Os discursos da medida de segurança
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO
MARCO AURÉLIO BASTOS DE MACEDO
OS DISCURSOS DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO PENAL E PSQUIATRIA NO CONTRO LE SOCIAL
DA LOUCURA
Feira de Santana 2008
1
MARCO AURÉLIO BASTOS DE MACEDO
OS DISCURSOS DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO PENAL E PSQUIATRIA NO CONTRO LE SOCIAL
DA LOUCURA
Monografia apresentada ao Curso de graduação em Direito, Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientadora: Prof. Dra. Marília Lomanto Veloso.
Feira de Santana 2008
2
A Inês Bastos, minha mãe, por garantir, incondicionalmente, todo o suporte necessário à confecção deste trabalho. A Tia Bel, in memorian, pelos exemplos de vida e pela sugestão de cursar Direito. Aos internos do Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador-BA, por me emprestarem suas histórias de vida para a realização da presente pesquisa. A todos e todas que lutam, que não se calam, que fazem de sua “loucura” cotidiana um meio de resistir à opressão.
3
AGRADECIMENTOS
A Marília Lomanto, minha “guerreira” orientadora, pela atenção, dedicação e criticidade. A Riccardo Cappi, meu “desorientador” e amigo, por acompanhar esta “loucura monográfica” há alguns anos, entre as salas de aula e as mesas de bar. A Denise Tourinho, por ter gentilmente aceitado o convite para participar da banca. Aos funcionários e funcionárias do Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador-BA, especialmente, a Dr. Paulo, Rogério, D. Vera, Janete, Val, Gilsélia e Rose, por deslocarem a atenção de seus trabalhos para atender aos meus pedidos e esclarecer minhas dúvidas. Aos amigos Jhon, Ivonete e Mirna, pelas valiosas contribuições ao texto. A Flávia e Adriana, pelo auxílio metodológico e incentivo ao projeto. A Lívia, pela acolhedora hospedagem durante toda a realização da pesquisa de campo, e a Núbia, pela igualmente acolhedora “permissão de uso” da biblioteca. A Tati, Larissa e Lilian, pelos (importantíssimos!!!) livros emprestados. A João, Kiko e Mirela, companheiros de angústia monográfica, por não me deixarem sentir solidão nessa jornada. A Augusto, por compreender minha necessidade de usar o computador, e a Eduardo, meu pai, por ter mandado o lap-top, instrumento fundamental para os últimos momentos. A minha prima Giuliana, por se perder em São Paulo para tirar cópias dos livros que não encontrei por aqui, e a Mariana, minha irmã, pelas cópias soteropolitanas e por outros milhares de auxílios impagáveis. A Lorena, pela inspiração, pelo carinho, por trazer mais “loucura” à minha vida, e por compreender, não sem imprescindível resistência, minha ausência e impaciência durante os turbulentos estágios de confecção do texto. Por fim, a todos aqueles que os limites desta página não me permitem enumerar, mas contribuíram significativamente para a construção deste trabalho, e aos quais devoto inesquecível gratidão.
4
[...] E como seria bom se uma tromba d'água caísse, fizesse um buraco no chão, que para se ver o fundo fosse preciso uma
lanterna! Uma tromba d'água que arrancasse telhados, decepasse pelo
meio a estátua do Imperador, quebrasse as correntes da cadeia, as barras de ferro que retalham os rostos dos presos
quando vão ver a rua!
Breno Accioly, João Urso, 2007.
[...] É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso
compreender, e como doido é que sinto o amor profundo [...]. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com
oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Clarice Lispector, Mineirinho, 1992.
5
RESUMO
O presente trabalho consiste em um estudo sobre a medida de segurança, centrado nos discursos produzidos pelo poder judiciário e pelo saber psiquiátrico acerca dos sujeitos rotulados como loucos-criminosos. Utiliza como fontes principais sentenças e laudos psiquiátricos obtidos no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador–BA, no intuito de verificar como se processa a relação entre juízes e psiquiatras no controle social da loucura perigosa. A pesquisa encontra-se estruturada conforme quatro momentos. O primeiro constitui uma síntese histórica dos discursos sobre crime e loucura que, unidos pelo conceito de periculosidade, culminaram na criação da medida de segurança. A seguir, efetua-se uma análise da regulação normativa da loucura no Brasil, que perpassa a constituição do Manicômio Judiciário, a instituição da medida de segurança no Código Penal de 1940, as alterações efetuadas pela Reforma Penal de 1984 e as inovações trazidas pela Lei nº 10.216/2001. Em seguida, apresenta-se uma base teórica de ruptura com o positivismo criminológico e psiquiátrico, calcada na Criminologia da Reação Social e na Antipsiquiatria, revelando-se a medida de segurança como um instrumento que realiza o processo seletivo de definição concreta da loucura perigosa. Por fim, a última parte consiste na explanação dos resultados obtidos no trabalho de campo. Expõem-se as narrativas elaboradas por psiquiatras e juízes sobre os sujeitos criminalizados e patologizados e analisa-se o que a complexa relação entre os poderes tem produzido socialmente, a partir dos conceitos de “estado de exceção” e “homo sacer”, trabalhados por Giorgio Agamben. Palavras-chave: Medida de segurança; Discurso; Controle social; Hospital de Custódia e Tratamento; Loucos-criminosos.
6
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Quantidade de internos por sexo. 107
Tabela 2 – Quantidade de internos por delito cometido. 108
Tabela 3 – Quantidade de internos por situação jurídica. 109
7
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CAPS Centro de Atenção Psicossocial
CRC Centro de Registro e Cadastro
HCT Hospital de Custódia e Tratamento
HCT-BA Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador-BA
MNLA Movimento Nacional da Luta Antimanicomial
MTSM Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
NAPS Núcleo de Atenção Psicossocial
URC Union of Radical Criminology
NDC National Deviance Conference
8
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 O SURGIMENTO DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA
PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES ENTRE
DIREITO PENAL E PSIQUIATRIA
16
2.1 A HISTÓRIA DA LOUCURA E O NASCIMENTO DO SABER
PSIQUIÁTRICO
16
2.2 DO DIREITO PENAL CLÁSSICO AO POSITIVISMO
CRIMINOLÓGICO: A CONSTRUÇÃO DO CRIMINOSO COMO
ANORMAL
29
2.2.1 A Escola Clássica do Direito Penal 29
2.2.2 A Criminologia Positiva 32
2.3 CRIME, LOUCURA E PERICULOSIDADE: A MEDIDA DE
SEGURANÇA COMO UM PRODUTO DO POSITIVISMO
37
3 O CONTROLE DA LOUCURA PERIGOSA NO BRASIL 44
3.1 A PERICULOSIDADE TUPINIQUIM E A CONSTITUIÇÃO DO
MANICÔMIO JUDICIÁRIO
44
3.2 O CÓDIGO PENAL DE 1940 E A INSTITUIÇÃO DA MEDID A
DE SEGURANÇA NO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL
BRASILEIRO
54
3.3 A MEDIDA DE SEGURANÇA ATUAL: QUESTÕES PENAIS E
PROCESSUAIS
60
3.3.1 A Reforma Penal de 1984 60
9
3.3.2 O procedimento de aplicação da medida de segu rança 63
3.4 REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA? – A LEI Nº
10.216/2001 E SUAS IMPLICAÇÕES NA MEDIDA DE
SEGURANÇA
68
4 EM BUSCA DE UMA BASE TEÓRICA PARA
COMPREENDER A MEDIDA DE SEGURANÇA
74
4.1 SUPERANDO O POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO:
ANTECEDENTES TEÓRICOS DE UMA RUPTURA
PARADIGMÁTICA
74
4.2 A CRIMINOLOGIA DA REAÇÃO SOCIAL 82
4.2.1 O Enfoque Interacionista 82
4.2.2 Os “movimentos radicais”: Criminologia Crítica e Nova
Criminologia
89
4.3 ANTIPSIQUIATRIA : A DOENÇA MENTAL COMO
CONSTRUÇÃO SOCIAL
95
4.4 UM ENFOQUE CRÍTICO SOBRE A MEDIDA DE
SEGURANÇA
103
5 OS SUJEITOS DA MEDIDA DE SEGURANÇA: A
CONSTRUÇÃO DOS LOUCOS-CRIMINOSOS NAS
HISTÓRIAS CONTADAS POR MÉDICOS E JUÍZES
107
5.1 NECESSÁRIO SE FAZ UM PARÊNTESE METODOLÓGICO:
A PESQUISA EMPÍRICA
107
5.2 OS NÚMEROS DA INSTITUIÇÃO E A ESCOLHA DOS
CASOS
109
5.3 OS CRIMES QUE SE CONTAM: NARRATIVAS QUE
EMERGEM DOS DISCURSOS LEGAIS E PSIQUIÁTRICOS
114
10
5.3.1 Sobre laudos e sentenças 114
5.3.2 Um roubo de identidade 118
5.3.3 Um ato obsceno: a cristalização do perigo 122
5.3.4 Distúrbios de conduta : o HCT como destino inevitável 132
5.3.5 A loucura da fome 137
5.3.6 Uma surpresa e “uma saída” 144
5.4 CARACTERÍSTICAS E RESULTADOS DE UMA RELAÇÃO
SIMBIÓTICA ENTRE OS PODERES
149
6 PARA NÃO CONCLUIR: AS CONSIDERAÇÕES
FINAIS
155
REFERÊNCIAS 160
11
1 INTRODUÇÃO
Uma pesquisa em Direito sobre a Loucura parece, logo à primeira vista,
paradoxal em sua essência. De um lado, um saber fechado, opaco, uma tentativa de
normalização da vida e dos comportamentos humanos; do outro, a insânia, o
imprevisível, o diferente: a anti-norma. Direito e Loucura, de fato, apresentam-se
como fenômenos profundamente diversos: o primeiro representa uma construção
humana, supostamente investida de racionalidade, a fim de harmonizar a vida social
(geralmente, pela manutenção de uma desarmônica estrutura de dominação); a
outra, por seu turno, situa-se nas fronteiras do inexplicável, do irracional, constitui
uma existência que o homem há alguns milênios tenta em vão decifrar. A Loucura
troça do Direito, de suas leis, de seus códigos e procedimentos. E em troca ele tenta
moldá-la, aprisioná-la, chamá-la à razão. Embalde: a única maneira com que a
Loucura se aproxima do Direito é na luta pelo reconhecimento de um direito
irrenunciável à diferença.
Ao considerar a Loucura esta forma diferenciada de existir individual e
socialmente, decidiu-se, nessa pesquisa, estudar as amarras, as formas de
contenção, as técnicas de docilização e aprisionamento, que a humanidade instituiu
para lidar com algo que não consegue compreender. Todavia, o próprio ato de
pesquisar, no campo do Direito, converte-se em um problema. Saber
tradicionalmente normativo, fechado nos códigos, a ciência jurídica não é das mais
afeitas à atividade de pesquisa: “[n]o mais das vezes, escolhe-se um tema de
pesquisa, sobre o qual são feitos levantamentos bibliográficos superficiais nos
manuais, e constrói-se um grande resumo das opiniões emitidas pelos autores mais
acessíveis” (FRATTARI, 2008, s.p.).
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É possível atribuir a essa quase total ausência de relação entre ciência
jurídica e pesquisa as principais dificuldades metodológicas deste trabalho, pois,
para estudar a Loucura, foi necessário ir além. Não se pretendia conhecer a
interpretação doutrinária ou jurisprudencial de uma alínea, de certo inciso, de tal
parágrafo, do artigo daquela lei número tanto; tampouco se buscava unicamente
descobrir se este ou aquele instituto era ou não constitucional. Desse modo, a
ciência jurídica e seu tradicional método de compilação das idéias de festejados
autores revelaram-se insuficientes para a abordagem pretendida. Foi preciso
recorrer ao auxilio da Sociologia e, mais diretamente, da Criminologia.
Entretanto, insiste-se, essa é uma pesquisa em Direito. Malgrado se
apontem as deficiências da tradicional pesquisa, resultante de um tradicional ensino,
que é fruto da própria tradicionalidade do Direito, é preciso criar espaços para a
formulação de uma contra-hegemonia à ciência jurídica puramente dogmática, isto
é, centrada na lei como ponto de partida e modelo de referência. Além da norma, o
fenômeno jurídico é um complexo de práticas concretas, vivenciadas pelos sujeitos
nas relações sociais.
O mundo jurídico não pode, então, ser verdadeiramente conhecido, isto é, compreendido, senão em relação a tudo o que permitiu sua existência e no seu futuro possível. Este tipo de análise desbloqueia o estudo do direito do seu isolamento, projecta-o no mundo real onde ele encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e, ligando-o a todos os outros fenômenos da sociedade, torna-o solidário da mesma história social (MIAILLE, 1994, p. 23).
Esboça-se aqui, outrossim, uma perspectiva aberta de ciência social do
Direito, não no sentido de uma exclusiva sociologia jurídica, mas buscando instituir a
ciência jurídica como verdadeira ciência social. Para tanto, a compreensão do
fenômeno estudado, para além do aspecto normativo, leva em conta contribuições
advindas da História, Sociologia, Filosofia, Antropologia, Política e, sobretudo, da
Criminologia, que forneceu a base teórica fundamental para este trabalho.
Uma vez explicitado de que Direito se fala, pode-se retornar à Loucura.
No intuito de compreender como ocorreu o processo histórico de segregação e
patologização desse fenômeno, definiu-se como ponto central de investigação a
medida de segurança, prevista no ordenamento brasileiro como reposta penal para
os indivíduos que cometerem crimes e forem julgados loucos. Pretendeu-se, por
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conseguinte, estudar este instituto, a partir dos diversos discursos, jurídicos,
criminológicos e psiquiátricos, que o rodeiam: 1) os discursos historicamente
construídos que converteram a loucura em doença mental e atribuíram ao criminoso
o status de anormalidade, e, juntos, através do conceito de periculosidade, erigiram
uma resposta social específica para os sujeitos considerados perigosos (entre os
quais, o louco-criminoso); 2) os discursos que, em âmbito nacional, relacionam-se
com o controle da periculosidade tupiniquim, tanto os que pugnam pela sua
intensificação, quanto os de abrandamento de sua violência; 3) os discursos que
efetuam uma irreversível deslegitimação da medida de segurança, pela negação da
existência ontológica de crime e doença mental, e, principalmente; 4) os discursos
elaborados na prática cotidiana por juízes e psiquiatras, em sentenças e laudos
psiquiátricos, sobre os sujeitos aos quais tal medida é aplicada.
O objeto da presente pesquisa pode ser, então, anunciado como a análise
dos discursos proferidos por juízes e psiquiatras, em sentenças e laudos periciais,
sobre os sujeitos definidos como loucos-criminosos, internados no Hospital de
Custódia e Tratamento de Salvador – BA. Pretende-se, com isso, através das
narrativas de médicos e juízes sobre as histórias de vida dos sujeitos, desvendar
quem são os indivíduos aos quais se atribui o rótulo de louco-criminoso, com base
em um diagnóstico de periculosidade, e através desse processo, entrever como se
processa a relação entre Poder Judiciário e Psiquiatra no processo de interação
social que constrói, concretamente, uma loucura considerada perigosa.
A metodologia para realizar tal intuito foi projetada segundo duas fases: a
primeira, de caráter analítico, consistiu em pesquisa bibliográfica, tendo como fontes
livros, revistas especializadas, jornais e sites virtuais, visando a efetuar uma síntese
histórica e esboçar um marco teórico para o trabalho; a segunda representou a parte
empírica, efetuada através de pesquisa de campo no Hospital de Custódia e
Tratamento de Salvador, instituição destinada a acolher os sujeitos que estiverem
em cumprimento de medida de segurança no Estado da Bahia, bem como todos
aqueles relacionados com perícia psiquiátrica no âmbito penal. Nessa fase, o
trabalho foi eminentemente documental e teve como fontes os laudos psiquiátricos e
as sentenças judiciais obtidas no Centro de Registro e Controle (CRC) da instituição
abordada. Além disso, utilizaram-se elementos de outros tipos de pesquisa, como o
estudo de caso e a abordagem biográfica.
Este trabalho constitui, assim, uma pesquisa exploratória, já que, por seu
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caráter introdutório, visa basicamente a uma maior familiaridade com o problema
estudado e o levantamento de hipóteses acerca da questão. Pretende-se, antes,
elaborar novas perguntas que fornecer respostas definitivas.
Deve-se, ainda, reconhecer a contribuição significativa para a presente
monografia da Dissertação de Mestrado de Maria Fernanda Tourinho Peres (1997),
intitulada Doença e Delito: relação entre prática psiquiátrica e poder judiciário no
Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador, Bahia, a qual apresenta evidente
proximidade com o objeto aqui estudado. Esse trabalho, além de indicar referências
sobre a legislação psiquiátrica brasileira, forneceu uma análise da medida de
segurança como parte de um amplo “dispositivo de controle-dominação da loucura”,
leitura baseada em Michel Foucault (1984) e retomada na presente pesquisa.
Entretanto, a especificidade da abordagem aqui pretendida se mantém em relação
àquela obra, graças, sobretudo, ao referencial teórico calcado na Criminologia da
Reação Social e à exposição das narrativas construídas por juízes e psiquiatras.
O texto, enfim, encontra-se estruturado conforme quatro momentos. O
primeiro consiste em uma análise das transformações históricas no olhar social
sobre loucura e crime que resultam, ao final, na criação da medida de segurança.
Primeiramente, estudam-se, a partir dos trabalhos de Foucault (1984; 1997), as
modificações nos discursos produzidos sobre a loucura no Ocidente e a constituição
do saber alienista. A seguir, aponta-se a transição no pensamento sobre o crime da
Escola Clássica do Direito Penal para a Criminologia Positivista, momento em que
se verifica uma patologização do homem delinquente. Nessa parte, novamente, a
obra de Foucault (1999) é central para determinar, por meio da crítica historiográfica
à prisão, as modificações do aparelho punitivo que reclamaram uma nova tecnologia
de docilização dos corpos. Ao final, analisa-se como a união entre criminologia e
psiquiatria, no auge do positivismo, institui uma nova modalidade de controle social,
voltada para a contenção dos sujeitos considerados perigosos.
O segundo momento do trabalho apresenta uma síntese da normatização
legislativa do fenômeno da loucura no Brasil, do século XVI aos dias atuais.
Desvenda-se, então, como surge o primeiro Manicômio Judiciário brasileiro e como
se dá a instituição normativa da medida de segurança, no Código Penal de 1940.
Revelam-se, ainda, o procedimento de aplicação da medida de segurança e
algumas questões relacionadas à Lei nº 10.216/2001, considerada o símbolo da
Reforma Psiquiátrica brasileira.
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Na terceira parte, pretende-se delinear uma base teórica de ruptura com o
positivismo criminológico e psiquiátrico. Utilizam-se, assim, as teses da Criminologia
da Reação Social e da Antipsiquiatria, que desconstroem, respectivamente, os
conceitos de crime/ criminoso e doença/ doente mental, para uma compreensão
crítica da medida de segurança.
O quarto e último momento consiste na explanação da pesquisa empírica,
em que os discursos dos juízes e psiquiatras envolvidos com o Hospital de Custódia
de Salvador são revelados, por meio das narrativas construídas sobre os doentes
mentais infratores. Apresenta-se, mais detidamente, a metodologia utilizada, os
dados obtidos na instituição e como ocorreu a escolha de cinco casos para estudo.
A seguir, expõem-se as narrativas elaboradas sobre os sujeitos em cumprimento de
medida de segurança, com uma breve análise sobre cada uma delas. Estuda-se,
finalmente, como se processa a complexa relação entre poder judiciário e psiquiatria
e quais são os resultados sociais dessa interação, a partir dos conceitos de “estado
de exceção” e “homo sacer”, trabalhados pelo filósofo italiano Giorgio Agamben
(2002; 2004).
Espera-se, com isso, estar contribuindo na incansável tarefa de formular
um discurso contra-hegemônico à dogmática-penal tradicional (PRANDO e
SANTOS, 2007), por meio da desconstrução deslegitimadora de um de seus mais
complexos e violentos institutos.
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2 O SURGIMENTO DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA
PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES ENTRE
DIREITO PENAL E PSIQUIATRIA
2.1 A HISTÓRIA DA LOUCURA E O NASCIMENTO DO SABER
PSIQUIÁTRICO
Compreender o processo de surgimento da medida de segurança
pressupõe, necessariamente, conhecer algumas das diferentes formas pelas quais
os agrupamentos humanos, ao longo de sua história, lidaram com comportamentos
designados como loucura. Significa, ainda, percorrer os (des)caminhos que levaram
tal categoria a adquirir o status de doença mental.
De início, deve-se pontuar que, nas mais diversas sociedades, as
interações entre os indivíduos são permeadas por condutas que acabam se
afastando de um modelo reconhecido pelo grupo como válido. Em outras palavras,
em qualquer comunidade, há sempre ações que violarão determinadas regras
sociais e que, num determinado contexto, serão taxadas pelo grupo como
desviantes de um padrão considerado normal 1.
Assim, a violação de algumas regras de conduta pode levar o
transgressor a receber um rótulo: mal educado, ébrio, perverso, pecador, criminoso.
Quando ao descumprimento de tais regras não for possível corresponder nenhuma
1 Para Thomas Scheff (1970, p. 35-37), “[l]a transgresión de las reglas se refiere a la conducta que viola abiertamente las reglas aceptadas por el grupo. Los sociólogos suelen considerar estas reglas como normas sociales”. A desviação, assim, “no es una cualidad del acto que comete la persona, sino una consecuencia de que otros apliquen reglas y sanciones al ‘transgresor’. […] La transgresión de las reglas se refiere a una clase de actos: la violación de las normas sociales; la desviación, a actos determinados que reciben, en forma pública y oficial, el rótulo de violaciones de las normas”.
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dessas categorias, quando se tratar de normas cujo consenso social é tão completo
que são percebidas pelo grupo como elementares2, restará um resíduo dos mais
diversos tipos de transgressão para o qual a cultura não atribui nenhum rótulo
específico. A essa desviação residual atribui-se o nome de loucura.
[L]os diversos tipos de transgresión de las reglas para los cuales nuestra sociedad no proporciona rótulos explícitos y, por consiguiente, determinan a veces que se catalogue al transgresor como enfermo mental, son, desde el punto de vista técnico, transgresiones de reglas residuales (SCHEFF, 1970, p. 37 – grifo original).
Em decorrência, “aqueles cujas reações espontaneamente se aproximam
mais do padrão proposto são favorecidos; aqueles cujo comportamento se situa fora
do arco de possibilidades antropológicas privilegiadas pela sociedade são
[considerados] anormais” (FRAYZE-PEREIRA, 1982, pp. 24-25 – grifo nosso).
No entanto, nem sempre os comportamentos desviantes são tidos,
necessariamente, como indesejáveis. Em comunidades tribais e civilizações antigas,
a loucura posicionava-se, muitas vezes, no campo do sagrado, dando-se destaque
social e respeito ao discurso desviante. Em tradicionais sociedades africanas e
árabes, por exemplo, o louco era o eleito de Deus e da Verdade, sendo-lhes
totalmente estranha qualquer distinção entre o normal e o patológico 3.
Em verdade, há uma longa tradição envolvendo a loucura na história das
sociedades. Registros de pessoas que se afiguravam estranhas estão presentes em
relatos que remontam aos tempos bíblicos: indivíduos afirmavam ouvir vozes que
ninguém mais ouvia ou ver coisas, e até poder voar, sendo encarados como
feiticeiros, possuídos pelo demônio, sofredores de desarranjos mentais ou,
contraditoriamente, como santos. Segundo George Rosen (apud MILES, 1982, p.
13), investigadores que buscaram reconstruir um histórico de casos de loucos na
Grécia e Roma antigas constataram um paradoxo semelhante: “[e]mbora à ‘loucura
2 Scheff (1970, p. 36) exemplifica essa situação com as normas destinadas a se estabelecer uma conversa: “[…] se acepta sin cuestionar que la persona que conversa con otra debe volver el rostro hacia su interlocutor y no hacia otro lado, que debe mirarlo a los ojos y no clavarle la mirada en la frente, por ejemplo (...). Al individuo que viole con regularidad estas expectativas no se lo considerará simplemente un malcriado, sino una persona rara, extraña y temible, porque su conducta infringe el supuesto mundo del grupo, el mundo interpretado como el único natural, decoroso y posible”. 3 “Considerados à luz da Psiquiatria, os devaneios, transes e êxtases vivenciados nas culturas primitivas e nas civilizações arcaicas seriam, em essência, estados patológicos. Porém, seria legítimo perceber aqueles fenômenos segundo essa ótica?” (FRAYZE-PEREIRA, 1982, p. 39).
18
divina’ dos profetas e oráculos fosse atribuído um elevado prestígio, aqueles que
eram rotulados como dementes tornavam-se, mais comumente, objeto de insultos,
desprezo e ridículo”.
Percebe-se, então, que, em certos contextos, embora houvesse atitudes
às quais se atribuía o status de loucura (como comportamento social reprovado),
outras condutas, também anormais, eram valorizadas, simbolizando prestígio
perante o grupo. Verifica-se, ainda, que, mesmo existindo opiniões negativas e
restrições sociais à pessoa considerada louca, como a privação de direitos4, a
relação da comunidade com a loucura não se operava unicamente através da lógica
de exclusão social, tampouco do encarceramento com fins terapêuticos.
Nesse sentido, Michel Foucault (1984, p. 75), realizando uma análise de
diversos discursos produzidos sobre a loucura, vai demonstrar que sua definição
enquanto doença mental é operação relativamente recente na história ocidental. A
História da Loucura na Idade Clássica (1975), proposta por Foucault, pode,
esquematicamente, ser dividida segundo três grandes momentos: 1) um período de
liberdade e de verdade, que inclui os últimos séculos medievais e o século XVI; 2) a
Grande Internação, que abrange os séculos XVII e XVIII e; 3) a época
contemporânea, pós-Revolução Francesa, quando entra em cena o saber médico,
no intuito de lidar com os loucos que abarrotam os hospitais-gerais.
O momento inicial caracteriza-se por uma experiência bastante polimorfa
da loucura5. O homem europeu estabelece relações com algo que ele designa como
loucura, desrazão, porém elas fazem parte de sua vida cotidiana: a loucura possui
espaço para falar de si mesma; assusta e, simultaneamente, fascina.
Além disso, a loucura permaneceu, durante certo tempo, afastada de
fundamentos médicos. Muito embora, desde a medicina grega, algumas atitudes
fossem compreendidas como patologias (frenesi, melancolia, surtos de violência),
com a conseqüência de uma prática curativa, inexistia uma perspectiva de controle
total da loucura pelo saber médico. Havia, assim, leitos reservados aos loucos nos
hospitais da Alta Idade Média; contudo, apresentavam muito mais um caráter de
4 No direito romano antigo, por exemplo, o louco não podia se casar, nem possuir propriedades (MILES, 1982, p. 13). 5 Foucault (1997, p. 17-26) dá ênfase significativa, nesse período, à oposição entre os discursos de uma “experiência cósmica da loucura”, no fascínio retratado pelas artes plásticas, e da “experiência crítica da loucura”, na sátira moral expressa na literatura e na filosofia, que, relacionando-se, vão caracterizar os diversos modelos de interação entre a sociedade da época e a loucura.
19
assistência e isolamento que uma perspectiva de tratamento6. Não se propunham,
pois, a aprisionar, em conceitos médicos, a grande extensão do fenômeno do
desatino.
O período histórico em que essa extensão torna-se mais visível é
certamente o Renascimento. No fim do século XV, a loucura se renova e se expande
com o poder da linguagem.
Há as festas populares em torno dos espetáculos dados pelas “associações de loucos”, como o Navio Azul em Flandres; há toda uma iconografia que vai da Nave dos loucos de Bosch, a Breughel e a Margot a Louca ; há também os textos sábios, as obras de filosofia ou crítica moral, como a Stultifera Navis de Brant ou o Elogio da loucura de Erasmo. Haverá, finalmente, toda a literatura da loucura [...]. Shakespeare e Cervantes no fim do Renascimento são testemunhas do grande prestígio desta loucura cujo reinado próximo tinha sido anunciado, cem anos antes, por Brant e Bosch (FOUCAULT, 1984, p. 77 - grifos originais ).
Até meados de 1650, loucos ainda divertiam o povo, com dramatizações
e festejos populares. O público culto apreciava livros escritos por loucos célebres,
como Bluet d’Arbère, publicados e lidos como obras de loucura (FOUCAULT, 1984,
p. 78).
De outro lado, em contraponto à exaltação das excentricidades da
loucura, e ao descaso com que a medicina a via, a Igreja Católica, principal
detentora de poder no período, já atuava no sentido de reprimir tudo aquilo em que
vislumbrasse manifestação da influência satânica. “O perturbado mental não era
exatamente um doente que merecesse atendimento médico, mas nem por isso,
dependendo de sua expressão, ficava isento, vez ou outra, da censura religiosa”
(VELO, 2000, p 275). Assim, pelo viés católico, a expressão da loucura aproximava-
se dos ritos não-cristãos, como magia e feitiçaria.
Havia, também, um antigo costume de escorraçar os loucos das cidades,
para que corressem pelos campos distantes, ou, principalmente, entregando-os a
barqueiros, que os levavam de porto em porto, para que, nessa existência errante,
encontrassem seu destino. A Renascença cristalizou esse costume na Nau dos
Loucos, pintura de Jeronimo Bosch, e, na Narrenschiff, de Brant. No entanto, longe
de significar pura exclusão, esse fenômeno é bastante complexo, como demonstra
6 Sobre o complexo fenômeno de nascimento do hospital como espaço da clínica, cf. FOUCAULT,
20
Foucault (1997, p. 10):
[n]ão é fácil levantar o sentido exato deste costume. [...] [O]s loucos não são corridos da cidade de modo sistemático. Por conseguinte, é possível supor que são escorraçados apenas os estrangeiros, aceitando cada cidade tomar conta apenas daqueles que são seus cidadãos. Com efeito, é possível encontrar na contabilidade de certas cidades medievais as subvenções destinadas aos loucos, ou donativos feitos em favor dos insanos. [...] E é possível que essas naus de loucos, que assombraram a imaginação de toda a primeira parte da Renascença, tenham sido naus de peregrinação, navios altamente simbólicos de insanos em busca da razão.
Ainda segundo o Autor (1997, p. 11-12),
[...] confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida. [...] Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último.
De todo modo, pode-se dizer que a repressão porventura exercida sobre
a loucura era dispersa, descentralizada. Não havia um saber que dela se ocupasse,
tampouco instituições específicas para controlá-la. A exclusão do louco, mesmo
presente, ainda não era a marca principal da relação entre comunidade e loucura.
Até porque, nesse período, dado o seu número e a gravidade da situação, a
preocupação social de excluir voltava-se para os leprosos.
De fato, na Alta Idade Média, a lepra assola a Europa. Como resposta,
instituem-se os leprosários, gigantescos estabelecimentos para onde são
compulsoriamente encaminhados os doentes, chegando a existir cerca de dezenove
mil por todo o continente. Contudo, a exclusão nessas cidades malditas não significa
apenas segregação para impedir o contágio, simbolizando muito mais um ritual
sacro, no qual a lepra expressa a cólera e a bondade de Deus perante o leproso.
Conforme Foucault (1997, p. 06), “[o] abandono é, para ele, a salvação; sua
exclusão oferece-lhe uma outra forma de comunhão”.
No século XV, verifica-se súbito desaparecimento da lepra, consequência
da longa segregação e, com o término das Cruzadas, da ruptura com focos orientais
da doença. Some a lepra e o vazio se estabelece. Os inúmeros antigos leprosários
encontram-se destituídos de função: alguns se tornam casas de correição para
1985, p. 99-111.
21
jovens, outros são abandonados. Apenas no final do século XV, a lepra começa a
ser substituída, nos leprosários e no imaginário social, pelas doenças venéreas.
Esses doentes são recebidos em diversos hospitais de leprosos [...]. Por duas vezes [...], a eles tinham sido destinadas [...] diversas barracas e casebres antes utilizados pelos leprosos. Eles logo se tornam tão numerosos que é necessário pensar na construção de outros edifícios, “em certos lugares espaçosos de nossa cidade e arredores, sem vizinhança”. Nasceu uma nova lepra, que toma o lugar da primeira (FOUCAULT, 1997, p. 07).
Todavia, as doenças venéreas não permanecem muito tempo nesse
espaço de exclusão e logo assumem seu lugar, entre as outras doenças, nos
hospitais. A partir de então, mesmo considerada num conjunto de juízos morais, é a
dimensão médica que prevalece. E surge um novo vazio... Até que uma grande
internação, em meados do século XVII, preencha os estabelecimentos vagos.
O fenômeno da Grande Internação está, antes de tudo, indissoluvelmente
ligado a uma nova concepção moral da miséria. Enquanto o pensamento medieval
concebe a pobreza como um estado de sofrimento divinamente determinado (a fim
de que a expiação em vida possa assegurar a glória prometida no Paraíso pós-
morte), a era clássica, com a racionalidade da burguesia nascente e a nova ética
trazida pela Reforma protestante7, passa a ver a miséria como sinal de
predestinação. No mundo de Lutero e Calvino, pobreza designa castigo. Assim, “ela
passa de uma experiência religiosa que a santifica para uma concepção moral que a
condena” (FOUCAULT, 1997, p. 59), tornando-se um obstáculo ao progresso. Se
antes se reprovava a usura, condena-se agora o ócio.
Inicia-se, então, a prática do internamento, como uma política de gestão
da miséria8, destinada a enclausurar os pobres de todos os sexos, inválidos,
doentes, velhos, prostitutas, mendigos, libertinos, inválidos, eclesiásticos em
7 Através do conceito de vocação, elaborado por Martinho Lutero (1483-1546), a Reforma Protestante condenará o ócio, inclusive religioso, exaltando, sobremaneira, o trabalho: “[...] o mais importante é que o trabalho constitui, antes de mais nada, a própria finalidade da vida. A expressão paulina ‘Quem não trabalha não deve comer’ é incondicionalmente válida para todos. A falta de vontade de trabalhar é um sintoma da ausência do estado de graça” (WEBER, 1985, p. 113). 8 Para Loïk Wacquant (2001), o moderno sistema penal dos países capitalistas, intensificado pela ideologia neoliberal, funciona como um instrumento de gestão da pobreza, criada pela desigualdade social. Assim, no que parece ser a retomada da medieval lógica de internação, o Estado neoliberal se propõe à missão de impor aos miseráveis um trabalho cada vez mais precário, reduzindo as políticas sociais e controlando o desemprego crescente através de políticas e teorias repressivas, como a Tolerância Zero, e a Teoria da vidraça quebrada, ambas produto de um grande projeto de repressão da pobreza indócil, intitulado Movimento Lei e Ordem.
22
infração, familiares indesejados, enfim, todos os desviantes do padrão de conduta
concebido como modelo pela burguesia nascente. Assim, os inadaptados ao novo
padrão de produção, circulação e consumo de riquezas foram sistematicamente
internados9. Entre eles, obviamente, os loucos. A internação, assim,
[...] organiza numa unidade complexa uma nova sensibilidade à miséria e aos deveres da assistência, novas formas de reação diante dos problemas econômicos do desemprego e da ociosidade, uma nova ética do trabalho e também o sonho de uma cidade onde a obrigação moral se uniria à lei civil, sob as formas autoritárias da coação (FOUCAULT, 1997, p. 56).
Enfim, num fenômeno complexo, erige-se a sonhada cidade disciplinar10.
Um ano é significativo nesse processo: 1656. Nasce o Hospital Geral de
Paris, local específico para essa internação maciça. Esse novo estabelecimento logo
se consolida e se expande: apenas vinte anos depois, há um Hospital Geral em
cada grande cidade da França, por vezes ocupando espaços pertencentes aos
extintos leprosários. “O Classicismo inventou o internamento, um pouco como a
Idade Média a segregação dos leprosos; o vazio deixado por estes foi ocupado por
novas personagens no mundo europeu: são os ‘internos’” (FOUCAULT, 1997, p. 59).
Com as internações, inicia-se uma distinção (baseada na concepção
religiosa da pobreza, que a vislumbra como fruto da vontade divina) entre o bom
pobre, submisso, que vê no internamento uma obra assistencial, onde pode
encontrar descanso; e o mau pobre, que nele enxerga uma medida de repressão e
busca escapar a essa ordem. O que está em jogo, portanto, é um projeto de
docilidade da miséria, que se justifica num caso como no outro: o internamento
servirá como benefício assistencialista aos pobres dóceis, ou como punição para os
rebeldes, havendo distintos lugares para eles no espaço do Hospital Geral
(FOUCAULT, 1997, p. 61). É a partir dessa valoração ética maniqueísta que a
loucura passa a ser percebida, ora agrupada entre os bons pobres, ora entre os
indóceis; é assim que ela abandona a nau em que ritualmente navegava e se fixa no
hospital, ao lado da miséria e do ócio, criando parentescos novos e estranhos.
9 Foucault (1997, p. 48) aponta que, ao longo do século XVII, mais de um por cento da população parisiense esteve enclausurada por algum tempo nas celas das casas de internamento. 10 “Utopia da cidade perfeitamente governada” a cidade disciplinar constitui, para Foucault (1999, p. 164), o modelo apresentado nas cidades em que se verificou uma epidemia de peste: “[...] atravessada pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, [...] imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais”.
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É necessário destacar que, apesar do nome, esses hospitais ainda não
possuem caráter médico11. Antes disso, constituem entidades administrativas, com
estrutura semi-jurídica, destinadas a controlar a pobreza e a ociosidade, através de
uma disciplina voltada para a religiosidade e, sobretudo, o trabalho:
[...] quando se cria o Hospital Geral, o que se pretende é suprimir a mendicância, isto é a ociosidade como fonte das desordens. A prática de internamento não tem sentido médico, nem preocupações de cura, mas é um problema de polícia. [...] Portanto, é como casas de trabalho forçado que poderiam ser entendidas as casas de internamento. A exclusão social dos condenados dá-se por uma medida de reclusão. [...] No entanto, essa prática possui também um sentido econômico. (FRAYZE-PEREIRA, 1982, p. 65-66).
De fato, no século que antecedeu o início sistemático das internações, a
mendicância e a ociosidade passam a constituir objeto central das preocupações
com a ordem social. Não à toa: por volta de 1559, Paris apresenta mais de 30.000
mendigos, o que representa um número superior a três décimos da população local.
As internações surgem, assim, num aperfeiçoamento de primitivas práticas
repressivas da mendicância, como o açoite e o banimento (FOUCAULT, 1997, p.
64). À medida que se produz uma crise, aumentando-se o número de pobres, o
internamento entra em ação para conter a desordem; fora dos períodos de crise, a
internação passa a adquirir um novo significado:
[n]ão se trata mais de prender os sem trabalho, mas de dar trabalho aos que foram presos, fazendo-os servir com isso a (sic) prosperidade de todos. A alternativa é clara: mão-de-obra barata nos tempos de pleno emprego e de altos salários; e em período de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e as revoltas (FOUCAULT, 1997, p. 67).
Durante o século XVIII, entretanto, a política de internamento começou a
dar sinais de seu fracasso. De um lado, os hospitais tornaram-se lugar da
ociosidade, graças ao alto número de internos e à inexistência de trabalho para
11 Foucault, em O Nascimento do Hospital, (1985, p. 102), analisando o distanciamento entre prática médica e instituição hospitalar na Idade Média, afirma que “o Hospital Geral, lugar de internamento, onde se justapõem e se misturam doentes, loucos, devassos, prostitutas, etc., é ainda, em meados do século XVII, uma espécie de instrumento misto de exclusão, assistência e transformação espiritual, em que a função médica não aparece”.
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todos12; de outro, a internação foi responsável por gerar a miséria que se propunha a
conter. É simples: nos períodos em que não havia crise, a mão-de-obra barata
encontrada nos hospitais era responsável por causar desemprego em regiões
próximas, gerando novos pobres ociosos, a quem se determinava a internação.
Criou-se, assim, um ciclo vicioso que só aumentava a quantidade de reclusos e os
gastos com aqueles estabelecimentos. Em decorrência, no final desse século, uma
nova lógica econômica revelou-se totalmente avessa ao internamento. Percebeu-se
que a absorção dos indigentes nas casas de internação reduzia a mão-de-obra
disponível para o trabalho, aumentando os custos da produção. Ora,
[...] por quê (sic) prender “as mulheres de vida alegre que, levadas para as manufaturas do interior, poderiam tornar-se mulheres trabalhadoras”? Ou ainda celerados que só aguardam a liberdade de se fazer enforcar. Por quê (sic) essas pessoas, amarradas a correntes ambulantes, não são utilizadas naqueles trabalhos que poderiam ser malsãos para operários voluntários? Serviriam de exemplo... (MIRABEAU apud FOUCAULT, 1997, p. 397).
Pareceu muito mais interessante recolocar toda a população de internos
no circuito da produção, dividindo-a entre os locais em que a mão-de-obra era mais
escassa e gerando uma reserva humana capaz de baratear os salários e, por
conseguinte, atenuar o elevado preço dos produtos.
Além disso, após certo tempo, como sucessão dos leprosários, os
hospitais-gerais passam a consubstanciar a idéia do mal. Teme-se o internamento,
fala-se em febre de prisão, acredita-se que o ar contaminado dessas casas
corromperá as cidades, como se, no espaço fechado que aloja os indesejados
sociais, com todos os seus crimes e vícios, o mal entrasse em fermentação,
espalhando-se pelo ar e contaminando o que houvesse ao redor.
Consequentemente, a loucura, em conjunto com várias formas de
desajuste social, retoma o seu caráter de fascínio e medo, apresentado durante a
Renascença. Todavia, ela está agora menos próxima do desatino e muito mais
ligada a comportamentos que despertam uma crítica moral: nas tentativas de se
estabelecer uma classificação dos indivíduos loucos, fenômenos como roubo,
12 De acordo com Foucault (1987, p. 69), chegava-se a absurdos como manter os internos trabalhando nas obras de um grande poço, que há muito se tinha revelado inútil, ou substituírem-se os cavalos que carregavam água por equipes de internos.
25
maldade, temor, orgulho, vaidade passam a significar comportamentos doentios13.
Com isso, [a loucura] escapa ao que pode haver de histórico no devir humano, para receber um sentido numa moral social: ela se torna o estigma de uma classe que abandonou as formas da ética burguesa; e no exato momento em que o conceito filosófico de alienação adquire uma significação histórica pela análise econômica do trabalho, nesse mesmo momento o conceito médico e psicológico de alienação liberta-se totalmente da história para tornar-se crítica moral em nome da comprometida salvação da espécie (FOUCAULT, 1997, p. 375-376).
Além de conferir um novo status à loucura, o grande medo do final do
século XVIII gerou uma introdução maior da figura do médico no espaço do hospital-
geral, menos com uma perspectiva terapêutica que como um guardião, cujo objetivo
seria proteger os demais indivíduos do perigo que o mal do internamento passou a
representar. Iniciou-se aí o processo de aquisição do estatuto médico da loucura.
Outra questão que merece destaque (embora não cause surpresa), nesse
processo gradual de deslegitimação do internamento, foram as internações
arbitrárias. Às vítimas da tirania das famílias e do despotismo paterno14, somaram-se
os enclausuramentos dos inimigos do antigo regime que se procederam no período
anterior à Revolução Francesa. Bem assim, no momento pós-revolucionário, os
muros desses estabelecimentos, sobretudo Bicêtre, viram-se preenchidos por
“inimigos da nação”, aristocratas e sacerdotes que, escondidos, tentavam escapar à
condenação na Bastilha (FOUCAULT, 1997, p. 463).
Crítica econômica do internamento, necessidade de mão-de-obra para a
produção agrícola e manufatureira; altos custos dos estabelecimentos e pavor
popular por estas casas; denúncia política de internações arbitrárias, protestos e
revoltas: o fim do século XVIII foi também o ocaso da Grande Internação. Como
13 Consoante Foucault (1997, p. 197) “à medida que se aproximava das diversidades concretas entre as quais se dividia a loucura, à medida que nos afastávamos de um desatino que problematiza a razão em sua forma geral, [...] víamos a nosografia assumir o aspecto, ou quase, de uma galeria de ‘retratos morais’. No momento em que quer alcançar o homem concreto, a experiência da loucura encontra a moral”. O que estava em jogo, portanto, nos primórdios da concepção patológica da loucura, era a defesa da moralidade burguesa como a única forma possível de existir socialmente. 14 Thomas Szasz (1994, p. 169), confrontando a posição de Foucault sobre a origem do asilo a partir do internamento, defende que “[q]uando se iniciou o negócio da loucura, os indivíduos encarcerados como dementes eram membros das classes abastadas, que representavam um problema para suas famílias”. Para ele, o asilo surgiu a partir da iniciativa privada e do desejo das famílias ricas de se livrarem de indivíduos problemáticos. Contudo, Foucault, em diversas passagens de sua obra (1997, p. 52; 92; 113; 382-386), reconhece a existência de interesse familiar na internação, bem como de
26
antes ocorreu com os leprosários, os hospitais-gerais vão sendo esvaziados.
Instaura-se um marco legal que restringe as internações: a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão. A partir de então,
[n]inguém pode ser preso, nem detido, a não ser nos casos previstos pela lei e segundo as formas por ela prescritas. . . A lei só deve admitir penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido a não ser em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada. A era do internamento se encerrou (FOUCAULT, 1997, p. 418).
Se antes, para conter as crises, foi preciso enclausurar a pobreza, exige-
se agora sua libertação. Porém, nem todas as categorias de indivíduos que habitam
os hospitais terão direito a essa liberdade: ela destina-se apenas aos que, mesmo
representando um desajuste social, revelem-se funcionais para o processo
produtivo. A internação permanece o destino certo de velhos inválidos, criminosos e
loucos15. E é nesse espaço, agora reduzido em sua diversidade, que a loucura será
diretamente apontada, que seus contornos serão delimitados.
Já há algum tempo, surgiam diversos protestos contra a internação.
Revoltavam-se os internos, sobretudo, com aquilo que consideravam uma dupla
punição: o enclausuramento ao lado de loucos. Foram eles os responsáveis por
apontar, primeiramente, essa classe particular de homens cuja desordem é
permanente e a inquietação irredutível (FOUCAULT, 1997, p. 396). Uma vez
reduzida a população internada, essa distinção começou a se mostrar de forma mais
evidente; os protestos, em decorrência, aumentaram. E o médico, já chamado para
guardar as fronteiras da internação e proteger a sociedade de seus males, foi então
convidado a estabelecer uma diferenciação entre os internos, a separá-los
definitivamente entre asilos e prisões. Com isso, o internamento tomou seu
derradeiro golpe: de ato que mesclava assistencialismo e exclusão social, passa a
ter, predominantemente, o caráter de tratamento. Os hospitais foram, assim,
reformados: alterados em sua essência, tornam-se asilos.
Na Inglaterra, o principal responsável pela reforma dos hospitais foi
Samuel Tuke (1784-1857), membro dos Quacres, “sociedade de amigos” que se
hospitais privados destinados a loucos abastados, exprimindo a relativa medida de sua importância na história da constituição dos atuais manicômios. 15 Não por acaso, esses três grupos têm até hoje a exclusão do convívio como marca de sua relação com a sociedade.
27
desenvolveu no século XVII e buscou, no fim do século XVIII, assumir a iniciativa
privada no domínio da assistência. Tuke pautou sua reforma na construção do
Retiro, uma casa de campo, com janelas sem grades, numa planície fértil e cheia de
bosques. Em vez de correntes, executava um sistema de tratamento dos internos
calcado em bases religiosas e morais e centrado em dois aspectos primordiais: o
Trabalho e o Olhar (FOUCAULT, 1997, p. 479-480). De um lado, o horário regulado,
a exigência de atenção e a obrigação de chegar a um resultado, afastando os loucos
de uma liberdade prejudicial ao espírito; de outro, um complexo sistema de
observações recíprocas, a fim de levá-los a ver o absurdo de sua loucura e conduzi-
los ao caminho da razão: “a cura significará reinculcar-lhe os sentimentos de
dependência, humildade, culpa, reconhecimento que são a armadura moral da vida
familiar” (FOUCAULT, 1984, p. 82).
É, entretanto, na França, com Philippe Pinel (1745-1826), que a loucura
será de vez apropriada pela terapêutica do saber médico. Designado para atuar no
Hospital-Geral de Bicêtre, após a Revolução, Pinel, para espanto geral, logo tratou
de libertar os acorrentados; contudo, a retirada das correntes, longe de constituir um
simples ato de humanitarismo, ocultava diversas significações. Primeiro, ela
representava a possibilidade de fazer a distinção entre os insanos, de um lado, e os
prisioneiros políticos e suspeitos escondidos, de outro.
Bicêtre é sempre uma imensa reserva de pavores, mas porque nela se enxerga um covil de suspeitos – aristocratas que se ocultam sob os andrajos de pobres, agentes do exterior que tramam, ocultos por uma alienação de encomenda. Mais uma vez é preciso denunciar a loucura para que resplandeça a inocência, mas também para que apareça a duplicidade. [...] De qualquer forma, ela deve ser desmascarada, de modo que a verdade e a razão sejam devolvidas à sua própria condição (FOUCAULT, 1997, p. 465 – grifo original).
Ademais, a libertação dos internos significou, paradoxalmente, o
aprisionamento da loucura na instituição asilar:
- permite-se que a liberdade do louco atue, mas num espaço mais fechado, mais rígido menos livre que aquele, sempre um pouco mais indeciso, do internamento; - liberam-no de seu parentesco com o crime e o mal, mas para fechá-lo nos mecanismos rigorosos de um determinismo. Ele só é inteiramente inocente no absoluto de uma não-liberdade; - retiram-se as correntes que impediam o uso de sua livre vontade, mas para despojá-lo dessa mesma vontade transferida e alienada no
28
querer do médico. O louco doravante está livre, e excluído da liberdade. Outrora ele era livre durante o momento em que começava a perder tal liberdade; é livre agora no amplo espaço em que já a perdeu (FOUCAULT, 1997, p. 508).
Na era clássica, a loucura deixa de ser percebida como desrazão, algo
exterior à razão, passando a ser entendida como uma desordem no pensar, como
erro, como alienação do sujeito. Por conseguinte, torna-se passível de tratamento e
cura, a fim de que o indivíduo encontre a verdade da condição humana.
Retiradas as correntes16, os muros do asilo ganham novos poderes, vez
que o isolamento do mundo exterior passa a constituir a condição necessária da
nova terapêutica da loucura. Não é a medicina, porém, quem inventa a exclusão do
louco; ela já existia anteriormente. O papel do nascente saber alienista será o de
justificar, cientificamente, as bases desta exclusão e criar formas de controle e cura
da loucura. Além disso, não mais se trata da pura exclusão com fins morais ou
religiosos. O saber médico determina a segregação, visando 1) afastar o louco,
agora doente mental, da família, onde recebe cuidados e consolações indulgentes
que o mantêm na insensatez, a fim de confiá-lo a especialistas, que saberão dosar
cuidado e disciplina para a cura; 2) identificar as diferenças entre os doentes (os
agitados, os melancólicos, os imundos, os suicidas), evitando que a convivência
agrave o seu estado, e; 3) reunir num único estabelecimento, nesse lugar de exame,
o conjunto de medidas necessárias à cura.
Essas operações, como princípios teóricos e atos institucionais propiciam um método; fazem “ver” diferente a figura do louco, agora um “alienado mental”, produzem uma visibilidade específica sobre a loucura, construindo um estar louco e um ser louco diferente, no qual o tratamento fundamental é regrar novamente, “dobrar o alienado à razão”, numa espécie de ortopedia da alma (TORRE e AMARANTE, 2001, p. 75 – grifo original).
A história do desatino alcança, então, o instante em que se encontra com
o saber médico, originando um ramo específico, que Pinel denomina de alienismo, e
que mais tarde tornar-se-á a psiquiatria. Com o discurso alienista erigido em saber
16 Deve-se frisar que a retirada de correntes e algemas não significa o fim da contenção. Conforme Pessotti (1996, p. 164 – grifos originais), “permanecia a necessidade de conter ou imobilizar certos pacientes em seus acessos de fúria. O no restraint não era a total ausência de controle. Em vez de correntes, algemas e celas fortes, adotou-se o gilet de force, o colete de força ou a camisa-de-força”.
29
científico, institui-se um poder destinado a controlar, definitivamente, a loucura e
suas manifestações. Absorvida pela medicina, ela será, por conseguinte,
ressignificada como uma patologia: a doença mental. Doravante, o manicômio passa
a constituir seu principal lugar de morada.
2.2 DO DIREITO PENAL CLÁSSICO AO POSITIVISMO
CRIMINOLÓGICO: A CONSTRUÇÃO DO CRIMINOSO COMO
ANORMAL
2.2.1 A Escola Clássica do Direito Penal
De maneira semelhante à história do surgimento da psiquiatria17, as
ponderações iniciais sobre o fenômeno do crime encontravam-se dispersas, estando
muito mais próximas de um questionamento filosófico que de um saber científico.
Assim, as teorias que constituem o embrião de uma forma sistemática e integrada
de pensar o fenômeno delitivo situaram-se no período iluminista.
Antes, durante o Absolutismo, os crimes praticados eram considerados
uma afronta ao poder do rei. Em decorrência, sobretudo nos casos mais graves, a
punição era severa, atingindo o corpo dos condenados, marcando-os, infligindo-lhes
dores insuportáveis e, porventura, levando-os à morte, na fogueira, na forca, por
esquartejamento...
A sentença da corte, é que daqui a dois dias o criador de perfumes, Jean-Baptiste Grenouille seja amarrado a uma cruz de madeira, com o rosto apontado para o céu. Enquanto estiver vivo será açoitado doze vezes, com um ferro em brasa: na junção dos antebraços, dos ombros, de seus quadris e das suas pernas. Mais tarde será içado com uma corda e enforcado, até morrer. E todos e quaisquer atos de misericórdia serão expressamente proibidos ao Carrasco (PERFUME, 2006, s.p.).
Como o trecho do filme Perfume revela, havia todo um cerimonial da
pena, destinado ao público, para constituir exemplo aos demais, causar temor e
17 Para uma analogia entre a evolução histórica dos saberes criminológico e psiquiátrico, ver Velo (2000).
30
respeito à autoridade, que Foucault (1999, p. 32) denomina suplício: “uma produção
diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a
manifestação do poder que pune [...] Nos ‘excessos’ dos suplícios, se investe toda a
economia do poder”.
No final do século XVII, a lógica de punir absolutista começa a ser
questionada, registrando-se várias críticas aos espetáculos públicos, à severidade
das penas e à punitividade sobre o corpo. De um lado, isso se deve às revoltas
populares ocorridas durante os cerimoniais punitivos18; de outro, à transição do
principal interesse confrontado pelo crime: com o despontar do capitalismo, ele se
desloca da pessoa do soberano, para a propriedade do comerciante.
De fato, o decorrer do século XVIII verifica um deslocamento do principal
objeto de violência: os “crimes de sangue” tornam-se menos significativos, ganhando
espaço mais acentuado os delitos contra a propriedade, que afetam diretamente o
interesse da emergente burguesia. Os grandes suplícios tornam-se, portanto,
economicamente custosos, moralmente reprováveis e penalmente desproporcionais
aos crimes cometidos. É necessário, destarte, um novo sistema de punição, que não
fique ao arbítrio do superpoder monárquico19; que controle e codifique as diversas
práticas ilícitas; enfim, uma justiça criminal que “puna em vez de se vingar”
(FOUCAULT, 1999, p. 63).
A base filosófica para esta nova forma de pensar o crime e a pena será
dada pelo movimento intelectual denominado Iluminismo, sobretudo através do
conceito de contrato social, esboçado por Jean-Jacques Rousseau (1995, p. 78):
[e]ncontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado de toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes. Esse é o problema fundamental que o contrato social soluciona.
18 Para Velo (2000, p. 274 – grifos originais), “por conta das execuções públicas, os espectadores conseguiam transferir ao executado boa parte de afetos insuportáveis, fazendo-o virtual bode expiatório. [...] De repente, diante daquele teatro, as pessoas foram percebendo o estado de vulnerabilidade em que viviam, sujeitas que estavam a um dia representarem o papel do bode”. 19 Foucault (1999, p. 68) demonstra que uma das principais críticas ao sistema penal do Antigo Regime era a distribuição mal regulada do poder, sobretudo o “poder excessivo [...] exercido pelo rei, pois ele pode suspender o curso da justiça, modificar suas decisões, cassar os magistrados, revogá-los ou exilá-los, substituí-los por juízes por comissão real. [...] Ora, essa disfunção do poder provém de um excesso central: o que se poderia chamar o ‘superpoder’ monárquico que identifica o direito de punir com o poder pessoal do soberano”.
31
Ao conceber o homem como ser racional, igual e livre, o iluminismo vê no
criminoso um indivíduo que, deliberadamente, decide violar as leis sociais, não se
interessando por desvendar a existência de outros fatores que possam influir em seu
comportamento. Dessa forma, a pena não será – nem deverá ser – mais que a justa
resposta da sociedade ao desviante. Sob esta ótica, o infrator torna-se um inimigo
comum, deslocando-se a essência do poder punitivo, da vingança do soberano à
defesa da sociedade (FOUCAULT, 1999, p. 76)
A um novo poder que se institui, deverá corresponder um saber20, visando
a deslegitimar as antigas instituições e justificar a nova estrutura social. É, pois, num
marco de transformação estrutural da sociedade e do Estado, buscando limitar o
superpoder do rei e racionalizar as técnicas de punição, que surgem a teoria
contratualista e as limitações ao poder de punir21, características do movimento
filosófico-jurídico denominado Escola Clássica do Direito Penal.
Malgrado diversos pensadores estejam situados no âmbito da Escola
Clássica22, certamente o mais importante deles é Cesare Beccaria (1738-1794),
graças ao seu trabalho intitulado Dos delitos e das penas (1998). Nesta obra,
podem-se encontrar as principais bases da concepção liberal clássica do direito
penal: 1) a teoria da divisão dos poderes; 2) a idéia de contrato social, e 3) o
princípio utilitarista da máxima felicidade repartida pelo maior número de pessoas
(BARATTA, 2002, p. 33). É disso que, após discorrer sobre a origem das penas e o
direito de punir, trata Beccaria (1998, p. 66-67):
[a] primeira conseqüência destes princípios é que somente as leis podem fixar as penas correspondentes aos delitos; e este poder só
20 Alerta Foucault (1999, p. 27) que “o poder produz saber [...]; que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder”. 21 Optou-se por utilizar o termo poder de punir ao invés do comumente utilizado direito de punir, seguindo as críticas tecidas a este conceito pela escritora Clarice Lispector (2005, p. 45), no período em que cursava a Graduação em Direito: “Não há direito de punir. Há apenas poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte do que ele [...]. E não há direito de punir porque a própria representação do crime na mente humana é o que há de mais instável e relativo: como julgar que posso punir baseado apenas em que meu critério de julgamento para tonalizar tal ato como criminoso ou não, é superior a todos os outros critérios? Como crer que se tem verdadeiramente o direito de punir se se sabe que a não observância do fato X, hoje fato criminoso, considerava-se igualmente crime?”. 22 Como pensadores da Escola Liberal Clássica do Direito Penal, podem-se citar, além de Beccaria: Jeremias Bentham (1748-1832), Caetano Filangieri (1752-1788), Giandomenico Romagnosi (1761-1835) e Pablo Anselmo von Feuerbach (1775-1833), teóricos de um primeiro período essencialmente filosófico, e; Giovanni Carmignani (1768-1847), Pellegrino Rossi (1781-1848) e Francesco Carrara (1805-1848), representantes do período jurídico da Escola (ANDRADE, 1997, p. 45).
32
ao legislador pode pertencer, ele que representa toda a sociedade unida por um contrato social; nenhum magistrado (que é parte da sociedade) pode com justiça infligir penas a um outro membro da mesma sociedade. [...] A segunda conseqüência é que, se cada membro particular está ligado à sociedade, esta está, da mesma maneira, ligada a todos os membros particulares através de um contrato que, de sua própria natureza, obriga duas partes. [...] A violação, ainda que de um só, é o início da permissão da anarquia. [...] A terceira conseqüência é que, ainda que se provasse que a atrocidade das penas [...] fosse apenas inútil, mesmo neste caso ela séria contrária, não só àquelas virtudes benéficas que são o efeito de uma razão iluminada – que prefere dirigir homens felizes a um rebanho de escravos, onde circule perpetuamente tímida crueldade – mas também à justiça e à natureza do próprio contrato social.
Como observa Andrade (1997, p. 48-49), a grande importância histórica
da obra de Beccaria decorre menos de originalidade e mais da capacidade de
representar os diversos ideais expressos no movimento europeu de reforma penal
do período. Isso porque “se trata de uma obra simultaneamente de combate à
Justiça Penal do Antigo Regime e projeção de uma Justiça Penal liberal, humanitária
e utilitária, contratualmente modelada”.
Reordenação e limitação do poder punitivo; fim dos suplícios na pena e
reestruturação do processo; império da lei (nullum crimen nulla poena sine lege);
proporcionalidade das penas aos delitos; concepção utilitária do castigo. Em linhas
gerais, são estes os principais postulados trazidos pela Escola Clássica.
No mundo clássico, portanto, concebendo-se o indivíduo como ser livre,
racional e responsável, o pensamento sobre o crime fixa-se no ato tipificado, não
demonstrando preocupações etiológicas destinadas a investigar as causas do
comportamento criminoso, quer no estudo do indivíduo delinqüente, quer no do seu
meio social. Por centrar-se no ato e pré-conceber a idéia de responsabilidade, não
se detém sobre questões como o discernimento do infrator. Cometido o delito,
deverá haver uma punição equivalente, como resposta social justa e legítima.
2.2.2 A Criminologia Positiva
No decorrer do século XIX, transformações sociais, políticas e científicas
33
vão ocasionar o surgimento de uma nova forma de pensar o comportamento
criminal. Com a incapacidade revelada pelas teorias clássicas de reduzir os índices
de criminalidade (pois o delito era visto como livre escolha do indivíduo), seus
pressupostos filosóficos e metodológicos serão postos em xeque por um saber
científico-criminológico que se propõe à proteção da sociedade.
Nesse processo, destaca-se, primeiramente, a Revolução Industrial, que,
iniciada no século anterior na Inglaterra, expande-se pelo mundo e, num contexto de
novas teorias políticas de cunho social ou socialista, gera a necessidade de que o
Estado abandone sua postura liberal e intervenha na ordem econômica e social. De
um lado, isso representa uma reivindicação do proletariado, em busca de condições
menos insalubres no mundo do trabalho; de outro, significa o desejo dos industriais
burgueses de consolidar como problema de polícia as agitações operárias.
Além disso, o controle intenso exercido sobre a produção exige uma
maneira de estudar e conhecer melhor o homem, classificá-lo, a fim de selecionar os
melhores, mais aptos e mais dóceis ao processo produtivo. Foucault (1999, p. 162-
187) propõe uma análise desse momento histórico a partir do Panóptico, modelo de
prisão elaborado por Jeremy Bentham, na qual haveria uma torre no centro a vigiar
as celas, dispostas ao seu redor em forma de anel. O objetivo do Panóptico é, por
conseguinte, exercer um controle total, de forma que, mesmo não havendo nenhum
guarda na torre, a sensação de vigilância será permanente.
Para Foucault (1999, p. 170), esse mecanismo, funciona como um
“laboratório de poder”, que se expande para fábricas, asilos, escolas: “[c]ada vez
que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou
um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado”. Como todo
exercício de poder acarreta a produção equivalente de um saber, o mecanismo
panóptico formula um conhecimento sobre os corpos, uma maneira sutil de docilizá-
los, menos com o peso da força que com o controle da vigilância contínua,
expandindo-se das prisões para escolas, hospitais, igrejas e indústrias. Concretiza-
se, desse modo, uma nova modalidade de (micro)poder: a disciplina, “processo
técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo ônus reduzida como força
‘política’, e maximilizada como força útil” (FOUCAULT, 1999, p. 182). Não à toa, há
uma proximidade muito grande entre as mutações tecnológicas do aparelho de
produção, a divisão do trabalho, e a elaboração das maneiras de proceder
disciplinares.
34
Em decorrência dessas transformações, elabora-se uma concepção de
ciência, capaz de atender às novas demandas: o Positivismo. Fundado por Auguste
Comte (1798-1857), considerado o pai da Sociologia, o Positivismo revela-se como
uma afirmação social das ciências experimentais. Propõe, assim, para explicar os
fenômenos, que o inquérito científico, longe de procurar causas últimas (teológicas
ou metafísicas), que derivem de uma fonte externa, deve ater-se ao estudo das
relações existentes entre os fatos, os quais são acessíveis por meio da observação
(COMTE, 1990, p. 03-21).
Ancorada nessa base e em teorias de incipientes saberes23, desenvolve-
se, no século XIX, inicialmente na Itália, a Criminologia Positivista, respondendo às
necessidades da burguesia para enfrentar os problemas sociais, especialmente a
questão do delito. Mesmo reconhecendo um avanço quanto à questão da diminuição
das penas, a Escola Positiva dirige severas críticas ao pensamento clássico,
apontando-lhe as falhas de um racionalismo abstrato e um individualismo
exacerbado, que impedia a defesa social:
[...] a Escola Positiva assumia a [...] tarefa de deslocar a problemática penal [...] de uma orientação filosófica para uma orientação científica, empírico-positiva, a única apta a resgatar aquele segundo personagem “esquecido” pela Escola Clássica: o homem delinquente (ANDRADE, 1997, p. 61).
Centrando-se na figura do criminoso, a Criminologia Positivista opôs ao
livre-arbítrio dos clássicos, um determinismo bio-psicossocial; outrossim, ela
deslocou a questão da responsabilidade, para a periculosidade do indivíduo
(MANITA, 1997, p. 57). Seus objetivos eram eliminar a metafísica clássica e
substituí-la por um estudo empírico do fenômeno criminal que pudesse diagnosticar
as causas do delito e combatê-las, a fim de erradicar a criminalidade. Para isso, o
método utilizado deveria ser o empírico-indutivo, formulado segundo premissas de
23 Precursores do positivismo criminológico, esses saberes utilizavam, ainda que precariamente, um método empírico-indutivo, baseado na observação do indivíduo infrator e do seu meio, orientando-se no marco das ciências naturais. Por sua importância histórica, devem-se mencionar: a “ciência penitenciária”, com Howard (1726-1790) e Bentham (1748-1832), descrevendo e denunciando a realidade penitenciária na Europa do século XVIII; a Fisionomia, através dos estudos de Della Porta (1535-1616) e Lavater (1741-1801), analisando a inter-relação entre a aparência externa do indivíduo e sua mente; a Frenologia, que buscava localizar nas partes do cérebro as diversas funções psíquicas, destacando-se a obra de Gall (1758-1828); a Psiquiatria, com Pinel e Esquirol, que adiante será melhor abordada, e; a Antropologia, com estudos em crânios de assassinos, destacando-se Lucas (1805-1885), que formulou o conceito de atavismo (MOLINA e GOMES, 2002, p. 162-167).
35
medição, objetividade e neutralidade. Deslocando-se, pois, da investigação racional
e abstrata para a factual e concreta, era no estudo do homem delinqüente que se
encontrariam as causas do comportamento criminoso.
O médico e psiquiatra Cesare Lombroso (1835-1909) foi o primeiro a
propor leis gerais para o fenômeno do crime. Sua obra, publicada em 1876, Tratado
Antropológico Experimental do Homem Delinqüente é considerada o marco inicial da
Criminologia científica causal-explicativa, que nasce denominada Antropologia
Criminal (ANDRADE, 1997, p. 65). Influenciado pelas idéias de Charles Darwin24
(1809-1882) e utilizando metodologia própria das ciências naturais, Lombroso
realizou um estudo em prisões e hospitais psiquiátricos25, efetuando autópsias e
análises de criminosos vivos, e comparando as características encontradas,
sobretudo em crânios, com as de populações não delinqüentes. Concluiu, pois, que
haveria na população de delinqüentes semelhanças constituidoras de um tipo
humano específico, que ele denominou criminoso nato. Esse indivíduo atávico
apresentaria uma série de estigmas degenerativo-comportamentais, tais como:
“fronte esquiva e baixa”, “assimetrias cranianas”, “orelhas em forma de asa tubérculo
de Darwin”, ou mesmo “uso freqüente de tatuagens”, “insensibilidade à dor”
(MOLINA e GOMES, 2002, p. 177-179).
Para Lombroso, portanto, a explicação correta para a pergunta “por que
as pessoas cometem crimes?” é encontrada na existência de uma anormalidade
biológica e/ou psicológica do sujeito criminoso, um atavismo que o distingue dos
outros humanos e o predispõe à prática de delitos.
Estabelece-se desta forma uma divisão “científica” entre o (sub) mundo da criminalidade, equiparada à marginalidade e composta por uma “minoria” de sujeitos potencialmente perigosos e anormais (o “mal”) e o mundo, decente, da normalidade, representado pela maioria da sociedade (o “bem”) (ANDRADE, 1996, p. 278).
Enrico Ferri (1856-1929), discípulo de Lombroso, por sua vez, utilizando
uma perspectiva sociológica, desloca o objeto central da etiologia do crime. Para ele,
24 Naturalista britânico, Darwin formulou a teoria da evolução das espécies, mediante um processo de seleção natural, cuja influência é bastante significativa para o pensamento criminológico positivista. 25 Reconhece-se relevância muito maior, no trabalho realizado por Lombroso, ao método empírico utilizado em suas investigações que à sua teoria criminológica. “Sua teoria do ‘delinquente nato’ foi formulada com base em resultados de mais de quatrocentas autópsias de delinqüentes e seis mil análises de delinqüentes vivos; e o atavismo [...] contou com o estudo minucioso de vinte e cinco mil reclusos de prisões européias” (MOLINA e GOMES, 2002, p. 177)
36
malgrado a significativa importância dos fatores individuais (orgânicos e psíquicos),
o estudo das causas do delito há de levar em conta, sobretudo, os fatores físicos e
sociais do ambiente em que os comportamentos criminosos se manifestam
(BARATTA, 2002, p. 39; MOLINA e GOMES, 2002, p. 182). Dessa forma, para além
das características biológicas do criminoso, o delito seria fruto de condições
econômicas e sociais que determinam sua conduta.
O terceiro grande nome da Escola Positiva é Garófalo (1852-1934).
Deslocando as teses criminológicas positivistas para o âmbito do Direito Penal, ele
desenvolve o conceito de “temibilidade do delinquente”, consistente em uma
“perversidade constante e ativa”, que posteriormente será nomeado de
periculosidade. Garófalo formula também uma filosofia do castigo, buscando
justificar a pena não mais com o significado retributivo dos clássicos, senão com o
fito de erradicar o delito e proteger a sociedade26 (ANDRADE, 1997, p. 69).
Portanto, para a Escola Positiva, identificado este potencial de
periculosidade do indivíduo criminoso, a pena converte-se num meio de defesa
social, devendo constituir uma medida de segurança da sociedade contra o infrator,
visando a neutralizá-lo e/ou corrigi-lo: “[...] trata-se de defender a sociedade destes
seres perigosos que se apartam ou que apresentam a potencialidade de se apartar
do normal” (RAMÍREZ apud ANDRADE, 1996, p. 278).
Para Baratta (2002, p. 41-43), muito embora a Escola Positiva tenha
conseguido melhor sistematizar o que propunha ser um projeto de defesa da
sociedade, essa proposta foi herdada da Escola Clássica e sua teoria contratual, de
forma que ambas apresentam a ideologia da defesa social como marco teórico e
político comum. O conteúdo dessa ideologia é apresentado por Baratta através dos
seguintes princípios: a) princípio de legitimidade: o Estado, representando o conjunto
de interesses sociais, encontra-se legitimado para reprimir a criminalidade, a fim de
manter a ordem social; b) princípio do bem e do mal: o delinqüente é um elemento
negativo e disfuncional (o mal) para a sociedade (o bem); c) princípio de
culpabilidade: o delito é expressão de uma atitude interior reprovável, porque
contrária aos valores e às normas; d) princípio da finalidade ou da prevenção: a
pena não tem apenas a função de retribuir, mas de prevenir e evitar o crime; e)
26 Também é Garófalo o responsável por elaborar uma distinção entre os delitos naturais e artificiais, estes últimos existentes apenas em determinadas culturas, ao passo que aqueles consistem em uma
37
princípio de igualdade: a lei penal é igual para todos, e aplicada de maneira
igualitária; f) princípio do interesse social e do delito natural: os delitos definidos nos
códigos penais representam uma ofensa a interesses fundamentais e condições
essenciais à existência da sociedade.
Com a intensificação positivista da ideologia da defesa social, está aberto
o caminho para que especialistas não jurídicos do comportamento humano, capazes
de reconhecer e catalogar os distúrbios que possam representar perigo para a
comunidade, disputem o poder de dizer jurídica e cientificamente a verdade sobre o
indivíduo criminoso e seu grau de discernimento, defendendo a imperiosa
necessidade de tratá-lo. Abrem-se, para eles, mas não sem resistências, as portas
de prisões, e também de tribunais.
2.3 CRIME, LOUCURA E PERICULOSIDADE: A MEDIDA DE SEGURANÇA COMO UM PRODUTO DO POSITIVISMO
Uma vez analisado o processo de surgimento do saber psiquiátrico e, por
conseguinte, dos manicômios, bem como compreendidas as transformações no
pensamento criminológico que fizeram a conversão do indivíduo infrator num sujeito
anormal e perigoso, facilmente se perceberá como a fusão dos atributos de louco e
criminoso foi significativa para a cristalização do conceito de periculosidade e a
conseqüente criação de medidas de segurança e manicômios judiciários.
Em verdade, desde o século das luzes, quando ganhava corpo a Escola
Clássica, já era possível observar uma espécie, ainda embrionária, de patologização
dos comportamentos desviantes, nas obras de médicos como Gall27 (1758-1828) e
Cabanis (1757-1808). De acordo com Carrara (1998, p. 69), para esses autores
clássicos, o crime, por ser um ataque à sociedade e ao contrato social, deixava
perceber uma espécie de “erro”, de “irracionalidade”: mesmo sendo o indivíduo
plenamente responsável por seus atos,
série de condutas nocivas por si próprias, em qualquer sociedade e a qualquer momento (MOLINA E GOMES, 2002, p. 185). 27 “Para Gall o crime é causado por um desenvolvimento parcial e não compensado do cérebro, que ocasiona uma hiperfunção de determinado sentimento. De fato, este autor acreditou haver podido localizar em diversos pontos do cérebro um instinto de agressividade, um instinto homicida, um sentido de patrimônio, um sentido moral” (MOLINA E GOMES, 2002, p. 164).
38
[...] atacar a sociedade não seria, de certa forma, atacar a si próprio? E atacar a si próprio não seria o ato irracional por excelência? [...] [A] sociedade burguesa, liberal, democrática, progressista, representação do próprio paraíso reconquistado [...], não parece aceitar que alguém possa agredi-la em sã consciência.
Pinel também se revela importante nesse processo, por haver realizado
os primeiros diagnósticos clínicos, com o fito de separar os criminosos aprisionados
em Bicêtre (em sua maioria políticos), dos loucos deste hospital-geral. Outrossim,
observando alguns casos em que os doentes mentais demonstravam conservar a
integridade das funções do intelecto (isto é, salvo uma ou outra característica
disfuncional acentuada, portavam-se intelectivamente como indivíduos normais),
Pinel refuta a concepção vigente à época, segundo a qual a sede da doença situa-se
unicamente numa lesão orgânica do corpo. Ele formula, então, o conceito de
“loucura parcial”, uma “mania sem delírio”,
[...] onde não se constata nenhuma alteração sensível das funções do entendimento, da percepção, do juízo, da imaginação, da memória, mas uma perversão nas funções afetivas, um impulso cego para atos de violência ou mesmo um furor sanguinário, sem que se possa assinalar nenhuma idéia dominante e nenhuma ilusão da imaginação que sejam a causa determinante desta funesta tendência (FONTANA in FOUCAULT, 1991, p. 281).
Contudo, é com Esquirol (1772-1840) e a noção de “monomania
homicida” que louco e criminoso vão definitivamente se cruzar, na figura do
“criminoso alienado”. Para este alienista, discípulo de Pinel, em algumas formas de
loucura, o único sinal evidente do distúrbio seria uma “desordem moral”, voltada
para a prática de crimes (MANITA, 1997, p. 56). Dessa forma, a monomania
homicida implicaria num distúrbio do pensar e do agir, caracterizado por um forte
impulso ao assassinato. Esse impulso seria provocado por uma convicção íntima do
sujeito, baseada em um delírio, uma imaginação exaltada, um raciocínio falso, uma
paixão violenta, um instinto cego (FONTANA in FOUCAULT, 1991, p. 283). A
monomania poderia, ainda, ser classificada como erótica, religiosa, suicida,
persecutória... De todo modo, pode-se dizer que a monomania representa, de um
lado, a aproximação entre loucura e crime, apontando-se, na afetividade modificada
do sujeito, um impulso à prática de delitos, geralmente, violentos; de outro, ela
39
significa o aprisionamento definitivo da loucura no campo da moral, da subjetividade,
dos sentidos: o seu estudo torna-se inseparável do conhecimento das paixões
humanas.
É preciso, ademais, compreender o contexto em que se deu essa
apoteose da monomania homicida. Nesse início de século XIX, período pós-
revolução burguesa, grandes transformações sociais ocorreram: reorganização do
poder, urbanização das cidades, transferência de propriedades. Todavia, tudo isso
em nada alterou a condição de opressão e miserabilidade em que permaneciam as
classes menos abastadas, sobretudo os pequenos camponeses. A transferência de
propriedade não atingiu aqueles que só possuíam os braços para trabalhar; a
libertação jurídica e o estatuto de cidadão serviram apenas para perpetuar
hierarquias e desigualdades, mas, dessa vez, contratualmente modeladas.
Conforme Peter e Favret (in FOUCAULT, 1991, p. 199), é esse o quadro
social no qual, incentivados pela enxurrada de sangue derramado na Bastilha,
proletários e camponeses “vão intervir e garantir, pelo peso de suas vidas e sua
razão lançados na balança, seu direito de tomar a palavra”. De fato, uma onda de
crimes diferentes, aparentemente sem motivação, passa a chocar a sociedade
burguesa:
[...] criadas camponesas matam sem razão, mas cruelmente, as frágeis crianças que amam [...]. A mulher de um jornaleiro, passando necessidade, não mais suportando os gritos de fome de seu filho de quinze meses, golpeia-lhe o pescoço com um cutelo, sangra-o, corta-lhe uma coxa, que come. [...] Antoine Léger, vinhadeiro, deixa a sociedade de sua aldeia, vive nos bosques como um homem selvagem, agride uma menina e, não podendo violentá-la, abre-a com uma faca, chupa-lhe o coração e bebe-lhe o sangue (PETER e FAVRET in FOUCAULT, 1991, p. 193-194).
As razões apresentadas para justificar esses crimes, quando surgem, são
moralmente tão inaceitáveis que não se tem dúvida: está-se diante de um monstro
humano28. Torna-se imperativa, portanto, a presença dos alienistas nos tribunais,
para entender e explicar, no plano científico, esses acontecimentos. E mais: para
28 Foucault (2001, p. 93), no Curso Os Anormais, ministrado no Collège de France, em 1974-1975, aponta alguns discursos que, a partir do século XVIII, anunciam uma “natureza monstruosa da criminalidade, [...] uma monstruosidade que tem seus efeitos no campo da conduta, no campo da criminalidade, e não no campo da natureza mesma”, como se esboçava anteriormente. E ainda: “o monstro é o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias. É o princípio de inteligibilidade de todas as formas [...] da anomalia” (FOUCAULT, 2001, p. 71).
40
distinguir o indivíduo normal, cônscio de seus atos, do ser louco e anormal que
constitui o monomaníaco homicida. Como observa Rauter (2003, p. 113),
[...] a justiça penal não dispunha de meios para dar conta de um certo tipo de crime cujas características pareciam fugir completamente à razão. Culpado ou louco, eis a questão ao mesmo tempo deixada em aberto pela justiça criminal e proposta pela psiquiatria nascente.
Entretanto, essa intervenção da psiquiatria nos domínios do direito penal
não se dará sem árdua resistência. Juristas e magistrados dispensarão considerável
hostilidade à doutrina da monomania, ávidos por manter o poder de falar pelo
homem criminoso e puni-lo.
O registro histórico mais célebre dessa disputa entre os saberes encontra-
se no caso Pierre Rivière, pesquisado e organizado por Foucault (1991). No ano de
1835, Rivière degolou brutalmente a mãe e um casal de irmãos, ainda crianças.
Depois de vagar pelos campos, dirigiu-se a pequenas cidades, comportando-se de
forma excêntrica; foi, então, detido e, na cadeia, escreveu um manuscrito, contando
sua história e as razões de seu crime: a maneira ríspida com que o pai era tratado
pela esposa e a cumplicidade dos irmãos para com ela. A partir daí, houve um
grande debate sobre o caso, repercutindo em dois principais confrontos: um, interno
ao saber médico, entre uma medicina “não especial” ou geral e a recém surgida
especialidade psiquiátrica; e outro, entre duas formas de controle, a psiquiatria e a
justiça penal.
Surgem, assim, no decorrer do caso Rivière, três pareceres de peritos
médicos. O primeiro deles acompanha a Acusação, elaborado pelo doutor Bouchard.
Representante do pensamento tradicional da medicina, Bouchard investiga em
aspectos orgânicos (doenças de pele, hemorragias, tombos na cabeça) os sinais de
uma doença mental em Rivière. Por não encontrá-los, conclui ser “[...] impossível
encontrar uma doença [...] que tenha agido sobre o cérebro de maneira a causar
dano a suas funções” (FOUCAULT, 1991, p. 113). Assim, Rivière é declarado, neste
primeiro parecer, um indivíduo normal. A forca paira sobre sua cabeça.
Um segundo parecer médico acompanha a peça de defesa, no intuito de
mitigar a pena de morte. Elaborado pelo doutor Vastel, aponta que “a inteligência de
Rivière não era sadia e que o ato que [...] passava por um crime horrível, não era
mais que o deplorável resultado de uma verdadeira alienação mental” (FOUCAULT,
41
1991, p. 115). Como aponta Castel (apud FOUCAULT, 1991, p. 266-268), o parecer
de Vastel já apresenta elementos de uma intervenção do saber psiquiátrico sobre as
condutas criminosas. Sua justificação teórica, porém, é frágil: utiliza referências de
uma concepção de loucura que ainda faz do delírio o sintoma necessário da doença
mental. Diante disso, é incapaz de convencer os jurados. Na disputa entre os
saberes, a primeira vitória é do direito: Rivière é condenado à morte.
O terceiro parecer surge justamente após a condenação, buscando o
indulto real. Nele se expõem, sucinta e objetivamente, todas as condutas de Rivière
que escapavam à lógica racional de convivência (falar sozinho, conversar com o
diabo, evitar a presença de mulheres temendo maculá-las com um fluido invisível,
abater cabeças de repolhos), declarando-o um alienado. Ocorre que este parecer é
assinado por seis médicos parisienses, dentre os quais se destacam Marc, primeiro
médico do rei, e o grande nome da psiquiatria da época, Esquirol, o inventor da
monomania homicida29. A psiquiatria, buscando expandir seus mecanismos de
controle, luta até o fim para que seu discurso sobre a loucura seja erigido em
verdade. E consegue: o rei comuta a pena de morte em prisão perpétua30.
Obtida essa significativa vitória, novos domínios vão se abrir à expansão
do saber psiquiátrico. Em 1838, é editada a lei que institucionaliza as modalidades
de internação ex-officio. Doravante, segundo Castel (apud FOUCAULT, 1991, p.
275), “[u]m certificado médico, homologado pela autoridade prefeitoral e controlado
pela possibilidade de uma inspeção judiciária, vai poder detectar estados
potencialmente perigosos”.
Já em 1857, novo reforço é dado ao saber alienista: Benedict-Augustin
Morel, seguindo orientações organicistas, publica o Tratado das degenerescências
físicas, intelectuais e morais da espécie humana, no qual desenvolve uma nova
categoria para a definição de alienados, os “degenerados” ou “loucos hereditários”
(CARRARA, 1998, p. 82), influenciando diversos pensadores subseqüentes,
inclusive Lombroso31. A degeneração, para Morel, consiste numa série de desvios
patológicos do tipo normal da humanidade, que, transmitidos hereditariamente,
29 Aponte-se aqui que, para além das argumentações produzidas no parecer parisiense, o discurso da autoridade parece possuir um efeito considerável no poder de persuasão junto ao rei. 30Não obstante a concessão do indulto real, Rivière, que, após o crime e a confecção do manuscrito, dizia aguardar com ansiedade a morte, cansa-se da espera e comete suicídio na prisão. 31 Podem-se observar algumas semelhanças entre a degeneração de Morel e o atavismo lombrosiano, embora, para Morel, a degeneração não represente uma volta do homem a tipos primitivos, mas um produto da civilização (CARRARA, 1998, p. 121-125; PERES, 1997, p. 69).
42
evoluem no sentido da decadência. Há, pois, “tipos antropológicos desviantes”, com
sistemas vitais mal conformados por uma natureza pervertida, corrompida pela
civilização.
Conforme expõe Carrara (1998, p. 84-86), utilizando idéias “criacionistas”
e reafirmando de algum modo a tese de Rousseau (segundo a qual o homem – fruto
da criação divina – é, por essência, um ser perfeito), Morel acreditava que, depois do
“pecado original”, a humanidade teria sido exposta a uma série de falhas
relacionadas ao ambiente físico-natural e sócio-moral, adquirindo corrupções que
anteriormente não possuía. Essas anomalias físicas e morais corromperiam o
sistema nervoso, resultando em anomalias “lamarckianamente” 32 transmissíveis aos
descendentes, as quais iriam se agravando progressivamente até atingir a
demência, a idiotia, a esterilidade, a morte. Ocorreria, portanto, uma gradação na
escala da degeneração da humanidade, podendo-se, estabelecer classificações que
distinguissem os indivíduos menos e mais degenerados.
O mérito do trabalho de Morel foi, por conseguinte, conciliar orgânico e
moral na teorização de uma loucura perigosa que, em seu estágio mais avançado,
predispunha o indivíduo para a prática dos mais atrozes crimes. Isso foi crucial para
o fortalecimento da psiquiatria, que vinha sofrendo diversas críticas por parte do
poder judiciário, quanto à intrusão em seus domínios, após a promulgação da lei de
1838 (PERES, 1997, p. 67-71).
Mais tarde, no bojo das novas idéias trazidas pelo positivismo
criminológico, um espaço ainda maior no campo jurídico vai ser aberto ao saber
psiquiátrico. Destaca-se, nesse contexto, a atuação da Escola de Marburgo (ou
Jovem Escola Alemã de Política Criminal) e da Escola ou Movimento de Defesa
Social33. Percebendo que, em essência, os pressupostos da Escola Clássica e da
Escola Positiva não eram tão distintos, os defensores desses movimentos irão, em
linhas gerais, propor uma superação do debate entre livre-arbítrio e determinismo,
reconhecendo a existência de um “estado perigoso”, base da política criminal a ser
desenvolvida. Como conseqüência, mitigando a relevância de reflexões filosóficas
32 Jean-Baptiste Lamarck foi um naturalista francês que desenvolveu a teoria dos caracteres adquiridos, uma teoria da evolução pré-darwinista atualmente desacreditada. 33 A Escola de Marburgo teve como representante mais conhecido Franz von Liszt, que fundou, juntamente com Prins e Van Hamel, a Associação Internacional de Criminalística, a qual buscava se manter afastada da disputa entre as escolas. O Movimento da Defesa Social, por sua vez, foi representado por Gramática e Mark Ancel, possuindo diversas semelhanças com a escola anteriormente citada (MOLINA E GOMES, 2002, p. 192-195).
43
sobre a responsabilidade, recomendarão o estabelecimento de condições efetivas
para a proteção da sociedade, o que implicaria, segundo eles, na aplicação
simultânea pelo Estado de penas e medidas de segurança (MANITA, 1997, p. 57).
As medidas de segurança distinguir-se-iam da pena, principalmente, em
três aspectos: individualização na aplicação, segundo as características particulares
do delinquente; preocupação em incapacitar/recuperar o criminoso e proteger a
sociedade, acima do interesse de punir; e, por fim, duração indeterminada,
persistindo enquanto não se verificasse a cessação da periculosidade do agente.
Assim, a grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX, foi a escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam (FOUCAULT, 2005, p.85).
É, portanto, a potencialidade do indivíduo criminoso de representar um
mal à comunidade que determinará a utilização da mais adequada resposta penal.
Mais do que o crime ou a gravidade do acto, o que está agora em jogo é sobretudo a natureza do criminoso e a tentativa de adequação das penas às suas características particulares, sobretudo nos casos em que existe uma esperança de “recuperação” [...], orientando-se por dois vectores que até hoje têm dominado as práticas interventivas no domínio da criminalidade: (a) a defesa social/ protecção e (b) a prevenção/recuperação do indivíduo delinquente (MANITA, 1997, p. 58).
Embasada na idéia de recuperação do criminoso patológico, desenvolve-
se uma ideologia do tratamento no âmbito penal, operacionalizada por especialistas
do saber médico. Dessa maneira, justifica-se, cientificamente, o estabelecimento da
medida de segurança como forma de controle social dos delinquentes perigosos e
irrecuperáveis, entre os quais se encontram os alienados. Conforme aponta Rauter
(2003, p. 113), “[n]ão se trata [...] de desculpar o criminoso, dispensando-lhe um
tratamento mais humano. O que ocorre é apenas a substituição de um tipo de
controle por outro, mais eficaz e abrangente”.
44
3 O CONTROLE DA LOUCURA PERIGOSA NO BRASIL
3.1 A PERICULOSIDADE TUPINIQUIM E A CONSTITUIÇÃO DO
MANICÔMIO JUDICIÁRIO
Do início, pouco se sabe. Vagas e escassas são as fontes que cuidam do
fenômeno da loucura no Brasil Colônia. No entanto, de forma semelhante ao que
ocorria no mundo, pode-se afirmar, de acordo com Resende (apud PERES, 1997, p.
79-80), que os loucos no Brasil viviam certa experiência de liberdade. Quase
sempre, vagavam pelas cidades, ou, se fossem membros de famílias ricas, eram
escondidos em suas casas, para evitar vergonha pública. Caso cometessem atos de
violência, podiam, excepcionalmente, ser enviados às cadeias, onde permaneciam
por curto período, ou então banidos das cidades. De forma geral, o louco do período
não era objeto de cuidado ou repressão específicos34.
Além disso, até o século XVIII, a saúde pública no Brasil era questão
muito mais assistencial que médica. Destarte, os hospitais porventura existentes
eram parte da obra de caridade da Santa Casa de Misericórdia, abrigando loucos
em alguns de seus leitos, muitas vezes sem a presença de médicos nesses
estabelecimentos (MEDEIROS apud ALENCAR, 2004, p. 35). Somente com a vinda
34 Segundo Ott (apud PERES, 1997, p. 79-80), as primeiras instituições que demonstraram interesse pela questão do desatino foram a Casa de Cadeia e Câmara, em Salvador, que, em 1681, inicia a construção de uma nova cadeia, na qual alguns loucos serão aprisionados; e o Hospital São Cristóvão, na mesma cidade, que constrói uma enfermaria para loucos, em meados do século XVIII.
45
da família real para o Brasil, em 1808, no bojo de um amplo processo de
medicalização da sociedade brasileira, a loucura vai dar alguns passos relevantes
em sua consolidação como questão de Estado. Com o fim do período colonial, o
Brasil, alçado à categoria de Reino Unido de Portugal e Algarves, inicia sua fase
imperial, com certo desenvolvimento econômico e conseqüente urbanização e
crescimento das cidades. A fim de modernizá-las, tornam-se necessárias medidas
de higienização e controle do espaço social.
Só é, portanto, possível compreender o nascimento da psiquiatria brasileira a partir da medicina que incorpora a sociedade como novo objeto e se impõe como instância de controle social dos indivíduos e das populações. É no seio da medicina social que se constitui a psiquiatria. Do processo de medicalização da sociedade, [...] surge o projeto [...] de patologizar o comportamento do louco, só a partir de então considerado anormal e, portanto, medicalizável (MACHADO, R. e outros, 1978, p. 376).
No ano de 1830, realiza-se a primeira investigação sobre a situação dos
loucos na cidade do Rio de Janeiro. Conduzida pela recém-criada Sociedade de
Medicina e Cirurgia, essa pesquisa conclui pela periculosidade da loucura e pela
necessidade de construção de um local destinado a recolher os alienados,
especialmente os mais pobres. Caberia então à polícia médica o controle da higiene
pública e dos doidos que circulam pelas ruas (MACHADO, R. e outros, 1978, p. 376-
377).
Neste mesmo ano, entrou em vigor o primeiro Código Penal brasileiro, de
notória influência liberal, pregando a responsabilidade penal calcada no livre arbítrio.
Desse modo, o homem que cometesse um crime em estado de loucura não poderia
ser responsabilizado35. Em virtude disso, os loucos não eram apenados, devendo
ser recolhidos a casas para eles destinadas ou entregues às respectivas famílias36.
A existência de loucura tornava o crime inexistente no sentido jurídico, e neste momento a loucura era compreendida como o contrário da lucidez, como a incapacidade de discernir segundo a
35 “Art. 10. Também não se julgarão criminosos: [...] 2.º Os loucos de todo o genero, salvo se tiverem lucidos intervallos e nelles commeterem o crime” (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, p. 238). 36 “Art. 12. Os loucos que tiverem commetido crimes serão recolhidos ás casas para elles destinadas, ou entregues ás suas famílias, como ao Juiz parecer mais conveniente” (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, p. 238). Saliente-se que, apesar de o dispositivo legal falar sobre “casas para elles destinadas”, ainda não havia asilos manicomiais no país, sendo os loucos criminosos encaminhados às prisões ou ao Hospital da Santa Casa (PERES e NERY FILHO, 2002, p. 337).
46
razão. Os loucos seriam desarrazoados e por isso incapazes para o contrato social (RAUTER, 2003, p. 42)
Prova disso é que, caso o louco possuísse intervalos de lucidez, e, em um
desses momentos, cometesse crimes, deveria ser punido, pois “a lucidez marcava o
retorno ao estado de razão, e conferia ao louco o estatuto de criminoso” (PERES e
NERY FILHO, 2002, p. 37). Malgrado a legislação ainda concebesse a loucura como
desrazão e se situasse, juridicamente, no mundo clássico, a criação do manicômio
no Brasil vai relacionar-se com teorias e conceitos que estão mais próximos de um
saber positivo, como a monomania de Esquirol e a degeneração de Morel. Como foi
mencionado, essas entidades clínicas expandiram a noção de loucura para além do
delírio, relacionando-se diretamente com desvio moral e violência.
Machado (R. e outros, 1978, p. 382-384) observa que os primeiros
trabalhos teóricos sobre alienação mental no Brasil, em meados do século XIX,
tinham Esquirol como referência básica. Logo, o conceito chave com que a
psiquiatria brasileira iniciou seu desenvolvimento foi a monomania. Porém, como
este conceito já sofria questionamentos na Europa, a noção de degeneração, com a
perspectiva organicista da alienação mental, foi concomitantemente utilizada para
diagnosticar, através da periculosidade, a doença moral do indivíduo37.
Assim, embora a lei ainda estabelecesse uma relação com o louco sob o
viés da sua impossibilidade de responder pelo contrato social, no campo
psiquiátrico, ele já era um monstro a ser temido e um objeto a ser estudado. Com a
noção de monomania, abre-se a possibilidade de um louco-lúcido, aparentemente
normal, o qual só poderia ser desmascarado pelo psiquiatra. Necessário se fez, pois,
instituir um local específico de diagnóstico e tratamento dos alienados.
Além disso, diversas críticas dirigiam-se nesse momento à situação dos
loucos no Hospital da Santa Casa de Misericórdia38. Apontava-se, principalmente,
que esse estabelecimento não possuía condições suficientes para realizar um
tratamento moral do indivíduo louco; que não havia divisão entre as variadas
espécies de loucura; que inexistia médico especialista; enfim, que o cuidado com a
37 De acordo com Peres (1997, p. 82), “[a] loucura como um fenômeno moral [...] chega ao Brasil elegendo a monomania, e tudo o que nela estava implicado, como conceito privilegiado para justificativa de nossa estratégia alienista: a loucura-perigo, a loucura-lúcida pediam uma estratégia de controle específica e um corpo de especialistas para sua identificação”. 38 O próprio provedor da Santa Casa no período 1838-1854, José Clemente Pereira, foi um dos defensores da criação de uma instituição específica para alienados, formulando o projeto que resultou na criação do primeiro asilo psiquiátrico do Brasil (MACHADO, R. e outros, 1978, p. 424-428).
47
loucura se resumia a uma obra de misericórdia, paradoxalmente guiada por castigos
físicos inúteis e aprisionamento em “gaiolas humanas” (MACHADO, R. e outros,
1978, p. 378-379).
Como reflexo da crítica às condições do louco nas ruas e na Santa Casa,
em 18 de julho de 1841, foi editado um decreto, fundando o Hospício Pedro II,
considerado o marco legal do nascimento da psiquiatria no Brasil. No entanto,
apenas em 1852 finalizaram-se as obras de construção do prédio, inaugurando-se o
primeiro hospício nacional.
Desde sua fundação, o Hospício Pedro II foi entregue à administração da
Santa Casa de Misericórdia e às freiras da Irmandade de São Vicente de Paulo, um
dos setores mais conservadores do clero (CARRARA, 1998, p. 143). Em
decorrência, embora o saber psiquiátrico tenha conseguido erguer sua própria
instituição, muito havia ainda para ser feito no processo de laicização e
medicalização da loucura.
Essa disputa entre os projetos laico e religioso de assistência à loucura
estendeu-se por toda a segunda metade do século XIX, sendo resolvido, ao final, em
prol do modelo laico. A categoria médica, representada principalmente por João
Carlos Teixeira Brandão, lançou, nesse período, duras críticas à organização dos
asilos. Em primeiro lugar, criticava-se a subordinação da atuação médica às freiras,
que detinham o poder de decidir no estabelecimento. Assim, para Teixeira Brandão
(apud CARRARA, 1998, p. 144), “o Hospício se assemelhava mais a um convento
do que a uma instituição de tratamento e cura”, pois era reduzido o número de
médicos, inexistia separação por classe de doentes e tampouco autonomia quanto
aos procedimentos de internação e alta, havendo, inclusive, a presença de “não-
loucos” no hospício (MACHADO, R. e outros, 1978, p. 449). Contestava-se também
o despreparo da atuação terapêutica dos enfermeiros, os quais, acobertados pela
conivência das freiras, utilizavam-se de exacerbada violência física contra os
internos:
[u]m enfermeiro em luta com um doente vazou-lhe um olho, não se podendo determinar se foi um fato de mera casualidade ou se entrou nisto execrável brutalidade da parte do enfermeiro. . . Freqüentes vezes [se] poderá encontrar [...] enfermeiros com largas contusões: como é natural, houve luta e o alienado, que contundiu, não ficou impune (BRANDÃO apud MACHADO, R. e outros, 1978, p. 461).
48
Por fim, as críticas médicas dirigiam-se à inexistência de uma legislação
específica sobre a loucura, que pudesse garantir formalmente o espaço da
psiquiatria em seu controle, bem como disciplinasse o procedimento de internação,
submetido ao aval do psiquiatra (CARRARA, 1998, p. 145).
Tais críticas começam a atingir seus objetivos com o advento do regime
republicano. Graças à destituição do Catolicismo como religião oficial do Estado, os
serviços públicos passam por um amplo processo de laicização. Nesse bojo,
Teixeira Brandão, que assumiu, em 1887, a direção sanitária do Hospício Pedro II,
consegue, em 1890, expulsar as freiras desse estabelecimento, substituindo-as por
enfermeiras francesas39, em face da separação oficial entre o hospício e a Santa
Casa de Misericórdia (CARRARA, 1998, 144-146). Assim,
[a]s idéias de Teixeira Brandão respondiam às necessidades históricas da época em questão: justificavam – sob a forma de indicação clínica – a exclusão dos inadaptados – constituídos em grande parte por estrangeiros e desempregados – e a ampliação dos asilos (PERES, 1997, p. 89).
No campo legal, durante o ano de 1890, foram editados cinco decretos40
para reorganizar o sistema de assistência a alienados. Criaram-se, também nesse
ano, as duas primeiras colônias de alienados do Estado do Rio de Janeiro,
ampliando o controle social da loucura para o interior. A psiquiatria, portanto,
avançou rapidamente, tanto na consolidação de suas instituições, como no campo
aberto socialmente à possibilidade de exercer seu controle. Construído o hospício,
garantida a autonomia médica com a laicização e regulamentada a instituição,
restava à psiquiatria intervir sob o principal instrumento do controle social da
moralidade: o campo jurídico.
Até esse momento, sob o Código do Império de 1830, os “loucos de todo
gênero” não necessitavam de médicos para o seu reconhecimento.
39 A nacionalidade das enfermeiras escolhidas para substituir as irmãs de caridade é significativa da forte adesão de Teixeira Brandão, e da medicina psiquiátrica brasileira, às teses do alienismo francês. 40 O primeiro decreto, editado em janeiro, desvincula da Santa Casa de Misericórdia o Hospício Pedro II, o qual passou a se chamar Hospício Nacional de Alienados; o segundo, de fevereiro, cria a Assistência Médico-Legal a Alienados do Distrito Federal, responsável pela administração daquele estabelecimento; o terceiro, lançado em junho, aprova o regulamento da Assistência Médico-Legal; o quarto, baixado em setembro, cria a Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras, localizada no Hospício Nacional de Alienados; por fim, em dezembro, outro decreto cria, no mesmo hospício, um Museu Anátomo-Patológico (ALENCAR, 2004, p. 37).
49
O juiz de direito era obrigado a formular quesito sobre o estado de loucura do réu, quando lhe for requerido e o exame deveria ser feito diante do júri, que é quem devia apreciá-lo para decisão. A circunstância da loucura, ainda que de notoriedade pública, só podia ser tomada em consideração pelo júri (FILGUEIRAS JR., apud PERES e NERY FILHO, 2002, p. 337).
Dessa forma, por deixar de lado o saber psiquiátrico como instância de
delimitação entre o normal e o patológico, as normas legais vigentes foram
fortemente criticadas. Já em 1886, Teixeira Brandão as considerava “parciais,
imperfeitas e inobservadas” (MACHADO, R. e outros, 1978, p. 481-482), pois, 1)
centrando-se no ato criminoso, olvidam a necessidade de controle de toda uma
população de loucos que não cometeram crimes; 2) não exigem a presença de
perito médico para avaliar o discernimento do criminoso, ampliando demasiada e
arbitrariamente os poderes do juiz, e; 3) inexiste um estabelecimento específico para
o louco-criminoso, que não deve ficar na prisão, tampouco no hospício ao lado dos
loucos não criminosos. Aponta-se também que a loucura não deve ser
compreendida de forma tão genérica, existindo variadas formas e graus, bem como
que loucura e irracionalidade não constituem sinônimos, havendo distúrbios que
preservam a razão mas afetam a moral41 (RAUTER, 2003, p. 44).
Observe-se que os juristas, de forma geral, não se deixavam intimidar
pelo discurso psiquiátrico em ascensão. No Brasil, a situação não foi diferente:
alegavam os profissionais do direito que a psiquiatria pretendia desculpar o
criminoso, transformando-o num doente. É que, como havia ainda poucos hospícios
no país, o destino do louco-criminoso poderia ser simplesmente a família. Assim, em
virtude da desconfiança do poder judiciário para com a psiquiatra, sobretudo do
receio da intromissão desse saber em seus domínios, o Código Penal republicano
não incorporou a maior parte das inovações psiquiátricas (RAUTER, 2003, p. 45-46).
Baseado no projeto de João Batista Pereira, convertido em lei em 11 de
outubro de 1890, o Código Penal da República apresenta pequenas modificações na
relação entre direito penal e loucura. Em primeiro lugar, o crime deixa de ser tão
somente um ato previsto em lei, para exigir o requisito da imputabilidade42. Assim, os
loucos, considerados inimputáveis, não poderão ter seus atos qualificados como
41 É visível a influência das teorias da monomania e da degeneração nas críticas proferidas contra a redação do Código Criminal do Império, tanto na defesa da gradação e variedade das formas de loucura, quanto na idéia de loucura sem delírio, atingindo o campo da moral. 42 “Art. 7.º Crime é a violação imputável e culposa da lei penal” (PIERANGELI, 2001, p. 274).
50
crimes, pois a inimputabilidade exclui o caráter criminoso do ato. Além disso, dispõe
também o novo Código:
Art. 27. Não são criminosos: [...] § 3.º Os que por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, fôrem absolutamente incapazes de imputação; § 4.º Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de intelligencia no acto de commeter o crime; [...] Art. 29. Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de affecção mental serão entregues ás suas familias, ou recolhidos a hospitaes de alienados, si o seu estado mental assim exigir para segurança do publico (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, p. 275).
Se, de um lado, o destino do louco-criminoso, a critério do juiz, ainda
pode ser a família, de outro, a substituição de “loucos de todo gênero” por
portadores de “affecção mental” é significativa de uma maior importância dos
conceitos psiquiátricos para o legislador de 1890. Porém, o aspecto que mais chama
atenção, objeto de crítica simultânea de juristas e psiquiatras, é a expressão
“completa privação dos sentidos e da inteligência”: tal estado de absoluta privação
só poderia ocorrer com a morte. Assim, os juízes tiveram de dar uma interpretação
flexível ao § 4º, o que acarretou uma maior abertura dos tribunais para os peritos
psiquiatras a fim de investigarem a “affecção mental” do indivíduo.
Rapidamente, porém, uma reação a tal estado de coisas começou a se
delinear. Em situações de “crimes indefensáveis” o diagnóstico psiquiátrico de
demência parecia inocentar o criminoso, que seria, apenas, encaminhado ao
Hospício. Assim, fez-se necessário limitar a atuação do perito, cujo laudo passou a
constituir apenas parte do processo, destinado unicamente a esclarecer o juiz, o
qual permaneceu livre para julgar, inclusive contra o laudo (PERES, 2002, p. 339-
340).
Outra questão importante é que, nessa passagem de século, a
intensificação do processo de urbanização e industrialização parece ser apontada
como a causa de um aumento considerável nas taxas de criminalidade, graças à
intensificação dos conflitos sociais (CARRARA, 1998, p. 62-63). Com um século de
atraso em relação ao que ocorreu na França pós-revolucionária, crimes diferentes
despontam por toda parte, chocando a sociedade brasileira. São os monomaníacos,
os degenerados, os monstros, que resolvem sair das cortinas da invisibilidade social
51
e subir ao palco, acirrando as disputas entre juristas e psiquiatras e, finalmente,
apontando um caminho para a conciliação.
Inspirado no trabalho realizado por Foucault no caso Rivière, Sérgio
Carrara (1998) analisa, com base em relatos da imprensa sobre o crime de Custódio
Alves Serrão, a arena discursiva em que se encontravam médicos e juristas quanto
ao destino a ser dado aos loucos-criminosos. No ano de 1896, temendo ser
encaminhado ao hospício por seu tutor, o Comendador Belarmino Brasiliense
Pessoa de Melo, de quem afirmava sofrer perseguições, Custódio desfere contra ele
um tiro de revólver, assassinando-o. De imediato, é dado como louco por
conhecidos e familiares, pela polícia e pela imprensa. Com isso, contraditoriamente,
segue o destino do plano que acreditava tramado contra si pela vítima: é
encaminhado ao hospício. Ao matar para reagir contra a suspeita de sua loucura,
Custódio é imediatamente declarado louco43.
Mais do que os aspectos do caso em si, ou que a discussão sobre a
loucura de Custódio (a qual apenas o próprio parece questionar), é significativo o
debate a que se entregam, a partir de então, juristas e psiquiatras sobre o destino
dos loucos-criminosos. Nessa época, Teixeira Brandão, então diretor do Hospício
Nacional de Alienados, para onde Custódio é encaminhado, promove uma reação a
essa internação e uma defesa intransigente da necessidade de se construir um local
especificamente destinado a essa espécie de criminoso: o Manicômio Judiciário.
Para Teixeira Brandão (apud CARRARA, 1998, p. 150-153), os “alienados
criminosos” e “alienados condenados” (que enlouqueciam nas prisões, durante o
cumprimento da pena) comprometiam a ordem e a disciplina necessárias ao
tratamento moral dos demais internos. A eles, somavam-se também os “alienados
perigosos”, os quais, mesmo sem qualquer relação com a justiça, apresentavam
acessos de violência e furor, ou planejavam projetos de vingança e os executavam.
Portanto, para esses indivíduos perigosos, muito mais que um pavilhão no interior do
Hospício Nacional, deveria ser criada uma instituição específica, um “manicômio
criminal”, a exemplo do que já se fazia em outros países civilizados para encarcerar
a loucura perigosa e violenta ao lado dos criminosos natos e degenerados.
43 “[...] Custódio procurava desesperadamente interromper um processo de acusação de loucura, eliminando seu principal acusador. Nesse caso, seu ato de eliminação – corporificado no assassinato – não deixava, é verdade, de se recobrir de uma enorme ambivalência, pois podia bem ser interpretado, como efetivamente o foi, como a prova cabal da própria acusação de loucura” (CARRARA, 1998, p. 133).
52
Esses doentes perigosos, portadores do estigma da periculosidade em
sua versão tupiniquim; esses indivíduos que, inicialmente, serviram para fundar e
cristalizar a estratégia alienista; esses monstros humanos, monomaníacos, atávicos
e degenerados, são, então, considerados um obstáculo ao pleno desenvolvimento
da psiquiatria, pela vinculação que expõem entre loucura, crime e violência,
revelando-a um saber inespecífico. Impunha-se medicalizar, definitivamente, o
espaço asilar, dele retirando todos os loucos perigosos que comprometiam o
tratamento (PERES, NERY FILHO e LIMA JUNIOR, 1998). É, por conseguinte, num
recuo da psiquiatria brasileira ante a sua expansão sobre as condutas a serem
normalizadas, visando a constituir um objeto específico e determinado, passível de
tratamento e cura (e, portanto, gerador de resultados), que se fará a cisão entre os
bons e os maus loucos, erigindo para estes um centro de controle muito mais
repressivo e excludente. A psiquiatria assume a impossibilidade de lidar, sozinha,
com o fenômeno da degeneração.
Por conta disso, os diretores médicos dos asilos, reiteradas vezes negam-
se a internar loucos-criminosos encaminhados pela justiça, transferindo-os para
prisões ou até colocando-os em liberdade (CARRARA, 1998, p. 189). Institui-se, na
prática, uma luta que há muito se travava no campo teórico; o asilo criminal parece
ser o único destino possível para os loucos em conflito com a lei. Urge construí-lo.
Edita-se, então, em 1903, através do Decreto nº 1.132, a Lei Federal de
Assistência a Alienados, que se propõe a reorganizar o serviço de assistência
psiquiátrica no país. Além de legalizar a estratégia alienista, definindo a população a
ser internada44, determina a nova legislação a construção dos manicômios
judiciários em cada estado, e, enquanto a instituição não se concretiza, a criação de
pavilhões especialmente destinados aos loucos-criminosos nos hospícios existentes,
proibindo o seu enclausuramento nas cadeias públicas45 (PERES, 2002, p. 94-95).
Seguindo, pois, as orientações do alienismo que ora se praticava,
44 “Art. 1º. O indivíduo que, por moléstia mental, congênita ou adquirida, compromete a ordem pública ou a segurança das pessoas, será recolhido a um estabelecimento de alienados” (BRASIL apud PERES, 2002, p. 94) 45 “Art. 10. É prohibido manter alienados em cadeias públicas ou entre criminosos. Paragrapho único. Onde quer que não exista hospício, a autoridade competente fará alojar o alienado em casa expressamente destinada a este fim, até que possa ser transferido para algum estabelecimento especial. Art. 11. Emquanto não possuírem os estados manicômios criminaes, os alienados delinquentes e os condemnados alienados, somente poderão permanecer em asylos públicos, nos pavilhões que especialmente se lhes reservem” (BRASIL apud PERES, 2002, p. 95).
53
[e]sta lei faz do hospício o único lugar apto a receber loucos, subordina sua internação ao parecer médico, estabelece a guarda provisória dos bens do alienado, determina a declaração dos loucos que estão sendo tratados em domicílio, regulamenta a posição central da psiquiatria no interior do hospício, [...] [enfim,] faz do psiquiatra a maior autoridade sobre a loucura, nacional e publicamente reconhecido (MACHADO, R. e outros, 1978, p. 484).
No mesmo ano, cria-se a Seção Lombroso do Hospício Nacional,
destinada para os loucos-criminosos (CARRARA, 1998, p. 191). Já em 1911, o
Decreto nº 8.834 se propõe a, novamente, reorganizar a assistência a alienados,
sem, contudo, apresentar grandes inovações (PERES, 2002, p. 97; ALENCAR,
2004, p. 37). Até então, o manicômio judiciário não passava de uma previsão legal.
Segundo Carrara (1998, p. 192-193), dois eventos foram cruciais para a
construção do novo estabelecimento. O primeiro deles, ocorrido no final de 1919, foi
o assassinato da esposa de um Senador da República por um degenerado,
mobilizando a imprensa e a opinião pública da época para a construção do
manicômio judiciário, meio de repressão eficaz para os delinquentes alienados. Logo
após o assassinato, o Governo federal inicia movimentações para fundar o
manicômio judiciário, obtendo crédito financeiro do Congresso ainda no mesmo ano.
O segundo evento foi a rebelião ocorrida na Seção Lombroso do Hospício Nacional,
em 27 de janeiro de 1920, quando os internos saíram de suas celas, agrediram
funcionários e atearam fogo aos colchões. Graças a isso, apressaram-se as obras
do manicômio judiciário, pois, conforme a opinião de Juliano Moreira, “os criminosos
loucos, os que faziam a revolta, não deveriam estar alojados [...] no Hospício mas
numa prisão de caráter especial, prisão e manicômio ao mesmo tempo”.
Fruto desse longo processo de institucionalização da loucura perigosa,
inaugura-se, em 30 de maio de 1921, o primeiro manicômio criminal do país, com
regulamento aprovado pelo Decreto 14.831. A partir de então, será ele o destino
I – Dos condemnados que, achando-se recolhidos às prisões federaes, apresentarem symptomas de loucura. II – Dos accusados que pela mesma razão devam ser submetidos à observação especial e tratamento. III – Dos delinquentes isentos de responsabilidade por motivo de affecção mental, quando, a critério do juiz, assim o exija a segurança pública (BRASIL apud PERES, 2002, p. 97-98).
Em termos práticos, o manicômio judiciário surge para encarcerar uma
54
loucura perigosa, tenha ou não cometido crime, esteja ou não apenada:
[...] os manicômios judiciários não foram primordialmente pensados para abrigar, de um modo geral, qualquer doente mental ou alienado que cometesse crimes; destinavam-se especialmente aos criminosos considerados degenerados, natos, de índole, ou, mais amplamente, anômalos morais (CARRARA, 1998, p. 195).
Cabe então aos saberes jurídico e psiquiátrico, como instâncias de
controle social, unirem-se para determinar, concretamente, quem são esses loucos-
criminosos, para os quais a prisão ou o hospício são insuficientes, tornando-se
necessário, para docilizá-los, um estabelecimento híbrido, onde se aplica uma
espécie de punição terapêutica de duração indeterminada, que será, mais tarde,
chamada de medida de segurança.
3.2 O CÓDIGO PENAL DE 1940 E A INSTITUIÇÃO DA MEDID A DE
SEGURANÇA NO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL BRASILEIRO
Pode-se afirmar que, no Brasil, a medida de segurança, como instituto
jurídico, surgiu atrasada em relação ao confinamento prático do louco infrator. Erigiu-
se, primeiro, o estabelecimento onde a contenção da loucura perigosa deveria se
realizar e somente duas décadas mais tarde, disciplinou-se penalmente os critérios
jurídicos para aplicação da medida de internamento. Na disputa pelo controle da
loucura, a psiquiatria esteve quase vinte anos à frente da codificação penal.
Há algum tempo, porém, já se buscava atualizar o código vigente. Em
1893, apenas três anos após sua entrada em vigor, apresentava-se o primeiro
projeto de reforma do Código republicano, proposto pelo deputado Vieira de Araújo,
ao qual se seguiram o projeto da Comissão Especial da Câmara, o projeto Galdino
Siqueira (1913), o projeto Sá Pereira (1935) e, finalmente, o projeto Alcântara
Machado (1938), revisado e convertido em lei, em 1940 (PERES, 1997, p. 21).
Todas essas iniciativas tentaram adequar os dispositivos penais às
recentes inovações trazidas por um saber em crescente ascensão no país, a
criminologia, que, desde o final do século XIX, inicia seu desenvolvimento científico,
55
quase sempre incorporando, sem grandes críticas, as teorias produzidas no exterior.
Utilizando como principal meio difusor os congressos internacionais de criminologia,
onde se buscava a elaboração de normas universais sobre a matéria delituosa, os
países desenvolvidos pretendiam expandir ao mundo sua ideologia do controle
social. Contudo, Rosa del Olmo (2004, p. 159), afirma que esse fenômeno
[n]ão era uma relação unilateral de imposição, como geralmente se crê. Contava com a aceitação das classes dominantes de cada país, que sentiam a necessidade de encontrar na Europa e nos Estados Unidos a “solução” de seus problemas locais, especialmente por sua atitude de subordinação e seu comportamento mimético.
Para a Autora (2004, p. 160-161), os países latino-americanos
constituíram os primeiros da periferia capitalista a adotar as teses defendidas em
tais congressos, gerando uma “assimilação deformada e artificial das idéias
européias” e, portanto, uma alienação ideológica: “[a]s palavras de Lombroso, Ferri
ou Garófalo eram sagradas para os latino-americanos e tinham que ser assimiladas
sem que se levasse em conta que a história da Itália, e portanto de sua
delinqüência, era muito distinta da nossa”. Assim, a América Latina importou,
primeiramente, os modelos penitenciários e os códigos penais; em seguida, utilizou
a antropologia criminal como resposta científica aos problemas sociais.
Tendo como objeto o fenômeno do crime e o indivíduo delinquente, a
criminologia se apresenta à América Latina como uma ciência da defesa social, cujo
principal objetivo é garantir a ordem. Logo, como antes demonstrado, diferente do
que propunha a teoria clássica, a criminologia positiva não pretende estabelecer
bases contratualistas da retribuição ao infrator, mas prevenir e evitar o crime através
de atuação eficaz sobre o criminoso, para corrigi-lo e neutralizá-lo. Nesse sentido, o
direito penal, como instância de regulação social, perde a importância marcante que
os clássicos lhe atribuíam, em prol de outros mecanismos de controle, como os
substitutivos penais, propostos por Ferri, e a psiquiatria.
Uma vez que a psiquiatria brasileira, no início do século XX, encontrava-
se em plena expansão, o saber criminológico tinha a missão de constituir uma ponte
para promover a conciliação entre ciência psiquiátrica e legislação penal. Com o
desenvolvimento de suas produções científicas e a consequente ampliação de sua
relevância junto ao direito penal, a criminologia brasileira foi responsável por dotá-lo
de uma feição disciplinar, que permitiu incorporar vigilância e tratamento, marcas da
56
atuação psiquiátrica, às práticas punitivas tradicionais (RAUTER, 2003, p. 48).
Fruto de um período de exceção na história republicana brasileira46, o
Código Penal de 1940 pode, então, ser apontado como o alicerce jurídico sobre o
qual a criminologia brasileira se apóia para consolidar-se como ciência de explicação
e controle do fenômeno do crime. Portanto, a utilização da periculosidade como
critério para aplicação da pena e a formulação legal da medida de segurança
revelam-se, simultaneamente, como inovações criminológicas e incorporações
psiquiátricas no direito penal. Além disso, malgrado se mantivessem os sólidos
princípios dos juristas clássicos (a exemplo da utilização da pena como resposta
central ao delito), o Código de 1940 apresenta transformações conceituais que
permitem entrever a ascensão das teorias criminológicas positivistas no pensamento
jurídico-penal da época, constituindo um código eclético47.
Logo de início, percebe-se que, diferentemente do previsto no código
anterior, o crime não mais se relaciona com a idéia de imputabilidade do sujeito48,
sendo concebido, pelos juristas, como um ato típico (previsto em lei como infração) e
antijurídico (contrário ao direito)49. Destarte, no caso dos inimputáveis, haverá crime,
ainda que, pela inexistência de culpabilidade, a consequência jurídica não seja a
pena. O louco não deixa de ser criminoso por conta de sua doença mental,
podendo-se somente isentá-lo de pena ou diminuir sua duração:
Art. 22 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter
46 “Em 27 de setembro de 1937, Getúlio Vargas (1882-1954), com apoio do general Góis Monteiro (1889-1956), então Ministro da Guerra, resolveu romper com a ordem constitucional, sob fundamento de que, assim procedendo, se poria fim à ameaça comunista, que mesmo após a chamada Intentona Comunista, de 1935, ainda se fazia presente com o chamado Plano Cohen. Assim feito, a 10 de novembro de 1937, era outorgada uma Carta Constitucional, a Polaca, chamada assim, por ter adotado como modelo a Constituição da Polônia. De acordo com Hélio Silva, [...] o melhor instrumento para valer à nova ordem foi indubitavelmente o Direito Penal, que se normatizava ao gosto do opressor” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2005, p. 78). 47 Conforme enfatiza Francisco de Campos (apud PIERANGELI, 2001, p. 406), presidente da comissão revisora do projeto Alcântara Machado, “[c]oincidindo com a quase totalidade das codificações modernas, o projeto não reza em cartilhas ortodoxas, nem assume compromissos irretratáveis ou incondicionais com qualquer das escolas ou das correntes doutrinárias que se disputam o acerto na solução dos problemas penais. Ao invés de adotar uma política extremada em matéria penal, inclina-se para uma política de transação ou de conciliação. Nele, os postulados clássicos fazem causa comum com os princípios da Escola Positiva”. 48 “Art. 1.º Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal” (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, p. 441). 49 Para um aprofundamento dos conceitos jurídico-penais utilizados neste trabalho, ver Jesus (2003), Bitencourt (2003), Mirabete (1996) e Prado (2002). Para a utilização desses conceitos, de uma perspectiva crítica, cf. Zaffaroni e Pierangeli (1997).
57
criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, p. 444).
Desse modo, o novo código estabelece uma distinção entre os
inimputáveis, os quais não podem ser penalmente responsabilizados, e os semi-
imputáveis, limítrofes, parcialmente responsáveis. Tal diferenciação corresponde,
sem dúvida, à contribuição psiquiátrica dos variados graus de afecção mental,
esboçada desde a teoria da degeneração. Além disso, uma nova entidade
psiquiátrica se esboçava nesse período: a psicopatia.
Kurt Schneider é apontado como o psiquiatra responsável por identificar
essa categoria clínica, definindo o psicopata como
uma personalidade anormal, definível em função de procedimentos sociológicos (variações de uma faixa média que se tem em mente). Não se trata porém de uma personalidade mórbida, como é o caso das psicoses [...], as personalidades psicopáticas são aquelas que sofrem ou fazem sofrer a sociedade. [...] Anormal, porém não-doente; merecedor de um rótulo, mas [...] irrecuperável (SCHNEIDER apud RAUTER, 2003, p. 115).
Então, o psicopata, uma espécie de “louco lúcido”, cuja patologia consiste
na opção pela delinquência, surge como atualização do rótulo dos antigos
monomaníacos e degenerados, exigindo uma nova resposta jurídica, que não o
isente de pena, tampouco olvide a necessidade de vigiá-lo e tratá-lo. Assim, ao
transformar a oposição à lei em sintoma de doença, defendem os criminólogos,
fazendo eco aos psiquiatras, que “[a] afetividade modificada dos psicopatas não
permite reconhecer a justiça da pena... julgam-se vítimas... nestes casos seria
preciso uma pena mais severa do que as normais” (RAUTER, 2003, p. 48).
Explica-se, por conseguinte, a bipartição no destino dos doentes mentais:
“o agente isento de pena, nos termos do art. 22, é internado em manicômio
judiciário”50; já os condenados limítrofes, cujas condições estabelecidas no parágrafo
50 “Art. 91. O agente isento de pena, nos termos do art. 22, é internado em manicômio judiciário. § 1.º A duração da internação é, no mínimo: I – de seis anos, se a lei comina ao crime pena de reclusão não inferior, no mínimo, a doze anos; II – de três anos, se a lei comina ao crime pena de reclusão não
58
único do Art. 22 foram reconhecidas na sentença, cumprem pena privativa de
liberdade e, a seguir, “[s]ão internados em casa de custódia e tratamento, não se
lhes aplicando outra medida detentiva”51 nesse período.
Surgem, assim, inspiradas no “Código Rocco” italiano e pela primeira vez
legisladas fora da Europa (OLMO, 2004, p. 118), as medidas de segurança,
voltadas, precipuamente, para os loucos-criminosos. Segundo Francisco Campos
(apud PIERANGELI, 2001, p. 407), buscava-se, com isso, corrigir a anomalia do
código de 1890, que deixava doentes mentais perigosos sob cuidados da
Assistência Nacional de Alienados, isentando-os de qualquer pena.
Além disso, a medida de segurança buscava a contenção dos sujeitos
que, mesmo considerados imputáveis, revelavam uma personalidade criminal
ameaçadora da sociedade. Baseava-se, então, menos na gravidade do crime
praticado que na periculosidade do indivíduo52, a ser avaliada pelo perito psiquiatra,
através de um laudo elaborado para esclarecer/ auxiliar o juiz, que possui a palavra
final.
inferior, no mínimo, a oito anos; III – de dois anos, se a pena privativa de liberdade cominada ao crime é, no mínimo, de um ano; IV – de um ano, nos outros casos. § 2.º Na hipótese do n. IV, o juiz pode submeter o indivíduo apenas à liberdade vigiada. § 3.º O juiz pode, tendo em conta a perícia médica, determinar a internação em casa de custódia e tratamento, observados os prazos do artigo anterior. § 4.º Cessa a internação por despacho do juiz, após a perícia médica (art. 81), ouvidos o Ministério Público e o diretor do estabelecimento. § 5.º Durante um ano depois de cessada a internação, o indivíduo fica submetido à liberdade vigiada, devendo ser de novo internado se seu procedimento revela que persiste a periculosidade. Em caso contrário, declara-se extinta a medida de segurança” (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, p. 454-455). 51 “Art. 92. São internados em casa de custódia e tratamento, não se lhes aplicando outra medida detentiva: I – durante três anos, pelo menos, o condenado por crime a que a lei comina pena de reclusão por tempo não inferior, no mínimo, a dez anos, se na sentença foram reconhecidas as condições do parágrafo único do art. 22; II – durante dois anos, pelo menos, o condenado por crime a que a lei comina pena de reclusão por tempo não inferior, no mínimo, a cinco anos, se na sentença foram reconhecidas as condições do parágrafo único do art. 22; III – durante um ano, pelo menos, o condenado por crime a que a lei comina pena privativa de liberdade por tempo não inferior no mínimo, a um ano, se na sentença foram reconhecidas as condições do parágrafo único do art. 22; IV – durante seis meses, pelo menos, ainda que a pena aplicada seja por tempo menor, o condenado à pena privativa de liberdade por crime cometido em estado de embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, se habitual a embriaguez. Parágrafo único. O condenado por crime a que a lei comina pena privativa de liberdade por tempo inferior, no mínimo, a um ano, se na sentença foram reconhecidas as condições do parágrafo único do art. 22, é internado em casa de custódia e tratamento durante seis meses, pelo menos, ou, se mais conveniente, submetido por igual prazo à liberdade vigiada” (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, p. 455). 52 “Art. 76. A aplicação da medida de segurança pressupõe: I – a prática de fato previsto como crime; II – a periculosidade do agente. [...] Art. 77. Quando a periculosidade não é presumida por lei, deve ser reconhecido perigoso o indivíduo, se a sua personalidade e antecedentes bem como os motivos e circunstâncias do crime, autorizam a suposição de que venha ou torne a delinqüir. Art. 78. Presumem-se perigosos: I – aqueles que, nos termos do art. 22, são isentos de pena; II – os referidos no parágrafo único do art. 22; III – os condenados por crime cometido em estado de embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, se habitual a embriaguez; IV – os reincidentes em crime
59
Eis que surge no direito penal brasileiro o novo objeto da punição, o ‘homem que se vai julgar’ [...]. Nos casos de loucura, esse homem é, de antemão, conhecido; não é necessário ao juiz vasculhar seu passado, desvendar suas relações, decifrar suas condutas para aplicar-lhe a sanção penal. A doença já o mostra em sua personalidade criminal, em sua máxima periculosidade e, para reconhecê-la, a psiquiatria é chamada através da perícia, ou Exame de Sanidade Mental (PERES, 1997, p. 139).
Logo, a periculosidade consiste no dispositivo de poder que determina o
confinamento do sujeito no manicômio judiciário, em nome da prevenção e do bem-
estar coletivo. Mesmo com duração mínima definida, a medida de segurança pode
se prolongar indefinidamente, persistindo até que juiz e psiquiatra atestem a
cessação da periculosidade53 do indivíduo. Como afirma Rauter (2003, p. 72),
[o] destino do louco criminoso é a medida de segurança, a ser cumprida em manicômio judiciário, por um período determinado, ao fim do qual será avaliada a cessação de sua periculosidade e a cura de sua doença, o que poderá não ocorrer jamais....
No caso dos semi-loucos, a solução apontada pelo código é ainda mais
punitiva. Através do sistema duplo binário, pelo qual se distinguem pena e medida
de segurança, as duas sanções poderiam ser aplicadas pela prática de um mesmo
fato. Assim, diagnosticada “perturbação da saúde mental” ou “desenvolvimento
mental incompleto ou retardado” que obliterasse a “plena capacidade de entender o
caráter criminoso do fato”, a pena poderia até ter diminuída sua duração de um a
dois terços; entretanto, cumprir-se-ia, adicionalmente, a medida de segurança, no
estabelecimento denominado de Casa de Custódia e Tratamento.
Os limítrofes, os psicopatas, os perigosos de toda espécie, além da pena, que cumprirão inicialmente, serão enviados para instituições de “tratamento e vigilância” [...]. Mas ocorre que tais instituições não existem [...]. O destino reservado a esta classe de criminosos é, na prática, uma pena prolongada e arbitrária, justificada pela necessidade de defesa social (RAUTER, 2003, p. 73).
Por conta de tudo isso, o Código Penal de 1940 é considerado
doloso; V – os condenados por crime que hajam cometido como filiados a associação bando ou quadrilha de malfeitores; [...]”. (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, p. 452).
60
um código rigoroso, rígido, autoritário [...]. Seu texto corresponde a um “tecnicismo jurídico” autoritário que, com a combinação de penas retributivas e medidas de segurança indeterminadas [...] converte-se num instrumento de neutralização de “indesejáveis”, pela simples deterioração provocada pela institucionalização demasiadamente prolongada (ZAFFARONI, 1997, p. 224).
A medida de segurança, por conseguinte, configura-se em meio a um
complexo “dispositivo de controle-dominação da loucura”54 (FOUCAULT, 1985, p.
244), constituindo um forte mecanismo de repressão que mescla punitividade e
tratamento. Ao engendrar a periculosidade, conceito vago e polimorfo deixado ao
arbítrio pseudo-científico de psiquiatras e juízes, como requisito para a duração da
medida de segurança, institui-se uma coerção penal que, diante da impossível
previsibilidade do comportamento do apenado (IBRAHIM, 1999, p. 252), traz a
segregação (inclusive perpétua) como seu traço central.
Para o impossível “tratamento” do crime, sempre o mesmo elixir, a mesma panacéia para todos os males: a boa e velha segregação. [...] A prática dos anos demonstrou que a medida de segurança, tal como concebida pelo legislador de 1940, não passou de uma pena privativa de liberdade piorada, sem possibilidade de libertação ao cabo de alguns anos de cumprimento. Sem possibilidade de “cura”. [...] Sem saída (MATTOS, 2006, p. 101-102).
Fecha-se o cerco do poder estatal de vigiar e punir, tratar e curar, em
torno da loucura considerada perigosa.
3.3 A MEDIDA DE SEGURANÇA ATUAL: QUESTÕES PENAIS E
PROCESSUAIS
3.3.1 A Reforma Penal de 1984
O Código Penal de 1940 é o vigente até o presente momento. No entanto,
53 “Art. 81. Não se revoga a medida de segurança pessoal, enquanto não se verifica, mediante exame do indivíduo, que este deixou de ser perigoso. [...]” (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, p. 453). 54 Para Peres (1997, p. 02-03), a medida de segurança é gestada em meio a uma “estratégia da periculosidade”, que combina o aparelho alienista/ psiquiátrico e as normas do direito criminal.
61
diversos aspectos da situação legal apontada foram modificados, vez que, em 11 de
julho de 1984, após mais de vinte anos de tentativas de reforma, editou-se a Lei
7.209, alterando toda a Parte Geral daquele código. Com tal reforma, ainda que se
tenham mantido as mesmas diretrizes no que tange à loucura criminosa, a disciplina
jurídica da medida de segurança restou bastante modificada.
Destaque-se, primeiramente, a permanência das teses de
inimputabilidade e irresponsabilidade do doente mental e daqueles com
“desenvolvimento mental incompleto ou retardado”, bem como a semi-
responsabilidade dos denominados fronteiriços, agora disciplinadas no artigo 2655.
Contudo, a leitura atenta do novo texto do código revela a substituição do antigo
sistema do duplo binário pelo sistema vicariante, findando a possibilidade de
utilização da medida de segurança para o que for julgado imputável. Consoante
Ibrahim Abi-Ackel (apud PIERANGELI, 2001, p. 648), em sua Exposição de Motivos,
[e]xtingue o Projeto a medida de segurança para o imputável e institui o sistema vicariante para os fronteiriços. Não se retomam, com tal método, soluções clássicas. Avança-se, pelo contrário, no sentido da autenticidade do sistema. A medida de segurança, de caráter meramente preventivo e assistencial, ficará reservada aos inimputáveis. Isso, em resumo, significa: culpabilidade – pena; periculosidade – medida de segurança.
Houve, pois, avanço na superação do sistema duplo binário por se evitar
a rigorosa aplicação simultânea de pena e medida de segurança ao indivíduo. No
entanto, o sistema vicariante não está isento de críticas, porque, como observa
Zaffaroni (1997, p. 122), “[t]rata-se de um desdobramento esquizofrênico do direito
penal, no qual uma parte trata o homem como uma pessoa que deve ser castigada e
a outra como uma coisa perigosa que deve ser neutralizada”.
Notam-se também, no novo texto legal, modificações quanto ao destino
que se reserva aos inimputáveis:
Art. 96. As medidas de segurança são: 55 “Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, p. 654-655).
62
I – internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, ou à falta, em outro estabelecimento adequado; II – sujeição a tratamento ambulatorial. [...] Art. 97. Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação. Se todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial. § 1º - A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos. § 2º - A perícia médica realizar-se-á ao termo do prazo mínimo fixado e deverá ser repetida de ano em ano, ou a qualquer tempo, se o determinar o juiz da execução. § 3º - A desinternação, ou a liberação, será sempre condicional devendo ser restabelecida a situação anterior se o agente, antes do decurso de 1 (um) ano, pratica fato indicativo de persistência de sua periculosidade. § 4º - Em qualquer fase do tratamento ambulatorial, poderá o juiz determinar a internação do agente, se essa providência for necessária para fins curativos (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, p. 664).
A partir de então, duas são as possibilidades de reação penal ao louco
infrator: ou ele é internado no hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (nova
designação para as mesmas paredes do velho manicômio judiciário); ou utiliza-se a
hipótese mais branda e integradora de sujeição ao tratamento ambulatorial.
Corresponde a inovação às atuais tendências de “desinstitucionalização”, sem o exagero de eliminar a internação. Pelo contrário, o Projeto estabelece limitações estritas para a hipótese de tratamento ambulatorial, apenas admitido quando o ato praticado for previsto como crime punível com detenção (ABI-ACKEL apud PIERANGELI, 2001, p. 648 – grifo nosso).
Por fim, estreita-se o prazo mínimo de duração da internação para entre
um e três anos, a critério do juiz. Todavia, como afirma Peres (1997, p. 140), os
limites continuam elásticos, vez que permanece a indeterminação de um prazo
máximo de permanência no hospital de custódia, podendo coincidir com a vida do
internado.
Com base nos dispositivos legais apontados, costuma-se definir,
juridicamente, a medida de segurança como a coerção penal destinada aos
indivíduos que cometerem crimes e forem considerados inimputáveis, por possuírem
doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ao tempo da
prática do ato delituoso. Para Prado (2002, p. 600 – grifo nosso),
63
as medidas de segurança são conseqüências jurídicas do delito, de caráter penal, orientadas por razão de prevenção especial. Consubstanciam-se em reações do ordenamento jurídico diante da periculosidade criminal revelada pelo delinqüente [...].
Nesse sentido, a medida de segurança possuiria natureza eminentemente
preventiva (BITENCOURT, 2003, p. 681), visando a “preservar a sociedade da ação
dos delinqüentes temíveis e de recuperá-los com tratamento curativo” (MIRABETE,
1996, p. 357 – grifos nossos). Ou seja, a medida de segurança existiria para prevenir
a sociedade das condutas agressivas que poderiam ser causadas por perigosos
loucos, se estes fossem deixados em liberdade, ou apenados por tempo definido.
Em resumo, para a dogmática jurídico-penal brasileira, cometido um crime
e diagnosticado no indivíduo um desajuste psíquico que o incapacite inteiramente de
compreender a ilicitude de seu ato, ao invés de se lhe atribuir uma pena, cumprida,
de regra, no estabelecimento prisional, aplica-se uma medida de segurança na
instituição atualmente designada de Hospital de Custódia e Tratamento (HCT).
3.3.2 O procedimento de aplicação da medida de segu rança
Da prática do ato ao encarceramento institucional, diversos mecanismos
processuais entram cena, agindo sobre o sujeito ao qual se aplica a medida de
segurança. Desvendar o caminho que este indivíduo percorre – nos meandros do
processo penal brasileiro, com seus passos controlados por juristas e psiquiatras –
rumo ao interior da “casa do delírio” (TAVOLARO, 2004) é a proposta final deste
tópico.
Primeiramente, há o delito. Com maior ou menor gravidade, menos ou
mais violento, o requisito inicial para o ingresso no sistema jurídico-manicomial é que
o ato praticado pelo sujeito constitua um ilícito penal, vez que a medida de
segurança pressupõe a prática de um crime. Pouco importa se se comete um crime
de dano ou um homicídio: o ato em si tem sua relevância mitigada pelas
características do indivíduo.
A partir daí, as possibilidades de entrada se restringem: além do delito,
64
deve haver dúvida sobre a integridade mental do acusado. São diversas, porém, as
hipóteses em que isso ocorre: o sujeito pode possuir uma história de trânsito pelo
sistema psiquiátrico; pode apresentar, na prisão ou no curso do processo penal,
atitudes consideradas desviantes do padrão de normalidade psíquica, uma
desviação residual; pode, ainda, ter sua sanidade questionada, pela própria maneira
como o crime foi cometido; ou até ser alguém cuja defesa pretende utilizar o
argumento de insanidade como meio de evitar a condenação (JACOBINA, 2003, p.
78-79). Em todos os casos deste rol não taxativo, instaura-se o procedimento
processual chamado de Incidente de Insanidade Mental do Acusado, regido pelos
artigos 149 a 154 do Código de Processo Penal (BRASIL, 2005, p. 451-452).
Determina-se, assim, que se submeta o acusado a exame médico-legal, a
ser realizado por, no mínimo, dois peritos oficiais, nomeados pelo juiz (MIRABETE,
2005, p. 270), geralmente psiquiatras do Hospital de Custódia. Destaque-se a
possibilidade de tal exame ser realizado ainda na fase de inquérito policial, ou seja,
antes de iniciado o processo, por meio de requisição da autoridade policial ao juiz.
Instaurado o Incidente, o processo, se iniciado, é suspenso (autorizando-
se somente diligências que possam ser prejudicadas pelo adiamento) e se nomeia
curador ao acusado. Reduz-se, pois, a condição jurídica do réu, até que sua
sanidade seja verificada: de sujeito passivo da relação processual, transforma-se o
indivíduo em mero objeto do incidente de insanidade (JACOBINA, 2003, p. 78).
Para a realização do exame, o suposto louco, se estava preso, é
internado no hospital de custódia e tratamento56, por um prazo de 45 (quarenta e
cinco) dias, que pode ser prorrogado mediante solicitação dos peritos. Perceba-se,
contudo, que até este momento, ainda não há sentença nos autos. Não houve prova
de autoria do delito. O sujeito, geralmente pobre e assistido por defensor público ou
dativo, não possuiu qualquer espaço para apresentar defesa. Todavia, determina-se
a internação, numa modalidade de restrição de liberdade cujos requisitos são muito
mais maleáveis que o de qualquer prisão provisória57.
56 Se o acusado estiver solto, pode ser, a requerimento dos peritos, internado em estabelecimento adequado que o juiz designar, conforme Art. 150, caput, 2ª parte, do Código de Processo Penal (BRASIL, 2005, p. 452). 57 Segundo Mirabete (2005, p. 388), a prisão processual, também conhecida como provisória, diferencia-se da prisão penal (que ocorre após o trânsito em julgado da sentença condenatória). Consiste em uma prisão cautelar, em sentido amplo, englobando a prisão em flagrante, a prisão preventiva, a prisão resultante de pronúncia, a prisão resultante de sentença penal condenatória e a prisão temporária. Por seu caráter cautelar, podendo ocorrer antes do julgamento, ou mesmo na
65
Além disso, alheia a qualquer reflexão sobre os danos psíquicos
causados pela permanência do indivíduo em instituições totais58, a legislação
processual penal brasileira elege o manicômio judiciário como o local adequado para
a realização do exame. Encaminha-se o sujeito, cuja sanidade sequer foi avaliada, a
um estabelecimento dotado de características hospitalares, onde será submetido a
tratamento. Conforme será apresentado à frente, o tratamento restringe-se, quase
que exclusivamente, à medicalização farmacêutica. O até então suposto louco é
enclausurado, afastado do convívio social e tratado com drogas. Tudo isso, antes do
exame de sanidade mental... (Que sanidade se pode constatar?)
A internação em hospital de custódia carrega outro grave problema: o
distanciamento com os vínculos sociais e familiares. Não bastasse o
encarceramento, o fato de, em diversos estados, existir um único manicômio
judiciário, como é o caso da Bahia, faz com que acusados de várias regiões
distantes sejam encaminhados a esse estabelecimento, geralmente situado na
capital do estado. À loucura do interior, restam como companhia as solitárias
paredes mudas do HCT.
Com relação ao prazo de quarenta e cinco dias para realização do
exame, de acordo com Mirabete (2005, p. 270 – grifos nossos)
[a]dmite-se ligeiro excesso do prazo fixado, pois o exame requer estudos repetidos, experiências sucessivas, análise cuidadosa e refletida e um prolongado contato com o acusado, não constituindo a mora constrangimento ilegal sanável pelo hábeas corpus [...]. Ademais, é conhecida também a carência de meios de certas comarcas e as dificuldades do juiz para a realização da perícia, razão pela qual o excesso de prazo deve ser relevado.
No entanto, constata-se, na prática, que a violação sistemática da fixação
legal não é exceção: constitui regra. Como será demonstrado nos casos estudados,
os psiquiatras levam alguns meses (às vezes vários...) para realizar a perícia,
prolongando o estado de incerteza do futuro determinado ao sujeito. Os “estudos
repetidos”, as “experiências sucessivas”, a “análise cuidadosa e refletida” e “o
ausência do processo (na fase de inquérito), todas essas modalidades de prisão provisória possuem requisitos específicos a serem obedecidos, sob pena de se considerar ilegal a prisão realizada. 58 Goffman (2001, p. 22), efetuando uma análise crítica da vida em instituições fechadas, aponta que tais estabelecimentos funcionam como “estufas para mudar pessoas; cada uma é uma experiência natural sobre o que se pode fazer ao eu”. Dessa forma, atuam sobre a estrutura psíquica individual,
66
prolongado contato com o acusado” resumem-se, basicamente, a uma relação
institucional distante, mediada por medicamentos, e a um momento de uma ou duas
horas na qual o psiquiatra realiza a perícia.
Não obstante, para o Autor, famoso jurista brasileiro, calcando suas
informações na jurisprudência sobre o assunto, a “carência das comarcas” e as
“dificuldades do juiz” fazem com que se releve o direito à liberdade do indivíduo
acusado. Talvez porque, para ele, já nem se trata de um indivíduo: aquele a quem
se acusa de insano é, por definição, um monstro perigoso.
Realizado o exame, podem ser de três tipos as conclusões obtidas: 1) o
sujeito não possui distúrbios mentais; 2) o acusado possui doença mental, iniciada
após a prática do delito; 3) o indivíduo era, ao tempo da infração, doente mental e,
por isso, incapaz de compreender a ilicitude de sua conduta. No primeiro caso, o
processo segue seu curso normal e o indivíduo retorna ao estabelecimento prisional,
retomando-se os atos a partir do momento em que se determinou a suspensão.
Na segunda hipótese, o processo permanece suspenso e o sujeito
internado para tratamento, até que ocorra o seu “restabelecimento”, nos termos do
Art. 152 do Código de Processo Penal59. Quando o sujeito for considerado curado,
retoma-se o curso do processo penal... Como proceder, porém, se isso não se
verificar? O que prevê o ordenamento jurídico, se o sujeito internado insistir nos
sinais de sua loucura? Nesse caso, o indivíduo, sem processo findo, sem sentença,
pode permanecer internado por toda a sua vida. Como aponta Paulo Vasconcelos
Jacobina (2003, p. 86), é hipótese pior que a de responsabilização sem culpa; trata-
se de “penalização sem processo”, em completo descompasso com as supostas
garantias instituídas no Estado Democrático de Direito.
No último caso, sendo considerado inimputável ao tempo do crime
cometido, permanece o indivíduo internado, enviando-se cópia do laudo ao
magistrado que conduz o processo. Se o juiz concordar com o laudo, o que
geralmente ocorre (ao menos no tocante à questão da capacidade), será proferida
sentença absolutória, em virtude de o réu ser isento de pena, aplicando-se a medida
gerando reações contra a experiência institucional as mais diversas e imprevisíveis (irracionais, inclusive), pois, “[s]empre que se impõem mundos, se criam submundos” (GOFFMAN, 2001, p. 246). 59 “Art. 151. Se se verificar que a doença mental sobreveio à infração o processo continuará suspenso até que o acusado se restabeleça, observado o § 2º do art. 149. [...]” (BRASIL, 2005, p. 452).
67
de segurança60. Se julgado semi-imputável, o acusado deve retornar à prisão,
seguindo o processo seu curso, agora com a presença do curador (MIRABETE,
2005, p. 271). Ao final, havendo condenação, poderá o juiz converter a pena a ser
porventura aplicada em medida de segurança. Nas duas hipóteses, a duração da
medida de segurança dependerá da “cessação de periculosidade”, a ser averiguada
pelo psiquiatra, conforme procedimento previsto na Lei de Execução Penal61.
Há, ainda, uma possibilidade de tornar-se necessário o exame de
sanidade mental: se a doença surgir após a prolação de sentença penal
condenatória. Nesse caso, será o indivíduo transferido do presídio para o hospital de
custódia, onde será submetido a tratamento62. Tão logo se restabeleça, retorna o
sentenciado ao estabelecimento prisional. Se isso não ocorrer antes do prazo
determinado para o restante da pena, a legislação processual penal prevê que o
indivíduo tenha o destino “aconselhado pela sua enfermidade” 63. Na prática,
60 “Art. 386. O juiz absolverá o réu, [...] desde que reconheça: [...] V – existir circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena [...]. Parágrafo único. Na sentença absolutória, o juiz: [...] III – aplicará medida de segurança, se cabível (BRASIL, 2005, p. 482). 61 “Art. 175. A cessação da periculosidade será averiguada no fim do prazo mínimo de duração da medida de segurança, pelo exame das condições pessoais do agente, observando-se o seguinte: I - a autoridade administrativa, até 1 (um) mês antes de expirar o prazo de duração mínima da medida, remeterá ao Juiz minucioso relatório que o habilite a resolver sobre a revogação ou permanência da medida; II - o relatório será instruído com o laudo psiquiátrico; III - juntado aos autos o relatório ou realizadas as diligências, serão ouvidos, sucessivamente, o Ministério Público e o curador ou defensor, no prazo de 3 (três) dias para cada um; IV - o Juiz nomeará curador ou defensor para o agente que não o tiver; V - o Juiz, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, poderá determinar novas diligências, ainda que expirado o prazo de duração mínima da medida de segurança; VI - ouvidas as partes ou realizadas as diligências a que se refere o inciso anterior, o Juiz proferirá a sua decisão, no prazo de 5 (cinco) dias. Art. 176. Em qualquer tempo, ainda no decorrer do prazo mínimo de duração da medida de segurança, poderá o Juiz da execução, diante de requerimento fundamentado do Ministério Público ou do interessado, seu procurador ou defensor, ordenar o exame para que se verifique a cessação da periculosidade, procedendo-se nos termos do artigo anterior. Art. 177. Nos exames sucessivos para verificar-se a cessação da periculosidade, observar-se-á, no que lhes for aplicável, o disposto no artigo anterior. Art. 178. Nas hipóteses de desinternação ou de liberação (artigo 97, § 3º, do Código Penal), aplicar-se-á o disposto nos artigos 132 e 133 desta Lei. Art. 179. Transitada em julgado a sentença, o Juiz expedirá ordem para a desinternação ou a liberação” (BRASIL, 2007, s.p.). Deve-se destacar que o juiz competente para o procedimento acima descrito é o da Vara de Execuções Penais da Comarca onde estiver situado o Hospital de Custódia e Tratamento, e não o juiz do processo condenatório. 62 Determina o Código Penal: “Art. 41. O condenado a quem sobrevém doença mental deve ser recolhido a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, a outro estabelecimento adequado” (BRASIL apud PIERANGELI, 2001, P. 657). No mesmo sentido, dispõe a Lei de Execuções Penais: “Art. 183. Quando, no curso da execução da pena privativa de liberdade, sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental, o juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou da autoridade administrativa, poderá determinar a substituição da pena por medida de segurança” (BRASIL, 2007, s.p.). 63 “Art. 682. O sentenciado a que sobrevier doença mental, verificada por perícia médica, será internado em manicômio judiciário, ou, à falta, em outro estabelecimento adequado, onde lhe seja assegurada a custódia. [...] § 2º Se a internação se prolongar até o término do prazo restante da pena e não houver sido imposta medida de segurança detentiva, o indivíduo terá o destino aconselhado pela sua enfermidade, feita a devida comunicação ao juiz de incapazes” (BRASIL, 2005, p. 525).
68
continuará no hospital de custódia e tratamento, por tempo indeterminado. Outra
exceção ao estado de direito.
Nota-se, então, que a medida de segurança restringe-se aos casos em
que existe sentença judicial aplicando-a, embora o hospital de custódia e tratamento
esteja abarrotado de internos em situações processuais diversas. Portanto, mais do
que uma instituição destinada à aplicação da medida de segurança, o manicômio
judiciário constitui um órgão de segregação e contenção de toda a loucura perigosa
que, pela prática de um crime, possuir qualquer vinculação com a justiça penal,
cumprindo o objetivo exato para o qual, desde a sua constituição, foi previsto: excluir
alienados supostamente perigosos, sejam ou não criminosos, estejam ou não
condenados. A medida de segurança configura-se, pois, como um escudo que
permite a uma série de dispositivos jurídico-processuais realizarem a segregação,
legal e extralegal, de uma classe particular de indivíduos considerados perigosos.
3.4 REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA? – A LEI Nº 10. 216/2001
E SUAS IMPLICAÇÕES NA MEDIDA DE SEGURANÇA
Uma análise das disposições legais sobre o controle da loucura perigosa
no Brasil não estaria completa sem mencionar a trajetória da Reforma Psiquiátrica,
as conquistas obtidas e as consequências na vida dos loucos-criminosos. Este
movimento, iniciado na segunda metade da década de 70, contexto de abertura
democrática do país, fruto da mobilização efetiva de diversos atores envolvidos com
a questão da saúde mental (médicos, enfermeiros e outros profissionais; pacientes,
ex-pacientes e familiares), tem como meta principal a (re)conquista da cidadania
pelo sujeito considerado louco, por meio da garantia de direitos e, principalmente, da
defesa intransigente da abolição dos manicômios (TENÓRIO, 2002, p. 26-28).
Influenciada pela Antipsiquiatria inglesa e pela Psiquiatria Democrática
italiana64, o Movimento da Reforma Psiquiátrica surge a partir da constituição do
Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), em 1978, como forma de
reação ao descaso do Estado ditatorial para com esse setor. Mesclando
69
reivindicações trabalhistas a um discurso humanitário, o objetivo do MTSM é,
segundo Amarante (1995, p. 52)
constituir-se em um espaço de luta não institucional, em um locus de debate e encaminhamento de propostas de transformação da assistência psiquiátrica, que aglutina informações, organiza encontros, reúne trabalhadores em saúde, associações de classe, bem como entidades e setores mais amplos da sociedade.
Também no ano de 1978, realizou-se o V Congresso Brasileiro de
Psiquiatria, que efetuou uma discussão política sobre a saúde mental, atrelada ao
debate sobre a conjuntura nacional. No ano seguinte, ocorreu o I Encontro Nacional
do MTSM, que pautou suas discussões na necessidade de uma maior articulação
com outros movimentos sociais (AMARANTE, 1995, p. 53-55).
No entanto, os grandes avanços em prol da Reforma Psiquiátrica
aconteceram, certamente, na década seguinte. A segunda metade dos anos 80 foi
palco de uma série de acontecimentos cruciais para a consolidação do combate à
institucionalização do sujeito louco. Neste período, registram-se a criação do
primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em São Paulo, e do primeiro
Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS), em Santos. Ambos constituem
modalidades de serviços de atenção à saúde mental calcados na idéia de
desinstitucionalização e voltados para uma assistência comunitária e integral.
Além disso, em fins da década de 80, destacam-se os eventos realizados
nessa área, sobretudo a 8ª Conferência Nacional de Saúde/ I Conferência Nacional
de Saúde Mental e o II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental.
Este último, ao contar com a participação de diversas associações de familiares e
pacientes (agora denominados usuários65), amplia a sua atuação, deixando de ser
um movimento exclusivo de trabalhadores e passando a englobar uma série de
outros atores sociais envolvidos com a questão da saúde mental. Como resultado,
os limites da crítica institucional no âmbito das condições de trabalho e dos direitos
humanos são superados por um novo lema para o movimento: por uma sociedade
64 A Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática, impulsionada por Franco Basaglia, serão apresentadas no Capítulo 4, como parte do marco teórico em que se situa este trabalho. 65 No contexto da Reforma Psiquiátrica, o termo “paciente”, de evidente conotação passiva e submissa, é rechaçado. O mesmo se dá com a expressão “doente mental”, considerada pejorativa. Em seu lugar, o sujeito louco que utiliza os serviços psiquiátricos é chamado de “usuário do sistema de saúde mental”.
70
sem manicômios. Origina-se aí o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial66
(MNLA) (LÜCHMANN e RODRIGUES, 2002, p. 403).
Criticando os processos tradicionais de reforma das instituições
psiquiátricas, que traziam apenas mudanças físicas e inovações na racionalidade
administrativa, o MNLA propõe “a extinção dos manicômios e a aceitação da loucura
como um modo diferenciado de simbolizar e representar a vida” (ALENCAR, 2004,
p. 124). Através de encontros bienais e de diversas campanhas realizadas, busca a
construção de um novo serviço de assistência aos portadores de transtornos
mentais, que não esteja centrado na exclusão do convívio, na linha do que já é feito
nos CAPS e NAPS.
Malgrado sua atuação não se volte mais detidamente sobre a medida de
segurança, em 1999, em articulação com órgãos de defesa dos direitos humanos, o
MNLA lançou a campanha “Manicômio Judiciário, o pior: o pior do hospício, o pior da
prisão, o pior da violência, o pior da exclusão”. Esta campanha denunciava a caótica
situação dos hospitais de custódia brasileiros, notadamente os maus-tratos físicos e
a hiperlotação, buscando melhorias na situação desses estabelecimentos e,
principalmente, a revisão imediata dos processos de todos os internos, no intuito de
combater a prática de perpetuação da medida de segurança (VIANA; FERREIRA e
FURTADO, 2005, pp. 24-29).
Por fim, o último destaque do final da década de 80 é a apresentação do
Projeto de Lei 3.657/89, de autoria do deputado Paulo Delgado. Após amargar o
esquecimento do Congresso por doze anos, um substitutivo do projeto, formulado
pelo senador Sebastião Rocha, foi convertido na lei 10.216/2001. Entretanto, no
longo tempo de espera, a resistência dos donos de hospitais psiquiátricos, de certas
associações de familiares de pacientes e do setor da psiquiatria tradicional e
conservadora, conseguiu retirar o eixo basilar do projeto original: o
desmantelamento e a substituição dos manicômios (MACHADO, K. 2005, p. 12-14).
Esta legislação “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
66 Segundo Lobosque (apud LUCHMANN e RODRIGUES, 2002, p. 403 – grifo original), o MNLA significa “Movimento – não um partido, uma nova instituição ou entidade, mas um modo político peculiar de organização da sociedade em prol de uma causa; Nacional – não algo que ocorre isoladamente num determinado ponto do país, e sim um conjunto de práticas vigentes em pontos mais diversos do nosso território; Luta – não uma solicitação, mas um enfrentamento, não um consenso, mas algo que põe em questão poderes e privilégios; Antimanicomial – uma posição clara
71
mental”. Deste modo, de objeto do saber e da prática psiquiátricos, o louco converte-
se, ao menos no plano normativo, em sujeito de direitos.
Art. 2o [...] Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental: I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas; V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental (BRASIL, 2001, s,p.).
Embora não elimine completamente a instituição manicomial, a Lei
10.216/2001 estabelece novas diretrizes nas políticas de saúde mental, como a
vedação à internação de pacientes em ambientes asilares, buscando uma espécie
de tratamento em que o indivíduo permaneça integrado a laços sociais da
comunidade em que vive. Todavia, como observa Amarante (apud MACHADO, K.,
2005, p. 13), esta lei avança muito menos do que as mudanças preconizadas no
projeto original. Assim, “não fala em acabar com os manicômios: estabelece apenas
que não se pode ter mais instituições com características asilares, e não define o
que é um ‘asilo’”. Permanece, então, a possibilidade de internação67, malgrado se
estabeleçam restrições à entrada e permanência de pacientes no manicômio68.
então escolhida, juntamente com a palavra de ordem indispensável a um combate político, e que desde então nos reúne: por uma sociedade sem manicômios”. 67 “Art. 6º. [...] Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça” (BRASIL, 2001, s.p.). 68 “Art. 5º. O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário. Art. 6º. A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. [...] Art. 8º. [...] § 2º. O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do
72
No que tange ao Manicômio Judiciário, contudo, é que se verifica a
grande incoerência desta lei: sobre a internação causada pela medida de segurança,
ela simplesmente se cala. Está-se perante uma situação de silêncio gritante, em que
aquilo que foi oculto diz muito mais do que o expresso: o legislador parece entender
que o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico é questão somente de justiça
penal, não de saúde mental. A espécie de loucos que o habita não merece qualquer
benesse jurídica. Não é para ela que a parca, tímida e recuada Reforma Psiquiátrica
brasileira se destina.
Ainda assim, o Direito não se restringe aos dispositivos legais. Ele é,
antes de tudo, produto de uma relação hermenêutica entre os sujeitos e o texto. Por
conseguinte, alguns autores realizam um esforço de interpretação sistemática, que
integre a Lei 10.216/2001 às normas penais e constitucionais vigentes. Carvalho
Netto e Mattos (2004, p. 24-25), por exemplo, consideram que
[a] vedação legal-constitucional à internação como uma forma de tratamento permanente ou continuado, reconhecida inclusive no âmbito cível, com muito maior razão se impõe como garantia básica do portador de sofrimento ou transtorno mental em conflito com a lei. [...] A medida de segurança, a par de revelar-se instituto não passível de haver sido recepcionado na ordem constitucional de 1988, após o advento da Lei [10.216/2001] é, não somente ilegal, mas claramente inconstitucional.
Já Ludmila Correia (2007, p. 112-113) afirma que, não tendo a Lei
10.216/2001, excepcionado expressamente as pessoas com transtornos mentais
autoras de delito, não se pode excluí-las do âmbito de sua aplicação. Reforça seu
argumento com a determinação do Art. 1º:
[o]s direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra (BRASIL, 2001, s.p.).
Assim, para a Autora, todos os direitos previstos para o portador de
transtorno mental são estendidos aos internos do Hospital de Custódia e
familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento”
73
Tratamento; outrossim, as normas relativas à internação compulsória devem
disciplinar o cumprimento da medida de segurança.
Ainda que não sejam essas as posições prevalecentes no campo
judiciário brasileiro, vários órgãos de defesa dos direitos humanos, bem como
instituições de defensoria pública, têm se utilizado desses argumentos para, ao
menos de forma individualizada, garantir um mínimo de direitos aos loucos-
criminosos, buscando reduzir o grau de punitividade e exclusão causado pela
medida de segurança. A Reforma Psiquiátrica brasileira tenta, assim, mesmo
timidamente, avançar sobre os muros do Manicômio Judiciário.
(BRASIL, 2001, s.p.).
74
4 EM BUSCA DE UMA BASE TEÓRICA PARA
COMPREENDER A MEDIDA DE SEGURANÇA
4.1 SUPERANDO O POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO:
ANTECEDENTES TEÓRICOS DE UMA RUPTURA PARADIGMÁTICA
Uma vez apresentado o percurso histórico de constituição da hegemonia
do discurso positivista no direito penal e na psiquiatria, bem como do surgimento da
medida de segurança, como produto irrecusável da ideologia da defesa social;
devidamente demonstrado como esse fenômeno foi regulado no Brasil, importando
modelos estrangeiros, sem abrir mão de certas peculiaridades; caberia, então, partir
à procura dos atuais loucos-criminosos, visando a descobrir quem são esses
sujeitos temíveis, aos quais – por conta do perigo que representam – atribui-se uma
medida que mescla internação e punitividade, contenção e tratamento. Por meio
desse processo, pretende-se desvendar como se processa a relação entre
psiquiatras e juízes na disputa pelo poder de dizer a verdade sobre esses indivíduos.
Contudo, até agora, salvo breves apontamentos e indicações
bibliográficas, não foram explicitadas as principais teorias sobre loucura e crime que
constituem a base para apontar o que a medida de segurança, enquanto “dispositivo
de controle-dominação da loucura” (FOUCAULT, 1985, p. 244), tem produzido
75
socialmente. É necessário, por conseguinte, apresentar um arcabouço teórico que
permita (re)pensar tal instituto, a partir de seus resultados concretos, contrastados
com as funções manifestas, a fim de entrever seus objetivos latentes. Em outras
palavras, a proposta deste capítulo é apresentar uma base teórica que permita
contrapor, ao que a medida de segurança se propõe, o que ela efetivamente produz,
a fim de descortinar suas funções simbólicas69, que permanecem encobertas pelo
discurso jurídico-penal e psiquiátrico.
Inicialmente, para efetivar tal proposta, é preciso renunciar às teses
positivistas como capazes de analisar este fenômeno. Em primeiro lugar, porque a
medida de segurança foi gestada exatamente no seio do positivismo científico,
donde se conclui pela inexistência de distanciamento teórico entre aquele instituto e
este paradigma: discutir a medida de segurança é, ainda que em caráter particular,
questionar o próprio positivismo.
Ademais, por ter como eixo central a crença na neutralidade e
objetividade da ciência e na idéia de que uma racionalidade instrumental conduz
necessariamente ao progresso, o positivismo não toma a psiquiatria como um dos
diversos discursos possíveis sobre a loucura, mas como a ciência surgida para
entender, explicar e corrigir tal fenômeno. A loucura é, assim, ontologicamente
determinada como doença (mental), impondo-se descobrir os mecanismos de cura.
Tal perspectiva, por certo, contradiz o enfoque histórico dado à questão.
Por conta disso, a presente abordagem prefere situar-se no âmbito de
uma corrente teórica que realizou uma ruptura com a tradicional maneira positivista
de pensar fenômenos como o crime e a loucura. Antes, porém, de adentrar no
estudo deste enfoque, é importante apresentar algumas teorias que, a seu modo,
questionaram os principais postulados do positivismo criminológico e deslegitimaram
a ideologia da defesa social70, resultando, ao final, no que Stanley Cohen (apud
ANDRADE, 1997, p. 182) denominou de “impulso desestruturador”:
[...] conjunto de ataques – críticas, demandas, visões, teorias, movimentos de reforma etc – que constituíram, desde a década de
69 Sobre o fenômeno do “direito simbólico”, assim se expressa Vera Regina Pereira de Andrade (1997, p. 293): “[t]rata-se precisamente de uma oposição entre o ‘manifesto’ (declarado) e o ‘latente’; entre o verdadeiramente desejado e o diversamente acontecido [...]. Afirmar assim que o Direito Penal é simbólico não significa afirmar que ele não produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as funções latentes predominam sobre as declaradas [...]”. 70 A exposição dos princípios que constituem o conteúdo essencial da ideologia da defesa social encontra-se na parte final do tópico 2.2.2.
76
60 como que um assalto continuado às próprias fundações (ideológicas e institucionais) do sistema de controle penal da modernidade, cuja hegemonia perdurava há dois séculos.
Para apresentar essas primeiras teorias de deslegitimação do sistema
penal e da criminologia positivista, serão utilizadas, principalmente, as reflexões de
Lola Aniyar de Castro (1983) e Alessandro Baratta (2002).
Para Castro (1983, p. 62), a criminologia positivista (criminologia do
passar à ação ou criminologia do ato) utiliza como pressupostos fundamentais teses
que, empiricamente, não se sustentam. A primeira delas é a de que existem
comportamentos socialmente negativos, por sua própria natureza, os quais devem
ser evitados. Frutos de um consenso social acerca de sua reprovabilidade, tais atos,
se praticados, devem ser exemplarmente punidos, a fim de evitar uma reiteração. O
crime seria, nesse ponto de vista, tão somente o status jurídico de um
comportamento mau em si, atribuído pelo legislador, que representa a vontade da
coletividade. Desse modo (e aqui surge a segunda tese problemática), interessa
estudar o indivíduo criminoso, porque quem infringe essas normas, frutos do
consenso social, é, no mínimo, diferente e, decerto, anormal. Analisando, por sua
vez, tão somente criminosos condenados, a criminologia positivista incorre em seu
terceiro erro: ao realizar uma “criminologia penitenciária”, elabora leis pretensamente
universais sobre o fenômeno do delito e o sujeito delinquente. A Autora (1983, p. 63)
aponta, pois, o que chama de “três fantasmas da criminologia tradicional”: a
relatividade do delito; a cifra oculta71 da delinqüência e; o crime do “colarinho
branco”.
Em primeiro lugar, afirma, o crime é um fenômeno variável no tempo e no
espaço. De fato, até alguns anos, o adultério era crime, para o ordenamento
brasileiro; os atos de racismo, por sua vez, apenas nas últimas décadas foram
criminalizados. Na Holanda, o uso de maconha, em certos estabelecimentos, é
legalmente permitido; por outro lado, em algumas cidades dos Estados Unidos, são
delituosas atitudes como “comer batata frita em estações de metrô” 72.
71 Embora autores como Castro (1983), Baratta (2002) e Andrade (1997) utilizem a expressão “cifra negra”, prefere-se, neste trabalho, adotar o termo “cifra oculta”, a exemplo do que faz Nilo Batista (2002), por ser o adjetivo “oculto” mais adequado para conceituar a quantidade não registrada de crimes cometidos, bem como evitar polêmica quanto à utilização lingüística de expressões com conteúdo racial pejorativo. 72 Eduardo Roberto Alcântara Del-Campo (2000, p. 04), em artigo que constitui amostra exemplar da mentalidade dogmático-positivista nos meios jurídico-penais, aponta a história de uma garota de 12
77
O delito, pois, é nada mais do que um ponto de vista sobre o anti-social que logrou impor-se sobre outros pontos de vista, em um dado momento e lugar. Assim, [...] pode-se afirmar que não há diferenças entre os delinquentes e os não delinquentes. Se em um determinado tempo ou lugar permite-se o homicídio, o adultério, a homossexualidade, etc., e em outro não, é claro que a pessoa desse outro lugar não há de ser diferente daquela que o pratica em um país onde estas condutas são lícitas (CASTRO, 1983, p. 65).
Dessa forma, torna-se necessário deslocar o objeto de estudo: do sujeito
criminoso para os processos pelos quais a sociedade reage a determinados
comportamentos, atribuindo-lhes o status de crime.
A noção de cifra oculta, por seu turno, permite uma crítica do método de
utilização das estatísticas pelo positivismo criminológico. De fato, como ciência
empírica, as estatísticas sobre o fenômeno criminal constituem importante fonte de
estudo para a criminologia. Os números apresentados, porém, não podem ser
levados em conta sem profunda reflexão e atento questionamento. Como indica
Castro (1983, p. 66-67), o acréscimo estatístico do número de delitos não significa
necessariamente que a delinqüência tenha aumentado, mas pode resultar, por
exemplo, de uma multiplicação de esforços no período, por parte da polícia.
Há, assim, que se distinguir criminalidade legal, aparente e real. A
criminalidade legal é a que aparece registrada nas estatísticas oficiais; a aparente
consiste no conjunto de crimes que são conhecidos pelos órgãos de repressão
(polícia, ministério público, poder judiciário), embora, por qualquer motivo, não
constem nas estatísticas oficiais. Nessa seara, encontram-se os delitos em que pode
ter havido composição amigável, como brigas em shows, ou os em que a autoridade
policial pôs fim ao conflito sem registrar a ocorrência, “aplicando um sermão” a um
usuário de drogas, por exemplo. A criminalidade real, por fim, constitui o número de
delitos verdadeiramente cometidos, num dado momento, cuja extensão resulta
impossível de se determinar.
Chama-se então de cifra oculta a essa diferença entre a criminalidade real
e a aparente, constituindo uma imensa quantidade de casos que jamais serão
conhecidos pela polícia, porque o fato não é descoberto, não é percebido pela vítima
anos, presa em Washington por comer batatas fritas em uma estação de metrô, que foi, por este motivo, algemada, interrogada, identificada por meio de suas impressões digitais e condenada, ao
78
como criminoso, por simpatia da vítima para com o infrator, ou mesmo por
desinteresse da polícia, falta de recursos para mobilizar efetivos, etc. (CASTRO,
1983, p. 68-70). Pode-se exemplificar a cifra oculta com os diversos furtos cometidos
em supermercados que não são descobertos (ou não são levados ao conhecimento
policial), com os inúmeros abortos realizados de forma clandestina, com o altíssimo
índice de emissão de cheques sem fundos. Enfim, os exemplos são vastos para
demonstrar que a quantidade de crimes efetivamente praticados é infinitamente
superior ao número de delitos detectados pelas agências de controle. E que, em
decorrência, o número de pessoas que cometem crimes é significativamente maior
que a população encarcerada. Como afirma Baratta (2002, p. 103),
[...] a criminalidade não é um comportamento de uma restrita minoria, como quer uma difundida concepção (e a ideologia da defesa social a ela vinculada), mas, ao contrário, o comportamento de largos estratos ou mesmo da maioria dos membros de nossa sociedade.
O terceiro fantasma da criminologia tradicional mencionado por Castro
(1983, p. 77) é o crime do “colarinho branco”, conceito formulado por Edwin H.
Sutherland e apresentado perante a Sociedade Americana de Criminologia, em
1949. Ao desenvolver uma crítica das teorias tradicionais sobre o comportamento
delituoso, baseadas em condições econômicas, psicopatológicas ou
sociopatológicas, Sutherland estuda uma espécie de crime que se distingue do
convencional, porque é praticado por pessoa de respeitabilidade e alto status social,
no exercício de sua ocupação, exemplificado por cartéis e fraudes comerciais.
Constata, então, que, contrariando as teses da criminologia tradicional, o crime do
“colarinho branco” não pode ser explicado por pobreza ou loucura, nem por má
habitação, nem por carência de recreação, nem por falta de educação ou pouca
inteligência. Ademais, aponta a grande dificuldade de descobri-lo e sancioná-lo,
dada a força econômica de quem os comete, o que leva esse tipo de criminoso a
não constituir objeto preferencial de estudo, uma vez que seu número é
reduzidíssimo em estabelecimentos prisionais. Verifica ainda que, apesar do elevado
dano econômico e social que tal delito acarreta, a opinião pública mantém grande
indiferença quanto à questão. Desse modo,
final, a medida de prestação de serviços à comunidade.
79
[...] embora a perda para a sociedade, em um só crime do “colarinho branco”, possa ser igual à quantidade total de milhares de furtos ou roubos, o delinquente de “colarinho branco” é uma pessoa não estigmatizada pela coletividade, que não o considera delinquente, não o segrega, não o deprecia nem o desvaloriza [...]. Depois do delito, o seu status continua sendo o mesmo [...] (CASTRO, 1983, p. 79).
Por fim, no que Baratta considera a negação do princípio de
culpabilidade, segundo o qual o delito é fruto de uma atitude interior reprovável,
Sutherland (apud BARATTA, 2002, p. 72) sugere que a criminalidade de “colarinho
branco”, como qualquer outra conduta desviante, não implica necessariamente em
reprovação interior e pode ser explicada a partir do aprendizado de uma subcultura
criminal. Ou seja, a criminalidade
[...] é aprendida em associação direta ou indireta com os que já praticaram um comportamento criminoso, e aqueles que aprendem este comportamento criminoso não têm contatos freqüentes e estreitos com o comportamento conforme a lei. O fato de que uma pessoa torne-se ou não um criminoso é determinado, em larga medida, pelo grau relativo de freqüência e intensidade de suas relações com os dois tipos de comportamento. Isto pode ser chamado de processo de associação diferencial.
Além desses três problemas essenciais da criminologia tradicional, deve-
se mencionar aqui a análise feita por Baratta (2002) sobre teorias que, mesmo
situando-se no paradigma positivista, iniciaram um processo de negação de alguns
dos princípios basilares da mencionada ideologia da defesa social. Nesse sentido,
além da negação ao princípio da culpabilidade acima exposta, é válido destacar a
importância de algumas teorias psicanalíticas e dos estudos sociológicos da anomia,
como respostas iniciais de confrontação à criminologia tradicional.
Em primeiro lugar, Baratta (2002, p. 49-58) aponta que as teorias
psicanalíticas da criminalidade e da sociedade punitiva73 conseguiram contestar o
princípio de legitimidade, segundo o qual a sociedade e o Estado estão legitimados
a reprimir a criminalidade, para manter a ordem social. Enraizadas em postulados
de Sigmund Freud, essas teorias afirmam que a reação punitiva da sociedade frente
ao delinquente decorre não do interesse de pôr fim à criminalidade, mas de instintos
idênticos aos de quem realizou a conduta proibida. Assim, a ocorrência de um delito,
80
fruto da superação do sentimento de culpa pelos instintos delituosos sedimentados
no inconsciente, tem a função de liberar impulsos reprimidos do grupo, que podem
livremente se manifestar nas práticas de reação punitiva74. A resposta penal “[...] não
tem a função de eliminar ou circunscrever a criminalidade, mas corresponde a
mecanismos psicológicos em face dos quais o desvio criminalizado aparece como
necessário e ineliminável da sociedade” (BARATTA, 2002, p. 50). O delinquente é,
assim, uma espécie de bode expiatório, pois permite ao grupo liberar instintos que,
se encobertos, encontrariam outra forma, talvez mais danosa, de se manifestar.
É importante destacar, também, a teoria estrutural-funcionalista do desvio
e da anomia, esboçada no pensamento de Émile Durkheim e retomada por Robert
Merton, a qual conduziu à negação do princípio do bem e do mal. Ao realizar uma
virada no estudo da criminologia rumo a uma direção sociológica, essa teoria
rejeitou os fatores físicos e biológicos na explicação do desvio, apontando-o como
fenômeno natural da sociedade. O crime foi, assim, considerado um fato social
dotado de normalidade, porque existente em todos os agrupamentos humanos, e
funcionalidade, pois, “provocando e estimulando a reação social, estabiliza e
mantém vivo o sentimento coletivo que sustenta, na generalidade dos consócios, a
conformidade às normas” (BARATTA, 2002, p. 60). Além disso, o delito é funcional
porque abre caminho para mudanças sociais necessárias, antecipando-se, muitas
vezes, a uma moral que está para vir75: ele é prejudicial ao grupo apenas quando
ultrapassadas certas taxas, pois, nesse caso, poder-se-ia chegar a um estado de
completa desvalorização do regramento de condutas, denominado anomia.
Através da idéia de consciência coletiva, Durkheim (1982) parte do
pressuposto de que existe um consenso muito geral na comunidade sobre o que
deve ou não ser reprimido. Contrapondo-se à tese do delito natural, defende que o
crime é um fato que agride fortemente os sentimentos coletivos presentes na
consciência comum do grupo: é um ato mau, já que reprovado; não é reprovado
73 Os principais representantes dessas teorias foram: Sigmund Freud, Theodor Reik, Franz Alexander e Hugo Staub, Paul Reiwald, Helmut Ostermeyer e Edward Naegeli (BARATTA, 2002, p. 49-58). 74 Um exemplo extremo que serve para validar essa idéia é a ocorrência de linchamentos dos praticantes de pequenos furtos ou roubos nos centros de grandes cidades, em que a reação do grupo é capaz de liberar impulsos reprimidos muito mais violentos que o ato proibido realizado pelo infrator. 75 Segundo Durkheim (1982, p. 62), “[...] o caso de Sócrates não é isolado; reproduz-se periodicamente na história. A liberdade de pensamento de que gozamos atualmente jamais teria podido ser proclamada se as regras que a proibiam não tivessem sido violadas antes de serem solenemente repudiadas. [...] A liberdade filosófica teve por precursores toda a espécie de heréticos que o braço secular justamente castigou durante todo o curso da Idade Média, até a véspera dos tempos contemporâneos”.
81
porque mau em si, mas porque fere os sentimentos do grupo (CASTRO, 1983, p.
86). Explicam-se desse modo as variações dos ordenamentos jurídico-penais em
diferentes sociedades e o delito perde, então, seu caráter ontologicamente nocivo.
Conforme expõe Baratta (2002, p. 62-67), Merton, a partir do quanto já
esboçado por Durkheim, desenvolveu, em um ensaio de 1938, a teoria funcionalista
da anomia. Contrariando as teses que pregavam uma concepção patológica do
desvio e uma contraposição entre indivíduo e sociedade, ele propõe que o desvio é
um fenômeno absolutamente normal na estrutura social, assim como o
comportamento conforme as regras. Em suas observações, Merton distingue cultura
e estrutura social: a cultura representa um conjunto de valores comuns dos
membros de uma sociedade, que propõe ao indivíduo determinadas metas da vida
social (como sucesso econômico, casamento, etc.), chamadas de fins culturais e, ao
mesmo tempo, aponta os mecanismos considerados legítimos para a obtenção
daquelas metas, os meios institucionais; já a estrutura social constitui o conjunto das
relações sociais e fornece aos indivíduos diferentes possibilidades de acesso aos
meios institucionais para obtenção dos fins culturais. O crime, deste ponto de vista,
não seria mais que uma atitude inovadora, produto de uma tensão entre os valores
culturais e a estrutura social, diante do estreitamento do acesso aos canais
legítimos. Para Merton (apud BARATTA, 2002, p. 65), na sociedade estadunidense,
“[...] determinados delitos são uma reação inteiramente ‘normal’ a uma situação na
qual existe uma acentuação cultural do sucesso econômico e que, contudo, oferece
em escassa medida o acesso aos meios convencionais e legítimos de sucesso”.
Apesar de questionar o determinismo bio-psicológico, a crítica de Merton
é limitada, pois se restringe ao estudo da população tipicamente tida como
criminosa, sendo incapaz de explicar a criminalidade do colarinho branco, em que
não há qualquer restrição no acesso aos meios institucionais. Dessa maneira, sua
teoria, mesmo contestando aspectos da estrutura social, termina por consolidar e
legitimar cientificamente uma imagem tradicional da criminalidade como
comportamento típico das classes pobres da sociedade (BARATTA, 2002, p. 67).
Do mesmo modo, embora todas as teorias acima mencionadas tenham
efetuado críticas ao tradicional pensamento criminológico, pode-se afirmar que a
maneira de pensar o fenômeno do crime ainda estava carregada de vícios do
positivismo e, portanto, elas não conseguiram avançar além desse limite. Isso se
deve, principalmente, ao fato de apresentarem preocupações etiológicas sobre
82
comportamentos cuja natureza criminosa é ontologicamente aceita. Não se detêm,
portanto, sobre os processos sociais que atribuem a determinada conduta o status
de crime e a certas pessoas o rótulo de criminosas.
Somente na década de sessenta do século passado, a partir de um
enfoque interacionista proposto pela sociologia criminal norte-americana, verifica-se
uma revolução metodológica e epistemológica capaz de apresentar críticas
irreversíveis às proposições teóricas da criminologia positivista. A este novo
paradigma, que engloba diversos pensamentos convergentes, atribui-se o nome de
Criminologia da Reação Social.
Embasada na Sociologia do Comportamento Desviante, essa nova
perspectiva surge como Criminologia Interacionista. Se antes, para o positivismo,
interessava estudar os motivos bio-psicossociais para a ocorrência do delito, a nova
abordagem tem como pressuposto que o crime é causado pela lei penal, a qual
atribui ilicitude a (isto é, criminaliza) determinadas condutas. Assim, propõe-se a
adotar uma atitude não valorativa frente aos comportamentos desviantes, bem como
a prescindir das formulações legais, erigindo o desvio como objeto central de estudo.
Dessa forma, a Escola Interacionista chama a atenção para outro comportamento
desviante, que não se relaciona diretamente com a lei penal: a loucura.
Posteriormente, a partir dos denominados “movimentos radicais” e da
teoria crítica do direito penal, despontam a Criminologia Radical ou Crítica e a Nova
Criminologia. Ao incidir no terreno psiquiátrico, juntamente com a perspectiva
interacionista, essas propostas originam um “corpo de conhecimento”, que hoje é
conhecido como Antipsiquiatria (CASTRO, 1983, p. 97-98). Todas essas escolas,
situadas no paradigma da reação social, serão melhor apresentadas a seguir.
4.2 A CRIMINOLOGIA DA REAÇÃO SOCIAL
4.2.1 O Enfoque Interacionista
O deslocamento espacial e temporal dos estudos sobre o crime foi
responsável pela alteração epistemológica que cunhou uma feição inteiramente
nova ao saber criminológico. Enquanto, na Europa do século XIX, a criminologia
orientava-se quase inteiramente em bases positivistas, a sociologia criminal norte-
83
americana, na segunda metade do século XX, iniciou uma análise do delito calcada
no interacionismo simbólico e na etnometodologia ou construcionismo social.
O interacionismo simbólico, campo de estudos da psicologia social e da
sociolingüística, inspirada em Charles Cooley e George H. Mead, prega que a
realidade social é formada por um conjunto de interações concretas entre os
sujeitos. Mediante um processo de tipificação, atribui-se a essas vivências um
significado, que se afasta da situação concreta e se expande por meio da linguagem
(BARATTA, 2002, p. 87). O comportamento humano constitui, pois, uma “interação
social”, interpretada através desta “mediação simbólica” (ANDRADE, 1997, p. 204).
Segundo a etnometodologia, inspirada na sociologia fenomenológica de
Alfred Schutz, a realidade não é um mundo físico, independente da percepção,
passível de ser conhecido pela descoberta de suas leis naturais: ela só existe
através de um processo contínuo de apreensão, interpretação, definição e tipificação
de grupos e sujeitos. Pode-se dizer, então, conforme sugerem Berger e Luckmann
(1978), expoentes da sociologia do conhecimento, que a realidade é uma construção
social. Para estes Autores, a realidade se constrói através de um processo dialético,
no qual o sujeito, ao tempo em que exterioriza seu ser no mundo social, interioriza-o
como realidade objetiva76. O construcionismo social é, portanto, uma doutrina
relativista, vez que a realidade é interpretada a partir da ótica de quem observa, e,
desse modo, é variável. Ao apresentar uma filosofia reflexiva, voltada sobre o
observador, o construcionismo demonstra que o investigador é parte da realidade
estudada e, por isso, também deve ser objeto de análise (CASTRO, 1983, p. 06-07).
A partir do interacionismo simbólico e do construcionismo social, surge
um novo e revolucionário enfoque da questão criminal, o labelling approach, teoria
do etiquetamento ou da rotulação. Neste trabalho, serão abordados, principalmente,
os estudos interacionistas de Howard Becker e Edward M. Lemert77.
76 Berger e Luckmann (1978) apontam, em síntese, que a realidade da vida cotidiana, partilhada entre os homens por meio da interação social, é objetivamente constituída por meio de dois fenômenos. O primeiro deles é a institucionalização, que consiste na tipificação de determinadas ações sociais que controlam a conduta humana, estabelecendo padrões previamente definidos, antes mesmo de qualquer sanção. O outro é a legitimação, mecanismo através do qual se produzem significados, com o intuito de integrar os sentidos já existentes, porém ligados a processos institucionais díspares. Nas palavras dos Autores (1978, p. 127), “[a] função da legitimação consiste em tornar objetivamente acessível e subjetivamente plausível as objetivações de ‘primeira ordem’, que foram institucionalizadas”. Simultaneamente, dá-se uma “interiorização da realidade”, através de processos de socialização (primária e secundária), que conformam a “realidade subjetiva” do indivíduo. 77 Apesar de bastante próximas em seu conteúdo, são três as principais teorias que, na escola interacionista, propõem-se a estudar o fenômeno do desvio: a teoria do etiquetamento ou rotulação; a
84
Para Becker (apud CASTRO, 1983, p. 88-91), o desvio não é um atributo
do autor, mas o resultado de um processo de interação, em que a conduta desviada
é tão importante como a respostas dos outros. Contrapondo-se à idéia de consenso
social defendida por Durkheim, Becker aponta que a imposição das normas é um
processo econômico e político, feito por um grupo favorecido para outro que está
marginalizado do poder. Nesse processo, destaca-se a atuação do “empresário
moral”, sujeito ou grupo que se organiza coletivamente para efetuar a incriminação
de condutas que, a seu ver, são danosas, uma espécie de “cruzado reformador”. A
partir daí, geralmente aproveitando alguma situação de pânico coletivo ou clamor
público, produz-se forte atividade comunitária que se empenha em influenciar os que
legislam. Por fim, se a campanha resultar efetiva, redige-se a lei penal78, mas, como
não é o empresário moral quem a elabora, suas características são imprevisíveis.
A partir do pensamento de Becker, prescindindo das fórmulas e preceitos
legais, verifica-se que o crime não é uma realidade ontológica, não existe a priori:
ele é o resultado de um processo definitorial, surgindo de uma seleção, dentre as
várias condutas conflituais, daquelas que, por serem consideradas mais danosas ou
atingirem mais frontalmente os interesses de determinados grupos, acabam sendo
penalmente tipificadas. O elenco de tais condutas pode variar bastante, desde
pequenos atos, como, por exemplo, emitir um cheque sem fundos ou quebrar o vidro
de um carro, até situações de grave violência física direta, como estupro ou
assassinato. Outras, porém, como não pagar os dias trabalhados a um empregado,
serão resolvidas em esferas distintas da penal, o que demonstra que a solução
punitiva é sempre apenas uma das hipóteses possíveis de intervenção nos conflitos.
Assim, “[...] o ’delito’ é uma construção social destinada a cumprir certa função sobre
algumas pessoas e respeito de outras, e não uma realidade social individualizável”
(ZAFFARONI e PIERANGELI, 1997, p. 60). A criação da lei penal consiste, portanto,
em um processo de criminalização de condutas, ou criminalização primária.
teoria do estigma e; a teoria do estereótipo. Por conta da originalidade de suas abordagens e a notoriedade de suas teses, serão abordados neste trabalho os pensamentos de Lemert e Becker, ambos representantes da teoria do etiquetamento. A teoria do estigma, cujo principal expoente é Erving Goffman, será explicitada à frente, no tópico 4.3.1. Sobre a teoria do estereótipo, elaborada por Denis Chapman, cf. CASTRO, 1983, p. 123-132. 78 Constituem amostras de campanhas efetivas na criminalização de condutas a história da proibição da maconha nos Estados Unidos e a inclusão do homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos. Sobre esses temas, ver, respectivamente, o documentário Maconha – A história verdadeira e sem cortes da proibição (MACONHA, 1999) e; os comentários de Nilo Batista (2003, p. 30), em entrevista à Revista Caros Amigos.
85
Após a criminalização primária, o fenômeno da rotulação prossegue
através do etiquetamento de pessoas, também chamado de criminalização
secundária. Em seu estudo, Becker (apud CASTRO, 1983, p. 91) demonstra que,
antes e depois da norma penal, diversas pessoas se comportam no sentido por ela
desaprovado. No entanto, como a noção de cifra oculta e os estudos de Sutherland
apontaram, nem todos os infratores são descobertos e nem todos os descobertos
são punidos. Uma vez que seria impossível ao sistema penal abarcar todos os que
praticassem quaisquer das atitudes tipificadas nos códigos, os encarregados de
aplicar a norma devem proceder, inevitavelmente, a uma seleção. Baseada em uma
série de fatores ligados à classe social, etnia, orientação sexual e comportamentos
do suposto infrator, essa filtragem cria uma categoria de sujeitos: os desviantes,
estranhos, marginais, outsiders. Dessa forma,
[...] os grupos sociais produzem o desvio ao criar regras cuja infração constitui o desvio, ao aplicar estas regras a pessoas particulares e a (sic) classificá-las como estranhas. Deste ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa realiza, mas sim uma conseqüência de que outros apliquem regras e sanções a um transgressor. O desviante é alguém a quem foi aplicado este rótulo com êxito; o comportamento desviante é a conduta que a gente rotula desse modo (BECKER apud CASTRO, 1983, p. 99).
O desvio é, assim, um produto da interação social entre o grupo e o
indivíduo apontado como transgressor, variável conforme o grau em que os demais
reagem a um ato desviante e segundo as características de quem cometeu o fato ou
foi vítima. Por isso, a reação social (da imprensa, por exemplo) é mais forte nos
momentos em que há uma campanha (contra o aborto, contra as drogas, contra a
mendicância). Do mesmo modo, a visibilidade social de um crime, num país
permeado de conflitos raciais, é, em geral, diretamente proporcional à clareza dos
olhos da vítima e inversamente proporcional à brancura da cútis do autor.
Por fim, a construção social da delinqüência completa-se no fenômeno do
“desvio secundário”, estudado pioneiramente por Edward Lemert, que conduz à
formação de carreiras criminais. Quando se atribui uma etiqueta social negativa a
um sujeito, considerando-o um desviante, a comunidade espera que se comporte
segundo o rótulo que lhe foi dado. Destarte, a etiqueta cria auto-etiqueta, pois o
indivíduo se percebe como sente que os demais o vêem, e produz comportamentos
que reforçam o estigma primeiramente atribuído: a etiqueta é uma “profecia auto-
86
realizável”. Por isso, como forma de ataque, defesa ou adequação ao controle
social, surge um novo desvio, inteiramente vinculado à reação produzida sobre o
primeiro, chamado de “desvio secundário” (CASTRO, 1983, p. 104-106).
Aplicando-se esta teoria ao estudo do crime, verifica-se que, longe de
produzir ressocialização, reeducação ou reintegração, a intervenção do sistema
penal é responsável por atribuir ao sujeito o estigma de criminoso, dotando-o de
uma marca que o distingue dos supostos cidadãos de bem e levando a atuação
policial a se voltar prioritariamente sobre ele. A ficha de antecedentes criminais
desempenha, então, importante papel na forma como os atos posteriores do sujeito
serão re-significados, para si e a comunidade, como indicadores de um novo desvio.
Instaura-se um ciclo, em que a reação social ao crime, ao invés de pôr fim a ele,
torna-se constitutiva de carreiras criminais. Consoante Baratta (2002, p. 90), ao
demonstrar que a intervenção do sistema penal, notadamente a pena, antes de ter
um efeito reeducativo, produz a consolidação da identidade desviante do condenado
e o seu ingresso em uma carreira criminosa, Lemert inicia uma negação do princípio
do fim ou da prevenção e também da concepção ressocializadora da pena.
Enfim, a partir das teorias interacionistas do labelling approach, opera-se
verdadeira transformação epistemológica no âmbito da criminologia, que passa a
constituir o controle social como principal objeto de estudo. As tradicionais perguntas
“quem é o criminoso?”, “por que ele comete crimes?” são substituídas por “como se
define que alguém é criminoso?”, “quem são os sujeitos criminalizados?”, “por que
algumas condutas são consideradas crime e outras não?”. Ao estudar a reação
social, observa-se que ela tem o papel significativo de constituir o desvio. Assim, o
crime e o criminoso são construídos pelo sistema penal, através dos processos de
criminalização primária e secundária. Não à toa, a palavra crime deriva do latim
crimen, que vem do grego krimein, e significa escolha, separação (CAPPI, 1998, p.
81-82). Portanto, ao escolher as condutas que serão criminalizadas e separar os
indivíduos considerados criminosos,
é a própria intervenção do sistema (autêntico exercício de poder, controle e domínio) que, ao reagir, constrói, co-constitui o universo da criminalidade (daí processo de criminalização) mediante: a) a definição legal de crimes pelo Legislativo [...]; b) a seleção das pessoas que serão etiquetadas, num continuum pela Polícia-Ministério Público e Justiça, e: c) estigmatizadas (especialmente na prisão) como criminosos entre
87
todos aqueles que praticam tais condutas (ANDRADE, 1999, p. 26).
Entretanto, não obstante a irreversibilidade de suas posições, o labelling
approach, em sua formulação inicial, é considerado, por autores como Baratta
(2002) e Andrade (1997), uma teoria de médio alcance, vez que não abandona
totalmente a preocupação etiológica, apenas rejeita a exclusiva acentuação desta
perspectiva na análise do fenômeno criminal. De fato, nos estudos sobre o desvio
secundário, a estigmatização gerada pelo desvio primário é considerada uma causa
da prática delitiva. Além disso, o médio alcance da teoria do etiquetamento é
apontado, principalmente, pela insuficiência da abordagem macrossociológica:
[a] qualidade de desvio efetivo que [os] comportamentos problemáticos têm em face do funcionamento do sistema sócio-econômico, ou a sua natureza expressiva de reais contradições daquele sistema, permanece inteiramente obscurecida [...] (BARATTA, 2002, p. 98).
Duas foram as tentativas de superar os limites da micro-análise proposta
pelo labelling approach. Em primeiro lugar, deve-se mencionar a Escola
interacionista alemã, com destaque para o pensamento de Fritz Sack, que, para
Castro (1983, p. 109), constituiu “uma espécie de ponte entre a escola interacionista
e os movimentos radicais”. Os grandes méritos desse sociólogo criminal foram: 1) a
análise das “meta-regras jurídicas”, isto é, das regras sociais de interpretação das
normas, que abrem espaço para a discricionariedade dos operadores do sistema de
controle penal, permitindo que uma parte do comportamento delitivo total seja
criminalizada e outra (a grande maioria) não; 2) a demonstração de como a
criminalidade está ligada muito menos a um comportamento que a uma adjetivação
negativa (um “bem negativo”), análoga a bens positivos como patrimônio e renda: “a
criminalidade é o exato oposto do privilégio” (SACK apud BARATTA, 2002, p. 108);
3) a recusa por qualquer perspectiva etiológica, insistindo em que a delinqüência é
produto final de toda estrutura social; 4) a negação do princípio de igualdade, o qual
não possui vigência no plano fático, substituído por critérios variados dos sujeitos
integrantes das agências de controle, que geram uma distribuição desigual do
atributo criminalidade entre as diferentes classes sociais, e; 5) por fim, a formulação
de uma teoria consistente que serviu de base para importantes estudos alemães
sobre as diversas instâncias do controle social, especialmente sobre a alta
88
discricionariedade definitorial da polícia (BARATTA, 2002, p. 101-116).
Também são relevantes, como ampliadores do âmbito da escola
interacionista, as teorias conflituais da criminalidade e do direito penal, cujo principal
representante é Austin T. Turk79. Essas teses agregam às contribuições do
interacionismo uma teoria geral da sociedade, a sociologia do conflito80, apontando o
conflito como “princípio explicativo fundamental dos processos de criminalização”
(BARATTA, 2002, p. 119). Destarte, utilizando uma perspectiva macrossociológica,
aponta-se uma divergência de interesses entre os indivíduos de uma comunidade
(algo já afirmado nos estudos precedentes), mas esse fenômeno é explicado não
através das diferenças individuais, mas do conflito entre os grupos. Desse modo, os
interesses tutelados pelo direito penal não são comuns a todos os cidadãos, mas
pertencem a grupos que têm o poder de influir sobre os processos de criminalização,
primária e secundária. Direito penal e criminalidade são, pois, construções sociais
resultantes de uma configuração política.
Para Baratta (2002, p. 119-122), ao demonstrar a relação entre conflito
social e criminalização e apontar o direito penal sob uma perspectiva política, as
teorias criminológicas do conflito tiveram o mérito de derrubar o último pilar ainda
não diretamente contestado da ideologia da defesa social: o princípio do interesse
social e do delito natural. Assim, aponta-se que tanto na gênese quanto na aplicação
da lei penal não vigoram os valores fundamentais da sociedade, mas interesses
específicos de grupos dominantes. Pode-se, outrossim, negar a existência de um
delito natural e dizer, como o faz Nilo Batista (2003), que “todo crime é político” 81.
Não obstante, o próprio Baratta (2002, p. 145) reconhece que tais teorias
são “falsamente revolucionárias”. Em primeiro lugar, pecam pelo simplismo e
superficialidade de suas generalizações, tentando mascarar a ausência de base
empírica por meio de formalismo conceitual. Além disso, ao centrar a análise na
formulação da lei penal, quase não se detêm sobre sua aplicação. Por fim, ao
79 Embora Turk seja o nome mais destacado nessa corrente, pode-se mencionar também o trabalho de Georg D. Vold, focando a teoria da criminalidade na perspectiva sociológica do conflito, no que Baratta (2002, p. 126-19) visualiza como uma retomada de algumas idéias esboçadas por Sutherland. 80 A sociologia do conflito foi desenvolvida, principalmente, por Lewis Coser e Ralf Dahrendorf, em contraposição às teses estrutural-funcionalistas de Merton. 81 Expõe Nilo Batista (2003, p. 29) que “[...] a pena é o pior modelo de decisão de conflitos. Quando você criminaliza um conflito, faz uma opção política. Não existe um crime natural. Todo crime é político. Nos anos 70, eu me lembro que o Augusto Thompson, que é uma grande figura, deu uma resposta maravilhosa numa conferência, a um aluno que perguntou: ‘Professor, qual é a diferença entre criminoso comum e criminoso político?’ E o Thompson falou: ‘A diferença é que o comum também é político, só que ele não sabe’”.
89
estudar a resolução dos conflitos por meio da criminalização, acentuam o fenômeno
estritamente político, sem atentar para as questões econômicas e sociais, como se a
sociedade fosse uma espécie de jogo, no qual a mecanicista concorrência entre
certos grupos determinaria a criminalização como estratégia de manutenção no
poder. Encobrem-se, pois, nessas teorias, os verdadeiros problemas sociais que
originam os conflitos (BARATTA, 2002, p. 137-144).
4.2.2 Os “movimentos radicais”: Criminologia Crítica e Nova
Criminologia
Diante da incapacidade revelada pelos pensadores do labelling approach
de situarem a análise criminológica em uma teoria política geral de explicação do
Estado e da sociedade – macrossociológica, portanto –, e a partir de uma revisão
crítica do próprio trabalho realizado pelo saber criminológico, despontam, na década
de setenta do século passado, movimentos de ruptura com a criminologia liberal,
propondo a adoção do materialismo histórico, integrado às conclusões trazidas pelo
labelling approach, como fonte para a explicação do fenômeno delitivo. Esses
“movimentos radicais” (CASTRO, 1983, p. 137), orientados pela fenomenologia e
pela filosofia crítica82, originaram as escolas chamadas de Criminologia Radical ou
Crítica, e, a partir da obra de Taylor, Walton e Young, a Nova Criminologia.
Castro (1983, p. 141) observa que diversos acontecimentos de ordem
sócio-política, na década de sessenta e setenta, propiciaram a ruptura definitiva com
a velha criminologia. Entre eles, destacam-se: a política exterior estadunidense,
especialmente a Guerra do Vietnã e a intervenção direta no golpe chileno; o
surgimento das contraculturas; a constatação de que há crimes mais perigosos para
a sociedade do que os convencionais (os crimes do colarinho branco); as variadas
contestações dos anos sessenta e a desproporcional reação policial; diversas
82 Lola Aniyar (1983, p. 08-09) aponta que a fenomenologia é uma postura filosófica, segundo a qual é possível conhecer não apenas o que existe, o que é atual (fenômeno), mas também a realidade possível (nóumeno). O fenômeno é a realidade objetiva, a existência; o nóumeno, por sua vez, é a essência das coisas. Já a filosofia crítica, muito mais que um exercício intelectual, “é uma forma de vida, uma concepção do mundo que se exerce como práxis”. A filosofia crítica, além de estudar o
90
rebeliões ocorridas em estabelecimentos penitenciários, todas com forte cunho
político; as revoltas ocorridas em universidades, e; a influência de outros
movimentos, como é o caso da Antipsiquiatria.
Além disso, algumas teorias, ao demonstrar a relação entre o sistema
penal (lei penal, processos de criminalização, cárcere) e a estrutura de classes da
sociedade capitalista, constituíram estudos precedentes das principais teses
defendidas pela criminologia radical.
Primeiramente, Richard Quinney é apontado como precursor da
criminologia crítica, ao desenvolver sua teoria crítica do direito penal. Utilizando-se
de conceitos marxistas e da noção engelsiana de Estado83, esta teoria afirma que o
Estado foi criado pela força e se mantém pela coerção. Nesse sentido, a lei constitui
o aparelho que assegura os interesses da classe dominante e a polícia, a força
necessária para assegurar a ordem. Assim, a lei penal, a polícia e o poder judiciário
representam categorias simbólicas que encobrem a essência da dominação política
e econômica. Portanto, como já foi apontado, as normas penais não são mais que
um conjunto de regras formulados por uma classe que detêm o poder para submeter
outra. Não à toa, “para o cárcere vão os famintos, os incultos, os miseráveis, os que
não têm possibilidades de defesa, os que são rapidamente apreendidos pela polícia,
os que não têm como comprar um juiz ou um policial” (CASTRO, 1983, p. 94).
Também tiveram influência sobre os movimentos radicais no âmbito da
criminologia as críticas historiográficas das prisões, formuladas por Georg Rusche e
Otto Kircheimer, na obra Punição e Estrutura Social, e por Foucault, em Vigiar e
Punir (1999). Os primeiros autores, a partir de uma base materialista, apontam as
relações existentes entre mercado de trabalho, sistema punitivo e cárcere, afirmando
que qualquer sistema de produção desenvolve seus próprios métodos punitivos, em
correspondência e sintonia com as relações produtivas. Desse modo, a situação do
mercado de trabalho é, para Rusche e Kircheimer, um fator determinante dos
diferentes modelos de execução penal (BARATTA, 2002, p. 189-190).
Já Foucault (1999), mesmo tomando o trabalho de Rusche e Kircheimer
mundo que lhe é dado, interessa-se em modificar a realidade, buscar alternativas ao que está posto. É, por conseguinte, uma postura política. 83 Segundo Friedrich Engels (apud CASTRO, 1983, p. 92-93), o Estado não existiu em todas as sociedades, mas foi inventado diante da necessidade de assegurar as riquezas adquiridas com a instituição da propriedade privada. O Estado capitalista surge, então, a partir da divisão de trabalho baseada na exploração por uma classe que detém o capital, visando a coagir o restante da população à submissão econômica e política.
91
como fonte para a sua tese, distancia-se parcialmente do enfoque materialista e
situa o moderno sistema penal através da complexa relação poder/saber, no âmbito
do capitalismo nascente. Assim, a partir da instituição da disciplina, engendra-se o
estabelecimento carcerário, destinado, inicialmente, à docilização dos indivíduos e,
logo em seguida, à produção e reprodução de uma ilegalidade fechada, separada e
útil. O sistema penal, garantindo e reproduzindo as relações de poder e a estrutura
de classe, é, então, desnudado como uma fábrica de delinqüência:
[...] a prisão esteve, desde sua origem, ligada a um projeto de transformação dos indivíduos. [...] Desde o começo a prisão devia ser um instrumento tão aperfeiçoado quanto a escola, a caserna ou o hospital, e agir com precisão sobre os indivíduos. O fracasso foi imediato e registrado quase ao mesmo tempo que o próprio projeto. Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade84. Foi então que houve, como sempre nos mecanismos de poder, uma utilização estratégica daquilo que era um inconveniente. A prisão fabrica delinquentes, mas os delinquentes são úteis tanto no domínio econômico como no político85 (FOUCAULT, 1985, p. 130).
Por fim, também influentes para a constituição de uma criminologia crítica
foram as propostas tendentes à descriminalização de condutas, que chegaram à
radicalização com o pensamento do holandês Louk Hulsman (1993). A partir de
algumas conclusões obtidas pela criminologia interacionista e da experiência junto
ao Ministério da Justiça e como professor universitário, Hulsman considera o
sistema penal uma máquina de “produção de sofrimento inútil” e propõe sua
84 Conforme Foucault (1999, p. 221-223), as primeiras críticas à prisão aparecem muito cedo, logo nos anos 1820-1845. É impressionante notar a atualidade das observações então formuladas: 1) as prisões não diminuem a taxa de criminalidade; 2) a detenção provoca reincidência; 3) a prisão fabrica delinquentes, seja pela existência que faz os detentos levarem, seja pelas limitações violentas que lhes impõe; 4) a prisão favorece a organização entre os delinquentes, solidários entre si e hierarquizados; 5) as condições dadas aos detentos libertados também provocam reincidência, sobretudo o fato de estarem sob constante vigilância da polícia, e; 6) até indiretamente a prisão fabrica delinquentes, por levar à miséria a família do detento. A partir de tais críticas, verifica-se a utilidade da prisão como instrumento de manutenção da estrutura social, ao tempo em que se inicia o projeto (sempre retomado) de reformas, em busca da tão sonhada punitividade ressocializadora: “[h]á um século e meio que a prisão vem sempre sendo dada como seu próprio remédio; a reativação das técnicas penitenciárias como a única maneira de reparar seu fracasso permanente; a realização do projeto corretivo como o único método para superar a impossibilidade de torná-lo realidade”. 85 E a utilidade da delinqüência reside justamente em que “[s]em delinquência, não há polícia. O que torna a presença policial, o controle policial tolerável pela população se não o medo do delinquente? [...] Esta instituição tão recente e tão pesada que é a polícia não se justifica se não por isto. Aceitamos entre nós esta gente de uniforme, armada enquanto nós não temos o direito de o estar, que nos pede documentos, que vem rondar nossas portas. Como isso seria aceitável se não
92
completa abolição86, em busca de novas formas de resolução dos conflitos sociais,
em que haja participação efetiva dos sujeitos envolvidos.
Explicitado o contexto em que a Criminologia Crítica se desenvolve, é
relevante que se apresentem os principais movimentos que a originaram. O primeiro
deles, segundo Castro (1983, p. 142-143), foi o Union of Radical Criminologist
(URC), encabeçado por professores e alunos da Escola de Criminologia de
Berkeley, Estados Unidos, como reação aos objetivos básicos da instituição: formar
técnicos aptos à luta contra o crime. A qualidade e a violência das abordagens da
URC geraram uma contra-reação institucional que ocasionou, inclusive, o
fechamento da escola, em junho de 1976. Sua principal contribuição é a tentativa de
redefinição do objeto da criminologia: rejeitando o direito como ponto de partida e
diante da impossibilidade de fugir aos padrões morais na tentativa de definir o crime,
a URC propõe a adoção dos Direitos Humanos como modelo superior a guiar a
atividade do criminólogo. A tarefa da criminologia seria, então, investigar as
violações desses direitos87: quem as fez, contra quem, como e por quê.
Na Europa, por sua vez, podem-se destacar a National Deviance
Conference (NDC), que, em reação ao modelo de ensino do Instituto de Criminologia
de Cambridge, Inglaterra, combate o pragmatismo, o reformismo e o distanciamento
sociológico da criminologia; o Grupo Europeu para o Estudo do Desvio e do Controle
Social, que busca aproximar a criminologia de um marxismo não-ortodoxo, e; um
houvesse os delinquentes? Ou se não houvesse, todos os dias, nos jornais, artigos onde se conta o quão numerosos e perigosos são os delinquentes?” (FOUCAULT, 1985, p. 135). 86 Em sua Tese de Doutoramento (acerca da noção de vítima, formulada pelos trabalhadores rurais Sem-Terra do Acampamento Rosa do Prado, no Extremo Sul do Estado da Bahia), Marília Lomanto Veloso (2006, p. 151-168) elabora uma precisa e didática síntese dos principais argumentos abolicionistas de Louk Hulsman: 1) o crime não existe por natureza, é uma criação legal; 2) o sistema penal intervém em um número reduzido de casos; 3) a pena aplicada pelo sistema é ilegítima; 4) a privação da liberdade é sofrimento estéril, despersonalizante e dessocializador; 5) o sistema penal fabrica culpados; 6) o sistema penal é seletivo, cria e reforça as desigualdades sociais; 7) o sistema penal é estigmatizante e excludente; 8) o sistema penal rouba o conflito das pessoas envolvidas; 9) o sistema penal ignora a vítima; 10) instituições compartimentalizadas inibem ação conjunta na prestação jurisdicional; 11) o desaparecimento do sistema penal em nada afetaria o aparelho repressivo, e, por fim; 12) conhecer o sistema penal é exigir o seu fim. 87 Malgrado a intenção seja compreensível, não se pode aceitar a proposta de converter o pensamento criminológico num baluarte dos Direitos Humanos, sob pena de renúncia à especificidade do objeto científico e o risco, apontado por Penna Pires (apud CASTRO, 1983, p. 143), de que o combate às negações desses direitos converta-se numa sobrecriminalização, já conhecidos os nocivos efeitos que qualquer processo criminalizante produz na sociedade. Mais interessante, portanto, parece ser a retomada da origem etimológica de crime (escolha, separação) (CAPPI, 1998, p. 81-82). A criminologia, outrossim, pode ser considerada uma ciência do estudo dos processos sociais que efetuam a escolha de condutas consideradas desviantes e realizam uma separação seletiva dos indivíduos que a cometem. Seu objeto é, então, imediatamente, o crime, ou melhor, a criminalização e, de forma mediata, o fenômeno do desvio.
93
conjunto de juristas, entre os quais se inclui Alessandro Baratta, conhecido como
“Grupo de Bolonha”88, que propõe: 1) no campo teórico, um aprofundamento e a
configuração de identidade de uma criminologia marxista, apta a colocar o fenômeno
microssociológico da criminalidade no bojo de uma teoria macrossociológica
materialista do Estado e das Instituições; 2) no campo da práxis, o objetivo de
desenvolver uma política criminal do movimento operário, ou seja, uma política
criminal alternativa (CASTRO, 1983, p. 144).
Nessa última esfera, Baratta (2002, p. 197-200) propõe a “adoção do
ponto de vista das classes subalternas como garantia de uma práxis teórica e
política alternativa”, com o fito de agir contra a manutenção da hegemonia das
classes dominantes no processo seletivo de definição e perseguição da
criminalidade, visando antes a um combate de “comportamentos socialmente
negativos”. A idéia é buscar o deslocamento do foco principal da atuação das
instâncias penais para “zonas de nocividade social praticamente imunes”, como a
criminalidade econômica e política e os poluidores ambientais.
Partindo desse pressuposto, Baratta (2002, p. 200-205) indica quatro
estratégias centrais para a formulação dessa política criminal: 1) distinção
programática entre política penal e política criminal, esta última, não se limitando ao
âmbito da função punitiva do Estado, mais ampla e abrangente, verdadeira política
de transformação institucional e social; 2) deslocamento do foco de atuação penal,
simultaneamente a um amplo processo de despenalização de diversas condutas
nascidas sob uma concepção autoritária e ética do Estado (delitos de opinião,
aborto, adultério, uso de entorpecentes); 3) abolição da instituição penitenciária, por
meio de etapas de descarcerização, e; 4) batalha cultural e ideológica para o
desenvolvimento de uma consciência alternativa no campo criminológico.
Pode-se resumir, assim, nas formulações de Baratta, as principais
propostas da Criminologia Crítica de reação política à violência e arbitrariedade do
sistema penal, no intuito de construir uma política criminal que não se restrinja ao
controle penitenciário da miséria, até hoje realizado nos países capitalistas.
No campo teórico, porém, é a Nova Criminologia, corrente criminológica
que recebeu essa denominação graças à impactante obra The New Criminology,
88 No grupo de Bolonha, além de Alessandro Baratta, destacam-se os trabalhos de Franco Bricola, Dario Melossi, Guido Neppi Modona, Túlio Seppilli, Pietro Ingrao, Mario Sbricoli e Tamar Pitch (CASTRO, 1983, p. 144).
94
publicada em 1973 pelos ingleses Ian Taylor, Paul Walton e Jack Young (ligados à
NDC), que merece destaque, por consistir no “esforço mais completo e
sistematizado de fazer uma criminologia de cunho marxista, mantendo com o
marxismo a distância necessária para não torná-lo uma aplicação esquemática, na
pretensão de conservar uma posição crítica” (CASTRO, 1983, p. 158). Após realizar
uma crítica histórica e epistemológica das diversas teorias que gradativamente
ampliaram o pensamento criminológico, esses autores buscam constituir um modelo
teórico capaz de analisar e explicar o comportamento desviante e os variados tipos
de controle social nas sociedades marcadas pelo modo de produção capitalista.
Para isso, recusam qualquer perspectiva biológica de análise do comportamento
desviante, propondo uma teoria “completamente social” (fully social) (CASTRO,
1983, p. 159).
Com o intuito de compreender a natureza ampla do processo desviante
como um todo, o modelo teórico da Nova Criminologia assenta-se em seis principais
requisitos de análise do fenômeno delitivo: 1) a economia política do crime: as
origens estruturais da conduta desviante, desde as desigualdades de poder e bem-
estar até distribuição de oportunidades e criação de subculturas; 2) a psicologia
social do delito: as origens imediatas da conduta desviante, as diferentes maneiras
de interpretação e reação às solicitações estruturais, reconhecendo-se que a
escolha pelo caminho desviante pode constituir uma resposta válida e consciente do
sujeito, frente aos problemas de uma sociedade contraditória; 3) a dinâmica social
real do ato concreto: a conduta atual, a racionalidade e os constrangimentos da
escolha, que podem precipitar a ação; 4) a psicologia da reação social: as origens
imediatas da reação social, a explicação da audiência social que presencia o ato; 5)
a economia política da reação social: as origens mais amplas da reação social, um
modelo efetivo do pensamento político e econômico que sustenta as ideologias do
público, da polícia, do ministério público, do judiciário e das cruzadas pela
criminalização; 6) a dialética sujeito-reação social: o impacto da reação social na
ação posterior do desviado, não à maneira quase determinista dos interacionistas,
mas a partir da consciência de mundo do sujeito ator (CASTRO, 1983, p. 160-162) .
Por conseguinte, aos ”movimentos radicais”, e às correntes criminológicas
surgidas a partir desta insurreição, deve-se atribuir o grande mérito de situar a
criminologia no âmbito de teorias macrossociológicas, estudando o fenômeno do
crime de maneira diretamente relacionada à estrutura de classes da sociedade
95
capitalista. O delito, que já foi explicado em bases metafísicas, positivistas e
interacionistas, é, finalmente, abordado de forma dialética.
Ademais, a Criminologia Crítica e a Nova Criminologia superam o alcance
do enfoque interacionista, por serem o resultado de um movimento pela
desinstitucionalização da criminologia. Destarte, em lugar de buscar tão somente a
construção de edifícios conceituais, produzem um saber voltado para uma práxis
transformadora. Outrossim, não se limitam a ser “escolas” criminológicas, mas
constituem verdadeiros movimentos de redirecionamento da política criminal, com
vistas à construção de um projeto contra-hegemônico no âmbito do sistema penal e
à “desmontagem ideológica do controle social” (CASTRO, 1983, p. 198).
4.3 ANTIPSIQUIATRIA : A DOENÇA MENTAL COMO CONSTRUÇÃO
SOCIAL
Como observa Velo (2000), é marcante a similitude dos trajetos
percorridos pelos saberes criminológico e psiquiátrico, desde as primeiras reflexões
sobre crime e loucura, até a positivação de cada um deles ao status de ciência. Do
mesmo modo, o processo de crítica à atuação profissional e às teses produzidas por
estas ciências origina-se de um denominador comum, o enfoque interacionista, e
reverbera de forma semelhante, gerando movimentos de árdua contestação à
etiologia criminológica e ao orgacinismo fisiologicista psiquiátrico. Caminham, pois,
lado a lado as construções teóricas e as lutas que originam a Criminologia da
Reação Social e a Antipsiquiatria89.
De fato, é no seio do interacionismo simbólico, quando o crime passa a
ser visualizado através das teorias do desvio, que outra categoria desviante começa
a despertar o interesse dos cientistas sociais: a doença mental. Nesse contexto,
cabe destacar Erving Goffman, contemporâneo de Becker e Lemert e representante
da corrente interacionista que se costuma chamar de Escola Dramatúrgica. Em seus
estudos, Goffman (1985) dedica especial atenção ao papel que o indivíduo
representa nas interações da sociedade e como o sujeito se percebe nesse palco
89 A origem do termo antipsiquiatria é atribuída a David Cooper, que o utiliza no livro Gramática da Vida. Não obstante, essa designação é rechaçada pela maioria dos autores considerados antipsiquiatras (CASTRO, 1983, p. 166).
96
social, através das respostas fornecidas pela platéia. Interessa-se, então, pelo papel
social que o doente mental assume, sobretudo a partir dos estigmas atribuídos
depois do internamento nos manicômios (GOFFMAN, 1998; 2001).
Goffman realiza, assim, principalmente através da obra Manicômios,
prisões e conventos (2001), uma análise centrada no poder institucional de definição
do estigma de doente mental e na construção da carreira moral de paciente. Para
ele, o hospital psiquiátrico é o espaço primordial de constituição dessa espécie de
desvio: salvo raras exceções, são considerados doentes mentais apenas aqueles
que não conseguem escapar ao manicômio. O internamento marca, portanto, o
início da carreira de doente mental, que se solidifica por meio da degradação e
despersonalização sofrida dentro dos muros das instituições totais.
Contudo, é Thomas Scheff (1970), quem desenvolve o modelo teórico
mais consistente para integrar o estudo da doença mental às teses interacionistas,
formulando, com base no conceito de desviação residual, uma “teoria sociológica da
doença mental”. Como já foi apontado no início do segundo capítulo, para Scheff, o
que se nomeia doença mental nada mais é que uma transgressão de normas
residuais, as quais determinado grupo entende como tão elementares que a sua
violação só pode significar um ato de insanidade.
Conforme essa teoria, a origem da transgressão residual pode ser
decorrente de diferentes fontes, quatro das quais são exemplificadas: as orgânicas,
advindas de condições genéticas e bioquímicas; as psicológicas, resultantes da
criação do indivíduo e das subculturas; as tensões externas, como a insônia, o
combate em guerra e o uso de entorpecentes, e; os atos deliberados de inovação ou
desafio, como é o caso das rebeliões contra os costumes e de novas expressões
artísticas. Em todos esses casos, podem-se apresentar comportamentos que o
grupo considera transgressões residuais. No entanto, a maioria dessas atitudes
passa despercebida e apenas alguns sujeitos serão rotulados como loucos. Por
exemplo, se um francês, conhecido como “homem-aranha”, escala um edifício na
cidade de São Paulo, apesar de ser detido, tem seu ato visto como mera
excentricidade; ele obtém popularidade e espaço na mídia para comentar a façanha
(LEITE, 2008). Entretanto, quando um sujeito corre despido pelas ruas de um
pequeno povoado, no município de Ruy Barbosa-BA90, considera-se que ele
90 A narrativa dessa história será apresentada detalhadamente no Capítulo 5, Tópico 5.3.3.
97
amedronta a comunidade: rotulam-no de louco perigoso e, mais ainda, de criminoso.
Desse modo, “[l]a mayor parte de las transgresiones de las reglas residuales son
‘negadas’ y tienen una significación transitoria” (SCHEFF, 1970, p. 53); somente a
uma minoria, assemelhada ao estereótipo cultural do louco, socialmente construído
na mentalidade dos indivíduos desde a infância, o rótulo de doente mental será
aplicado.
A partir daí, utilizando-se do conceito de desvio secundário de Lemert,
Scheff (1970, p. 81-93) considera que a comunidade passa a esperar da pessoa
rotulada um comportamento louco. Todas as suas atitudes são reinterpretadas
segundo essa ótica, mesmo quando o sujeito tenta desempenhar outro papel social.
O indivíduo começa a se perceber também como louco e a agir conforme as
expectativas, de maneira mais estranha e desviante do que os sintomas que
inicialmente originaram o rótulo. A carreira de doente mental é, então, uma
construção realizada por meio do processo de rotulação. Se Goffman relaciona a
construção da doença mental à intervenção institucional, Scheff propõe que, mesmo
fora dos manicômios, a reação da comunidade pode produzir o sujeito louco.
Não apenas na teoria sociológica a doença mental foi seriamente
questionada. As categorias psiquiátricas sofreram duras críticas também por parte
dos próprios médicos psiquiatras ou, pelo menos, de alguns deles. Embora tais
críticas não tenham conseguido derrubar os alicerces da psiquiatria, certamente
causaram feroz estrago em alguns de seus pilares. Cabe, então, analisa-las.
Um dos mais famosos críticos médicos da atividade psiquiátrica é o
estadunidense Thomas Szasz. Esse pensador, no livro O mito da doença mental,
nega ferozmente a ontologia da loucura. Para ele (apud MILES, 1982, p. 15),
não existe essa coisa chamada doença mental [...]. [N]ão é possível afirmar, em termos de anatomia e fisiologia, de que modo funciona a mente quando é “normal”, nem tampouco demonstrar o que há de errado nos casos de aparente disfunção. É possível tão-somente indicar o modo como uma pessoa se porta ou sente, parece anormal a si mesma ou a seus semelhantes, e esta declaração é um juízo social e ético, e não um juízo médico.
A loucura é, então, compreendida tão somente a partir de processos
sociais rotulação, negando-se qualquer perspectiva médica de explicar este
fenômeno. Isso não significa dizer que inexistam disfunções cerebrais orgânicas que
98
possam afetar o comportamento e o pensamento, mas que essa perspectiva só
deve ser considerada nos casos em que se possa apontar alguma doença ou lesão
cerebral. Além disso, estar-se-á diante de uma enfermidade física e não mental.
Torna-se, pois, completamente inadequado o uso da expressão “doente mental” com
a grande maioria de sujeitos diagnosticados como dementes, nos quais nenhuma
causa orgânica foi satisfatoriamente apontada. Outrossim, não se quer afirmar que
“tudo vai bem” com essas pessoas, senão que elas possuem “problemas de vida”,
que, portanto, precisam ser trabalhados de outra maneira que não a medicalização
(SZASZ apud MILES, 1982, p. 16).
Szasz analisa também o que chama de “economia política da psiquiatria”,
efetuando uma tentativa, ainda que tímida, de situar o saber psiquiátrico na estrutura
político-econômica da sociedade. O Autor trabalha, especialmente, com o processo
de desinternação, vinculado à substituição do internamento pela medicalização com
drogas neurolépticas. Aponta o interesse das indústrias farmacêuticas nesse
processo, questionando seus resultados. Os psiquiatras são, outrossim,
considerados agentes de uma sociedade opressora, verdadeiros “mercenários
profissionais” (SZASZ apud MILES, 1982, p. 16).
Contudo, uma vez que seu trabalho é fruto de críticas formuladas a partir
muito mais da vivência médica que do contato com os trabalhos da sociologia
interacionista, Szasz não consegue conduzir sua análise da fabricação da doença
mental até a semelhante construção social do delito. Desse modo, ao propor o fim
das internações involuntárias em asilos, já que a psiquiatria não poderia se dar à
pretensão de ser a única prática médica que utiliza a coerção para efetuar o
tratamento, ele propõe que o psiquiatra trabalhe, exclusivamente, com os sujeitos
que o procurarem para uma terapia. Quanto às hipóteses de infração à lei,
[i]ndependente do diagnóstico psiquiátrico que recebam, os infratores teriam que ser acusados de um crime, julgados e, se considerados culpados, seriam punidos conforme o sistema judicial criminal; ao passo que pessoas inocentes teriam que ser deixadas sem serem molestadas pelos sistemas legais e psiquiátricos. Somente então seria retirado o estigma da doença mental e os psiquiatras seriam médicos comuns, cuja prática é limitada a tratar de pacientes voluntários (SZASZ, 1994, p. 307- grifo nosso).
Sob essa perspectiva, haveria, assim, tão somente a extinção da coerção
psiquiátrica. Nada mais que uma transferência do saber-poder responsável pela
99
exclusão de uma determinada classe de sujeitos etiquetados e marginalizados: os
muros do asilo são derrubados para ceder lugar às grades da prisão.
Apesar dessa limitação, ou talvez exatamente por isso91, as críticas à
psiquiatria e à noção de doença mental repercutiram pelo mundo e originaram
movimentos de desconstrução do saber e da prática psiquiátricos. Na França,
desenvolve-se Psicoterapia Institucional; na Inglaterra, surgem as Comunidades
Terapêuticas. Na Itália, o psiquiatra Franco Basaglia utiliza a Comunidade
Terapêutica como um meio de luta contra o manicômio (VELO, 2000, p. 294).
De fato, o trabalho realizado por Basaglia nas Comunidades Terapêuticas
de Gorizia e Trieste inscreve-se no âmbito de um grande projeto de contestação
institucional, a desinstitucionalização. Por considerar as instituições (família, escola,
fábrica, hospital, prisão) como locais de nítida divisão entre quem tem poder e quem
não o tem, Basaglia (1985, p. 101-102) afirma que violência e exclusão constituem a
base das relações sociais, variando o grau dessa violência conforme a necessidade
de ocultá-la ou disfarçá-la, por parte de quem possua o poder. No suposto “Estado
do bem-estar”, os grupos dominantes perceberam a necessidade de não expor
abertamente sua face de violência, para não tornar evidentes as contradições
sociais, por isso concederam parte de seu poder aos técnicos, que realizam a
violência necessária, respaldados sob o manto da cientificidade. O papel do
psiquiatra é, então, mistificar a violência, por meio do tecnicismo, constrangendo o
paciente a aceita-la passivamente: “o internado [...] é o objeto de uma violência
institucional que atua em todos os níveis, já que qualquer ação contestadora sua
será definida dentro dos limites da doença” (BASAGLIA, 1985, p. 112).
Em reação a esse esquema, a proposta implementada por Basaglia no
Hospital Psiquiátrico de Gorizia buscou justamente, através da atuação coletiva dos
sujeitos envolvidos (psiquiatras, enfermeiros e internos), evidenciar a violência da
instituição psiquiátrica. Assim, os internos foram desamarrados, gradualmente
libertados das celas, desinternados e convidados a debater sobre sua situação92. O
tratamento médico foi cedendo lugar à politização da subjetividade.
91 É interessante observar que as teses antipsiquiátricas, ainda que encontrem algumas resistências à sua implementação concreta, têm aceitabilidade maior que as questões levantadas pela criminologia crítica e o abolicionismo penal. Em outras palavras, é mais aceita e difundida a idéia de que o hospício não é o local indicado para se realizar um tratamento do louco, do que a proposta de que a resposta social ao criminoso seja outra que não a prisão. 92 Para uma descrição mais aprofundada das transformações realizadas no Hospital Psiquiátrico de Gorizia, ver BASAGLIA, 1985.
100
Avançando além da crítica à atuação psiquiátrica de Szasz, Basaglia
consegue vislumbrar a relação entre doença mental, criminalidade e comportamento
desviante em geral, apontando que todos se constituem na base de uma ideologia
da diversidade, em que se nega o direito à diferença e se produzem mecanismos
institucionais voltados para transformação e submissão dos sujeitos. Afirma ele
(apud CASTRO, 1983, p. 177) que
durante muitos séculos, loucos, criminosos, prostitutas, alcoólatras, ladrões e extravagantes de todo o tipo eram recolhidos a um mesmo lugar onde os diferentes aspectos da sua normalidade representavam essa parte do homem que devia ser eliminada, erradicada e ocultada. E, embora a prisão e o manicômio posteriormente se separem, conservaram idêntica função de defesa da norma e de afastamento dos doentes da sociedade normal.
O trabalho de Basaglia, desenvolvido no âmbito de um amplo movimento
italiano denominado Psiquiatria Democrática, gerou grande repercussão,
influenciando, nos Estados Unidos, uma política de saúde mental centrada na
desospitalização, embora tenha convergido também nesse sentido o interesse das
indústrias de medicamentos, conforme apontou Szasz (1994, p. 229-251). Já na
Inglaterra, em meio aos movimentos underground de contraculturas, a Psiquiatria
Democrática contribuiu para o desenvolvimento do movimento antipsiquiátrico, em
que se destacam os trabalhos do escocês Ronald Laing e do sul-africano David
Cooper (VELO, 2000, 294).
Laing, a partir de uma perspectiva filosófica ligada ao existencialismo e à
fenomenologia, estuda primordialmente os esquizofrênicos, através de sua vivência
e experiência, buscando demonstrar que eles não são tão incompreensíveis como
geralmente se crê. Em sua primeira obra, mais filosófica, O eu dividido (1987), Laing
aponta no esquizofrênico um ser desesperado, portador de uma insegurança
ontológica inicial, como se, apesar do nascimento biológico, não tivesse nascido
existencialmente para a vida. Por conta disso, essa pessoa procura se proteger
perpetuamente, isolando-se dos demais. Alguns sentem o perigo da absorção, de
perder sua personalidade no outro, ser devorado por ele; outros temem a implosão,
perigo inverso, em que a realidade invadiria a personalidade. Assim, o
comportamento e as comunicações do esquizofrênico não são irracionais, mas
fazem sentido se analisados da posição em que se encontra o sujeito.
101
Em obras posteriores, utilizando trabalhos empíricos, Laing (apud MILES,
1982, p. 18-20), analisa as pressões psicológicas e sociais exercidas sobre esses
indivíduos, especialmente a partir do ambiente familiar do doente, descrevendo as
características típicas de uma “família esquizofrênica”, isto é, um contexto familiar
que submete a criança a exigências contraditórias e inconciliáveis, nas quais a única
reação possível é um comportamento irracional. Assim, se a esquizofrenia não é um
estado patológico, mas uma forma distinta de ter sua “experiência” no mundo, o
diagnóstico médico resulta em mera “atribuição de estigma”, com vistas à eliminação
dos comportamentos e sujeitos socialmente indesejados. A prática psiquiátrica é, por
conseguinte, coercitiva e repressora; o tratamento e a internação constituem formas
de controlar as pessoas consideradas incômodas, compactuando com a família na
responsabilização dos pacientes pelas faltas dos pais.
Já Cooper desenvolve seus trabalhos sob um enfoque bem mais político.
Por ter trabalhado como colaborador de Laing, a influência deste autor em suas
idéias é indiscutível: Cooper compartilha com ele a maior parte das reflexões sobre a
esquizofrenia. Afirma, assim, que
o problema não reside na chamada “pessoa doente”, porém na rede de interações de pessoas, particularmente sua família [...]. Dito em outras palavras, a loucura não se encontra “numa” pessoa, porém num sistema de relacionamentos em que o doente rotulado participa (COOPER, s.d., p. 47).
Por conta disso, o hospital psiquiátrico, instituição reprodutora da
estrutura familiar, é incapaz de produzir qualquer resultado social positivo, vez que
permanece centrando toda a sua terapêutica apenas no indivíduo doente e
utilizando a idéia de cura como um pretexto para a normalização e docilização dos
sujeitos, sem atingir o contexto gerador do comportamento desviante. Cooper (s.d.,
p. 52) defende, então, a criação de “comunidades experimentais”, onde os sujeitos
possam descobrir e explorar modos autênticos de se relacionar com os outros, sem
os desejos obsessivos e alienados da cura psiquiátrica. Dentre as tentativas de
criação dessas comunidades, cabe destacar a Vila 21, pavilhão localizado num
hospital psiquiátrico de Londres, experiência pioneira de maior liberdade e
autonomia para os internos, que resultou na criação de lares externos aos hospitais
(COOPERM, s.d., p. 109-134), e; Kingsley Hall, o mais duradouro desses lares, que
abrigou temporariamente diversas personalidades, inclusive Gandhi, no período em
102
que realizava negociações pela independência da Índia (BOSSEUR, 1974, p. 159-
175).
No âmbito teórico, Cooper (1978) propõe analisar a loucura com base
nas teses de Karl Marx e Friedrich Nietzsche, situando a opressão realizada pela
tecnologia psiquiátrica no âmbito do sistema capitalista93. Nesse sentido, a loucura é
definida como um grande movimento revolucionário para fora do “familiarismo” e
suas instituições, rumo à autonomia dos sujeitos. A psiquiatria constituiria, por sua
vez, uma “ação pseudo-médica de detectar maneiras erradas de viver a vida e a
técnica de sua categorização e correção”. Desse modo, Cooper, que já havia
cunhado a expressão “antipsiquiatria”, formula outra abordagem que ele chama de
“não-psiquiatria”, para a qual “o comportamento profundamente perturbador,
incompreensível e ‘louco’ deve ser contido, incorporado na sociedade global e nela
disseminado como uma fonte subversiva de espontaneidade” e não como doença
(COOPER, 1978, p. 116).
É certo, assim, que a Antipsiquiatria desconsidera a existência ontológica
dos fenômenos mórbidos: tais fenômenos, se não decorrerem de alguma causa
orgânica, devidamente comprovada, são vistos somente como resultado de
processos simultâneos de desviação residual e reação social. Como observa
Canguilhem (1995), o patológico representa uma simples variação quantitativa (e
não qualitativa) dos fenômenos fisiológicos que definem o estado normal da função
correspondente. Destarte, a doença mental não é um estado qualitativamente
oposto à saúde mental, mas a presença maior ou menor de intensidade nos
fenômenos que erigem a normalidade.
Não é absurdo considerar o estado patológico como normal, na medida em que exprime uma relação com a normatividade da vida. Seria absurdo, porém, considerar esse normal idêntico ao normal fisiológico, pois trata-se de normas diferentes. Não é a ausência de normalidade que constitui o anormal. Não existe absolutamente vida sem normas de vida, e o estado mórbido é sempre uma certa maneira de viver (CANGUILHEM, 1995, p. 187-188).
Logo, é na tentativa de definir o limite a partir do qual uma situação
93 Explicitar tal teoria, por certo, tornaria ainda maior o já extenso percurso de apresentação das bases teóricas de reação ao positivismo criminológico e psiquiátrico. Para maior detalhamento das idéias de Cooper sobre a relação entre loucura e capitalismo, pode-se sugerir a obra A linguagem da loucura (1978), de onde foram extraídos alguns conceitos utilizados neste trabalho.
103
abandona a normalidade e passa a ser mórbida que consiste o processo de
construção social das patologias da mente.
Não é portanto, um método objetivo que qualifica como patológico um determinado fenômeno biológico. É sempre a relação com o indivíduo doente, por intermédio da clínica, que justifica a qualificação de patológico (CANGUILHEM, 1995, p. 189 – grifo nosso).
A doença mental só existe, então, socialmente, resultando de um juízo
ético e social sobre a loucura. Conforme Foucault (1997, p. 197), onde se procuram
as formas mórbidas do desatino, encontram-se apenas deformações da vida moral.
A antipsiquiatria apresenta-se, enfim, não como pensamento homogêneo,
mas como um feixe de teorias e práticas distintas, mais ou menos abrangentes, por
vezes até contraditórias entre si. Todavia, pode-se apontar como ganhos
irreversíveis (embora ainda não concretizados) a tentativa de superar o positivismo
psiquiátrico, inclusive no âmbito da prática institucionalizada, e a negação da
existência ontológica de doença mental. A loucura, livre da apropriação médica,
pode, portanto, ser considerada, “[t]alvez sem definição precisa, mas que se opõe à
doença mental, [...] esta experiência humana de estar no mundo de uma forma
diversa daquela que o homem, ideológica e idealisticamente, considera como
normal” (AMARANTE apud LÜCHMANN e RODRIGUES, 2007, p. 402).
4.4 UM ENFOQUE CRÍTICO SOBRE A MEDIDA DE SEGURANÇA
Analisar a medida de segurança de uma perspectiva crítica e
minimamente realista implica em levar em conta as desconstruções efetuadas e os
conceitos trazidos pela Criminologia da Reação Social e pela Antipsiquiatria,
tentando integrá-los em uma teoria crítica do controle social, que permita descortinar
o processo de construção social da loucura criminosa.
Zaffaroni e Pierangeli (1997, p. 61) chamam de controle social essa
“influência da sociedade delimitadora do âmbito de conduta do indivíduo”, ou seja, o
conjunto de práticas sociais que tenta uniformizar os comportamentos, reagindo
104
positiva ou negativamente, segundo se aproximem ou se afastem de um padrão de
normalidade definido pela estrutura de poder. Pelos reflexos que sua intervenção
apresenta na sociedade, o sistema penal é certamente o mais visível e imperativo
dos mecanismos de reação social. Contudo, esses autores (1997, p. 68-69)
demonstram que o âmbito de atuação do controle social é muito maior.
Inicialmente, eles distinguem o controle social difuso (ou informal),
realizado pelos meios de comunicação, pela família, pelos amigos, que, gradual e
quase imperceptivelmente, direciona a conduta do sujeito para um determinado
padrão, sob pena de estranhamento pelo grupo; e o institucionalizado (ou formal),
que se manifesta segundo uma lógica oficial e uma ordem normatizada. Este último
é ainda subdividido em controle institucionalizado não punitivo (a escola, a igreja, o
direito privado), por não ter a exclusão e o estigma como cerne de sua atuação, e o
punitivo, representado primordialmente pelo sistema penal.
Há, ainda, um controle social institucionalizado que, de fato, é punitivo,
mas apresenta-se com discurso não punitivo (formalmente não punitivo), caso da
institucionalização de velhos, que pode significar uma resposta à sua inadequação
aos padrões de produtividade e consumo; e da atuação psiquiátrica, com o
enclausuramento de indivíduos em instituições manicomiais, graças à sua suposta
anormalidade e periculosidade.
Dentro dessa estrutura, o Hospital de Custódia e Tratamento revela-se
uma instituição peculiar: ele apresenta, a um só tempo, discurso punitivo, pois faz
parte do sistema penal, e discurso não punitivo, já que busca, formalmente, tratar ao
invés de punir. Esse conflito entre os discursos resulta do caráter concretamente
híbrido da medida de segurança e, longe de abrandar a situação dos internos,
ocasiona um fenômeno de dupla opressão94.
Os sujeitos da medida de segurança são, assim, duplamente rotulados,
ou melhor, recebem dois estigmas condensados em um único rótulo: o de louco-
94 A expressão “dupla opressão” é usada em sentido semelhante ao apontado por Frayze-Pereira (1982, p. 42-43 – grifo nosso), referindo-se à abordagem etnológica da questão da loucura feita pelo escritor marroquino Tahar Bem Jelloum, segundo o qual, “[n]as sociedades africanas e árabes, o louco era o eleito de Deus e da Verdade. A distinção entre o normal e o patológico era-lhes totalmente estranha.[...] No entanto, a opressão colonial transformou profundamente toda essa situação: o louco deixou de circular livremente entre os homens de seu meio. O hospital psiquiátrico ocupou-se dele. Na África (ex.: Senegal) verificou-se um fenômeno espantoso: a colonização da loucura. Porém, aos olhos do colonizador, o próprio colonizado pouco se distinguia do louco [...]. Nesse sentido, se considerarmos a concepção colonial do negro perigoso, violento, e o imaginário ocidental que considera o louco um doente perigoso para si mesmo e para os outros, os negros-loucos foram duplamente oprimidos”.
105
criminoso. A medida de segurança pode, pois, ser apontada como resultado prático
de um processo de rotulação bastante complexo, que envolve, de forma simultânea
e interligada, a criminalização e a patologização de comportamentos e pessoas.
Há, nesse caso, primariamente, uma definição normativa (jurídico-penal)
e médica de alguns desvios. Entre as diversas condutas conflituais, algumas, como
foi demonstrado, são politicamente escolhidas e nomeadas como ilícito penal, isto é,
criminalizadas. Outras, por seu turno, que não encontram um rótulo específico e,
para quem as observa, afiguram-se tão anormais que parece impossível
compreendê-las racionalmente, são consideradas comportamentos patológicos e
rotuladas como doença mental. Nas duas hipóteses, é inegável a existência de um
poder de (re)construção definitorial de condutas, a partir de etiquetas.
Todavia, nem todos os que praticam tais atos são imediatamente
rotulados por conta deles: o empresário que emite cheques sem fundos não é
considerado um criminoso; o cantor que se despe no palco e destrói sua guitarra é
apenas excêntrico. Logo se vê que a construção concreta dos desviantes só se
realiza através da filtragem seletiva efetuada pelo sistema. Dentre todos (e, de fato,
são muitos) os que cometem crimes, apenas a uma minoria se atribui o rótulo de
criminoso; do mesmo modo, dos inúmeros sujeitos que apresentam um desvio
residual, poucos são os considerados, clinicamente, doentes mentais.
No que tange à seletividade penal, não constitui surpresa afirmar que é a
população pobre, mais vulnerável à atuação do sistema, quem será mais facilmente
fisgada e, em decorrência, associada à idéia de criminalidade. No Brasil, que possui
um gritante problema étnico-racial, o estereótipo do criminoso é o de um homem
jovem, entre 18 (dezoito) e 25 (vinte e cinco) anos, pobre e negro.
Semelhantemente, na esfera psiquiátrica, há muito se constata uma
relação entre classe social e doença mental. Miles (1982, p. 164) observa que,
desde 1855, num relatório sobre a doença mental em Massachusetts, Estados
Unidos, constatou-se a absoluta predominância da “classe indigente” no número de
casos de insanidade. Há quem tente explicar esse fenômeno com base na hipótese
do “deslocamento descendente”, segundo a qual as pessoas que se tornam doentes
mentais ficam incapacitadas de manter seus empregos, “deslocando-se” para baixo
na escala ocupacional e social; outros pactuam com a explicação pela “tensão
ambiental”, afirmando que o ambiente em que vivem as classes mais pobres produz
tensões que podem ocasionar a doença mental (MILES, 1982, p. 156-175).
106
Essas teorias são, certamente, etiológicas e podem até ser parcialmente
aceitas, desde que integradas à perspectiva interacionista. Destarte, parece mais
plausível entender a vinculação entre doença mental e classe trabalhadora através
de um processo de “rotulação diferencial e tratamento diferencial”. Portanto, como
explicam Hollingshead e Redlich (apud CASTRO, 1983, p. 171 - grifos nossos), os
sujeitos mais pobres têm maior chance de serem rotulados como doentes mentais:
“[o] filho do rico está fatigado; o filho do pobre está louco”; outrossim, as diferentes
formas de violência aplicadas nos tratamentos tornam mais difícil para os menos
abastados abandonar o papel de paciente mental. Ou seja, se “os pobres recebem
eletrochoques, a classe média pílulas tranqüilizantes e a classe alta, tratamento
psicológico a 70 dólares a hora”, os danos causados aos primeiros tatuam mais
destacadamente, na personalidade individual, o estigma de doente mental
É possível, por conseguinte, visualizar crime e doença mental como
construções decorrentes de processos de interação social, rotulação e filtragem
seletiva, funcionando os sistemas penal e psiquiátrico como duas instâncias centrais
de controle. Centrais, porém não estanques. Como aponta Laberge (e outros, 1995,
p. 17), as divisórias que os separam sempre foram mais ou menos permeáveis, o
que permite um trânsito, um ir e vir de um sistema a outro. Embora, conforme a
época, um dos sistemas seja privilegiado para gerir certas situações, os sujeitos
rotulados podem, continuamente, fazer essa passagem. A medida de segurança
constitui justamente o “dispositivo de controle-dominação da loucura” que se destina
a encarcerar tais indivíduos, no momento em que se está efetuando essa transição
ou acúmulo de rótulos. Logo, o louco-criminoso, esse ser “perigoso”, “agressivo” e
“imprevisível” é também uma construção social, realizada a partir do discurso
jurídico-normativo atrelado ao discurso psiquiátrico.
Se se percebe que todos esses comportamentos e sujeitos rotulados
nada mais são que resultados de processos de interação social, numa desigual
estrutura de classe, em que os indivíduos mais fragilizados economicamente tem
maior dificuldade de se livrarem da atribuição de estigmas e dos estigmas atribuídos,
interessa verificar o modo como essa construção se realiza, sobretudo, por meio da
atuação das agências formais de controle. Torna-se, pois, imperativo observar o
funcionamento do processo seletivo da medida de segurança, através dos discursos
apresentados por juízes e psiquiatras em seus textos oficiais.
107
5 OS SUJEITOS DA MEDIDA DE SEGURANÇA: A
CONSTRUÇÃO DOS LOUCOS-CRIMINOSOS NAS
HISTÓRIAS CONTADAS POR MÉDICOS E JUÍZES
5.1 NECESSÁRIO SE FAZ UM PARÊNTESE METODOLÓGICO: A
PESQUISA EMPÍRICA
Com o intuito de desvendar, ainda que de forma propedêutica (dados os
objetivos e limites deste trabalho monográfico), quem são os indivíduos aos quais se
atribui o duplo estigma de louco-criminoso e quais processos sociais são
determinantes para a aplicação da medida de segurança, realizou-se, entre os
meses de agosto/2007 e janeiro/2008, uma pesquisa empírica no Hospital de
Custódia e Tratamento de Salvador-BA (HCT-BA).
O HCT-BA foi implantado em 1973, num antigo presídio construído no
início do século XX, na Baixa do Fiscal, na capital baiana. Vinculada à Secretaria de
Justiça e Direitos Humanos do Estado, a instituição apresenta o propósito de
custodiar e tratar os loucos que cometeram crimes e estão sob a guarda da justiça,
abrigando também pacientes oriundos de delegacias e outros cárceres, acometidos
por algum transtorno mental transitório. Segundo o Relatório Final do Censo Clínico
e Psicossocial da População de Pacientes Internados no Hospital de Custódia e
Tratamento em Psiquiatria do Estado da Bahia (PITTA e RABELO, 2004), realizado
108
em 2004 pela Universidade Federal da Bahia, em parceria com diversas entidades e
órgãos governamentais, a capacidade do HCT-BA é de 280 (duzentos e oitenta)
leitos, 240 (duzentos e quarenta) para homens e 40 (quarenta) para mulheres.
A pesquisa realizada nesta instituição teve o fito de esboçar, ainda que
em caráter embrionário, um perfil dos indivíduos rotulados simultaneamente como
loucos e criminosos pelo saber psiquiátrico e pelo sistema penal. Para tanto, optou-
se por trabalhar com sentenças e laudos psiquiátricos, discursos que, sob o manto
da legalidade e cientificidade, propõem-se a demonstrar uma verdade sobre os
sujeitos aos quais se impõe a medida de segurança.
Ao efetuar uma crítica da forma tradicional com que a Metodologia se
impõe aos estudos sociológicos, Becker (1997) a considera uma “especialidade
proselitizante”. Para ele, os metodólogos tentam influenciar os pesquisadores a
utilizarem certos tipos de método, apregoando “uma ‘maneira certa’ de fazer as
coisas, por causa de seu desejo de converter os outros a estilos de trabalho
apropriados, por causa de sua relativa intolerância com o ‘erro’”, como se a pesquisa
fosse algo que uma máquina pode fazer. Assim, desconsideram que, nas ciências
sociais, os métodos convencionais são incapazes de lidar com alguns problemas
concretos, cujo estudo é o interesse direto do investigador. A essa descrição técnica
de procedimentos de pesquisa, Becker (1997, p. 25) contrapõe uma metodologia
analítica.
O metodólogo analítico pressupõe [...] que se um número significativo de sociólogos faz uma certa coisa de certa maneira, eles provavelmente chegaram, depois de cometerem erros, a um método essencialmente correto, o qual precisa ter sua estrutura lógica desvendada agora. Ao desvendar exata estrutura, poderemos selecionar o que é logicamente inerente ao método e o que está vinculado a ele apenas por circunstâncias ou costume, e pode ser ignorado sem riscos, ou, melhor ainda, ser feito de modo mais sensato e útil. A metodologia analítica surge a partir da insatisfação. O sociólogo pode achar indigno para seu status de cientista trabalhar segundo regras convencionais de bom senso.
Então, a partir de uma “autoconsciência aumentada” sobre os objetivos,
limites e variáveis dos trabalhos realizados, podem-se desenvolver outros métodos,
como extensão da lógica criada para dar conta do que foi feito no passado. É, assim,
plenamente cabível, a exemplo do que faz E. Franklin Frazier em sua obra Black
109
Bourgeoisie, efetuar uma costura de diferentes tipos de pesquisa (BECKER, 1997, p.
22-25).
O presente trabalho utilizou-se dessa possibilidade de costura a fim de
esboçar uma metodologia analítica para a pesquisa empírica. Com isso, a
investigação realizada combina elementos de estudo de caso e abordagem
biográfica, ainda que consista, essencialmente, em uma pesquisa documental.
Aproxima-se do estudo de caso, pois busca compreender a relação entre os poderes
e saberes, médicos e jurídicos, durante o processamento da medida de segurança,
no espaço do HCT-BA, porém restringe seu objeto aos documentos produzidos e
não centra seu foco na observação do funcionamento institucional. Também se
relaciona de algum modo com a abordagem biográfica, vez que a análise dos
documentos é feita mediante re-construção das histórias de vida dos sujeitos aos
quais se aplicou a medida de segurança, embora não se utilize a narração
autobiográfica para coleta dos dados.
O trabalho empírico consistiu, contudo, em uma pesquisa
predominantemente documental, utilizando como principal fonte os Arquivos
constantes do Centro de Registro e Cadastro (CRC) do HCT-BA, órgão responsável
pelo armazenamento dos dados sobre os internos da instituição. Ao considerar os
documentos e a sua produção verdadeiros fatos sociais (SAINT-GEORGES, 1997,
p. 17), pretendeu-se fazer emergir, a partir dos textos elaborados nos laudos e
sentenças, questões diversas relacionadas à interação funcional entre poder
judiciário e psiquiatria, constituintes de uma narrativa sobre a história de vida dos
loucos-criminosos, recortada e moldada segundo a ótica particular dos sujeitos
elaboradores: juízes e médicos.
Necessário se faz uma última explicação. Como indica Gil (2002, p. 47)
sobre este tipo de pesquisa, não se busca no presente trabalho apresentar fórmulas
definitivas sobre a relação entre os diversos sujeitos da medida de segurança, mas,
antes, compreender melhor como essa interação se processa, a fim de formular
hipóteses verificáveis por outros meios futuros.
5.2 OS NÚMEROS DA INSTITUIÇÃO E A ESCOLHA DOS CASOS
110
O momento inicial da pesquisa consistiu na coleta de dados, desenvolvida
através de visitas mensais ao HCT-BA, nas datas de 10/08/2007, 10/09/2007 e
05/10/2007, nas quais os primeiros contatos com a instituição foram estabelecidos,
procedendo-se à verificação quantitativa dos internos e distinguindo-os segundo o
sexo, o delito cometido e a situação jurídica no momento.
Como resultado, obtiveram-se as tabelas a seguir expostas. Destaque-se
que os números obtidos são utilizados apenas para apresentar melhor as condições
da instituição e seus principais ocupantes. Logo, não constituem objeto de análise
quantitativa mais elaborada, já que o foco do estudo é essencialmente qualitativo.
Tabela 1 – Quantidade de internos por sexo.
10/08/2007 10/09/2007 05/10/2007
HOMENS 149 136 136
MULHERES 10 09 10
TOTAL 159 145 146
Fonte: Pesquisa de campo realizada.
A primeira tabela apresenta a população do HCT-BA com uma média de
150 (cento e cinqüenta) pessoas, no trimestre observado. Se comparados ao que se
verificou em pesquisas anteriores, tais números indicam uma significativa diminuição
da quantidade de internos nos últimos anos: em junho de 1996, havia 372 (trezentos
e setenta e dois) pacientes (PERES, 1997, p. 37); no censo realizado em 2004, o
número de internos era 338 (trezentos e trinta e oito) (PITTA e RABELO, 2004, p.
17). Assim, o HCT-BA encontra-se em um momento menos conturbado, visto que
sua capacidade de 280 (duzentos e oitenta) leitos não se encontra extrapolada,
como antes costumava ocorrer. Constata-se, ainda, a extensa maioria masculina na
instituição, o que aponta para a possibilidade de que os homens estejam mais
vulneráveis ao processo de criminalização e patologização do que as mulheres.
111
Tabela 2 – Quantidade de internos por delito cometi do.
10/08/2007 10/09/2007 05/10/2007
AMEAÇA 06 06 06
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR 06 05 05
ATO OBSCENO 01 01 01
DANO 03 02 03
ENTORPECENTES 05 03 02
ESTUPRO 08 06 06
FURTO 03 05 06
HOMICÍDIO 57 58 54
LATROCÍNIO 03 03 03
LESÕES CORPORAIS 12 07 07
ROUBO 11 11 14
TENTATIVA DE ESTUPRO 01 01 01
TENTATIVA DE FURTO 01 01 02
TENTATIVA DE HOMICÍDIO 26 21 19
TENTATIVA DE ROUBO 02 02 03
OUTROS 14 13 14
TOTAL 159 145 146
Fonte: Pesquisa de campo realizada.
A Tabela 2 revela os diferentes ilícitos penais supostamente cometidos
pelos sujeitos internados. Embora se note que o homicídio e sua tentativa
constituem o delito a que mais facilmente se liga a idéia de periculosidade, percebe-
se que o rótulo de louco-criminoso também pode ser atribuído a indivíduos pela
prática de diversas infrações de menor lesividade, como ato obsceno, ameaça,
dano, furto e tentativa de furto.
112
Tabela 3 – Quantidade de internos por situação jurí dica 95.
10/08/2007 10/09/2007 05/10/2007
COM ALVARÁ DE SOLTURA 02 02 02
COM LAUDO 26 23 25
PARA DESINTERNAÇÃO 06 06 11
MEDIDA DE SEGURANÇA 51 48 44
PARA LAUDO 52 42 41
PROBLEMA SOCIAL 07 07 07
TRATAMENTO 15 17 16
TOTAL 159 145 146
Fonte: Pesquisa de campo realizada.
Na Tabela 3, verifica-se que o cumprimento da medida de segurança é
responsável por menos de um terço da quantidade total de internos, ao passo que
quase outro terço está aguardando a realização do laudo e mais de um sexto da
população internada espera que o juiz profira sentença. Por conseguinte, a grande
maioria dos pacientes do HCT-BA está compulsoriamente sob tratamento e excluída
do convívio sem sequer ter havido conclusão do correspondente processo judicial.
Com base nos dados obtidos, o segundo momento do trabalho empírico
consistiu na seleção dos casos a serem estudados. Inicialmente, definiu-se que a
análise focaria apenas os internos do sexo masculino, em virtude de sua significativa
maioria (proporção média de 14,5 para 1). Além disso, a utilização de pelo menos
um caso envolvendo uma interna poderia obrigar a pesquisa a se deter sobre
95 A situação jurídica dos internos, conforme explicações fornecidas por funcionários do HCT-BA, pode ser classificada em: 1) com alvará de soltura – o interno já está judicialmente liberado, porém permanece aguardando que a família dirija-se ao HCT para conduzi-lo; 2) com laudo: o interno foi submetido a perícia psiquiátrica e o laudo encaminhado ao juízo de origem, porém ainda não há notícia de sentença proferida; 3) para desinternação: o laudo psiquiátrico verifica a cessação da periculosidade, mas a sentença de desinternação ainda não foi proferida; 4) medida de segurança: o interno está submetido à medida de segurança; 5) para laudo – o interno está aguardando a perícia psiquiátrica; 6) problema social – o interno já está judicialmente liberado, há vários anos, porém não possui qualquer contato ou vínculo fora da instituição; 7) tratamento – o paciente encontrava-se em uma instituição carcerária, quando apresentou algum transtorno psíquico e foi transferido para o HCT.
113
questões de gênero, o que talvez estendesse em muito os limites deste trabalho96.
Decidiu-se, ainda, buscar uma análise a mais diversificada possível
quanto aos delitos praticados, a fim de utilizar elementos diferenciados de
observação, bem como levantar hipóteses específicas de um caso a serem
contrastadas em outro. Além disso, a existência de internações baseadas em delitos
de pequeno potencial lesivo (como o furto, o ato obsceno, o dano) despertaram
interesse e curiosidade de conhecer a periculosidade atribuída aos sujeitos
internados. Com esse intuito, selecionou-se apenas um caso por ato tipificado97.
A terceira escolha recaiu sobre a restrição dos casos analisados tão
somente às histórias dos internos que se encontravam em cumprimento de medida
de segurança. Malgrado a maior parte da população internada ainda esteja
aguardando sentenciamento (o que constitui um grave problema institucional),
apenas nos casos em que a medida de segurança se encontra em curso seria
possível contrastar os discursos psiquiátrico (presente no laudo) e jurídico
(manifesto na sentença) sobre a loucura perigosa.
Procedeu-se, em seguida, à seleção de 05 (cinco) casos para realização
do estudo. Nessa fase, nem todos os Relatórios dos internos estiveram disponíveis
para consulta durante as visitas, de maneira que os casos selecionados não
significam uma escolha dos casos mais instigantes. Antes disso, constituem laudos
e sentenças ordinários, que, em maior ou menor grau, assemelham-se aos demais
disponíveis na instituição.
Definidos os casos, a análise centrou-se nos discursos psiquiátricos e
jurídicos proferidos, buscando reconstituir, através de sentenças e laudos, relatos
sobre a vida dos indivíduos (sua origem, os momentos de transgressão à norma, os
contatos com o mundo institucional), bem como avaliar as relações instituídas entre
juristas, psiquiatras e internos.
96 Em virtude da relevância das discussões de gênero, a utilização de casos envolvendo internas, talvez conduzisse a pesquisa a enveredar por questões como o estereótipo atribuído especificamente à mulher louca, as possíveis diferenças nos critérios para aplicação da medida de segurança em homens e mulheres, as hipóteses explicativas da constituição de uma população majoritariamente masculina, entre outras. 97 Apesar da preocupação central de não utilizar casos em que o delito cometido fosse o mesmo, o fato de o indivíduo geralmente ser internado várias vezes pela prática de atos diferentes resultou numa pequena repetição de crimes, como o roubo, nas histórias analisadas. No entanto, a diversidade de atos tipificados foi mantida, sobretudo no que tange ao crime determinante para a última internação.
114
5.3 OS CRIMES QUE SE CONTAM: NARRATIVAS QUE EMERGEM
DOS DISCURSOS LEGAIS E PSIQUIÁTRICOS
5.3.1 Sobre laudos e sentenças
Investir-se no estudo do discurso é tarefa por demais densa para que se
cumpra sozinho. A fim de percorrer esse vasto trajeto, sem se perder em
elucubrações abstratas e inférteis, é conveniente trilhar alguns passos de caminhos
já esboçados por precedentes estudiosos do assunto. Este trabalho segue, assim,
basicamente, a rota apontada por Foucault (1985; 2004). Para ele (2004, p. 08-09),
[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.
O discurso e sua produção apresentam-se, então, como formas
essenciais de manifestação do poder de controle e dominação social: o discurso é
aquilo pelo que se luta, o poder do qual todos querem se apoderar. Dado que os
saberes judiciário e psiquiátrico constituem “sistemas de sujeição do discurso”
(FOUCAULT, 2004, p. 45), exercem seu poder discursivo mediante apropriação
social das falas e conflitos alheios, convertendo-os, segundo os códigos internos
desses sistemas, associados aos conceitos de ilícito e doença mental, em uma
verdade legal e científica sobre os sujeitos e situações apresentados.
No que tange à loucura, observa Foucault (2004, p. 37) uma “rarefação
dos sujeitos que falam”, pois se impõem, na ordem dos discursos, certas regras aos
sujeitos que os pronunciam, e só se permite a entrada dos que satisfaçam
determinadas exigências ou estejam qualificados para fazê-lo. O louco torna-se,
pois, “aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros”, já que juiz e
psiquiatra determinam “que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida,
não tendo verdade nem importância” (FOUCAULT, 2004, p. 10-11).
115
O delito, por sua vez, apresenta-se como um “discurso sobre o Mal”
(VERDE e outros, 2006, p. 19). Ele projeta uma sombra no mundo social, revela o
terrível Real, que se esconde por trás da construção imaginária que se chama
sociedade. Para Verde (e outros, 2006, p. 20), o crime, sobretudo o “de sangue”, é o
comportamento humano que, por excelência maximiza o Mal, não tanto pela infração
que representa, mas por quão brutal e incompreensível aparece. Ele origina o
thauma aristotélico, “quello stato che esprime la meraviglia, lo stupore, l’attonita
angoscia che um osservatore prova davanti a ciò che gli appare come inspiegabile,
orrendo, monstruoso” (ibidem). Torna-se, desse modo, objeto preferencial de uma
narrativa, que tenta dominar com a razão aquilo que é irracional por definição, o
indizível do comportamento humano.
Loucura e crime, discursos vivos, abertos e irracionalizáveis, sofrem, pelo
desejo de controle e previsibilidade, uma reelaboração que os converte em textos
científicos, fechados, técnicos. A complexidade das ações humanas é reduzida a
pré-julgamentos morais e pseudo-científicos, que pretendem expressar uma certeza
sobre o incerto, uma explicação acerca do inexplicável, enfim, uma verdade
científica e legal sobre sujeitos que provocam a danação da norma (MACHADO, R.
e outros, 1978) e são, por isso, continuamente excluídos e rotulados. Os dois
modelos de “narrativa sobre o Mal” que serão estudados constituem exemplos
significativos de tal processo redutor de complexidade.
Um desses textos é o laudo psiquiátrico. Carlo Ginzburg (1991), buscando
estabelecer uma analogia entre a atividade do antropólogo e a prática inquisitorial,
propõe que os textos dialógicos da Inquisição constituem relevante meio de
conhecimento sobre as práticas e vivências de povos acusados de feitiçaria. De
forma livre, pode-se aqui buscar uma nova analogia à primeira realizada por
Ginzburg: os laudos podem ser tomados como resultado de um trabalho etnográfico
sobre a população internada no HCT, constituindo uma fonte de informação sobre a
história de vida dos loucos-criminosos. Tais textos, porém,
[d]evem ser lidos como o produto de uma inter-relação especial, em que há um desequilíbrio total das partes nela envolvidas. Para a decifrar, temos de aprender a captar, para lá da superfície aveludada do texto, a interação subtil de ameaças e medos, ataques e recuos. Temos, por assim dizer, de aprender a desembaraçar o emaranhado de fios que formam a malha textual destes diálogos (GINZBURG, 1991, p. 209).
116
Tal análise permite, então, descortinar a relação entre perito e periciando
e formular hipóteses sobre o processo de atribuição de rótulos.
O outro texto analisado é a sentença judicial, último ato do processo de
crimininalização formal, que se iniciou com a polícia e passou pela filtragem do
Ministério Público. Na sentença, pode-se observar a existência de dois códigos: o
tecnológico e o ideológico. O primeiro é composto pela legislação e pela dogmática
penal e processual penal e garante uma roupagem técnica à decisão judicial. O
código ideológico, ou second code, por sua vez, permanece encoberto no discurso
do juiz, ofuscado pelo mito da neutralidade98, embora seja ele, através do
estereótipo do criminoso e das teorias do senso comum sobre a criminalidade, quem
forneça a decisão para o caso concreto (NEPOMOCENO, 2004, p. 60-64). Pretende-
se, então, nas sentenças analisadas, afastar o código tecnológico e entrever o
código ideológico que geralmente permanece inaudito.
Da integração entre os discursos psiquiátrico e judiciário, serão extraídas
narrativas sobre a história de vida dos loucos-criminosos, cujo fio condutor são as
entradas e saídas do HCT, anotadas no Arquivo de cada interno apresentado.
Algumas breves explicações de ordem técnica talvez sejam ainda necessárias a fim
de facilitar a compreensão do processo de extração de tais narrativas.
Primeiramente, deve-se apresentar a estrutura dos laudos psiquiátricos.
Os laudos estudados variam conforme três tipos: a) Laudo do Exame de Sanidade
Mental, elaborado na primeira perícia, para avaliar a existência de periculosidade/
doença mental no periciando; b) Laudo de Avaliação Psiquiátrica, ocasionalmente
solicitado pelo Juiz que instrui o processo penal, para obter maiores informações
sobre o atual estado psíquico do sujeito, e; c) Laudo do Exame de Cessação de
Periculosidade, formulado durante o cumprimento da medida de segurança, para
determinar sua continuidade ou interrupção. Esses laudos se dividem, de regra, em
seis partes: 1) Preâmbulo: compreende a indicação da autoridade que solicita a
perícia; 2) Identificação: informações referentes ao periciando, como nome,
endereço, estado civil, cor de pele, data de nascimento, grau de instrução e, por
vezes, religião; 3) Razões da perícia: o motivo pelo qual a avaliação psiquiátrica é
solicitada, englobando os Dados obtidos de autos (onde se pode encontrar também
98 Consoante Ginzburg (1991, p. 209), não existem textos neutros: “até mesmo um inventário notarial implica um código que tem de ser decifrado”.
117
a fala de Delegados de Polícia e Promotores de Justiça) e a Versão do acusado aos
peritos; 4) Anamnese: resumo metódico de antecedentes patológicos, divididos em
Antecedentes familiares, Antecedentes pessoais, História social e personalidade
anterior, Exame psíquico e Dados obtidos no prontuário do Hospital de Custódia; 5)
Comentários e conclusões: resumo do juízo pericial sobre o acusado, e; 6) Resposta
aos quesitos99. Identificar-se-ão os laudos, conforme a ordem de elaboração (Laudo
01, Laudo 02, etc.), bem como, em cada trecho citado, será indicada a parte do
laudo de onde provém.
Cabe mencionar que, às vezes, os distintos laudos de um mesmo caso
são elaborados por diferentes peritos; no entanto, como o objetivo não é avaliar a
autuação individual dos profissionais, mas da psiquiatria como saber/ poder, tomam-
se os diversos textos como escritos por um só autor: o Psiquiatra.
Quanto às sentenças apresentadas, além da identificação por ordem de
elaboração, distinguir-se-ão as de absolvição e aplicação da medida de segurança
(proferidas pelo Juiz da comarca em que o delito foi cometido) das sentenças de
desinternação (expedidas pelo Juiz da Vara de Execuções Penais e Medidas
Alternativas da Comarca de Salvador-Ba).
Deve-se, ainda, esclarecer que os textos foram transcritos exatamente
como se encontram, salvo pequenos recortes em seu conteúdo para tornar mais ágil
e objetiva sua leitura. Não há, portanto, qualquer correção ortográfica ou gramatical.
Por último, alerte-se que, em todos os casos trabalhados são utilizados nomes
fictícios, a fim de preservar a identidade dos indivíduos.
Ao final, depois de apresentada cada narrativa, tenta-se efetuar breve
análise das histórias contadas, tendo sempre o fito de observar a relação entre
juízes e psiquiatras na atribuição do rótulo de periculosidade e no controle dos
sujeitos considerados perigosos.
Explicitados esses pontos, eis que se contam, enfim, as prometidas
histórias de vida de cinco internos do HCT-BA.
99 Alguns laudos apresentam pequenas variações, como incluir integralmente a Denúncia do Ministério Público, ou nomear Antecedentes pessoais como História de doença mental. No entanto, a estrutura geral apresentada, de regra, se mantém.
118
5.3.2 Um roubo de identidade
Guilherme, brasileiro, solteiro, nasceu em Lençóis - BA, em 04/10/1979.
Frequentou escolas até a 3ª série e trabalhou como ajudante de pedreiro. Segundo
conta o Juiz, “na noite do dia 03 de janeiro de 2007, [Guilherme] teria subtraído uma
bolsa mediante violência, lesionando a vítima com golpes de faca” (Sentença).
Preso em flagrante, Guilherme foi ouvido pelo Delegado, no dia seguinte.
As perguntas formuladas, como de regra, parecem não ter importância, não são
transcritas. Através das respostas, porém, o Delegado apresenta sua narrativa:
[N]a noite anterior [Guilherme] havia bebido e teve ideia de ir até a porta do banheiro no posto Gameleira para ver as mulheres que passavam; [...] já estava com “umas duas cachaças na cabeça” e viu um caminhoneiro saindo do banheiro com uma bolsa da mão [...] uma bolsa preta pequena; [...] perguntou se o homem era caminhoneiro o mesmo respondeu que sim; [Guilherme] decidiu tomar a bolsa para ver se tinha dinheiro, mas só havia uma pasta e uma escova de dentes; [...] o caminhoneiro tentou tomar a bolsa e [Guilherme] golpeou o mesmo com a faca, [...] que apenas arranhou e não cortou; [Guilherme] correu e depois foi andando para casa, quando a viatura da policia militar o abordou [sendo] conduzido à Delegacia (Laudo: Dados obtidos de autos).
Ainda em sua narrativa, com base nas perguntas finais (estas transcritas),
o Delegado informa que Guilherme “já foi preso por tráfico de drogas, mas que
depois saiu da prisão de Itaberaba como usuário [...] no dia 11/12/2006” e que o
acusado “fuma, bebe, e usa drogas” (Laudo: Dados obtidos de autos).
“No transcorrer do feito foi instaurado incidente de insanidade mental”,
pois, embora não houvesse dúvidas quanto à existência e autoria do delito, “o fato
do réu ter apresentado motivos confusos e desconexos para a prática do crime [...]
incutiu sérias dúvidas acerca de sua higidez mental” (Sentença). Assim, na data de
14/05/2007, Guilherme atravessa, pela primeira vez, os portões do HCT-BA. Mais de
dois meses depois, em 30/07/2007, realiza-se a perícia. Ouve-se, então, a partir de
perguntas não transcritas elaboradas pelo Psiquiatra, a história do sujeito:
[E]u fiquei três anos preso em Itaberaba, por causa de drogas (Laudo: Versão do acusados aos peritos).
119
Com 12 anos de idade, eu fumava maconha escondido, era de ano em ano, álcool, eu só usei com 18 anos, não chegava a ficar alcoolizado, se eu tomar duas doses de cachaça, eu não agüento levantar, esqueço o que faço. [...] [S]empre dormi bem, na cadeia, eu dormi um tempo, depois fiquei assustado, ouvia vozes, falava o meu nome e não via quem, arremetiam areia contra mim, os presos faziam os mandados das vozes, passei a ouvir vozes até de pessoas de minha cidade, me perturbaram e faziam humilhações, eu ficava nervoso, às vezes mandavam os presos não deixara eu tomar banho e nem pentear meus cabelos, não entrar na cela, teve outros que cuidavam de mim. Eu sair da cadeia sem documento, fiquei cinco dias em Tanquinho [Distrito de Lençóis], fui para casa da minha mãe [...] (Laudo: Antecedentes Pessoais – grifo nosso).
Sobre o delito que lhe é imputado, assim o narra:
Eu estava brigando com um rapaz, [...] eu segurava uma bolsa de um rapaz e que tinha cinqüenta gramas de maconha. Eu só tinha minha identidade, eu não conhecia este rapaz, eu fiquei sabendo que ele estava com meus documentos, eu ouvi alguem falando que ele estava com meus documentos, eu meti uma faca nele, ele me bateu, com a bolsa, a bolsa caiu da mão dele, eu peguei a bolsa pra vê se minha carteira estava dentro, ele correu pra cima de mim com a pá, eu já tinha andado cinqüenta quilômetros, eu tinha acabado de ser liberado da cadeia, eu joguei a bolsa e fui correndo pra a casa do meu irmão. Eu procurei um facão e não achei, eles fizeram covardia comigo, estavam com revolver na bolsa, a policia passou por mim e me prendeu junto com ele, na frente do delegado ele disse que eu estava com ciume de uma mulher (Laudo: Versão do acusados aos peritos – grifo nosso). No dia da briga, eu não tinha bebido, ou usado drogas, [...] eu vi o rapaz, eu ouvi uma voz que disse que aquele rapaz estava com meus documentos, [...] eu não roubei nada, a policia pegou o rapaz e foi me pegar, eu não achei os documentos, achei que ele tinha meus documentos (Laudo: Antecedentes pessoais – grifo nosso).
A partir do que lhe foi contado, o Psiquiatra abandona a posição de
sujeito-ouvinte, para apresentar suas conclusões, tornando-se responsável pela
atribuição de uma identidade desviante ao periciando.
[Guilherme] [n]ão informa sobre religião [...]. Nega relações homossexuais (Laudo: História social e personalidade anterior). Apresenta-se com vestes adequadas. Asseio corporal satisfatório. Lúcido [...], confuso. Ideaço delirante persecutória. Inteligência dentro dos padrões de normalidade (Laudo: Exame psíquico). Ao ser internado [Guilherme] estava calmo, não foram observados sintomas alucinatórios delirantes. Até o momento sem intercorrências, em uso de 5 mg HALDOL, diariamente (Laudo: Dados obtidos no prontuário do Hospital de Custódia). Após avaliação do prontuário do Hospital de Custodia, entrevista com
120
o periciando e observação de dados de autos processuais, passamos as conclusões finais. O Sr. [Guilherme] apresenta bom nível de inteligência, historia de uso de substâncias psicoativas desde os 12 anos de idade, iniciou uso de maconha e bebidas alcoólicas. Foi preso pela primeira vez em 2004. Logo após ter sido liberado, foi detido, o fato é relatado de forma confusa com Ideação delirante paranóide, situação clinica que nos leva ao diagnostico de um Transtorno psicótico não especificado. À época do evento [Guilherme] era incapaz de entendimento e de alto determinação, por doença mental. (Laudo: Comentários e conclusões – grifo nosso).
Por fim, o Perito conclui que Guilherme
[...] era, ao tempo das ações que lhe são imputadas, portador de doença mental [...] Transtorno Psicótico. [...] Em virtude da doença mental [...], era ele inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do ato que cometeu [...] (Laudo: Resposta aos quesitos).
Num último quesito, o Juiz indaga qual a medida indicada para Guilherme,
o tratamento ambulatorial ou a internação. Responde o psiquiatra que ele “necessita
de tratamento psiquiátrico à nível ambulatorial, apresenta boa conduta, não
apresentou nenhum episodio de agressividade com os demais na ala obedece
normas de forma satisfatória”(Laudo: Resposta aos quesitos).
Emitido o laudo, cópia do mesmo foi encaminhada ao Juiz da Comarca de
Lençóis, na data de 15/08/2007. Em 24/08/2007, o Juiz da Vara de Execuções
Penais e Medidas Alternativas (VEPMA) determina a Alta Hospitalar de Guilherme e
sua transferência para a Comarca de Origem, com base na Portaria 01/2003100.
Com base no laudo fornecido, o Juiz, na data de 24/09/2007, profere
sentença, decidindo o destino de Guilherme:
[...] julgo improcedente o pedido de condenação formulado na denúncia para reconhecer a inimputabilidade do acusado [Guilherme], ABSOLVENDO-O do crime que lhe foi atribuído, com base no artigo 386, inciso V do Código Processual Penal. Para fins de aplicação da medida de segurança, friso que apesar do laudo do exame de sanidade mental afirmar que o réu necessita de tratamento psiquiátrico a nível ambulatorial, a gravidade do ilícito sob comento, associada às informações de que o acusado já esteve envolvido em outros crimes [...] e ao fato do roubo ser punido com
100 A Portaria 01/2003 da VEPMA cuida de “determinar a desinternação e retorno às comarcas de origem de todos os internos encaminhados para exames, que estiverem com os respectivos laudos concluídos”. É bastante utilizada pela Defensoria Pública do Estado da Bahia, na argumentação de habeas corpus e pedidos de liberdade provisória, buscando garantir maior agilidade na tramitação dos processos.
121
pena de reclusão, impõe a adoção da medida de internação. [...] Portanto, [...] aplico a medida de segurança prevista no artigo 96, I do Código Penal, determinando a internação de [Guilherme] no Hospital de Tratamento e Custódia de Salvador/BA, p elo período de 02 (dois anos) , perdurando tal medida enquanto não for averiguado, através de perícia médica, a cessação da periculosidade, na forma prevista no artigo 97, § 1º do mencionado Estatuto Penal [...] o que faço não só visando garantir a segurança do inimputável, como também por ter aquele estabelecimento como o local mais habilitado a tratá-lo (Sentença – grifos originais ).
Assim, em 05/10/2007, Guilherme retorna ao Hospital de Custódia e
Tratamento. Fecham-se, atrás de si, os pesados portões que pretendem separar os
pacatos normais dos patológicos perigosos.
A análise desse primeiro caso revela uma série de questões relacionadas
à interação entre sujeito rotulado e reação social. Em primeiro lugar, a prisão
desponta como um momento marcante na trajetória do indivíduo. Observa-se que,
após ficar preso durante três anos, acusado de tráfico de drogas, sendo ao final
liberado como usuário, o sujeito relata que começou a ouvir vozes. Assim, os
primeiros relatos de anormalidade que o indivíduo conta são justamente do período
que passou na cadeia, reforçando a tese de Goffman (2001) sobre a deterioração
psíquica dos indivíduos nas instituições totais. Verifica-se, ainda, que, na história do
sujeito, uma relação precoce com drogas se apresenta como hipótese facilitadora da
atribuição do rótulo de distúrbio mental aos seus comportamentos.
Com relação ao Psiquiatra, pode-se apontar, de início, o retardo na
elaboração do primeiro laudo: somente após 77 (setenta e sete) dias, a perícia foi
realizada. Ademais, o método de escrita da entrevista realizada, tanto pelo
Psiquiatra quanto pelo Delegado (e prática corrente também no Ministério Público e
nos tribunais), apresenta o perigo de ocultar um possível manuseamento da fala do
entrevistado, visto que as perguntas formuladas são omitidas, constando apenas as
respostas. O discurso indireto utilizado, segundo aponta Roman Jakobson (apud
GINZBURG, 1991, p. 207), ”é uma apropriação e uma remodelação por parte
daquele que cita”.
Durante o Exame, constata-se que não há uma explicação do processo
pelo qual o perito chega a suas conclusões. Não se sabe que características do
indivíduo são determinantes para se constatar que ele é portador de Transtorno
122
Psicótico Não Especificado: salvo o conceito de ideação delirante persecutória, o
sujeito apresenta-se de forma absolutamente comum (asseado, lúcido, etc.). Aliás,
tampouco se compreende o que constitui um transtorno que o saber psiquiátrico não
consegue especificar e, todavia, é considerado uma doença. A psiquiatria se
apresenta, nessa primeira abordagem, como um saber opaco.
Por fim, ao indagar sobre religiosidade e orientação sexual do indivíduo, o
saber psiquiátrico parece constituir, de fato, como propõe Birman (1978), um
discurso da moralidade.
No que tange ao poder judiciário, é possível afirmar que o Juiz considera
o laudo e o saber psiquiátrico naquilo que lhe convém: não questiona o
procedimento pelo qual o Psiquiatra deduz que o sujeito é doente mental, porém
discorda quanto ao destino a lhe ser dado. Distante das principais discussões da
atualidade acerca das instituições manicomiais, ele julga o HCT o local mais
indicado para realizar o tratamento. Desse modo, encarcera-se e tenta-se domar a
periculosidade.
Contudo, a grande questão que emerge, ao passo em que permanece
encoberta, é a evocação constante do indivíduo aos documentos que não teriam lhe
sido entregues após a saída da prisão. Malgrado não se tenha qualquer indício para
determinar a veracidade de tal alegação, percebe-se que a busca pelos documentos
tornou-se questão crucial na vida do sujeito: era isso o que ele procurava na bolsa
roubada, foi por conta deles que agrediu o rapaz. Brada Guilherme que, sem seus
documentos, só lhe restava a identidade. E, ao agir para recuperá-los, entrou num
jogo de definição de papéis sociais, cujo resultado concreto foi o roubo da identidade
que lhe restava e a atribuição de uma marca para substituí-la: a periculosidade.
5.3.3 Um ato obsceno: a cristalização do perigo
Cláudio, solteiro, lavrador, tinha 24 anos de idade, em meados de 2000.
Nessa época, residia no Povoado de Morro das Flores, na cidade em que nasceu,
Ruy Barbosa-BA, quando surgiu contra si uma denúncia. Conta o Promotor de
Justiça que ele
123
há alguns meses, reiterada vezes, praticara ato obsceno consistente em correr despido pelo asfalto nas proximidades do distrito de Morro das Flores, provocando constrangimentos aos transeuntes e moradores daquela localidade. Seu comportamento insano tem, não apenas chocado, mas também, atemorizado as pessoas, de modo que uma delas compareceu à Promotoria solicitando providências (Laudo 01: Denúncia – grifos nossos).
O Promotor cuidou de tomar as providências devidas: ofereceu denúncia
contra Cláudio, diante da flagrante ilicitude de sua conduta. A denúncia foi recebida
e “instaurou-se Incidente de Insanidade Mental a fim de que fosse avaliada a higidez
mental do acusado” (Sentença 01). Ainda que o Juiz não tenha explicitado de onde
surgiu o questionamento sobre a lucidez do acusado, é de se imaginar que as
próprias características do delito tenham-no levado a supor que se tratava de um
indivíduo louco. Ou, ao menos, perigoso. Desse modo, Cláudio foi detido e
conduzido ao HCT-BA, sendo internado, pela primeira vez, em 11/04/2000.
Quatro meses e onze dias mais tarde (22/08/2000), Cláudio encontra-se
com o perito, que busca avaliar sua sanidade mental. Ao que parece, tem pouco a
dizer, ou não se transcreveu o que foi dito. Ainda assim, informa o Psiquiatra que ele
“[n]egou os fatos que constam em seu processo, sorrindo de forma pueril”: “[e]u não
sei porque fui preso. Nesta hora, eu não tava fazendo nada. Só tava dormindo no
mato porque não tava querendo ficar em casa. Não foi por nada não” (Laudo 01:
Versão do acusado ao perito). Comenta pouco sobre sua vida, mencionando
algumas sensações:
[b]ebida, eu bebo, eu bebia um litro por dia... os colegas que me davam... aí eu brigava com quem catava briga comigo... eu sentia dor de cabeça forte aqui no meio... aí eu deitava e melhorava. [...] [E]u ouvia uma voz falando assim, mata um, mata um. Só dizia pra eu matar um. Eu só ouvia quando tava lá fora. Era voz de homem. Às vezes acontecia de eu pensar que tinha gente querendo me pegar (Laudo 01: Exame psíquico).
Dessa forma, a ausência da fala de Cláudio abre espaço para que as
considerações do Psiquiatra preponderem na narrativa, com base em informações
que teriam sido prestadas pelo genitor do interno:
Nascido de parto PSNV, em casa, com parteira. Teve desenvolvimento neuropsicomotor dentro da normalidade. Já
124
apresentou episódios de traumatismo crâneo-encefálico provenientes de brigas com outras pessoas (Laudo 01: Antecedentes pessoais). [Cláudio] foi internado em hospital psiquiátrico e/ou fez tratamento ambulatorial com psiquiatra. Nunca fez uso de medicações psiquiátricas. Há ± 02 anos passou a fazer uso de bebida alcóolica e brigar com outras pessoas. Tem passado de uso de drogas (maconha) há ± 09 meses. Há ± 02 anos [Cláudio] passou a cursar com apragmatismo, inquietação, hetero-agressividade (Laudo 01: História de doença mental). Mãe com passado de doença psiquiátrica. Tinha tios com passado de doença psiquiátrica (Laudo 01: Antecedentes familiares).
Seu comportamento institucional também é apresentado:
[a]dmitido em 11/04/00, [Cláudio] apresentava-se em regular estado geral higiênico, cabelos despenteados, roupas desalinhadas, inquieto, desorientado, com discurso incompreensível, apresentando solilóquios. Durante a evolução na enfermaria, inicialmente apresentou comportamento negativista, mutismo, deambulando pela ala, inquieto. Com o uso das medicações, tornava-se sonolento, confuso, lentificado, falando baixo, referindo ouvir vozes, brigando com outros pacientes, envolvendo-se em conflitos (Laudo 01: Evolução no Hospital de Custódia e Tratamento). Comparece à entrevista adequadamente trajado e higienizado. Sem alteração de humor, afeto inadequado, evidenciando sorrisos imotivados e postura pueril. Pensamento tendente à desorganização, incoerente, evidenciando limitação intelectual comprometedora do seu conteúdo [...] (Laudo 01: Exame psíquico – grifo nosso).
Com base nesse quadro, conclui o Perito que Cláudio
[...] é portador de Esquizofrenia (CID-X: F 20), manifestando sintomas psicóticos de primeira ordem, caracterizados por alucinações auditivas, desorganização do pensamento e negativismo. Seu quadro é agravado pela limitação intelectual e passado de uso de bebida alcóolica e drogas ilícitas. Trata-se de enfermidade causadora de alienação mental, e assim, o periciado não possuía capacidade de entendimento e auto-determinação à época do evento delituoso (Laudo 01: Formulação diagnóstica e conclusões – grifo nosso).
Cópia do laudo foi encaminhada ao Juiz da Comarca de Ruy Barbosa e
Cláudio, com suas “alucinações auditivas”, seu “negativismo” e sua “limitação
intelectual”, permaneceu internado.
Passa-se mais de um ano. Não há notícia de sentença. Prolonga-se a
internação. Atendendo a solicitação do Juiz da Comarca de Ruy Barbosa, Cláudio é
125
submetido a Exame de Avaliação Psiquiátrica101, em 13/07/2001, onde expõe:
[...] estou aqui tem um ano e três meses, eu vim pra aqui não sei dizer porque, não fiz nada, me levaram, depois me soltaram, depois me pegaram e me trouxeram pra aqui, nunca andei nu pela rua não, eu andei uns tempo dormindo no mato porque não tinha casa, meu pai morava aqui, ele mora aqui em Salvador, na Boca do Rio, ele agora vai me levar pra morar com ele... eu cheguei aqui ruim, aluado, pirado, doido, agora eu tou melhor, depois que tomei os remédios... durmo bem... (Laudo 02: Exame psíquico atual).
O Perito atesta uma mudança no comportamento de Cláudio, afirmando
que ele se encontra
[c]almo, pragmático, orientado globalmente. Não apresenta alucinações e delírios (Laudo 02: Exame psíquico atual). [...] [E]stando sob tratamento nesta unidade [Cláudio] vem evoluindo de forma satisfatória, obtendo remissão dos sintomas. Não exibe sinais de periculosidade. Tem assistência regular de seu genitor, que inclusive ira acolhe-lo de volta, após a alta. Pelo exposto concluímos que [Cláudio] não tem mais indicação para permanecer internado, estando em condições de dar continuidade a seu tratamento à nível ambulatorial (Laudo 02: Conclusões – grifo nosso).
A retratada melhora no estado psíquico de Cláudio não parece repercutir
em sua condição legal. Mesmo sem exibir “sinais de periculosidade”, ele permanece
à mercê de um comando judicial que autorize sua desinternação. Ao menos,
enquanto não se prolata a sentença. Finalmente, em 24/09/2001, efetua-se a saída,
por conta de ofício encaminhado ao HCT-BA pelo Juiz da Comarca de Ruy Barbosa,
atendendo a determinação da Corregedoria do Poder Judiciário estadual102.
Contudo, somente quase dois anos mais tarde, em 27/06/2003, é
proferida sentença. Sem fazer qualquer referência ao segundo laudo emitido,
considera o juiz, apenas, que Cláudio
[...] apresentava comportamento agressivo e estava a atemorizar os 101 Não foi simples encontrar os motivos determinantes de tal solicitação, visto que, de regra, o Laudo do Exame de Sanidade Mental é suficiente para a prolação de sentença. O material encontrado no Arquivo do interno, contudo, parece indicar que o pedido de realização de novo exame teria sido fruto da atuação da Defensoria Pública do Estado da Bahia, a qual, incessantemente, buscou conseguir alta para o interno, impetrando habeas corpus e ajuizando pedidos de relaxamento de prisão. Ao que parece, a providência adotada decorreu de Reclamação contra o Juiz, protocolada na Corregedoria do Poder Judiciário. 102 Ver nota anterior. Diante do retardo judicial em exarar a sentença, a Corregedoria deve haver determinado o desinternamento.
126
moradores e transeuntes do Povoado de Morro das Flores. Noutro passo, o laudo de exame da sanidade mental é conclusivo afirmando os experts que o acusado padece de doença mental denominada Esquizofrenia [...] (Sentença 01 – grifo nosso).
Onde há doença mental, existe periculosidade. Está, pois, determinado o
futuro de Cláudio:
[...] em razão da inimputabilidade [...] por motivo de doença mental, [...] absolvo [Cláudio] das imputações constantes da denúncia, aplicando-lhe, porém, [...] MEDIDA DE SEGURANÇA consistente em INTERNAÇÃO em Hospital Psiquiátrico do Estado, pelo prazo mínimo de 01 (um) ano (Sentença 01).
Durante algum tempo, Cláudio ainda consegue ver-se livre do sistema
psiquiátrico-penal. Sua estadia em liberdade, porém, logo tem fim. Em 29/01/2007,
dá-se a sua segunda entrada no manicômio judiciário. Relata o Psiquiatra que ele foi
reinternado neste hospital por determinação do Juízo de Direito da Comarca de Ruy Barbosa, para cumprir Medida de Segurança pelo prazo mínimo de 01 ano (Processo 040/2000) e realização de novo Exame de Sanidade Mental (Processo 110/20003) (Laudo 03: Histórico no Hospital de Custódia e Tratamento).
O Psiquiatra, no entanto, parece resistir a essa internação; tanto assim
que realiza o Exame de Cessação de Periculosidade em 26/09/2007, ou seja, antes
do prazo mínimo de um ano previsto para a duração da medida. O laudo então
elaborado fundamenta-se quase exclusivamente na avaliação realizada pelo Serviço
Social, para o qual “[a] família, representada pela figura paterna, está receptiva ao
retorno do mesmo, assim, a alta poderá ser dada oportunamente”, aduzindo ainda
que “[s]erá reforçada a orientação da necessidade e importância da continuidade do
tratamento ambulatória com família e paciente” (Laudo 03: Avaliação do serviço
social). Além disso, a fala do sujeito aparece, ainda que minimamente: “As vozes
não incomodavam muito antes, depois que fui preso é que elas ficaram falando que
a polícia estava atrás de mim...” (Laudo 03: Comentários e conclusões). Com base
em tais dados, o Psiquiatra apresenta seus comentários:
[Cláudio] é um paciente portador de patologia esquizofrênica não especificada, ou seja, tem distúrbio de ordem processual, que foi deflagrada há cerca de doze anos, seguido de trauma
127
cranioencefálico por queda de cavalo, quando um animal caiu sobre si, necessitando de atendimento hospitalar (Laudo 03: Comentários e conclusões – grifo nosso).
E conclui, ao final, confundindo o crime determinante da perícia, que
[p]or ocasião do delito, [Cláudio], ao saltar na água de um rio, terminou por deixar, inadvertidamente, que aparecessem os seus órgãos sexuais, sendo acusado por atentado ao pudor. No HCT, porta-se de forma adequada, não demonstrando em momento algum da internação distúrbios da sexualidade ou atitudes de caráter exibicionista. [...] Diante do exposto, constatamos que [Cláudio] não apresenta sinais de periculosidade, tendo indicação para retomar o convívio sócio familiar, desde que siga rigoroso tratamento psiquiátrico, em ambulatório da rede pública, em associação terapêutica com os entes familiares que lhe dão suporte (Laudo 03: Comentários e conclusões – grifo nosso).
Uma vez mais a psiquiatria brada a ausência de periculosidade em
Cláudio. Em decorrência, o Juiz da VEPMA emite, em 05/10/2007, sentença de
desinternação, autorizando a saída de Cláudio do HCT, mediante o cumprimento de
14 (catorze) condições, pelo prazo de um ano:
a) continuar tratamento a nível ambulatorial no Hospital de Custodia e Tratamento Psiquiátrico; b) comunicar o endereço a este Juízo e o diretor Manicômio Judiciário; c) não mudar de endereço sem a prévia comunicação a este Juízo e a diretora do Manicômio Judiciário; d) comparecer de 60 (sessenta) a 60 (sessenta) dias a este Juízo; e) apresentar-se ao Manicômio Judiciário aos primeiros sinais de doença; f) manter bom relacionamento com amigos, familiares e estranhos; g) respeitar as determinações das autoridades civis e militares; h) recolher-se à habitação até às 22:00 horas; i) não ingerir bebidas alcoólicas; j) não freqüentar bares, casa de jogos, bailes carnavalescos em clubes ou nas ruas; k) não portar armas; l) só mudar de Comarca(seja passar a residir em outra Comarca) com autorização deste Juízo de Execuções Penais; m) procurar este Juízo sempre que tiver alguma dúvida sobre qualquer questão que não possa ou não saiba resolver; n) submeter-se a tratamento ambulatorial pelo prazo de um ano, a conta da data da Desinternação (Sentença VEPMA).
Determinada a saída, o Psiquiatra cuida logo, em 10/10/2007, de realizar
o Exame de Sanidade Mental referente ao segundo processo. Através dele, pode-se
128
conhecer o motivo determinante do último internamento. Conta o Delegado que
[Cláudio] vem atormentando a vida dos moradores daquela localidade, praticando atentado violento ao pudor, ameaçando as crianças, muitas delas deixaram de ir a escola co medo de serem agredidas, ou até mesmo serem estupradas, em fim os moradores da comunidade estão apavorados (Laudo 04: Dados processuais).
Surge uma dúvida: qual foi, de fato, o delito cometido? Não parece ter
ocorrido atentado violento ao pudor, pois, nesse caso, haveria uma descrição mais
pormenorizada do fato, pela gravidade e existência de vítimas diretamente atingidas.
Assim, é provável que tenha havido incorreção por parte do delegado e, portanto,
que Cláudio tenha sido acusado, nesse segundo processo, por ato obsceno. Outra
hipótese é que o delito cometido tenha sido o de ameaça (às criancinhas...). De todo
modo, a dúvida persiste: Cláudio também “refere não ter entendimento claro sobre
as acusações sobre si” (Laudo 04: Versão do acusado aos peritos).
Na realização do Exame, Cláudio
[a]presenta bom estado geral, nutricional e de higiene, lúcido, calmo e receptivo, globalmente orientado no tempo e espaço, auto e alopsiquicamente, tem discurso coerente, culturalmente empobrecido, com forte sotaque regional. O humor é estável, a conduta algo pueril, como o afeto. Há déficit cognitivo moderado e global (Laudo 04: Exame psíquico – grifo nosso). [Cláudio] porta-se habitualmente de forma adequada, obedecendo às normas disciplinares e aos cuidados de saúde. Participa das atividades lúdicas, como os jogos de dominó e futebol, este menos frequentemente (Laudo 04: Evolução no HCT – grifo nosso).
Um novo atestado de inexistência de periculosidade já se entrevê. Mais
do que isso, o Psiquiatra, diante da resistência judicial, decide ser, simultaneamente,
didático e enfático: deixando um pouco de lado os termos técnicos, opta por uma
explicação menos hermética e mais detalhada da situação mental de Cláudio:
trata-se de um paciente cuja característica principal de personalidade [...] é a dificuldade que tinha à época do delito, de compreender, e seguir as normas e convenções. Em consequência de um déficit cognitivo leve de que é provavelmente portador desde o nascimento, agravado por severo traumatismo craniencefálico [...], nunca chegou a assimilar completamente a lei. Mesmo habitando desde sempre num ambiente culturalmente restrito, e até mesmo por isso, não consegue abstrair, seguindo os padrões internos e concretos de comportamento sem compreensão crítica ou ética, quase instintiva,
129
e, por isso, inimputavelmente. Teve desejo de pular a cerca, pulou a cerca. Achou que podia ser prazeroso e divertido tomar banho despido no tanque, foi lá e fez. Conceitos como invasão de propriedade ou atentado ao pudor nem sequer lhe passaram na cabeça. Não percebemos intenção de burlar normas sociais ou morais, mas um descuido pueril. [Cláudio] é, portanto, portador de retardo mental associado a transtorno mental de base orgânica secundário a lesão cerebral [...]. Pedimos a permissão das autoridades judiciais para sugerir que o paciente [...] seja tratado em Centro de Atenção Psicossocial que já existe em Ruy Barbosa [...], além de que se possa pensar em medidas cabíveis de auxílio previdenciário [...]. Desta forma, não seremos nós a desconhecer a legislação e as normas sociais a favor deste paciente, que é, afinal, a maior vítima de tudo (Laudo 04: Comentários e conclusões – grifos nossos).
Na data de 02/11/2007, realiza-se a desinternação, Cláudio recebe “alta
hospitalar”. Por quanto tempo, não se sabe: ainda há contra si um segundo processo
penal. A qualquer instante, pode o Juiz da Comarca de Ruy Barbosa proferir
sentença, considerando o manicômio judiciário o local adequado para conter a
periculosidade de Cláudio e, por conseguinte, determinando a reinternação.
Este segundo caso apresenta situação peculiar, pois o estigma de louco
foi atribuído pela comunidade, antes de qualquer intervenção penal, pela prática de
um delito. Argumenta o Promotor de Justiça que uma única pessoa procurou a
instituição para relatar que os moradores do povoado estavam atemorizados com as
condutas insanas de Cláudio, que costumava correr nu. O suposto despudor de
Cláudio transtorna a população, assusta as crianças, amedronta. O Promotor é
chamado a resolver a situação e, em resposta, maneja os dispositivos legais que
possibilitem a exclusão do sujeito, como se a única resposta estatal possível para a
resolução do conflito fosse o enclausuramento pela via penal. Cláudio é acusado de
um delito que quase passa despercebido no código penal: ato obsceno. É o primeiro
passo em direção a uma carreira de perigoso.
Em comum com o caso anterior, também aqui se verifica o envolvimento
com drogas (álcool e maconha) e a afirmação do distúrbio de ouvir vozes. E há,
apesar de bastante ampliado, semelhante atraso na elaboração do primeiro laudo:
Cláudio aguarda 123 (cento e vinte e três) dias a boa vontade do Perito, para
receber um diagnóstico que mais tarde se converteria em patologia esquizofrênica,
130
também essa, não especificada.
Nas perícias realizadas, encontra-se uma linguagem bastante técnica e
hermética (“desenvolvimento neuropsicomotor”, “apragmatismo”, “hetero-
agressividade”), além da já mencionada ausência de encadeamento lógico-
argumentativo entre os atributos do indivíduo e a conclusão patológica a que se
chega. Tampouco se explica a necessidade de certas informações, como o tipo de
parto. Não à toa, Austregésilo Carrano Bueno103 (2004) desabafa: “[e]sses
psiquiatras são mágicos ou paranormais. Olham para o paciente... e já sabem os
tipos de traumas, de lesões, de doenças, enfim, são mestres em diagnose a olho!”.
A fala do Psiquiatra denota ainda uma interação pejorativa e
desqualificante da alteridade: atribui-se ao periciando um “afeto inadequado” e uma
“limitação intelectual”, resultante de um “ambiente culturalmente restrito”. É a vida
inteligente das grandes cidades apresentando-se como única forma correta de viver.
Enquanto o primeiro laudo condena o “negativismo” e a “desorganização
do pensamento” do sujeito, exigindo outra forma de reação à internação
compulsória, no segundo, à exaltação da instituição (“eu cheguei aqui ruim, aluado,
pirado, doido, agora eu tou melhor, depois que tomei os remédios”), reage-se com o
reconhecimento de uma mudança: “calmo, pragmático, orientado globalmente. Não
apresenta alucinações e delírios. [...] Não exibe sinais de periculosidade”. A
docilidade do indivíduo é apontada como uma vitória institucional.
O poder judiciário, nesse caso, revela-se, antes de tudo, omisso. Após
mais de um ano da internação do indivíduo, o Juiz se recusava a emitir sentença e
foi necessária a intervenção da Corregedoria para determinar a alta hospitalar. Ainda
assim, como essa “saída” representou tão somente a transferência para a comarca
de origem, Cláudio, se não tivesse fugido, permaneceria preso na cadeia pública por
quase um ano e nove meses, período que levou desde a alta até a prolação de
sentença.
Essa sentença revela, justamente, uma segunda faceta da atuação
judicial: a conveniência. Desconsiderando o segundo laudo, solicitado por ele
próprio, o Juiz baseia-se unicamente no primeiro e manda internar, por pelo menos
103 Austregésilo foi vítima de internação involuntária num manicômio, depois que seu pai descobriu que ele fumava maconha e concluiu que era um viciado. No livro Canto dos Malditos (2004), narra sua trajetória por vários hospitais psiquiátricos sempre tentando escapar ao confinamento, história que inspirou o filme Bicho de sete cabeças (2006), de Laís Bodansky. Após abandonar
131
um ano, um sujeito de quem já nem mais se diz ser perigoso e que já está fora do
hospital, depois de passar um ano e cinco meses enclausurado, aguardando
julgamento de seu processo. Afirma que o comportamento de correr despido é
”agressivo” e atemoriza a comunidade. Em nome da tranquilidade comum,
suspendem-se as mínimas garantias do sujeito.
De outro lado, mais conflitiva se revela aqui a relação entre os poderes.
Se o Juiz resiste em atender aos laudos periciais, o Psiquiatra revida,
desobedecendo o prazo mínimo de internação: com menos de oito meses, o laudo
de cessação de periculosidade está pronto. No último laudo, temendo uma nova
internação desnecessária, o Perito se impõe frente ao Juiz: trata Cláudio como
vítima e reclama direitos sociais.
Na sentença de desinternação, observa-se a preocupação de manter uma
vigilância permanente do sujeito. Estabelecem-se os “catorze mandamentos” que
Cláudio terá de cumprir, sob pena de ver revogada sua alta hospitalar. Dentre os
preceitos a serem seguidos durante um ano, vários desvelam uma tentativa de
docilização completa do indivíduo: manter bom relacionamento com amigos,
familiares e estranhos; respeitar as determinações das autoridades civis e militares;
recolher-se à habitação até às 22:00 horas; não freqüentar bares, casa de jogos,
bailes carnavalescos em clubes ou nas ruas; procurar este Juízo sempre que tiver
alguma dúvida sobre qualquer questão que não possa ou não saiba resolver.
Por fim, contrasta com a complexidade revelada no caso, o pequeno
potencial lesivo do ato. A pena prevista para a “aterrorizante” conduta de ato
obsceno é a detenção de três meses a um ano, ou multa. Se Cláudio não fosse
patologizado, sequer teria sido preso; poderia ser advertido, ou no máximo, multado.
Ademais, ele negou, em todos os laudos, ter praticado esta conduta. A acusação do
delito de ato obsceno representa, nesse sentido, uma mera desculpa para excluir do
convívio um sujeito indesejado, pondo-se em ação o dispositivo de cristalização da
periculosidade. O rótulo de perigoso é, então, tatuado no sujeito, e nem mesmo um
“atestado psiquiátrico” que afirme não mais existir perigo é capaz de retirá-lo.
definitivamente as instituições psiquiátricas, tornou-se militante do Movimento da Luta Antimanicomial.
132
5.3.4 Distúrbios de conduta : o HCT como destino inevitável
Sérgio, brasileiro, solteiro, nasceu em 14/12/1982, na cidade de Ribeira
do Pombal – BA, onde morava e trabalhava como ajudante de pedreiro, até ser
preso, em 16/10/2003, pois, conforme conta o Juiz,
[...] praticou três crimes de roubo qualificado, pela utilização de arma de fogo, em continuidade delitiva, nesta cidade, nos dias 15.10.03, por volta das 00:40 horas, 27.09.03, por volta das 23:00 horas, e em 04.10.03, por voltadas 23:50 horas [...], bem como praticou o crime e porte e posse ilegal de arma de fogo (Sentença 01).
Na prisão, observaram os policiais “comportamentos do réu que faziam
presumir ser o mesmo portador de algum distúrbio mental” (Sentença 01). O Juiz
instaurou, então, conforme lhe dita a lei processual penal, o já conhecido Incidente
de Insanidade. Sérgio foi internado no HCT, em 10/11/2003, indo ao encontro dos
psiquiatras. Tal encontro lhe é, porém, postergado: apenas em 16/02/2004, Sérgio
tem a oportunidade de se tornar objeto de um Exame de Sanidade Mental e contar
sua história de vida.
[Minha mãe] já bebeu cachaça, ela se matou com a faca (Laudo 01: Antecedentes familiares). [E]u sempre fui normal, estudei até a 5ª série e trabalhava. Fui um menino normal, andei e falei logo, tive sarampo, catapora... [...] Às vezes bebo cerveja, desta vez eu tinha tomado uma cerveja, foi uma discussão no bar, só peguei a carteira, o blusão e 10 conto, eu não conhecia ele, eu estava com um 32 velho. Nunca fiz tratamento psiquiátrico, eu era trabalhador, neste dia deu um negócio na minha cabeça, me levaram para delegacia e me deram uma injeção envenenada, aqui faço tratamento, dizem que sou doido, eu pegava lixo na rua, eu não tinha o que comer, dormia bem à noite e nunca briguei com ninguém (Laudo 01: Antecedentes pessoais – grifos nossos).
Para o Psiquiatra, nesse momento, Sérgio apresenta-se
[l]úcido, orientado globalmente, pragmático. Não detectei alucinações e delírios. Eutímico. Não foram observados alterações do afeto e da vontade. Memórias e atenção, sem alteração. Inteligência dentro dos padrões de normalidade (Laudo 01: Exame psíquico – grifos nossos). [Sérgio] apresenta bom nível de inteligência. Nos últimos dois anos
133
vem apresentando distúrbios de conduta que se agrava com uso de álcool, ao ser internado neste hospital, apresentava quadro de psicose, confusão mental e apragmatismo (Laudo 01: Conclusões – grifos nossos) .
Conclui, assim, o Perito que Sérgio é portador de “transtorno psicótico
CID 10-29”, e que seu grau de periculosidade foi “compensado”, nos últimos dois
meses, estando o interno em condições de manter tratamento a nível ambulatorial
(Laudo 01: Conclusões – grifo nosso).
Logo a seguir, em 05/03/2004, a Portaria 01/2003104 é utilizada para
diminuir a hiperlotação do HCT: Sérgio é, então, transferido para o estabelecimento
prisional da comarca de origem. Algum tempo depois, em 29/06/2004, é proferida
sentença, reconhecendo, com base no laudo psiquiátrico, “a ausência de
culpabilidade do acusado, decorrente de sua inimputabilidade penal, o que o torna
isento de pena” (Sentença 01). No entanto, não pode ficar isento de satisfação o
desejo punitivo do Poder Judiciário. Assim, para o Juiz,
[...] inviável é a aplicação da medida de segurança sugeridas pelos senhores peritos no laudo pericial e requerida pela defesa, de tratamento ambulatorial, pois os fatos praticados pelo réu são graves, expuseram a risco a vida de suas vítimas, além de constar do processo [...] que o mesmo já foi presos várias outras vezes pela prática de crimes contra o patrimônio, sendo de conhecimento público que várias pessoas o temiam na localidade onde morava (Sentença 01).
Por conta disso, Sérgio é absolvido, embora lhe seja aplicada “a medida
de segurança [...] consistente em internação no Hospital de Custódia e Tratamento
em Salvador, pelo prazo mínimo de três anos” (Sentença 01). Ele bem que tenta
escapar a esse destino: foge do estabelecimento prisional em que estava detido.
Todavia, a marca de louco-criminoso já está tatuada em seu corpo e é, portanto, no
manicômio judiciário que deve permanecer sua alma. Uma vez capturado, Sérgio é
reinternado no HCT, em 15/03/2005.
Com a solicitação de novo Exame de Sanidade Mental, o qual se efetua
no dia 19/04/2005, descobre-se que a “captura” foi, na verdade, decorrente da
prática de um novo delito:
104 Ver nota nº 95.
134
[...] no dia 09/03/05, por volta das 18h30min [...], [Sérgio] foi preso em flagrante de delito porque portava um revólver [...], municiado com seis cartuchos intactos, além de dois gramas de substância entorpecente, cannabis sativa, conhecida popularmente como maconha (Sentença 02 – grifo original).
Durante a perícia, informa o Psiquiatra que Sérgio
não encontra-se em condições psíquicas pra um entrevista sobre sua historia de vida, portanto será copiado os relatos descritos no primeiro laudo que realizamos em 16/02/04 (Laudo 02: Anamnese). Não observei mal formações físicas ou sinais clínicos aparentes de sofrimento físico que o impeçam de deambular, entretanto, deambula com dificuldade, apoiado em outros internos, procura jogar-se pela frente, uma atitude de apragmatismo e negativismo. Não responde às nossas solicitações verbais, apesar de demonstrar bom nível de orientação temporo-espacial (Laudo 02: Exame Psíquico – grifo nosso).
Após avaliação do prontuário, entrevista e observação dos autos,
apresenta o Perito suas conclusões:
[Sérgio] apresenta historia de bom nível de inteligência, não apresenta sintomas de doença mental orgânica, relatos de distúrbios de conduta iniciados aos 19 anos de idade com uso de álcool e outras drogas ilícitas, periciado neste hospital há um ano apresentava episódio de psicose, o ser internado pela segunda vez neste hospital, novo episódio de psicose associado a conduta manipuladora e teatral. À época do evento descrito dos autos estava confuso com alteração do afeto, quadro que nos leva ao diagnóstico de psicose, não tendo capacidade de entendimento e autodeterminação por doença mental. Atualmente em surto, necessitando tratamento a nível hospitalar (Laudo 02: Comentários e conclusões – grifos nossos).
Acrescenta, ainda, sobre o grau de periculosidade de Sérgio que “[a]pós
quadro clínico compensado, deve-se manter tratamento psiquiátrico, sendo mínima
a periculosidade” e que a doença do acusado é a “[p]sicose inespecífica” (Laudo 02:
Resposta aos quesitos).
Passa-se mais de um ano e meio. A sentença judicial determinava o
prazo mínimo de três anos para o cumprimento da medida de segurança. Contudo, o
Psiquiatra não mais vê por que continuar com a internação. Desse modo, em
22/11/2006, realiza-se Exame para Verificação da Cessação de Periculosidade.
Com parecer favorável do Serviço Social, o Psiquiatra decide pela desinternação e
135
continuidade do tratamento em ambulatório, pois, segundo ele, Sérgio está
[...] evoluindo sem intercorrências, sem exibir sintomas de psicose, nem agressividade ou conduta violenta. Recebe visita de seu genitor. Usa regularmente a medicação prescrita, Clorpromazina, Carbamazepina e Diazepan. Apresenta-se calmo, abordável, coerente (Laudo 03: Evolução e exame psíquico).
Por conta deste laudo, o Juiz da VEPMA profere, em 30/01/2007,
Sentença de Desinternação, com os mesmos “catorze mandamentos” da
desinternação condicional, apontados no caso anterior. Expede-se a Guia de
Desinternação. Sérgio retorna à sua cidade, à sua família, à sua liberdade...
Por pouco tempo. Em 27/02/2007, quase dois anos após a expedição do
Laudo de Sanidade Mental e menos de um mês da concessão da liberdade,
sentencia o Juiz da Comarca de Ribeira do Pombal o segundo processo em que
Sérgio é acusado. E pela assustadora conduta de portar uma arma antiga e dois
gramas de maconha, Sérgio é novamente condenado, ou melhor, absolvido, para
logo em seguida ser-lhe aplicada medida de segurança de internação. Se não se
transcreve aqui a fala do Juiz nesta segunda sentença, há um motivo bem simples:
ela é, salvo pequenas modificações, idêntica à proferida em 29/06/2004: parágrafos
inteiros foram despudoradamente copiados. E, assim, em 10/05/2007, ele retorna ao
que parece ser seu destino inevitável: um leito no HCT-BA.
A história de Sérgio é uma história trágica. Ele menciona o suicídio de sua
mãe alcoólatra e relata que já foi catador de lixo, porque tinha fome. Nunca tinha
feito tratamento psiquiátrico e, doravante, o tratamento será a regra. Tem o que
parece ser um complicado relacionamento com o álcool. Por fim, foi enviado ao
HCT-BA pela prática de roubo e teve de esperar por 98 (noventa e oito) dias a
realização da primeira perícia.
Nesse momento, afirma o Psiquiatra que ele não apresenta delírios, nem
alucinações, mas tão somente distúrbios de conduta. A psiquiatria revela-se
novamente como um discurso da moralidade, pois resulta difícil compreender como
um desvio de comportamento (conduta impregnada de juízos sociais) pode ser
convertido em patologia mental. Tal feito é possível somente pelo uso de categorias
psiquiátricas vagas e vazias de significado, como as atribuídas ao periciando:
136
transtorno psicótico não especificado; psicose inespecífica.
Diante de tal diagnóstico, o Juiz se recusa a contrariar o Psiquiatra:
Sérgio é dado como louco. No entanto, discorda o Magistrado do Perito quanto à
possibilidade de que um louco possa ficar solto, recebendo tratamento ambulatorial.
É preciso interná-lo. Pode até não ser a resposta mais adequada para ele, mas é a
que trará paz à comunidade. Assim parece pensar o Juiz.
Por outro lado, se o Juiz não aceita a recomendação quanto à medida
mais adequada, o Psiquiatra não respeita prazos: nem o máximo de 45 (quarenta e
cinco) dias para realização da perícia; nem o mínimo de internação determinado
pelo juiz (três anos). Portanto, com metade desse prazo cumprido, elabora o Perito
um laudo, favorável à desinternação.
Ao ver o indivíduo retornar à cidade, não se conforma o Juiz. É como se
ele estivesse perdendo a disputa pela definição do destino correto para o louco-
criminoso. Pela prática de um novo delito, profere o Juiz sentença no segundo
processo movido contra Sérgio, em um período de menos de um mês, a contar da
desinternação. No entanto, talvez pela pressa, olvida o Juiz que se trata de outros
delitos (porte de arma e de entorpecentes), muito menos lesivos que o roubo;
esquece também que já se vão quase três anos entre o crime antigo e o atual. Nada
disso parece importante, vez que ele profere uma nova sentença praticamente
idêntica à primeira. Com isso, dá visibilidade aos invisíveis códigos ideológicos: de
falto, a sentença e o destino reservado a Sérgio já estavam prontos; aguardavam,
unicamente, que o delito fosse cometido.
Dentre as poucas modificações que a segunda sentença apresenta, pode-
se destacar um grifo, em negrito, utilizado pelo juiz para realçar o prazo “mínimo de
três anos” para cumprimento da medida de segurança aplicada. Seria um recado ao
Psiquiatra e ao Juiz da VEPMA?
E é tudo o que se tem sobre a trágica história de Sérgio. Num intervalo de
três anos, por crimes completamente distintos, ele é condenado pela mesma
sentença, ligeiramente modificada. Seu status de cidadão já é tão questionável que
ele não possui sequer o direito a uma nova fundamentação judicial.
137
5.3.5 A loucura da fome
José, brasileiro, solteiro, sem profissão, natural de Cachoeira – BA,
nasceu em 02/08/1984. Conta o Delegado de Polícia da Comarca de São Félix,
através de perguntas formuladas ao acusado, que, em 15/05/2004, recebeu
denúncia anônima de que José estaria armado e acompanhado de duas crianças
em sua residência. Mandou, então, dois policiais averiguarem a informação. Eles
dirigiram-se ao local e, lá chegando, encontraram somente José, o qual alegou que
teria brincado com as crianças, mas que elas já haviam ido embora.
[C]ontudo, por estar com fome, [José] “puxou” uma faca que [...] guardava no bolso da bermuda, e ameaçou os dois policiais, no intuito deste prendê-lo, pois, desta forma, [...] teria o que comer haja vista que havia três dias que [...] não comia; [...] como os policiais não reagiram, [José] resolveu investir a faca contra si mesmo, assim os policiais reagiram (Laudo 01: Informações obtidas dos autos).
Narra, ainda, o Delegado que José, nessa ocasião, confessou ser usuário
de cocaína, maconha e crack desde os onze anos de idade, com seis passagens por
centros psiquiátricos, como Sanatório Bahia e Juliano Moreira. Preso em flagrante,
logo foi instaurado o Incidente de Insanidade. Aos 20 anos, José foi pela primeira
vez internado no HCT, na data de 14/05/2004. “Ao ser internado não apresentava
sintomas de psicose, discurso estruturado, humor estável, história de uso de drogas”
(Laudo 01: Dados obtidos no prontuário do Hospital de Custódia).
Seus primeiros momentos na instituição não foram tranqüilos; verificam-
se no prontuário algumas situações de conflito: em 21/07/2004, “tentativa de suicídio
com uma gilete”; em 22/07/2004, “tentou agredir o Diretor”, e; em 06/08/2004, “nova
tentativa de suicídio; diz ser revoltado por causa da mãe”.
Em 13/12/2004, véspera de completar seis meses na instituição, José
ganha de presente a realização do Exame de Sanidade Mental. É a oportunidade de
ouvir sua história, em sua própria voz:
[Meu pai] eu não sei onde mora, eu não conheço meu pai. [...] [Minha mãe] já teve internada na Colônia, ela já ficou boa, é crente. Tenho, seis irmãos de outro pai, são três maiores e três menores. Meus irmãos são sadios, só negócio de fome (Laudo 01: Antecedentes
138
familiares – grifo nosso). [Q]uando pequeno apanhava muito, minha mãe tinha problema, ela me batia de cinto, me engarguelavae me dava murro, me dava bolo na mão, cheguei dar queixa dela, ela foi presa e levou ela para o hospício. [...] [E]u não tenho epilepsia, eu tenho nervoso das pancadas desde pequenos, sinto uma dor, um peso na cabeça. A juíza falou que iria vê se me aposenta. Comecei a usar drogas aos 10 anos, maconha, já usei pedra aos 10 anos, eu só fumo maconha, depois de maior, agora só fumo cigarro. Quando menor ficava no Palácio de Menor em Feira de Santana. Eu já tive duas vezes em Centro de Recuperação, eu já era maior, eu não conseguir largar de usar drogas. Uma vez fiquei no Sanatório Bahia, outra vez fiquei no Juliano Moreira. Quando eu saía eu tomava remédio, eu tenho uma casa e moro sozinho. [Às vezes, ouço vozes que] me mandam matar, eu não me mato. Eu já tomei veneno, há um ano. Na hora que estava morrendo dei gritos e o pessoal me levou para o Roberto Santos [...] (Laudo 01: Antecedentes pessoais). Quem me criou foi a rua, com 10 ano eu estava na rua dei queixa da minha mãe, ela foi presa, fiquei dormindo na rua, o juiz me mandou para o Fundac em Brotas, eu fugir retornei e ganhei a casa, a Fundac me deu uma casa, bicicleta, televisão com tudo dentro, eu quebrava ou fazia rolo, eu só queria comprar maconha e cachaça, ou Ropynol, cheirava lolo. Minha mãe está em casa, ela mora na Ladeira da Santa Bárbara, a casa dela tem assombração, meu avô morreu. Quando eu me aposentar vou tomar conta dela [...]. Eu transo com mulher, eu não transo com homem. eu não freqüento igreja, já freqüentei a Deus é Amor e vou freqüentar. (Laudo 01: História social e personalidade anterior – grifo nosso). Pedir para me deixar preso na cadeia até São João, a Juíza falou que lá não era meu lugar e me transferiu para cá (Laudo 01: Versão do acusado aos peritos).
Expõe o Psiquiatra que, durante a realização do Exame, José
[a]presenta-se com vestes adequadas, lúcido, orientado parcialmente no tempo, pragmático, pensamento lentificado. Algum déficit de abstração, não detectei alucinações e delírios. Memórias e atenção preservadas. Apresenta tatuagem no braço direito [que diz ser] “a morte com cara de anjo”, já perdi muitos irmãos passando fome, uns dez irmãos desnutridos (Laudo 01: Exame psíquico).
Conclui, a seguir, que
[n]ão foram observados sintomas de psicose. Durante o período em observação e tratamento neste hospital apresentou distúrbios de conduta, necessitando de uso de psicofármacos [...]. [A]s manifestações comportamentais registradas não são características de abstinência de drogas. Concluímos que à época do evento o periciando era portador de retardo mental, situação que o colocou suscetível à transgressão social. Sugerimos manutenção do tratamento psiquiátrico a nível ambulatorial já que se encontra
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compensado e as diretrizes racionais quanto ao tratamento dos transtornos mentais são de internações por curto período e encaminhamento à reinserção social. À época do fato não tinha a plena capacidade de entendimento e autodeterminação por retardo mental (Laudo 01: Comentários e conclusões – grifos nossos).
Cópia do laudo é enviada ao Juiz, mas não há notícia de sentença.
Sequer consta na Ficha do CRC, decisão judicial referente a este delito. É provável
que o processo fora arquivado, ou que a sentença nunca tenha sido proferida, ou
mesmo pode ter desaparecido entre os arquivos do HCT-BA...
Apenas em 05/08/2005, a situação de José se altera. Por conta da
atuação da Defensoria Pública da Comarca de Salvador, ajuizando Pedidos de
liberdade provisória junto ao Juiz da VEPMA e ingressando com Habeas corpus, no
Tribunal de Justiça do Estado, em 05/08/2005, é determinada sua alta hospitalar.
Sua liberdade, porém, como de regra, é interrompida. Em 14/12/2005,
José é reinternado pela prática de um novo crime: dano qualificado. Segundo conta
o Juiz,
[...] no dia 17 de novembro de 2005, no interior do Fórum Andrade Teixeira, neste, [José] buscou atendimento por parte da Juíza de Direito desta Comarca, a fim de pedir à mesma que o internasse, pois [...] era doente mental e estava com fome. Em determinado momento, sem qualquer motivo aparente, [José] desferiu um golpe contra o vidro de uma das janelas do cartório crime, destruindo-o completamente (Sentença 01 – grifo nosso).
Para José,
[b]otaram forçado que eu queria matar minha mãe, eu já tirei 1 ano e seis meses, fiquei solto pouco tempo, menos de seis meses, eu quebrei o vidro da sala de baixo do Fórum, quando fui conversar com a juíza, eu estava passando fome em casa (Laudo 02: Versão do acusado aos peritos – grifo nosso).
Descreve o Psiquiatra (após copiar toda a Anamnese do laudo anterior
sem nenhuma justificativa) que, na chegada ao HCT-BA, José “[...] não apresentava
sintomas de psicose, abordável, calmo (não veio informações sobre o delito, o
policial e o próprio paciente informaram, que este último, quebrou o vidro do fórum)”
Laudo 02: Dados obtidos no prontuário do Hospital de Custódia). Menciona, ainda, o
Perito que
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[e]m 15.12.05, [José] estava ansioso e dizia ouvir vozes imperativas que ordenavam me matar, se fez uso de medicação específicas manteve alterações de conduta, luta corporal, bandejada e idéias de suicídios. Em março de 2006, estava ansioso apresentando reações medicamentosa. Em uso de 30 mg de diazepan, 200 mg de Meleril e 400 mg de Tegretol diariamente (Laudo 02: Dados obtidos no prontuário do Hospital de Custódia – grifo nosso).
Na ocasião do Exame, José
[a]presenta-se com vestes adequadas, higienizado. Lúcido. Orientado globalmente. Pragmático. Pensamento coerente. Apresenta-se algo inquieto e irritável. Sorrir quando relato situações de conflitos que o envolveu neste hospital. Não relata alucinações e delírios. Déficit intelectivo ao exame clínico. Atenção e memórias preservadas (Laudo 02: Exame psíquico).
Com base em todas essas observações, expressa o Perito sua
conclusão.
Em 13 de maio de 2004, concluímos Exame de Sanidade mental neste hospital, com diagnóstico de retardo mental associado a distúrbio de conduta. O quadro descrito anteriormente é mantido sendo recomendado uso de Psicofarmacos e uma atenção sócio-familiar intensificada. A época do evento não tinha a plena capacidade de entendimento e de auto determino. Por retardo mental, CID 10-F70 (Laudo 02: Comentários e conclusões).
Logo em seguida, em 14/07/06, a alta hospitalar é determinada, com base
na Portaria 02/2003105 da VEPMA. Cuida-se, então, de providenciar a sentença,
antes que José cometa o desatino de quebrar mais vidros das janelas do Fórum. Em
01/09/2006, o Juiz profere o seu discurso:
[José] destruiu deliberadamente patrimônio público, qual seja, uma das janelas do Cartório dos Feitos Criminais, [...] chegando a ferir uma das mãos [...]. [C]onfessou a prática do delito, admitindo ter ficado nervoso, ao saber que a Juíza estava em audiência, desferindo, por essa razão, um muro no vidro [...]. Isto posto, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO FORMULADO NA
105 A Portaria 02/2003 da VEPMA tem o intuito de “determinar que logo após a conclusão do exame de sanidade mental do interno, deverá o mesmo ser imediatamente encaminhado ao Juízo de origem com o respectivo laudo”. No entanto, como se observou nos casos estudados, tal portaria não é constantemente utilizada.
141
DENÚNCIA, para condenar [José] pela prática do fato ilícito capitulado no art. 163, parágrafo único, inciso III, do CP. Agiu o réu com considerável intensidade de dolo, vez que desferiu com violência o murro no vidro de uma das janelas do Cartório, chegando a se ferir. Não possui antecedentes criminais, mas revela personalidade inclinada para a prática de pequenos crimes, inclusive contra a integridade corporal, tendo agredido fisicamente a Policial Militar Maria Rita [...]. Apresenta conduta social distanciada do convívio com a comunidade, haja vista que, desde pequeno, apresenta distúrbios mentais, possuindo histórico de diversas internações em Sanatórios e Centros de Recuperação, em razão do uso de drogas. As circunstâncias do delito demonstram que o acusado agiu com a intenção de criar oportunidade para ser internado. Fixo a pena base do delito em 01 (um) ano de detenção, diminuindo-a em três meses, diante da confissão espontânea do réu em Juízo, para estabelecer em 07 (sete) meses de detenção a pena privativa de liberdade [...]. Considerando que o acusado é semi-imputável, [...] substituo, observado o sistema vicariante adotado pelo Código Penal, a pena por medida de segurança, pelo prazo mínimo de três anos, tendo em vista a periculosidade do acusado [...]. A medida de segurança tem duração indeterminada e é executada até que seja verificada a cessação da periculosidade do agente (Sentença 01 – grifos nossos).
Assim é que, em 01/09/2006, José foi reinternado, pela terceira vez e por
tempo indeterminado, no HCT-BA. Sua estratégia para driblar a fome resultou num
sucesso formidável.
A história que se apresenta é, fundamentalmente, um retrato da
reprodução perversa e continuada de miséria e exclusão na estrutura social. José
não conhece o pai e, desde pequeno, é vítima da violência materna. Talvez tenha
encontrado muito cedo nas drogas um refúgio para ocultar a sofrida existência, vez
que, aos dez anos de idade, já fazia uso de maconha e crack. Quando não mais
suportava o cinto, os murros e “bolos” de sua mãe, José chamou o Poder Público
para ajudar em seu problema. No entanto, como o Estado só costuma intervir nos
conflitos das classes mais pobres com ainda maior violência e exclusão, sua mãe foi
presa e a “rua” torna-se para José o novo lar. Daí em diante, Palácio do Menor,
Centro de Recuperação, Sanatório Bahia e Hospital Juliano Moreira moldaram uma
vida deteriorada pela instituição e “afastada do convívio com a comunidade”.
Contudo, o que há de mais marcante em todo este trajeto, é a presença
de uma experiência que grande parte dos que vivenciam preferem não nominar: “a
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irmã mais nova da miséria e prima da morte” (FREITAS, 2003, p. 187), a fome. De
fato, a fome emerge como “uma manifestação para além das sensações do físico”
(ibidem, p. 123) na vida do sujeito: ela ataca seus irmãos sadios, ocasiona distúrbios
de conduta e o aprisiona, por duas vezes, nos muros do HCT-BA.
Num fascinante trabalho sobre os sentidos físicos e as significações da
fome, Maria do Carmo Freitas (2003) aponta que cada sujeito age sobre sua fome, a
partir das pré-compreensões que possui de si e de seu ser-no-mundo. Dentre as
parcas possibilidades de resistir a “Ela”, pode-se virar pedinte, “catar comida” no lixo,
utilizar papelão e argila como alimentos, ou mesmo prostituir-se, roubar, entrar para
o tráfico de drogas. Os códigos de lícito/ ilícito, moral/ imoral tornam-se desprovidos
de significado quando se luta por um mínimo: a sobrevivência do corpo físico. Desse
modo, é para agir sobre sua fome, pôr fim a ela, que José tenta ferir a dois policiais
e a si próprio, instituindo uma disputa em que não se sabe quem domina e quem é
dominado: se o Sujeito, o Psiquiatra, o Juiz ou “Ela”.
De todo modo, José é detido, como buscou, e preso pede para continuar.
Contudo a técnica judicial encontra aí um objeto de saber/ poder que precisa ser
compartilhado com a Psiquiatria. Seu agir é insano e, por isso, ele deve ser
encaminhado ao HCT.
Constata-se, então, problemas semelhantes aos observados nos casos
anteriores: o Psiquiatra leva 213 (duzentos e treze) dias para realizar a perícia!
Encontram-se novamente questionamentos referentes a religião e comportamento
sexual, condutas meramente morais, mencionando-se, ainda, a existência de
tatuagem no braço do periciando. E, não detectando sintomas de psicose, tampouco
alucinações e delírios, conclui o Perito que José possui distúrbios de conduta e o
diagnostica como portador de retardo mental. Ineditamente nesta pesquisa,
encontra-se um caso de indivíduo considerado semi-imputável.
A mencionada ausência de sentença impede a análise da atuação judicial
no primeiro delito. No entanto, ao julgar o crime de dano, ocorrido após a alta
hospitalar, o discurso do juiz se manifesta vividamente.
O segundo ato revela o descaso estatal para com o sujeito que deixa o
HCT-BA. Sem assistência do Estado e com pouca atenção familiar, corre-se o risco
de sua situação resultar piorada: lá dentro há, pelo menos, três refeições diárias. A
fome ressurge na história de José. Como desabafa Regina, uma das mulheres
entrevistadas por Freitas (2003, p. 130) “[e]la deixa a gente doida. É muita
143
preocupação. [...] O juízo da gente é um nada. Pra a pessoa perder é daqui pra ali.
[...] Pior é deixar ela vim pra cima da gente. Ou a gente ganha ela ou ela ganha a
gente”.
Tentando ganhar de sua fome, José procura o Juiz, quer ser reinternado.
E diante da recusa judicial em atendê-lo, sua loucura investe-se de uma lucidez
fascinante: ele quebra o vidro de uma janela do Fórum, é preso e, já que louco, outra
vez encaminhado ao HCT, exatamente como desejava.
No laudo elaborado sobre esse segundo delito, revela o Psiquiatra que a
cópia de trabalhos anteriores não é prática exclusiva do Poder Judiciário: ele repete,
na Anamnese, todo o conteúdo do laudo anterior. Conclui, novamente, pela
existência de retardo mental.
De posse de tal laudo, e após nova alta concedida ao sujeito, o Juiz, ao
invés de reconhecer o único instituto de direito penal que parece ser aplicável ao
caso, ou seja, a inexigibilidade de conduta diversa, acusa a “destruição do
patrimônio público”, efetuada com “considerável intensidade de dolo”; vislumbra na
trajetória de vida marcada pela miséria e enclausuramento institucional, uma
“personalidade inclinada para a prática de pequenos crimes”, resultante de uma
“conduta distanciada do convívio”. Torna, assim, manifesto, um código ideológico
determinista que se encontrava latente.
Além disso, ao final, o Juiz condena o acusado a uma pena de detenção,
pelo prazo de sete meses. Considerando, porém, sua semi-imputabilidade, converte
a pena em medida de segurança, a ser cumprida em prazo mínimo de três anos. A
conversão parece demonstrar que o rótulo de doente mental, ao menos nos
pequenos delitos, agrava em demasia a segregação imposta judicialmente ao sujeito
condenado.
Por outro lado, ao reconhecer que “as circunstâncias do delito
demonstram que o acusado agiu com a intenção de criar oportunidade para ser
internado”, o Juiz não se dá conta de que, após tantos conflitos com o mundo
institucional, José parece ter aprendido a lidar com ele. Não percebe, outrossim, que
se converteu num mero instrumento para que o sujeito, diante da inexistência de
outras opções sociais, vencesse, com êxito, a fome que o atacava.
144
5.3.6 Uma surpresa e “uma saída”
Zeca, brasileiro, casado, lavrador, nasceu em Senhor do Bonfim – BA, em
20/02/1952. Conta o Promotor de Justiça que
[...] na noite do dia 02 de julho [de 2003], por volta das 08h00min, no interior de sua residência, [Zeca] [...] utilizando-se de uma faca tipo peixeira, consciente e voluntariamente, assassinou sua sogra, [...] lesionando também sua esposa [...] e sua cunhada [...]. Segundo restou apurado, [Zeca] casado a 28 anos com [...], desde o mês de fevereiro ogano vinha nutrindo desconfianças a respeito da fidelidade de sua esposa, achando, ainda, que sua sogra e sua cunhada [...] estariam acobertando seus casos extraconjugais. No dia, hora e local acima especificados, ao presenciar a esposa segredar no ouvido de sua mãe, imaginou que ambas estivessem tramando algo, [Zeca], de súbito, se apossou de uma faca e investiu inesperadamente contra sua sogra que se encontrava na porta da cozinha, passando a desferir contra a mesma repetidos golpes, provocando-lhe ferimentos que foram a causa de sua morte, não lhe dando qualquer oportunidade de defesa. Em seguida, passou a esfaquear também a sua esposa que se encontrava ao fogão, atingindo-a nas costas e na lateral do corpo. Ato contínuo, [Zeca] seguiu para residência de sua cunhada que morava ali perto com o intuito de também matá-la. Ao chegar à porta da casa [...] e ter sido [...] atendido, [Zeca], valendo-se do ardil de instá-la a acudir sua irmã que “estava atacada com uns bichos ruim”, a atingiu de forma surpreendente no peito, e depois, varias vezes no abdômen, quando já estava caída. Ao sair da casa [...] [Zeca] se deparou novamente com a esposa que estava, desta feita, na porta da casa já em busca de socorro. Não hesitou em lhe atingir no peito mais uma vez. (Laudo 01: Razões da Perícia).
Em consequência, Zeca foi preso e, por algum motivo, instaurou-se o
Incidente de Insanidade Mental. Em 22/06/2004, o HCT o acolhe pela primeira vez.
Contudo, somente em 21/10/2004, às vésperas do quadrimestre, Zeca é submetido
a Exame de Sanidade Mental. Primeiramente, o Psiquiatra o apresenta.
Pais falecidos – o paciente não sabe informar a causa dos óbitos – Não sabe informar quantos irmãos tem. Refere, com certo autoritarismo, que muitos parentes, por parte de sua genitora são azuados... “e pior sou eu Dr., que sinto muita tontura na cabeça...” Também nada informa sobre a existência de laços de consangüinidade entre seus pais – “não entendo deste negócio”, retruca (Laudo 01: Antecedentes hereditários). Nunca sofreu traumatismo craniano com perda da consciência. Admite que, desde pequeno sente tonturas e agonia na cabeça... essas coisas se exacerbam quando toma banho. Nunca teve
145
convulsões. Usa por muito tempo o medicamento Diazepan para as tonturas e a zonzeira na cabeça. “O Dr. Disse uma vez que eu ia morrer doido”. Não tem vício de fumar e nem de beber, mas refere que quando fortuitamente faz uso de fumo e de bebida, fica tonto e tem a sensação de que vai endoidecer. Nunca foi internado em hospital para fazer tratamento da cabeça, - pra isto eu só tomo remédio” (Laudo 01: Antecedentes fisiopatológicos). É católico e não tem crenças primitivas (Laudo 01: Antecedentes pessoais – Personalidade anterior).
A seguir, o Perito abre espaço para que a fala do sujeito se revele:
No dia deste acontecimento eu fiquei louco – dizem que pratiquei um homicídio contra minha sogra... eu não vi nada...eles lá é quem sabem...a Juiz sabe de tudo... acho que também tentei me matar...me joguei em baixo de um carro... não morri... depois fui pro mato... lembro que me furei... depois a policia foi lá no mato e me prendeu...acho que levei preso lá cerca de uma ano e depois vim para aqui [...] (Laudo 01: História do delito).
Tece o Psiquiatra, então, suas observações:
[n]a maioria das entrevistas que tivemos com o paciente, ele se apresentou portando vestes próprias do hospital mas em visível desalinho e denotando no todo, pouco cuidado com sua aparência pessoal. Em muitas entrevistas esteve completamente desorientado e em outras vezes orientou-se parcialmente no tempo e espaço. Atenção dispersa e distraída. O pensamento não esta desagregado mas já mostra alguns sinais desta condição. Raciocínio deficitário, lento e muito pobre de conceitos. Imaginação inibida. Afetividade lábil. Consciência estreitada. Memória de fixação e evocação prejudicadas. Personalidade eivada de primitivismo (Laudo 01: Exame psíquico – grifos nossos).
A conclusão é de que
[...] estamos diante de um paciente portador de uma deficiência mental moderada. As manifestações desta condição se exacerbaram porque [Zeca] é alcoolista inveterado e por esta razão, fez, por ocasião do delito, um quadro de psicose exotóxica, não tendo ele pois, na ocasião do mesmo, nenhuma capacidade de entendimento e autodeterminação (Laudo 01: Conclusão).
Após confecção do laudo, cópia dele foi remetida ao Juiz da Comarca de
Senhor do Bonfim e Zeca permaneceu aguardando uma definição judicial sobre a
sua situação. Permaneceu nesse “limbo” por um bom tempo. Somente em
146
23/09/2005, por conta do atraso no provimento jurisdicional, sua alta é determinada,
com base na Portaria 01/2003 da VEPMA: Zeca é transferido para a cadeia pública
de Senhor do Bonfim.
Passou-se mais de um ano. Zeca parecia esquecido pela autoridade
judicial, que só veio a emitir sentença na data de 07/06/2007. Pondera nesse
instante o Juiz:
[e]m que pese a prova constante dos autos de relação à prática do tipo penal a que foi denunciado, [Zeca] não pode ser condenado, visto que o Laudo apresentado pelos peritos do Manicômio Judiciário, que o examinaram, concluiu por sua irresponsabilidade [...] Psicose exotoxica em débil mental moderado, era a doença dele... [...]. Nas condições em que [Zeca] delinqüi deve por tanto, ser ABSOLVIDO, por absolutamente inimputável, com a obrigatória imposição, de MEDIDA DE SEGURANÇA. Desta forma [...], DECLARO o acusado [Zeca] ABSOLUTAMENTE INIMPUTÁVEL e JULGO IMPROCEDENTE a ação penal que lhe é movida, ABSOLVENDO-O [...], impondo-lhe, consequentemente, [...] a MEDIDA DE SEGURANÇA, consistente em pelo prazo de CINCO anos, no mínimo, em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (Sentença 01).
Proferida a sentença, Zeca retorna ao HCT, em 10/08/2007.
Desconsiderando o prazo fixado pelo Juiz, o Psiquiatra realiza, logo em 03/09/2007,
o Exame de Verificação da Cessação de Periculosidade. E qual não é a surpresa
que tal Exame apresenta! Não parece que o Perito esteja se referindo ao mesmo
sujeito que foi por ele examinado há menos de três anos:
[Zeca] comparece a entrevista [...] em bom estado de higiene. Lúcido, calmo, globalmente orientado, eutímico. Apresenta discurso conexo sem alterações de forma ou conteúdo compatível com o seu nível sócio cultutal. O humor é estável. Afeto preservado (Laudo 02: Exame psíquico). [Zeca] se mostra adequadamente adaptado as normas da instituição, permanece a maior parte do tempo deitado o leito ou a perambular pela área livre do hospital. Ao ser questionado, disse que não participa das atividades laborativas, educativas ou sócio culturais por ter visão curta. Conforme relato de funcionários da área de Segurança, tem bom comportamento é pacato e abordável (Laudo 02: Evolução na enfermaria do Hospital de Custódia e Tratamento).
Além disso, ao lhe ser dada a palavra, Zeca apresenta uma nova versão,
afirmando que, na época do delito, estava sendo traído pela esposa e
147
frequentemente insultado pelo amante: “[e]ra ele que me insultava, e eu terminei
sendo denunciado, minha esposa me bateu na cara, minha sogra entrou pelo meio e
terminou acontecendo tudo” (Laudo 02: Comentários e conclusões).
Diante do “novo” Zeca, nova conclusão se obtém:
[Zeca] é um paciente portador de déficit cognitivo leve associado a baixo nível cultural, o que certamente gera maior dificuldade no controle de atos instintivos. [...] Se somarmos a dificuldade de assimilação da lei ao baixo limiar de frustração e tendência a impulsividade experimentados pelo paciente portador de retardo mental, além da vivência para ele concreta de estar sendo traído, tenderemos ao conjunto de fatores que culminou na destemperança de momento e na realização do delito. [Zeca] não apresenta indícios de periculosidade e se mostra apto a retornar ao convívio sócio-familiar. Precisa dar continuidade a tratamento psiquiátrico na rede de saúde pública (ambulatório ou CAPS- Centro de Atenção Psicossocial) (Laudo 02: Comentários e conclusões).
Assim, em 27/09/2007, o Juiz da VEPMA emite Sentença, determinando a
desinternação de Zeca. Uma saída é o primeiro passo de sua nova caminhada.
Este caso apresentou o delito mais grave dentre os cometidos nas
histórias estudadas e também o que sobressai nos números do HCT-BA: o
homicídio. Contraditoriamente, em proporção à resposta penal legalmente prevista,
resultou na atuação mais branda, ou menos danosa, do dispositivo de controle da
loucura executado pela atuação conjunta entre poder judiciário e saber psiquiátrico.
Inicialmente, parece ter havido resistência do Juiz ou retardo processual
em se instaurar o Incidente de Insanidade, visto que, somente após cerca de um ano
na prisão, Zeca foi encaminhado ao HCT-BA. Ao chegar, aguardou durante 121
(cento e vinte e um) dias a realização da perícia.
Da atuação psiquiátrica, extraem-se diversos termos pejorativos,
utilizados para referir-se ao periciando: “Raciocínio deficitário, lento e muito pobre de
conceitos. Imaginação inibida. [...] Consciência estreitada. [...] Personalidade eivada
de primitivismo”. Resta difícil afirmar onde termina a avaliação de sanidade e se
inicia um exame de inteligência, inventividade, modernismo. O Perito utiliza, ainda,
uma linguagem técnica, por vezes incompreensível para quem está sendo avaliado,
como no uso do termo “consangüinidade” (“não entendo deste negócio”).
148
Por fim, conclui pela existência de “psicose exotóxica”, agravada pelo uso
de bebida alcoólica, sem haver referência no laudo a que o sujeito tivesse problemas
de alcoolismo. Afirma que o sujeito é “alcoolista inveterado”, embora a única menção
ao álcool seja a seguinte: “Não tem vício de fumar e nem de beber, mas refere que
quando fortuitamente faz uso de fumo e de bebida, fica tonto e tem a sensação de
que vai endoidecer”. Permanece obscuro o caminho pelo qual o Psiquiatra chega a
essa conclusão.
Na sentença, depois de muito atraso, o Juiz acolhe, sem
questionamentos, o laudo do Perito. Absolve o indivíduo e lhe aplica medida de
segurança. Extrapola, porém, em sua atuação e determina um prazo mínimo de
cinco anos, acima do máximo previsto em lei (três anos).
Todavia, para grande surpresa, o cumprimento da medida dura menos de
dois meses. Espantosamente, logo após o retorno de Zeca ao HCT-BA, realiza-se
uma perícia que em nada se parece com a anterior. Embora atribua ao sujeito o
rótulo de “portador de déficit cognitivo leve associado a baixo nível cultural”, o Perito
parece enxergar apenas bons atributos: “Lúcido, calmo, globalmente orientado,
eutímico. Apresenta discurso conexo sem alterações de forma ou conteúdo
compatível com o seu nível sócio cultural. O humor é estável. Afeto preservado”.
Como Zeca “se mostra adequadamente adaptado às normas da instituição”, sua
docilidade ociosa é premiada: o Psiquiatra não reconhece “indícios de
periculosidade”. Com a Sentença de Desinternação, Zeca, 48 (quarenta e oito) dias
após a segunda chegada, consegue obter sua saída.
É apenas um caso, mas essa saída suscita um confronto direto com a
“saída” proposta por Virgílio de Mattos (2006) para os problemas da medida de
segurança. Na sugestão de um retorno ao puro retribucionismo da Escola Clássica,
Mattos defende que, diante dos absurdos jurídicos, das violações aos direitos
humanos e da inconstitucional possibilidade de “prisão perpétua” no HCT, seja a
medida de segurança abolida do ordenamento jurídico. Explica que só assim se
poderia buscar um reconhecimento integral do direito à diferença:
[a]o encaminharmos a extinção das medidas de segurança e dos manicômios judiciários, propomos uma responsabilização que possa levar o portador de sofrimento ou transtorno mental que comete crime ao julgamento de seus atos, significando que deverão ser-lhe garantidos todos os direitos, previstos nas normas penais e processuais penais, até então sonegados.
149
[...] Deve ser assegurado o direito à autonomia e responsabilidade do imputado, sendo inaceitável a afirmação de que um transtorno mental, mesmo grave, faça com que o imputado não possa responder pelos próprios atos [...]. Todos os cidadãos devem ser considerados imputáveis, para fins de julgamento penal, com todas as garantias a ele atinentes (MATTOS, 2006, p. 182-185).
Embora se reconheça que a medida de segurança implica em verdadeira
aberração jurídica e social, originada sob o mito positivista da periculosidade, as
condições de cumprimento da medida (observadas durante a pesquisa empírica) em
relação à pena, a estrutura do HCT-BA em comparação com os presídios (inclusive
no tocante à lotação do estabelecimento) e a análise deste último caso não
permitem que se concorde assim tão facilmente com a proposta neoclássica de pura
e simples extinção da medida de segurança, em troca da completa
responsabilização penal dos sujeitos. Ainda que seja necessário e urgente atribuir
todas as garantias e direitos processuais ao sujeito rotulado de louco-criminoso, não
se pode crer na lógica do “pior do que está não vai ficar”, pois corre-se, com isso, o
risco de aumentar a quantidade de filtrados, o âmbito de atuação e, portanto, a
pseudo-legitimidade da violência do sistema penal sobre as populações fragilizadas.
A pura transferência do louco-criminoso do HCT para um presídio comum
pode representar uma punitividade objetiva ainda maior sobre o indivíduo. Nesse
sentido, a medida de segurança pode (e precisa) ser abolida, mas sem olvidar
simultânea necessidade de abolição do sistema penal e da cultura punitiva, em prol
de novas formas de resolução dos conflitos sociais.
5.4 CARACTERÍSTICAS E RESULTADOS DE UMA RELAÇÃO
SIMBIÓTICA ENTRE OS PODERES
Após as análises individualizadas dos casos selecionados, é possível
tentar estabelecer hipóteses mais gerais do funcionamento das práticas psiquiátrica
e judiciária no espaço da medida de segurança, bem como da relação que
estabelecem entre si. Deve-se ressaltar, porém, que, diante das limitações do
150
presente trabalho monográfico, a análise a partir daqui elaborada não é exaustiva.
Busca-se, assim, formular comentários gerais sobre os principais pontos em comum
nas histórias observadas e, por certo, ficarão de fora diversos elementos
observados, que certamente chamaram a atenção do leitor.
A análise da atuação psiquiátrica pode ser iniciada pelo problema
estrutural da falta de psiquiatras ou do descaso dos existentes (somente uma
pesquisa mais aprofundada poderia fornecer uma resposta sólida), que resulta
diretamente num gritante atraso na elaboração dos laudos. Se a lei penal já é por
demais benevolente, concedendo 45 (quarenta e cinco) dias para a realização da
perícia, o retardo dos psiquiatras levou a que, em todos os cinco casos estudados,
esse prazo fosse descumprido. Verificou-se uma média de 126,4 dias para que o
laudo de avaliação da sanidade fosse emitido. É difícil imaginar como qualquer
sujeito submetido por tanto tempo à rígida rotina de uma instituição total poderia ser
considerado desprovido de qualquer patologia mental quando da elaboração do
laudo.
Outro ponto de destaque reside na verificação, em todos os casos
observados, de um completo desleixo com o caráter argumentativo do laudo.
Utilizando linguagem puramente técnica, o Psiquiatra não se preocupa em explicar
como opera a fórmula que o faz concluir pela existência de uma patologia mental:
limita-se a descrever o que observa no sujeito (utilizando, quase sempre, um tom
pejorativo) e, como num passe de mágica, apresenta qual o distúrbio encontrado.
Grande parte das vezes, apontam-se anomalias morais e não mentais,
bem como se expõem conceitos extremamente vagos (distúrbios de conduta,
psicose inespecífica e patologia esquizofrênica não especificada). Com isso, nas
tentativas de falar uma verdade sobre o sujeito examinado, despontam, sobretudo,
vagueza e abstração como principal problema das categorias psiquiátricas.
É interessante utilizar o pensamento de Foucault (1984) para explicar
esse fenômeno, vez que, para este autor, a Psiquiatria enfrenta inúmeras
dificuldades para conceituar a anormalidade de uma conduta. A obsessão, por
exemplo, segundo Delmas (apud FOUCAULT, 1984, p. 10 – grifos nossos), consiste
no “aparecimento num estado mental habitual de indecisão, dúvida e inquietação, e
sobre a forma de acessos paroxísticos intermitentes de obsessões-impulsões
diversas”. Tal conceito, como se pode observar, carrega uma forte carga de
tecnicismo hermético, além de grande margem de subjetivismo clínico, uma vez que
151
tais sensações (indecisão, dúvida, inquietação) são apresentáveis por qualquer
indivíduo, frente às mais variadas situações.
Podem-se esboçar, então, três conseqüências significativas: 1) no campo
psiquiátrico, torna-se singularmente difícil distinguir entre o normal e o patológico: os
conceitos de patologias mentais parecem, muitas vezes, definir tanto as
personalidades normais quanto as mórbidas (FOUCAULT, 1984, p. 18-19); 2) a
distinção entre normal e patológico refere-se muito mais a alterações qualitativas
que quantitativas (CANGUILHEM, 1995); 3) há um acúmulo assustador de poder na
prática psiquiátrica, sendo o médico o principal responsável por determinar
empiricamente se os níveis quantitativos da anomalia estão elevados o suficiente
para justificar uma intervenção. Como no conto de Machado de Assis (1990), corre-
se o risco de que inúmeros indivíduos sejam patologizados pelos alienistas, até que
se perceba a impossibilidade concreta de tal categorização.
Efetuando uma analogia, não é absurdo afirmar que, na micro-esfera das
relações de interação e subjetividade desenvolvidas entre internos e peritos no
espaço do HCT-BA, o outrora superpoder real, da época do Antigo Regime,
ressurge por meio de um superpoder psiquiátrico de definição patológica de
comportamentos e pessoas.
Ainda assim, há de se reconhecer que o saber psiquiátrico atuante no
HCT-BA, ao menos, tem consciência das trágicas condições de hiperlotação que a
instituição vivenciou até o começo desta década. Logo, admite que ali não é o
melhor lugar para tratamento daqueles sujeitos, ou, no mínimo, de alguns. Com isso,
parece freqüente o uso de recomendações ao Juiz para que aplique medida de
tratamento ambulatorial.
No que tange ao poder judiciário, observa-se uma atuação
demasiadamente punitiva para com o acusado considerado doente mental. A
impressão que se extrai, da leitura das sentenças, é que o Juiz, de fato, almeja punir
o sujeito, entretanto, sabe que não se lhe reconhece socialmente poder necessário
para isso. Ele está vinculado à lei, que lhe determina a aplicação obrigatória de
medida de segurança, nos casos em que há laudo atestando a insanidade. Todavia,
quando lhe é permitida uma pequena margem de arbítrio na decisão - como decidir
entre a medida de internação e a de tratamento ambulatorial, o prazo mínimo de
cumprimento e em qual laudo basear seu julgamento – a maioria dos casos apontou
152
que a opção escolhida é uma das mais excludentes e estigmatizadoras106. Revela-
se, então, nos casos estudados, um código ideológico punitivo a conduzir a atuação
judicial.
Há, porém que se fazer uma ressalva. Essas conclusões só podem ser
feitas quanto à prática do Juiz que instrui o processo, em uma comarca do interior. O
Juiz da VEPMA, da Comarca de Salvador-BA, ao que se pôde constatar, tem uma
atenção maior para com a instituição a seus cuidados. É provável que esteja a par
das discussões travadas a respeito da saúde mental ou que tenha um bom contato
com a diligente Defensoria Pública do Estado, pois não se encontrou um caso em
que ele tenha contestado o laudo favorável à desinternação, ainda quando
elaborado em data muito anterior à prevista para o fim do prazo mínimo de
cumprimento da medida de segurança.
No âmbito da relação entre o saber psiquiátrico e o poder judiciário,
revela-se uma conflituosa interação de acordos e disputas. Parece haver uma
disputa para definir quem tem o poder de falar sobre o sujeito louco-criminoso (já
que sua voz por essência não pode ser escutada, deve ser, no máximo, objeto de
um discurso indireto) e definir seu destino. O Juiz manda para o HCT; o Psiquiatra
recomenda a desinternação no laudo; o Juiz desconsidera a recomendação; o
Psiquiatra elabora o laudo de cessação da periculosidade antes da dada
determinada. Institui-se um jogo de práxis discursiva, em que o único perdedor é o
sujeito rotulado. É sobre ele que parece haver um tênue acordo: sobre a
necessidade inexorável de controla-lo.
Pode-se falar, portanto, de uma relação simbiótica entre os poderes-
saberes jurídico e psiquiátrico, já que entre eles existe uma dependência mútua: na
impossibilidade de um derrotar incontornavelmente o outro, necessitam-se, para
manter o controle dos desviantes residuais que se mostrarem perigosos.
A medida de segurança é o mecanismo que efetua a realização
conjugada de tal controle. De um lado, ela serve ao poder judiciário para afastar da
106 Das seis sentenças analisadas, havia em cinco a recomendação para o tratamento ambulatorial; nenhum foi acatado, com base em motivos diversos: previsão legal de medida de segurança para os casos de internação; conduta agressiva e personalidade criminal do acusado; hospital de custódia como local mais indicado para tratar o sujeito. Quanto ao tempo previsto para cumprimento mínimo, três estipulam 3 anos; uma prevê 2 anos; outra determina 1 ano; e uma última excede o dispositivo legal: 5 anos. Das opções apresentadas, 4 resultam em escolhas pelo maior prazo possível. Por fim, nos casos em que houve mais de um laudo formulado antes da sentença, o Juiz preferiu escolher o laudo mais antigo para basear a sua decisão, ainda que aquele estivesse defasado e não apresentasse as supostas melhoras do tratamento no indivíduo.
153
prisão, sem contudo deixar livre, uma classe particular de indivíduos que certamente
se tornaria indesejável até para os demais prisioneiros – lembre-se que, no ocaso da
grande internação, os próprios internos construíram uma cisão entre os normais e os
insanos, reclamando uma nova exclusão destes últimos (FOUCAULT, 1997, p. 396).
De outro, no campo psiquiátrico, em tempos de reforma e extinção gradual de
manicômios, permite manter a vigilância sobre os loucos não docilizados (que já não
podem mais ser contidos por eletrochoques e camisas-de-força), por meio da
criminalização e jurisdicização desses indivíduos (LABERGE e outros, 1995, p. 01-
06).
Fruto de uma realidade puramente definitorial (a criminalidade patológica),
a medida de segurança revela-se, então, funcional para o sistema judiciário e
psiquiátrico e, nesse sentido, para um amplo sistema de controle social formal. Por
isso, apesar de todas as contradições, abusos, incongruências e ilegalidades que os
casos estudados apontaram, ela se sustenta. Sob o mito de contenção e tratamento
da periculosidade, institui-se, como regra, um estado de exceção107 (AGAMBEN,
2002) no interior do Estado Democrático de Direito brasileiro. No subsolo dos
festejados direitos e garantias constitucionais, encontra-se uma área na qual,
embora a lei, enquanto tal, continue em vigor, sua aplicação é suspensa.
O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação [...]. Desse modo, a união impossível entre norma e realidade [...] é operada sob a forma da exceção [...]. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real (AGAMBEN, 2002, p. 63).
Em decorrência, suspendem-se do indivíduo rotulado de perigoso os
direitos mais essenciais que se atribuem aos demais pertencentes da comunidade.
107 O conceito de estado de exceção, aqui utilizado, foi livremente tomado dos trabalhos de Giorgio Agamben (2002; 2007). Embora Agamben (2002, p. 27) aponte o campo de concentração como o espaço por excelência em que o estado de exceção se torna visível, recusando atribuir a mesma qualidade aos estabelecimentos prisionais e manicomiais (que seriam “simples espaços de reclusão”), o conceito pode ser emprestado e, assim, empregado para designar essa esfera normativa que envolve a medida de segurança. O manicômio judiciário, guardadas as inúmeras diferenças, talvez esteja mais próximo do campo de concentração que a prisão ou o manicômio comum, por não ser um simples espaço normatizado de reclusão, mas antes local privilegiado de reprodução de uma exclusão extralegal.
154
No estado de exceção, perde-se o status de cidadão; a nova categoria política
atribuída ao sujeito assemelha-se a uma figura do direito romano arcaico: o Homo
sacer. Segundo Festo (apud AGAMBEN, 2002, p. 196), “Homem sacro é [...] aquele
que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não
será condenado por homicídio”. Portanto, apesar de um ser humano vivo, o Homo
sacer não é parte da comunidade política.
Numa releitura desse conceito, o filósofo esloveno Slavoj Zizek (2003, p.
111-112) propõe que
[...] o Homo sacer de hoje é o objeto privilegiado da biopolítica humanitária: o que é privado da humanidade completa por ser sustentado com desprezo. [...] Portanto, não basta enumerar os exemplos atuais do Homo sacer: os sans papiers na França, os habitantes das favelas no Brasil e a população dos guetos afro-americanos nos EUA, etc. É absolutamente crítico completar essa lista com o lado humanitário: talvez os que são vistos como recipientes da ajuda humanitária sejam as figuras modernas do Homo sacer.
Assim, o Homo sacer contemporâneo tanto faz parte do grupo de
“odiados” do sistema, como daqueles a quem, paradoxalmente, a caridade
humanitarista oferece a sua mísera piedade. Nestas duas vertentes, odiados por seu
perigo, e, simultaneamente, à mercê da caridade de juízes e psiquiatras, encontram-
se os internos do HCT, sujeitos em cumprimento da medida de segurança, rotulados
de loucos-criminosos.
Em resumo, a relação entre poder judiciário e prática psiquiátrica, no
espaço normativo da medida de segurança e físico do hospital de custódia e
tratamento, nos quais se manifesta um estado de exceção, converte, com base em
um diagnóstico de periculosidade legalmente ratificado (processos de patologização
e criminalização), sujeitos de direitos em Homo sacer. Tornam-se tais indivíduos,
destarte, meros objetos de uma “biopolítica humanitária” (ZIZEK 2003, p. 112),
passíveis de uma caridade odiosa e despolitizante: “a sua inteira existência é
reduzida a uma vida nua despojada de todo direito” (AGAMBEN, 2002, p. 189).
155
7 PARA NÃO CONCLUIR: AS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não nos espantemos que se tenha desde o século XVIII descoberto uma espécie de filiação entre a loucura e todos os “crimes do amor”, que a loucura tenha-se tornado, a partir do século XIX, a herdeira dos crimes que encontram, nela, ao mesmo tempo sua razão de serem, e de não serem crimes; que a loucura tenha descoberto no século XX, em seu próprio centro, um núcleo primitivo de culpa e regressão. Tudo isto não é a descoberta progressiva daquilo que é a loucura na sua verdade de natureza; mas somente a sedimentação do que a história do Ocidente fez dela em 300 anos (FOUCAULT, 1984, p. 80).
Como revela Foucault, o desatino como patologia criminosa não
representa a verdade e essência do fenômeno da loucura, como o saber científico
costuma propagar; antes disso, é o resultado de uma apropriação que, a partir da
Grande Internação, retira da loucura sua liberdade, seu fascínio, sua voz, e a
converte em uma categoria médica que não se pode ouvir e cuja resposta social é o
enclausuramento nas instituições manicomiais. O louco realiza um percurso que o
transforma de diferente e original, em doente e anormal.
Anormalidade também é a marca que se passa a atribuir, a partir da
Criminologia Positiva, ao indivíduo delinqüente. Eliminando o livre-arbítrio proposto
pela Escola Clássica, o saber criminológico surge calcado na idéia de um
determinismo bio-psicossocial do infrator como a causa precípua para a prática de
crimes. Formula-se a tese do criminoso nato, ser atávico, regressivo e anormal, e a
prisão transforma-se no espaço de controle e produção de um saber sobre esse
indivíduo.
Representantes autênticos de uma relação de “alteridade zero”, louco e
criminoso vão, aos poucos, se encontrando: tornam-se rótulos indistintamente
156
atribuídos a certos sujeitos definidos como perigosos. A partir da formulação
científica dos conceitos de monomania homicida, degeneração e periculosidade,
estabelece-se uma fusão entre crime e loucura. Com isso, desenvolve-se a medida
de segurança, contenção ilimitada, fusão de pena e tratamento, forma de controle
social dos monstros humanos, delinquentes perigosos e irrecuperáveis, dentre os
quais, os loucos-criminosos.
No Brasil, os mecanismos de controle da loucura perigosa surgem, mais
notadamente, a partir da modernização, e medicalização da sociedade brasileira,
momento em que são criados os primeiros hospícios do país. Mais tarde, após
debates e disputas entre juízes e psiquiatras, clama-se pela construção de um local
destinado especificamente para os alienados criminosos, seguindo a tendência
percebida na Europa. Erige-se, então, no início do século XX, o primeiro Manicômio
Judiciário brasileiro.
Contudo, somente no Código Penal de 1940, atendendo às reivindicações
da ciência criminológica que começava a se desenvolver no país, institui-se a
medida de segurança no ordenamento brasileiro, revelando-se uma defasagem da
legislação jurídico-penal em relação à regulação psiquiátrica. Tanto em sua
formulação original, quanto nos dispositivos modificados pela Reforma de 1984, a
medida de segurança constitui uma coerção penal eivada de problemas, técnicos,
jurídicos e sociais, dentre os quais se destaca a possibilidade de internação
perpétua. O procedimento criado para regulá-la aponta vícios ainda maiores, como a
elasticidade dos prazos para realização das perícias e os diferentes trajetos
previstos conforme a alienação do sujeito seja anterior ou posterior ao delito. Por
fim, a Lei nº 10.216/2001 apresenta-se como a mais recente inovação acerca da
questão psiquiátrica brasileira, embora esqueça de incluir expressamente o louco-
criminoso no âmbito de sua aplicação.
De outro lado, além dos problemas internos aos campos jurídicos e
psiquiátricos, uma problematização conceitual demonstra a fragilidade científica da
medida de segurança. A Criminologia da Reação Social, ao estudar o processo de
formulação das leis e a interação entre as agências de controle e os sujeitos
“fisgados” pelo sistema penal, mostra que o crime não é uma realidade ontológica,
mas uma construção social fruto de processos definitoriais. Semelhantemente, a
Antipsiquiatria desconstrói a noção de doença mental, revelando o caráter rotulador
e estigmatizante da atuação psiquiátrica sobre os sujeitos que apresentam
157
comportamentos residualmente desviantes. Ora, se o crime e a doença mental não
existem previamente à sua definição penal/ psiquiátrica, o louco-criminoso, com toda
a sua suposta periculosidade, é uma construção social destinada a excluir/ rotular
determinados indivíduos socialmente indesejáveis. A medida de segurança é o
dispositivo penal/ psiquiátrico que torna isso possível.
Na tentativa de conhecer esses sujeitos duplamente rotulados e
determinar como se processa a interação entre juízes e psiquiatras na constituição
do “duplo estigma”, foi de grande relevância a pesquisa empírica realizada no HCT-
BA. Utilizando os discursos de juízes e psiquiatras, estruturaram-se narrativas sobre
indivíduos aos quais se aplicou a medida de segurança.
O que se pode entrever, da análise dessas histórias, é a incapacidade
revelada pelos psiquiatras de fundamentarem suas definições quanto à suposta
doença mental atribuída ao sujeito, ocultando a deficiência argumentativa dos laudos
por meio de termos técnicos e internos ao saber alienista. Ademais, a
inespecificidade de certas categorias psiquiátricas permite grande margem de
subjetivismo por parte do médico, o qual utiliza características como “baixo nível
cultural”, “raciocínio deficitário”, “imaginação inibida” e “distúrbios de conduta”, para
efetuar a patologização do sujeito. Costuma-se dizer que “de perto, ninguém é
normal”. Certamente, a aproximação psiquiátrica, numa interação desigual entre os
sujeitos, revela anormalidades que, em outro contexto, poderiam passar
despercebidas.
Quanto ao Juiz, distante da realidade vivenciada no HCT-BA, parece
mostrar-se ainda mais arbitrário para com os sujeitos, optando, na grande maioria
dos casos estudados, pela solução mais punitiva. Ao enxergar na instituição total o
local mais indicado para tratar o indivíduo, é possível que ele esteja afastando para
bem longe de sua responsabilidade os problemas concretos que o sujeito poderia
acarretar em uma medida de tratamento ambulatorial, cumprida na mesma comarca.
Fundamenta-se em uma legalidade estrita (código tecnológico), embora a afaste em
diversos pontos quando lhe convém (manifestação de um código ideológico oculto).
Entre Juiz e Psiquiatra, parece instituir-se uma relação simbiótica de
disputas e acordos, funcional para manter o status de ambos, diante da
impossibilidade de um poder-saber sobrepujar em definitivo o outro. Em
conseqüência, a medida de segurança é revelada como o dispositivo que concretiza
um estado de exceção às garantias instituídas no plano jurídico-constitucional. Os
158
sujeitos estigmatizados como louco-criminosos parecem ser desprovidos até das
mínimas garantias que envolvem a própria medida de segurança, podendo ser
apontados como verdadeiros Homo sacer.
Cabe lembrar, ainda, que, como se mencionou no decorrer do trabalho,
todas essas conclusões são aqui apresentadas a título de hipóteses verificadas
numa quantidade restrita de casos, em um único Hospital de Custódia e Tratamento,
dos diversos existentes no país. Uma pesquisa mais aprofundada pode, certamente,
refutar algumas idéias aqui esboçadas.
Nesse sentido, é importante que a pesquisa aqui iniciada não se conclua.
Como trabalho inicial, ela deve permanecer em aberto, suspensa, até que haja
condições de se ampliar quantitativa e qualitativamente a abordagem. Para realizar
uma pesquisa com maior respaldo quantitativo, pode-se pensar, por exemplo, na
utilização de um número maior de casos, ao menos inicialmente, para que as
conclusões obtidas não sejam fruto de um excepcional produto do acaso. Outrossim,
é necessário também estudar a situação de outros hospitais de custódia do país,
uma vez que a situação desses estabelecimentos pode ser, em certos termos,
distinta, conforme a região em que se localizar.
Como método para qualificar melhor um trabalho posterior, é preciso,
primeiramente, investigar com mais profundidade os conceitos e categorias
psiquiátricos, para dispor de maior segurança ao efetuar sua crítica. Além disso,
necessita-se de melhor estruturação metodológica, que restou deficiente nesta
monografia, em face da já mencionada distância entre ensino do Direito e iniciação
científica.
O uso de outro método de análise dos dados também pode ser projetado
em trabalhos subseqüentes: a utilização dos códigos lingüísticos (culturais,
semânticos, simbólicos, hermenêuticos, proairéticos), esboçados por Roland Barthes
(1992), para efetuar uma dissecação dos textos redigidos por psiquiatras e juízes.
Semelhante trabalho de decomposição de laudos psiquiátricos é realizado na obra
de Alfredo Verde (e outros, 2006), demonstrando, entre outras conclusões, o quanto
a fala do sujeito é distorcida pelo discurso indireto do psiquiatra, e o significado que
certos lapsos da linguagem podem possuir no contexto da perícia.
Por fim, embora o intuito da presente monografia seja verificar
especificamente a atuação dos agentes do controle social, este trabalho age, em
certa medida, de forma semelhante ao saber médico: ele exclui a fala do sujeito
159
louco, não abre espaço para que ele fale sobre si e sobre as interações que foram
analisadas. Não poderia ser de outro modo, em virtude do escasso tempo e dos
parcos recursos para a realização desta pesquisa. Entretanto, é imprescindível, na
seqüência deste estudo, devolver a palavra ao louco-criminoso, permitir que ele se
manifeste, que se apresente e deixe, definitivamente, de ser objeto de saberes para
constituir-se em sujeito, que avalia suas experiências e as compartilha numa relação
dialógica.
160
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