fins para cada um, com base no mesmo currculo e com professores de

    qualidade que ensinem bem as lnguas e outras disciplinas para capacit-los cada qual

    para o exerccio de seu papel na sociedade. No entanto, para ele, as mulheres deveriam

    despender menos tempo do que os homens na escola, a fim de dar conta das tarefas

    domsticas. Diz Lutero:

    Tambm uma menina pode dispender diariamente uma horapara ir escola e, ao mesmo tempo, cumprir perfeitamente suastarefas domsticas. Porque seguramente gastam muito tempo,com dormir, danar e jogar (Jardilino, 2009, p. 92).

    Segundo Jardilino, as mulheres possuem dupla jornada de trabalho. E, assim

    como atualmente ainda existem profisses, como a de professora, estigmatizadas com o

    smbolo feminino, tambm no sculo XVI as mulheres poderiam estudar e se formar,

    mas s lhes restaria o oficio de professoras. Isso indica que cabia s mulheres a tarefa de

    ser me e de educar seus filhos e os da vizinhana, o que no deixava de representar

    certo avano para a poca, no sentido de indicar para a mulher um papel social que ia

    alm do ambiente interno famlia. Abriam-se, para ela, ainda que de forma bastante

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    restrita, possibilidades de realizar um trabalho do qual poderia extrair sua subsistncia,

    valendo-se de sua formao, assim como ocorria com os homens.

    Vemos, portanto, que Lutero no chega a propor uma igualdade de gnero, o que

    talvez fosse esperar demais para um homem de seu tempo. A despeito dos possveis

    avanos em suas posies, sua exortao para que as mulheres disponham de menos

    tempo na escola para poderem se dedicar aos afazeres domsticos, desvela, tambm, seu

    compromisso com a manuteno da ordem social.

    5. A dimenso ldica na proposta educacional reformada: mtodos de

    ensino

    Como j foi mencionado, no contexto aqui examinado o conceito de infncia -

    segundo o qual a criana era um adulto em miniatura - tambm estava passando por um

    processo de transio. Neste aspecto Lutero se antecipou ao seu tempo em termos

    pedaggicos. Segundo Jardilino, sua concepo de infncia ressaltava a importncia do

    prazer na arte de brincar, pular e danar.

    Nos quadros espalhados nos museus da poca tambm se observa a insero de

    movimento, com crianas representadas brincando, por exemplo. Tambm nas peas

    teatrais aparece a descrio de crianas com brinquedos, alguns conhecidos at hoje,

    como o cavalo de pau, o cata-vento, o pssaro preso a um cordo. H tambm alguns

    brinquedos parecidos com bonecas. No sculo XVI, a dana tambm se fazia um dos

    elementos de expresso ldica das crianas e da juventude.

    Lutero pretendia incluir esses aspectos ldicos na educao:

    Ora, a juventude tem que danar e pular e estar sempre procura de

    algo que cause prazer. Nisso no se podia impedi-la nem seria bomproibir tudo. Por que ento no criar escolas desse tipo e oferecer-lhesestas disciplinas? Visto que, pela graa de Deus, est tudo preparado

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    para que as crianas possam estudar lnguas, outras disciplinas eHistria com prazer e brincando. Pois as escolas de hoje j no so maiso inferno e purgatrio de nossas escolas, nas quais ramos torturadoscom declinaes e conjugaes, e de tantos aoites, tremor, pavor esofrimento no aprendemos simplesmente nada. [...] Falo por mimmesmo, se eu tivesse filhos e tivesse condies no deveriam aprenderapenas as lnguas e a Histria, mas tambm deveriam aprender a cantare estudar msica com matemtica. Pois o que tudo isso a no sermeras brincadeiras de crianas nas quais os gregos outrora educaramsuas crianas e do que resultavam pessoas excelentes, preparadas paratoda sorte de atividades (LUTERO, 1995, p. 319).

    Podemos ver aqui a magnitude das ideias de Lutero que, atravs da sua prpria

    experincia escolar diretiva, maante, repleta do temor das autoridades e com cpias em

    demasia, aponta a necessidade de aprender com prazer e questiona a forma medieval

    como o ensino era conduzido. Assim, valoriza no somente os jogos, mas tambm a

    importncia do ensino da msica e do canto. Questionando os mtodos aplicados para

    disciplina, afirma:

    Quando a disciplina aplicada com maior rigor e tem resultado,o mximo que se alcana um comportamento forado ou derespeito; no mais continuam sendo meras toras, que no temconhecimento nem nesta nem naquela rea, no sabemresponder nem ajudar a ningum (apud, Jardilino, 2009, p. 91).

    Prope que a escola seja um local de ordem, que haja disciplina sim, mas de

    forma diferenciada dos mtodos medievais que, segundo ele, levavam apenas a um

    comportamento forado. Valoriza uma aprendizagem com sentido, devido sua prpria

    experincia escolar e familiar, na qual a disciplina dura fora utilizada.

    Neste contexto, obviamente, ainda no h as contribuies de Vigotski, que s

    muitos anos mais tarde ressaltaria a importncia do brinquedo para a criana,

    ensinando-lhe novas formas de desejos, de relacionamentos com o eu fictcio dentro

    de um jogo, a importncia das regras como base da ao real e da moralidade do sujeito.

    Novamente encontramos aqui um grande avano na obra de Lutero.

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    Por outro lado, vemos tambm, nos escritos educacionais de Lutero, muitas

    permanncias. Por exemplo, com relao ao ensino diretivo, exorta o professor a manter

    sua autoridade com clareza, de modo a cuidar do desenvolvimento da criana dentro

    de uma determinada ordem, para que dessa forma cresa adequadamente. Ele diz:

    Deixaram a juventude crescer como as rvores no mato, sem sepreocuparem como ensinar e educ-la; por essa razo sedesenvolveram de modo to deformado que no servem paranenhuma construo, havendo uma capoeira imprestvel, tilsomente para o fogo (apud Jardilino, 2009, p. 88).

    O protestantismo, onde quer que tenha chegado, carregando consigo o ideal de

    mudanas sociais, tinha a educao como seu principal aliado. , de fato, uma religio

    do livro, do discurso da importncia da leitura e da escrita na lngua materna, pois a

    mesma essencial para se entender o sermo do pastor, para se ler e interpretar a Bblia

    e para se cantarem os hinos nos servios religiosos. Segundo Jardilino, a Escola, seja ela

    colgio, universidade ou paroquial, um instrumento necessrio para implantao e

    permanncia do protestantismo em qualquer lugar. H, portanto, tambm um objetivo

    de defesa da nova religio, ao defender a escola para todos.

    Para Jardilino (2009), aparece com a Reforma uma estrutura mais

    democratizante, j que sua concepo religiosa baseada na fora leiga e sua doutrina

    do sacerdcio universal considera a todos como responsveis por proclamar as verdades

    de Cristo, pois todos possuem essa ordenana. Alm disso, entende o relacionamento

    pessoal com Deus como menos dependente dos superiores. A ascenso do leigo na

    estrutura religiosa protestante tambm alimenta a atmosfera de promoo social.

    O magistrio, as classes mistas, os novos mtodos pedaggicos e as disciplinas

    que valorizam o trabalho, a educao fsica, do corpo e o divertimento, sempre

    estiveram presentes na proposta desse novo sistema educacional reformista.

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    Em suma, dentre os aspectos caractersticos da pedagogia da Reforma, mais

    precisamente, da pedagogia luterana, podemos destacar os seguintes: a afirmao do

    dever do Estado de educar o povo; a atribuio aos pais do ofcio de educar moralmente

    os filhos; a exortao dos mesmos para que enviem seus filhos escola; certo avano na

    forma de enfocar as relaes de gnero, permitindo o acesso das mulheres educao,

    mas ainda defendendo que elas deveriam permanecer responsveis pelos afazeres

    domsticos; a ludicidade contida nos mtodos de ensino, inserindo msica, canto e

    jogos dentro de sua proposta pedaggica; o valor que dado ao ofcio de educar e o

    reconhecimento de quo onerosa sua realizao, razo pela qual ela deve ser custeada

    pelo Estado com a colaborao dos pais. Esses e outros aspectos trariam relevantes

    transformaes para educao resultante da Reforma religiosa.

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    CONCLUSO

    Martinho Lutero, protagonista da Reforma Protestante , sem dvida, uma

    referncia no que diz respeito importncia histrica da tomada de conscincia do

    carter laico e estatal da instruo e de sua concepo como um fundamento do prprio

    Estado. Alm disso, ele buscou incentivar o respeito pelo trabalho manual produtivo,

    preocupando-se em oferecer uma instruo mais til s camadas subalternas. Entretanto

    sabemos que todas as mudanas sociais so permeadas por interesses econmicos,

    polticos, sociais, enfim, interesses de classe, mais ou menos conscientemente

    assumidos, de modo que no existem escolhas neutras. Cada deciso revela algo do

    sujeito e do contexto em que ele est circunscrito.

    Vimos como o contexto europeu do sculo XV, as transformaes na base

    econmica da sociedade e a implantao do capitalismo fizeram com que surgissem

    mudanas tambm nas demais instncias da sociedade.

    Imps-se a necessidade de uma nova formao para o homem, que atendesse s

    demandas desse novo contexto. Demandas que determinaram transformaes na cultura

    como um todo: nas formas de relao entre os homens, nas crenas, nos valores, nos

    costumes, enfim, na viso de mundo hegemnica. A religio e a educao no foram

    excees.

    No Antigo Regime, a Igreja Catlica detinha a hegemonia no somente no

    mbito econmico, mas tambm no plano cultural, na produo e reproduo das vises

    de mundo que se tornavam senso comum. Em outros termos, ela possua fora

    suficiente para legitimar as relaes verticais que predominavam na sociedade. Tudo

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    passa a ser questionado e modificado a partir das transformaes sofridas pela

    sociedade, as quais geraro a necessidade de mudanas tambm no plano cultural,

    religioso, enfim, no mbito da superestrutura.

    Com esse trabalho pude constatar como, dependendo do contexto e das

    necessidades da sociedade, as instituies religiosas, quaisquer que sejam elas,

    assumem um papel muito semelhante: o de contribuir para os interesses de alguns

    grupos, ainda que, individualmente, alguns de seus membros possam faz-lo de forma

    inconsciente. Como revela Marx, a religio cumpre um importante papel na legitimao

    e manuteno do modo de produo. Assim, da mesma maneira como, a princpio, a

    Igreja Medieval cumpria seu papel legitimador das relaes de opresso existentes, o

    Protestantismo tambm buscou autenticar as novas relaes que passaram a existir com

    o incremento do comrcio e o advento do capitalismo, ajudando a forjar uma nova

    concepo de trabalho, mais compatvel com a sociedade nascente.

    Martinho Lutero, com o objetivo de possibilitar para todo o povo uma religio

    crist genuna, que em sua perspectiva deveria guiar a vida, questiona a ordem religiosa

    at ento instalada. Com isso, a educao passa a ter um novo sentido, tornando-se algo

    de vital importncia para se aprender um oficio e se ser til para a sociedade.

    Procurei com este trabalho ressaltar o grande movimento de mutao sociolgica

    que foi a Reforma Protestante do sculo XVI, bem como algumas das repercusses que

    ela trouxe para a escola, que foi apenas uma das instituies, das inmeras esferas da

    sociedade, atingidas por esse movimento.

    Pude observar como Lutero trouxe para a educao um olhar mais pragmtico

    que no existia at ento, pensando inclusive nas massas populares. Para os

    reformadores, a educao no possua um fim em si mesma, nem se constitua como um

    instrumento de reflexo e de conhecimento do mundo. Antes, ela se fazia uma

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    ferramenta para o aprimoramento da participao e das responsabilidades dos

    indivduos na sociedade.

    Procurei ressaltar, ainda, que, ao olharmos para a educao proposta por Lutero,

    primeiramente com o objetivo de instruir para que todos tivessem livre acesso s

    Escrituras, vemos alguns avanos importantes, mas tambm algumas permanncias.

    Quanto aos avanos, podem-se destacar: a preocupao em expandir o ensino

    para todas as camadas da sociedade, independentemente da classe social e do gnero; a

    atribuio ao Estado da responsabilidade de construir, manter e gerir escolas, mas ainda

    colocando a famlia como responsvel por educar moralmente e enviar seus filhos para

    essas instituies; a afirmao da necessidade de que haja educadores bem preparados; a

    preocupao em manter bibliotecas para que mais pessoas pudessem ter acesso a uma

    diversidade de livros; a abertura para incluir no rol de livros aceitos tambm aqueles

    no-cristos, mas que tivessem contedos interessantes, das mais diversas reas, e que

    pudessem contribuir para a formao do indivduo; um novo olhar para a infncia, com

    a incluso nas atividades escolares de jogos, brincadeiras, canto, msica, enfim,

    elementos ldicos que at ento no estavam presentes na vida daqueles poucos que

    alcanavam o privilgio de estudar.

    Com relao s permanncias, considero que uma das principais se refere

    insero da mulher na sociedade, reservando a ela um tempo menor de permanncia na

    escola e mantendo-a presa ao papel social de me e responsvel pelos servios

    domsticos.

    Confesso que, durante a realizao deste trabalho, fiquei em dvida se Lutero foi

    um personagem anacrnico ou se foi fruto de seu tempo. Entendo agora que ele foi um

    pouco das duas coisas: certamente, foi em grande parte condicionado por seu tempo,

    mas tambm revela alguns anacronismos em sua histria, pois realmente, sob vrios

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    aspectos, destoou dos usos e costumes de sua poca, batendo de frente com a Igreja

    qual dedicou sua vida, influenciando muitos e repercutindo at atualidade.

    Existem muitos aspectos que mereceriam aprofundamento, e outros tantos no

    abordados nesta pesquisa, como por exemplo, os que envolvem a repercusso da

    Reforma na modernidade e na contemporaneidade. Estud-los, certamente, seria

    relevante, pois podem existir influncias muito positivas na atualidade, que foram

    deixadas pelo iderio humanista e laico. O caso do Brasil, devido s influncias do

    Catolicismo, tanto como religio quanto como corrente de pensamento predominante

    desde os anos quinhentos, mereceria ser olhado de uma perceptiva particular.

    Neste trabalho ative-me aos sculos XV e XVI, na Alemanha, e ao advento da

    Reforma, procurando responder questo inicial sobre os impactos desse movimento na

    educao, destacando a instituio da escolarizao universal, que se constituiu como

    um grande marco histrico.

    Ao conclu-lo, entendo quo significativas foram as influncias deixadas pela

    Reforma na educao, muitas das quais perduram at os dias de hoje. Tais influncias

    tornaram o ensino mais pragmtico, democrtico e, principalmente, introduziram

    definitivamente a preocupao de que ele fosse acessvel a todas as camadas da

    sociedade, incluindo pobres e mulheres, e a exigncia de que a responsabilidade por

    garantir esse acesso fosse assumida pelo Estado. De fato, esse talvez tenha sido o

    principal legado da Reforma para a histria da educao.

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