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REVISTA M.Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 412-437, jul./dez. 2017 /412
Dos horrores aos humores:
Lourival Andrade Junior* Departamento de História, Centro Regional de Ensino Superior do Seridó
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)Rua Joaquim Gregório, s/n, Penedo
59300-000 – Caicó, RN – Brasil
Os cemitérios ocidentais, sobretudo do final do século XIX aos dias atuais, são entendidos por uma infinidade de imagens que fazem deles espaços de constantes discussões, medos, misticismos e narrativas. Personagens diversos fazem do espaço cemiterial um lugar dinâmico, muito diferente da propagada paz que deveria emanar de seus habitantes. Cemitérios que surgem de amores não aceitos, de obras de solitários religiosos, que guardam túmulos de milagreiros, que pulsam assombrações, que serve de morada para diabos, um universo infindável de criaturas e histórias que fazem dele um lugar privilegiado de análise. No cordel brasileiro, os cemitérios são constantemente narrados, demonstrando sua diversidade em múltiplas descrições. O cordel deu vida aos cemitérios rurais e urbanos e, por meio da hipérbole poética, imortalizou seus movimentos e sua presença marcante na vida e no imaginário de sertanejos e citadinos.
Palavras-chave: Cemitério – Cordel – Narrativas
RESUMO
Western cemeteries, especially in the period ranging from the end of the nineteenth century to the present day, are perceived through an infinity of images which cause them to be spaces subject of constant discussions, evoking fear, mysticism and narratives. Several characters turn the cemeteries space into a dynamic place, considerably distant from the widespread concept of peace that should emanate from its inhabitants. Cemeteries surrounding disapproved love and works of secluded religious, housing tombs of miracle workers, pulsing haunts, serving as an abode for devils; being, in short, an endless universe of creatures and stories that makes them privileged places to be analyzed. Cemeteries are constantly present in Brazilian cordel literature, which highlights their diversity in multiple descriptions. Cordel literature brought life to rural and urban cemeteries and through poetic hyperbole immortalized their movements and remarkable presence in the life and the imagination of local sertanejos and city-dwellers.
Keywords: Cemetery – Cordel Literature – Narratives
ABSTRACT
Pós-Doutor pela Universidade de Londrina (UEL), Brasil. Doutor em História, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil. Professor Associado I no Departamento de História, campus Caicó, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil. Diretor da Trapiá Cia Teatral. Membro do Grupo de Pesquisa História dos Sertões (UFRN/CERES), do GT História: Religiosidade e Cultura/UFSC e do GT História das Religiões e Religiosidades/ANPUH-BR (sendo
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From horror to humor: cemeteries in Brazilian cor-del literature
os cemitérios no cordel brasileiro
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Cemitério: espaço dos vivos, habitados pelos mortos, abominados por muitos
e respeitado por tantos outros. O espaço cemiterial traz em si as dicotomias
resultantes de narrativas historicamente construídas, que fazem de sua espacialidade
um emaranhando de sentimentos que podem ser descritos em histórias contadas
durante séculos.
É no cemitério que as memórias sobrevivem em epitáfios, fotografias, gestos e
sensibilidades que vivos demostram para seus entes que já não estão no plano material, mas
que sobrevivem nas narrativas regadas com lágrimas e expressões de dor e agradecimentos.
Diversos trabalhos vêm ao longo do final do século XX e início do XXI garantindo olhares
diversos sobre os cemitérios. Como exemplo, podemos citar o estudo de Catroga (1999),
sobre o cemitério romântico; Rodrigues (2005), sobre a secularização dos campos santos no
Rio de Janeiro; Vovelle (1997), com os cemitérios monumentos; das pesquisas de Rezende
(2000; 2006) e Pagoto (2004) recebemos contribuições sobre as transformações espaciais
ocorridas nos cemitérios paulistas; de Rocha (2005), sobre as transformações ocorridas nos
enterramentos nos cemitérios cuiabanos; Borges (2002), com o resgate e a análise da arte
cemiterial e seus marmoristas nos cemitérios de Ribeirão Preto; Herberts e Castro (2011), com
os cemitérios construídos ao longo do caminho dos tropeiros no planalto catarinense; Sáez
(1996), com os mitos transmitidos por visitantes e devotos que fazem do cemitério um lugar
rico em histórias; Batista (2009), sobre a morte e a cultura material na Venerável Ordem Terceira
dos Mínimos de São Francisco de Paula no Rio de Janeiro no século XIX, sem deixar de lembrar
as célebres obras sobre a morte, o morrer e seus enterramentos no medievo (Ariès, 1989 e
2014). Tais trabalhos servem para demonstrar a diversidade de abordagens sobre os cemitérios,
e tudo aquilo que envolve sua permanência e ressignificações.
Para além de um lugar de enterramentos, o cemitério foi se constituindo como um
espaço que abriga personagens os mais diversos, não somente de defuntos ali dispostos
em túmulos e ossários, mas também de fantasmas, exus e pombagiras, mortos-vivos,
assombrações, demônios e Satanás, e, mais recentemente na virtualidade de suas novas
modalidades, povoados de personagens fictícias da atualidade midiática.
Na Umbanda, os exus e pombagiras “são cultuados em cemitérios e encruzilhadas e
associados ao mistério da morte, da sexualidade e do corpo” (Silva, 2005). Assim, observamos
oferendas e despachos nas necrópoles espalhadas pelo Brasil. Esta relação dos exus e das
pombagiras com o espaço cemiterial fica evidente nos nomes dados a estas entidades: Exu
Caveira, Exu Sete Cruzes, Exu Cemitério, Exu Sete Covas, Exu Sete Catacumbas, Pombagira
Sete Caveiras, Pombagira da Calunga, Pombagira do Cruzeiro, entre outros e outras.
O cemitério que deveria guardar os mortos também aparece como lugar de retorno,
em que mortos-vivos ressurgem das entranhas da terra para retomar o que deixaram para trás.
Esta narrativa aparece de forma direta na série australiana de Tony Ayres e Louise Fox, lançada
em 2015, intitulada “Glitch”. Falecidos em temporalidades diferentes, estas personagens
reaparecem sujos da terra do cemitério de cidade fictícia de Yoorana, na Austrália, e reacendem
paixões, ódios e uma aparente inconformidade com os acontecimentos após suas mortes. O
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trauma do morrer e o enterramento não apagaram suas memórias e o cemitério foi apenas um
lugar de passagem, do passado para o presente.
Estes relatos de mortos que retornam estão impregnados no imaginário ocidental não
são torpes os seus aparecimentos nas telas dos cinemas e nas séries televisivas. Ao analisar o
medo no ocidente, Delumeau relata um destes medos dos fantasmas, informando que na
Bretanha pensava-se que os defuntos constituem uma verdadeira sociedade, designada por um nome especial ‘Anaon’, plural tomado como singular coletivo. Seus membros habitavam o cemitério mas voltam, graças à escuridão, para visitar os lugares onde viveram. É por isso que não se varrem as casas a meia-noite. As lamas dos mortos se reúnem três vezes ao ano: na véspera do Natal, na noite de são João e na noite de Todos os Santos, desfilando em longas procissões em direção dos lugares de reunião (1989, p. 91).
Os relatos de assombrações nos cemitérios são os mais diversos. Muita gente na
cidade de Caicó/RN não passa durante a noite pela calçada do Cemitério São Vicente de Paula
no bairro Paraíba, pois não faltam relatos do choro de uma mulher conhecida como “A mulher
da Corrente”, que supostamente deseja sair do túmulo em que foi enterrada, após ter deixado
seu bebê morrer de fome. Durante muitos anos seu túmulo era amarrado com correntes para
evitar sua fuga, conforme é narrado por moradores do entorno do cemitério. Na cidade de
Belém, capital do Estado do Pará, também muitas histórias de assombrações são contadas
até hoje, como as descritas nos contos “Fantasmas erótico da Soledade” (Monteiro, 2012) e
“A moça do taxi” (Idem). No primeiro, uma bela mulher convoca passantes homens perto das
dezoito horas, para procurar com ela um túmulo dentro do Cemitério da Soledade, dizendo
que não é da cidade e precisa achar o túmulo de parentes. Depois de muito procurar, a bela
mulher ataca seu acompanhante e tenta fazer sexo com ele, junto aos túmulos e ossários. Não
conseguindo, desaparece e deixa o sujeito completamente desorientado. No segundo, uma
moça pega sempre um taxi defronte de uma casa, e pede para ser conduzida ao Cemitério
Santa Isabel ou vice-versa. Nunca tem dinheiro para pagar a corrida e pede ao taxista para
cobrar no outro dia, de seu pai, no endereço em que foi deixada ou que pegou a corrida. O
motorista vai à casa indicada, descobre que a tal moça já havia morrido há muito tempo, e
confirma a versão dos pais, indo ao cemitério e vendo a foto da passageira em um túmulo. Esta
é uma das histórias mais contadas de assombrações em Belém, com diversas versões, sendo o
Cemitério Santa Isabel sempre o local de partida ou de chegada da moça morta.
Não é de estranhar que um local que causa tantos medos seja também morada de
Satanás e de diversos demônios. Para Ariès, em tempo de peste na Europa
O demônio amplia seu poder [...]. De modo geral, tem delegação de poderes sobre os mortos: uma espécie de parentesco se estabelece entre o demônio e os mortos. O cemitério faz parte do domínio dele, como um vestíbulo do Inferno. Na luta cósmica que a Igreja empreende contra Satã, ela teve de arrancar-lhe o cemitério por um ato consagrado
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solene e defender dela as sepulturas bentas; mas ele anda em volta à espreita; mantido a distância em virtude dos exorcismos e da sagração, basta uma falha para que ele volte, tão forte é a atração entre os cadáveres e ele. A peste, o diabo e o cemitério constituem um triângulo de influências (2014, p. 640).
A escuridão, o desconhecido, os sons noturnos e seus silêncios fazem dos cemitérios
um terreno fértil para estas narrativas sobre demônios e seus auxiliares que habitam os túmulos
antigos e passeiam pelas vielas dos cemitérios. O espaço cemiterial não possui na mesma
proporção a proteção das paredes das igrejas ou muros contíguos a elas onde eram enterrados
os cristãos católicos. O solo sagrado dos templos foi destituído de seus mortos, e o cemitério
como campo santo não dava ao defunto a mesma segurança de outrora. O cemitério público
se tornou campo de disputa, em que muitas vezes o diabo se fazia presente, para lutar por este
pedaço de terra e seus ocupantes.
Neste emaranhado de disputas e distensões, o cemitério também serviu de moldura
para as danças macabras na Europa, entre os séculos XI e XII até o Renascimento, “era o sinal
de desespero diante de dores físicas e de doenças epidêmicas como a peste negra, que ceifou
milhares de vidas. Numa histeria coletiva, as pessoas dançavam freneticamente expressando o
pavor da morte” (Portinari, 1989, p. 52). Este mesmo movimento foi descrito por Ariès
A dança macabra é uma roda sem fim, em que se alternam um morto e um vivo. Os mortos conduzem o jogo e são os únicos a dançar. Cada par é formado por uma múmia nua, putrefata, assexuada, muito animada e por um homem ou uma mulher, vestido segundo a própria condição, estupefato. A morte estende a mão para o vivo que vai arrastar, mas que ainda não se submeteu. A arte reside no contraste entre o ritmo dos mortos e a paralisia dos vivos (2014, p. 151).
Nos dias atuais, o cemitério é campo de disputa não somente nos cenários tradicionais,
mas se ampliou para o entretenimento. Jogos eletrônicos fazem do cemitério campo de
batalha, em que os jogadores precisam se aventurar em suas ruas, túmulos, mausoléus e
cruzes para vencer batalhas, desobstruir caminhos e seguir no jogo, como em Dark Souls,
Castlevania e Diablo. Também na saga japonesa Pokémon criou-se um espaço cemiterial
para estas personagens mortas, lugar de perigos em que o jogador não deveria se arriscar,
inclusive por uma música que, segundo alguns pesquisadores, causa lesão cerebral, podendo
levar à depressão. Este cemitério virtual chama-se Lavender Town e lá habitam Gastly e suas
evoluções, Haunter e Gengar, personagens endiabradas, fantasmagóricas e traquinas. Segundo
o especialista que estuda os jogos da Nintendo, detentora dos direitos de Pokémon, Bruno
Passos Cotrim, “na Lavender Town, não ando de jeito nenhum à noite” (Cotrim, 2014, p. 57). O
cemitério ganha ares de contemporaneidade.
Para não ficar apenas neste exemplo da virtualidade, uma das séries de TV por assinatura
mais premiadas de todos os tempos, Game of Thrones, ganhou um cemitério virtual, criação da
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Revista Slate,1 em que os amantes da série podem colocar flores nas lápides de suas personagens
preferidas que foram mortas pelo autor George R.R. Martin, durante as temporadas. Segundo
o site especializado em cinema, Adoro Cinema, “o falecido do último domingo já possui mais
de 89 mil flores em sua cova virtual, enquanto outros personagens queridos como Ned Stark e
Khal Drogo, mortos na primeira temporada, contam com cerca de 244 mil e 154 mil flores em
suas respectivas lápides”.2
O espaço cemiterial se amplia, se virtualiza, enterra mortos reais e ficcionais. O
cemitério também é movimento e não se fossiliza com o tempo. A cultura tumular é percebida
em parâmetros regionais e locais, e carece de constantes revisões no campo da pesquisa. Os
cemitérios se tornaram mais coloridos, com as flores de plástico chinesas que mantêm uma
durabilidade, o que significa que não somente no Dia de Finados a coloração da necrópole se
altera, durante o ano estas diversas tonalidades são visualizadas. Os vivos na contemporaneidade
encontram diversas formas de demonstrar suas saudades, não apenas acendendo velas e
colocando flores nas campas, mas clicando em flores virtuais para homenagear seus entes e
suas personagens da ficção.
E como o cemitério aparece na literatura, mais precisamente no cordel? Gênero literário
originalmente brasileiro e nordestino, se espalhou por todo o território nacional, chegando até
outros continentes, demostrando com uma rígida narrativa ancorada em metrificação e rima,
as distintas versões sobre assuntos diversos. O cemitério é um destes espaços narrados pelos
cordelistas, demonstrando suas visões sobre os horrores e humores poetizados nas páginas
dos folhetos.
O cordel nasceu no final do século XIX no sertão paraibano, conforme já enunciado
por Vianna (2014), Silva (2008), Potier (2013), Luciano (2012), Cavignac (2006) e Haurélio (2010),
entre tantos outros pesquisadores do cordel brasileiro. Inicialmente com influências lusitanas,
logo se desvencilhou da forma estética dos folhetos portugueses e ganhou vida própria. Silvino
Pirauá de Lima, João Martins de Athayde, Francisco das Chagas Batista e Leandro Gomes
de Barros deram ao cordel as regras seguidas até hoje, no que tange à métrica e à rima das
estrofes e versos. Sextilhas, Setilhas, Oitavas e Décimas passaram a nascer pelas mãos e mentes
destes poetas formados nas brenhas dos sertões. Leandro Gomes de Barros, o mais importante
cordelista de todos os tempos, imprimiu ao cordel a respeitabilidade de um autêntico gênero
literário e fez com que o cordel saísse das feiras sertanejas, para chegar aos grandes centros
urbanos do Nordeste, Sudeste e Norte do Brasil.
Leandro Gomes de Barros e João Martins de Athayde foram responsáveis por popularizar
o cordel, para além de seu nascedouro. Ainda no início de suas carreiras poéticas, foram para o
maior centro cultural, político e econômico do Nordeste, no início do século XX, Recife, e de lá
utilizaram o que havia de mais moderno, para imprimir e divulgar suas obras e de outros autores.
O cordel ganhou o mundo e, também, ampliou as temáticas, já que incialmente o rural era o
foco principal, mas com as ondas migratórias de nordestinos para outros centros, sobretudo
1 Disponível em: <http://www.slate.com/articles/arts/television/2014/04/game_of_thrones_deaths_mourn_dead_characters_at_their_virtual_graveyard.html>. Acessado em 27/10/2017.
2 Disponível em: http://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-113981. Publicado em 21/06/2015. Acessado em 27/10/2017.
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após as grandes secas do final do século XIX, era necessário não somente cantar um sertão
idealizado, mas também mostrar esta nova realidade urbana que os migrantes encontravam.
O cordel é rural e urbano na mesma intensidade. “O cordel é, essencialmente, uma poesia
narrativa com toques de lirismo. Os motivos da poesia são cumpridos quando um determinado
folheto cruza suas ‘fronteiras’ e inclui no mesmo texto, um ou mais assuntos temáticos e, ao
mesmo tempo, diverte, informa e ensina” (Curran, 2011, p. 176).
Os cordelistas são produtores atentos aos assuntos que fazem parte do universo de
seus leitores, de modo que é possível entendermos determinados grupos sociais pela poesia
cordeliana, visto que a intenção do poeta é agradar e vender seus folhetos aos que estão
próximos dele. Histórias macabras vendem muito, sobretudo no calor da hora em que elas
ocorreram. Contos fantasmagóricos dividem espaço com romances de belas donzelas com
príncipes honestos e corajosos. Os vaqueiros sertanejos vestidos de couro são os atualizados
cavaleiros medievais com suas armaduras. Padre Cícero, Frei Damião, Antônio Conselheiro e
Papa João Paulo II fazem parte de uma categoria procurada por leitores devotos e sedentos
por suas histórias e milagres. Pelejas entre cantadores se tornaram folhetos desejados entre os
leitores de cordel, sobretudo as disputas mais famosas e históricas, como as do Cego Aderaldo,
Zé Pretinho do Tucum, Lourival Batista, Severino Pinto, Manoel Riachão e os mais afamados
Romano de Mãe D’água e Inácio da Catingueira.
Temas sertanejos vão aos poucos dividindo espaço poético com temas urbanos,
como o surto do Zika Vírus, a violência nas favelas, o desordenamento urbano, as eleições
presidenciais e suas campanhas milionárias. Novos personagens passam a fazer parte das
narrativas bibliográficas dos cordéis, como cientistas e filósofos, fazendo com que saia de seu
lugar de conforto – a feira, as festas religiosas de padroeiros, as ruas – e adentre o espaço
escolar e universitário. Os cordelistas urbanos tiveram que buscar aperfeiçoamento na língua
portuguesa para conquistar este novo mercado educacional. Mais uma vez o cordel mostrou
que não estava parado no tempo, como bem queriam os folcloristas de plantão. Buscou
novos leitores e pôde ampliar sua rede de apreciadores, sem perder sua essência poética
organicamente construída pelos primeiros poetas nordestinos.
Um dos espaços que já era retratado como cenário em diversas narrativas continuou
sendo palco no cordel contemporâneo: o cemitério.
Os cordéis contaram histórias em que o cemitério foi utilizado para demostrar o quanto
a sociedade percebe suas potencialidades. Cemitério das lutas entre personagens fictícios e
reais com o diabo, demônios e seus exércitos; que se constrói a partir da dor do amor não
concretizado; das assombrações que pululam no imaginário popular; que é o repositório de
túmulos de milagreiros e milagreiras; que foi construído pelo desejo de dar uma boa morte aos
cristãos do sertão brasileiro; de horrores, mas que pelas páginas de alguns cordéis ganharam
a dimensão do gracejo e do humor; de todos os tipos e histórias, poetizados na obra de
cordelistas ilustres e desconhecidos.
No cordel os cemitérios nascem tanto de descrições reais quanto de lendas. No folheto
“Padre Ibiapina: advogado, pastor e ... pai dos órfãos” de Manoel Monteiro, publicado em 2010,
o presidente do Instituto Histórico, Geográfico, Artístico e Literário do Cariri Paraibano, Daniel
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Duarte Pereira o descreve como o
Construtor e reformador de Igrejas, capelas, Açudes, Barreiros, Hospitais, cemitérios, estradas e principalmente, Casas de Caridade, o ex-advogado, o ex-político e o agora missionário Ibiapina, realizou por este Nordeste de Meu Deus, obras inigualáveis até mesmo para os padrões atuais.3
Nascido em 05 de agosto de 1806, no Morro do Jaibara, em Sobral, oeste cearense, José
Antônio Maria Ibiapina tornou-se uma das personagens mais marcantes na vida dos sertanejos.
Abandonou uma vida que poderia lhe render posses e prestígio profissional e político, para se
dedicar às obras de caridade e à construção de equipamentos públicos que pudessem amenizar
a sofrida vida dos moradores dos sertões nordestinos, sobretudo em períodos prolongados de
seca. Uma das preocupações do Padre que se embrenhou pela caatinga era dar aos habitantes
destas áreas uma boa morte, um lugar digno de enterramento. Assim é descrito pelo cordelista
Manoel Monteiro estas obras, destinadas aos defuntos dos sertões.
Não era incomum os mortosNaqueles sertões incultosPor falta de cemitériosE não ficarem insepultosNem apodrecendo a esmoSerem enterrados mesmoNos matagais mais ocultos.
Os de família abastadaGanhavam lugar na igrejaJá os “defuntos paupérrimos”Ficavam no ora-vejaFoi por esses despautériosQue ele fez cemitériosPra família sertaneja.
Só sabe quanto isso valeQuando se perde um parenteE ao procurar enterrá-loNão ache um lugar “decente”PADRE IBIAPINA viuEsse drama e construiuCampa pra os mortos da gente.
Fez 18 cemitériosPara o descanso na morte,Fez igrejas pra deixarA alma gentia forte,
3 MONTEIRO, Manoel. Padre Ibiapina: advogado, pastor e... pai dos órfãos. Campina Grande: Edição do Autor, 2010 (Acervo particular), p. 1.
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Pelo que fez e falouA sua imagem ficouGravada de Sul á Norte.4
Padre Ibiapina salvou sertanejos da fome e da sede com suas obras, mas buscou salvar
também a alma, para que ela, com o corpo e sua finitude, pudessem encontrar um solo sagrado
para seu enterramento e, assim, cumprir os rituais de uma boa morte.
As lendas também inspiram cordéis. Zeca Pereira e José Heitor Fonseca adaptaram para
o cordel a “Lenda do Cemitério dos Barbosa” no folheto “O Cemitério dos Amantes”, publicado
em 2016. Neste cordel, os autores descrevem em detalhes a saga vivida por José em 1820, filho
da arrogante Maruca Bocaiúva, viúva de um rico estancieiro na cidade de Caçapava do Sul, no
Estado do Rio Grande do Sul, com a bela Ana Julia Barbosa, filha de Irineu Barbosa, agricultor
de poucas posses. Desde a infância os dois, José e Ana, trocavam olhares, que continuaram
na adolescência. Na vida adulta trocaram juras de amor e decidiram se casar. Ao contar para
a mãe foi duramente reprimido, e como ele não voltou atrás em sua decisão, Maruca o agride
com palavras, dizendo que preferia tê-lo abortado ou vê-lo agora morto do que ter uma
mulher pobre desposando seu único filho. Não satisfeita, foi até a casa da moça propor ao pai
a compra de suas terras, para que os dois fossem embora do lugar, sendo contrariada em sua
proposta, encontra Ana Julia e destila seu veneno sobre a amada de seu filho.
A narrativa caminha na resignada decisão do casal de se casar, mesmo sem autorização
da matriarca. Na noite em que José sai da casa da noiva, após terem acertado os detalhes do
enlace, é surpreendido por uma onça, que fez com que ele caísse de seu cavalo e, mesmo
lutando bravamente com a fera, foi morto por ela. O cavalo, chegando sozinho na fazenda
da mãe, fez com que os empregados saíssem em disparada, já esperando o pior. O trágico
se apresentou, quando o corpo mutilado de José foi encontrado na estrada próxima de sua
residência. Maruca, impávida, ordena que o corpo do filho seja enterrado no local em que foi
achado, e não na necrópole da família na fazenda.
Ana Julia, inconformada com a morte do amado, entrou em profunda depressão. Após
alguns dias veio a falecer, sem antes solicitar ao pai que ela fosse enterrada ao lado de José.
Irineu Barbosa também não suportou a morte da filha e conforme tinha solicitado, foi enterrado
junto ao casal. A partir daquele momento, as pessoas do local passaram a ser enterradas neste
espaço:
E tornou-se campo santoA partir daquele dia.Todos enterravam láUm parente que morria.Assim o drama tão sérioOriginou o cemitérioLá onde o casal jazia.
4 Idem, p. 12-13.
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Em Caçapava do SulO Cemitério BarbosaTornou-se grande registroDessa tragédia amorosa,Lá onde o jovem casalSofreu a praga infernalDuma mãe tão orgulhosa.5
Narrativas como essa revelam a trajetória de cemitérios que nasceram de injustiças e
que se constituíram, com o passar do tempo, em espaços de histórias marcadas pelo amor e pela
resignação. Cemitérios de mortos amados dividem a cena com necrópoles de assombrações
e fantasmas assustadores, além de servir para reforçar moralidades. Assim podemos perceber
no cordel “A estrada do medo” de Marco Haurélio, publicado em 2015 e republicado em
2017, em coletânea de autores contemporâneos de cordel. Este folheto foi baseado no conto
homônimo de William Butler Yeats, que narra a saga de Teig O’Kane, morador da Irlanda, que
utilizou de sua riqueza e dotes de beleza para atrair mulheres e seduzi-las, até que engravidou
Maria, moça respeitada por todos da cidade e pelo pai de Teig, que o obrigou a casar com a
jovem. Teig num primeiro momento aceitou, mas logo recuou. Decidiu sair à noite para pensar
no que iria fazer, mas encontrou uma procissão de anões macabros carregando um cadáver
em estado de putrefação. Estas personagens serão seus algozes, obrigando Teig a procurar
um local de enterramento para aquele defunto. Negando esta tarefa, os anões mostraram sua
força, jogando sobre ele dezenas de diabretes que impossibilitaram sua fuga. Não tendo como
sair, Teig se obrigou a encontrar este local para dar cova ao cadáver, mas antes disso fez a
promessa de que se tudo desse certo, tonar-se-ia um homem direito.
Os anões dão o roteiro da viagem e, neste momento, são citados vários cemitérios
que estavam contíguos a igrejas da região em que ocorreu a trama: Teampoll-Demus, Carrick-
fhad-vic-Orus, Teampoll-Ronan, Imloque-Fada e Kill-Breedya.
No primeiro cemitério, ao adentrar a igreja que ficava em seu território, Teig tentou
abri-la, mas a porta estava fechada, e ele ouviu uma voz informando onde a chave poderia
estar: era o cadáver que falava. O susto foi inominável. A partir dali Teig começou a ver seres
cadavéricos pelo caminho que percorreu nas necrópoles. Neste primeiro, após encontrar a
chave indicada pelo defunto falante, iniciou a abertura da cova dentro da igreja, mas acabou
batendo em um cadáver já enterrado anteriormente, que o expulsou do local. Fora da igreja
também encontrou outros seres natimortos que exigem sua saída. Ele assim o fez.
No segundo cemitério nem chegou a entrar, já que em seu muro estavam “centenas de
fantasmas/empilhados sobre o muro, abrindo a boca e fechando/como dizendo ‘esconjuro!’”.6
Seguiu para o terceiro, e logo que entrou pelo portão foi arremessado para fora, ficando muito
ferido. Mesmo neste estado, seguiu para o penúltimo cemitério, mas também foi impedido de
entrar, por uma luz intensa que dele emanava, queimando-o a pele e os olhos.
5 PEREIRA, Zeca e FONSECA, José Heitor. O cemitério dos amantes. Barreiras: Nordestina, 2016. (Acervo particular), p. 14-15.
6 HAURÉLIO, Marco. A estrada do medo. In: AUTORES ASSOCIADOS. Cordelistas contemporâneos: coletânea 2017. Barreiras: Nordestina, p. 349-356, 2017, p. 354.
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No cemitério de Kill-Breedya, último a ser procurado, sua saga se encerra
Doente, cansado e trêmulo,Teig retomavaA missão, sentido o uivoQue um vento frio soprava,Quase morto sob o pesoDo fardo que carregava.
Enfim, chegou ao destinoSem vestígio de alegria.- Depressa! Enterra-me ali –O cadáver lhe dizia,Pois, nas bandas do Oriente,Já se anunciava o dia.
O moço ainda enxugouO rosto banhado em pranto,Procurou por uma enxadaE, qual não foi seu espanto,Ao ver uma cova abertaNo centro do campo santo.
Desceu na cova e avistouLá dentro um grande caixão.Ao ver que estava vazio,Palpitou-lhe o coração,Pois o cadáver largou-oNessa mesma ocasião.
De um pulo o morto atirou-seNaquele caixão aberto.Teig O’Kane, aliviado,Viu que o lugar era certoE mirou de novo o túmuloQue devia ser coberto.
E com as mãos nuas eleConseguiu fechar a cova.O corpo inteiro doía,Como o de quem leva sova,Porém o sol que nasciaMostrava-lhe a vida nova.7
Fica evidente que o horror e o humor caminharam juntos nesta narrativa cordeliana.
Mas, o que se tornou relevante nestas descrições detalhadas das visões fantasmagóricas e
de cemitérios macabros, foi que a personagem teve que conviver com o medo em várias
dimensões: o cadáver sem nome que carregava e que falava, fantasmas que o perseguiram,
7 Idem, p. 355.
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cemitérios sempre habitados por criaturas nada receptivas, anões que o colocaram diante de
espaços horripilantes, tudo causado por sua conduta inescrupulosa. O cordel diverte e busca
dar lições morais. Teig aprendeu ou foi obrigado a ser melhor, tendo os cemitérios e seus
mortos viventes como propulsores destes novos tempos. O autor deixou isto evidente ao final
do cordel, mostrando que o retorno ao lar depois desta empreitada modificou-o, e fez com
que cumprisse a promessa feita ao pai, sobre o enlace com Maria. No cordel, o cemitério e suas
personagens ensinam.
E quinze dias depoisCom ela estava casado.Foi um esposo amoroso,Um pai muito dedicado,Um cidadão generoso,À pobreza devotado.8
Nos cordéis, personagens fictícias povoam cemitérios nos quatro cantos do mundo,
como no cordel de Marco Haurélio, sendo responsáveis por fazer do espaço cemiterial um
repositório de narrativas tétricas, e muitas vezes engraçadas. Além disso, as necrópoles também
são lugares em que sensibilidades afloram, mortos ganham poderes e muitos se tornam entes
amados por aqueles que acreditam em suas habilidades. Assim, túmulos e lápides dos mais
variados formatos e tamanhos recebem visitantes durante todo o ano, que acorrem a este
espaço para minimizar a saudade de entes que já não mais vivem no mundo terreno e agora
fazem parte do mundo dos mortos, anônimos túmulos convivem com sepulcros carregados de
significados sagrados. Estas sepulturas de personagens que devotos cultuam como milagreiros
e milagreiras integram o catolicismo não oficial brasileiro. O devoto não se importa com a
oficialidade que por direito canônico tem o poder de definir quem pode ou não ser cultuado,
venerado.
Os milagreiros de cemitério pertencem a um rico complexo ritualístico, individual e
coletivo de milhares, até, milhões de brasileiros que buscam neles conforto para suas mazelas.
Milagres são pedidos ali no túmulo, único espaço material de contato direto como o morto
especial. Velas e flores dividem espaço com ex-votos e uma infinidade de oferendas deixadas
para eles em sinal de agradecimento por um milagre ou uma graça recebida. O cemitério
como cidade, o túmulo como templo e morada eterna. Há no devoto um entendimento
que uma cumplicidade orgânica se faz entre ele e seu milagreiro, já que em sua esmagadora
maioria fazem parte de uma cultura local, são reconhecidos como daquele espaço citadino, o
que significa que conhecem onde tudo aconteceu e continua acontecendo. Esta proximidade
territorial entre o devoto e o milagreiro amplia seu poder de resolução imediata de problemas
e conflitos. Todos são dos mesmos locais.
Estes milagreiros e milagreiras pertencem ao imaginário religioso nacional e, por
consequência, não poderiam ser relegados pelos cordelistas, inclusive por que muitos também
8 Idem, p. 356.
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convivem com estes devotos e seus mortos especiais. Vale ressaltar que um milagreiro se
forma, sobretudo, após uma morte trágica e, em muitos casos, os próprios devotos forjam
esta tragicidade para empoderar seu morto desejado. Em outros casos, religiosos com sua
vida dedicada aos pobres e aos necessitados em geral, bem como as crianças e a inocência
dispensam na percepção do crente esta morte trágica.
Vários milagreiros foram biografados e seus poderes e milagres narrados nas páginas de
cordéis. Trataremos de três milagreiros, por terem trajetórias diferentes e o cemitério aparece
como lugar privilegiado na narrativa cordeliana.
O primeiro é José Leite de Santana, conhecido como Jararaca, que nasceu em 05 de
maio de 1901 e morreu em 13 de junho de 1927 na cidade de Mossoró, Estado do Rio Grande
do Norte.
Jararaca era cangaceiro conhecido pelos sertões nordestinos que, em alguns
momentos, se aliou ao bando de Lampião e Colchete. Num destes episódios eles se juntaram
para atacar a cidade de Mossoró em 1927, mas a empreitada fracassou, sendo Jararaca preso,
e Colchete morto em batalha com as tropas locais. Jararaca, muito ferido, foi levado para a
delegacia, interrogado e preso. Durante a noite os policiais decidiram transferi-lo para Natal,
capital do Estado, razão alegada para Jararaca. No caminho mudaram a direção e se dirigiram
para o cemitério municipal, São Sebastião. Lá mataram o cangaceiro, “arrastaram o corpo para
uma cova que já se encontrava aberta onde foi jogado, sendo todo esse ato ilegal assistido pela
oficialidade” (Nascimento, 2016, p. 57). Esta situação é descrita pelo cordelista Gualber Alencar
do Couto, no folheto “O cangaceiro Jararaca – História e morte em Mossoró”, de 1999.
Chegou o triste momentoNa vida do cangaceiroJararaca é levadoEm um jipe primeiroFoi por Homero CoutoMotorista ligeiro.
O João ArcanjoE o tenente LaurentinoFaziam a segurançaComo um desatinoDo terrível JararacaBraço de Virgulino.
Ao São SebastiãoCemitério da cidadeJararaca cavou a covaSem qualquer caridadeDepois quebraram o narizUm gesto de maldade.
Furaram com um sabreNa altura do peitoE o jogaram na cova
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Sem o caber direitoQuebraram-lhe os joelhosDe qualquer jeito.
Depois jogaram terraSobre o cangaceiroFoi enterrado vivoTudo bem ligeiroE o capitão AbnomDeu a notícia primeiro.9
Justamente por conta de uma morte trágica, o túmulo de Jararaca começou a ser
visitado, e pedidos a ele se multiplicaram, assim narra José M. Lacerda no cordel “Jararaca, o
cangaceiro que virou santo” (s/d.).
Aí começa a matracaDo povo a tagarelarUns chorando suas mortes,Outros a comemorar,Dessa Lampião safou-seMas nunca mais cogitou-seDe Mossoró atacar.
Jararaca ficou láMorando no cemitérioMuitas histórias se contamCada um a seu critérioPara uns sendo bandidoPor uns sendo absolvidoPrá outros levado a sério.
Sua cova no cemitérioÉ alvo de bons cuidadosÉ o que consome mais velasQuando é dia de finadosTem missa, tem romaria,Da cidade e cercariaE até de outros Estados.10
Acompanhando a mesma lógica, o cordelista Nando Poeta publicou um cordel, em
2014, com o mesmo título de Lacerda, “Jararaca, o cangaceiro que virou santo” e, novamente,
narra a peregrinação de devotos ao túmulo do cangaceiro que se tornou local de sacralidade.
9 COUTO, Gualter Alencar do. O cangaceiro Jararaca: História e morte em Mossoró. Mossoró: Gráfica Medeiros, 1999. (Acervo particular), p. 20-21.
10 LACERDA, José Medeiros. Jararaca: o cangaceiro que virou santo. Cuité: Edição do autor, s./d. (Acervo particular), p. 11.
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De boca em boca espalharam:Jararaca virou santoQue o milagre por eleJá na cidade era tanto.E o romeiro invadiuO cemitério no pranto.
O local foi transformadoEm espaço para cultoAglomerado de genteO homem virou-se vultoSantificado e capazDe até gerar tumulto.
[...]
O povo partiu em pesaAo túmulo de Jararaca.Assim tornou-se devotoDaquele que empunhou faca.Ainda o fizeram santoMerecendo honra e placa.
Sob o sol inclementeNo aperto do cemitérioOs peregrinos desvendamA saga do seu mistérioA reza, o terço e as velasFoi tudo levado a sério.
Plantado aos quatro cantosQue o Jararaca odiosoAgora opera milagresVirou um ser generosoE chegou à santidadePor se tornar piedoso.11
Jararaca é o típico milagreiro, em que a morte trágica purga uma vida de crimes e mal
feitos. Considerado por muitos como um dos cangaceiros mais impiedosos do cangaço, tornou-
se bondoso e generoso após sua morte. A tragédia dos acontecimentos que desencadearam
seu fim e enterramento, colocou-o no panteão dos milagreiros mais procurados do sertão
potiguar.
Para os devotos e para o cordelista Costa Senna, que em 2013 publicou o cordel
“Jararaca, o cangaceiro santo”, não era preciso esperar um processo canônico para transformá-
lo em santo, bastava ser aceito como tal. Assim Jararaca ganhou um título e se tornou São
Jararaca, já que milagres foram comprovados e narrados por seus devotos.
11 POETA, Nando. Jararaca: o cangaceiro que virou poeta. São Paulo: Luzeiro, 2014 (Acervo particular), p. 27-28.
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O túmulo de JararacaComeça a ser visitadoTem sempre velas acessasBem varrido, bem aguadoÉ tão grande esse mistérioO único no cemitérioQue nunca foi desprezado.
Sempre tem alguém rezandoUm Pai Nosso, Ave Maria...Pessoas tirando terçoA qualquer hora do diaO nome do JararacaCada vez mais se destacaNessa nova romaria.
Falam que um pescadorSe perdeu em alto marSua mulher fez promessaPra Jararaca o salvarOuvi de várias senhorasQue em menos de dez horasConseguiram lhe encontrar.
Uma criança teve o péPicado por cascavelJá estava quase mortoPelo veneno cruelJararaca lhe curouIsso o credibilizouSua entrada no céu.
[...]
Foram vários os milagresPor Jararaca atendidoSe você tem um problemaJamais fique aí perdidoCreia na minha conversaFaça logo sua promessaVocê será atendido.
Reze a São JararacaEle vai lhe ajudarMas é preciso ter féPra sua graça alcançarÉ mesmo maravilhosoMais um santo milagrosoTer vindo nos ajudar.12
12 SENNA, Costa. Jararaca, o cangaceiro santo. Fortaleza: Tupynanquim, 2013 (Acervo particular), p. 10-11.
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O trágico também acometeu a vida de Severa Romana em Belém, capital do Estado do
Pará. Foi casada com o soldado Pedro e grávida de seu primeiro filho, em 02 de julho de 1900,
no Bairro Umarizal, foi brutalmente assassinada pelo cabo Antonio Ferreira dos Santos, por se
negar a ter relação sexual com ele. O cabo Antonio havia recebido de Pedro ajuda em Belém,
pois não conhecia ninguém na cidade, e assim morando em sua casa poderia ter mais tempo
e tranquilidade para encontrar um local definitivo de morada. Mas o cabo, impressionado com
a beleza de Severa, partiu para cima dela, exigindo que se deitasse com ele. Não aceitando,
Antonio puxou uma navalha e desferiu vários golpes na jovem grávida, que tinha apenas dezoito
anos.
Munido de uma navalhaA mulher ele sugigaE diz: Agora tu tensDe te fazer minha amigaDo contrário te decepoDe lado a lado a barriga.
A jovem esposa lutandoSó no marido pensava,Tendo a honra por princípioJamais ali se entregava.Sentindo que nas entranhas O filhinho palpitava.
O malvado furioso,Então comete a desgraça;No ventre da infortunadaProfundo golpe ele traça,Em seguida no pescoçoUm maior golpe lhe passa.13
Esta descrição mórbida do assassinato de Severa Romana foi veiculada em um folheto
anônimo que, segundo Vicente Salles, “não há pistas para a restituição da autoria, o folheto
circula em Belém desde 1946 ou 47, aproximadamente”.14 O cordel intitula-se “História
completa de Severa Romana”.
A morte trágica de Severa Romana causou comoção nos belenenses e não demorou
muito para que ela fosse reconhecida como milagreira de cemitério. O cordel mostra todas as
qualidades da moça que se manteve fiel ao marido e, por conta disso, foi assassinada por um
perverso hóspede. O autor desconhecido evidencia os poderes da morta, e que seu túmulo é
o local em que as pessoas recorrem para fazer seus pedidos.
13 ANÔNIMO. História completa de Severa Romana. Belém: Museu da UFPA, 1997 (Cordel apresentado por SALLES, Vicente. Acervo Museu da Universidade Federal do Pará), p. 9.
14 SALLES, Vicente. Apresentação: História Completa de Severa Romana. In: ANÔNIMO. História completa de Severa Romana. Belém: Museu da UFPA, 1997, p. 1-2. (Acervo Museu da Universidade Federal do Pará)
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Passado tempo surgiuUma notícia em Belém:Severa lá no seu túmuloEspalhava grande bemBastava ser invocadaNuma prece por alguém.
Quem na sua sepulturaImplorasse o seu favorRecebia logo o prêmioDa sua fé, do fervorContanto que fosse feitaCom carinho e com amor.
Muita gente conseguiuAlcançar o que queria.Já se falava em milagreE o povo crédulo ouvia,Junto ao túmulo modestoOs benefícios pedia.15
Alguns milagres são descritos, aumentando a potência dos já devotos. A partir da leitura
do cordel, novos crentes poderiam ser angariados.
E quem quiser pode irVisitar o cemitério,Verificar que se trataDum relato muito sério;Não é lenda, fantasia,Não tem nada de mistério.
Por intermédio da mortaMuitos já tem melhorado:Um rapaz que era doenteDepressa ficou curado,Um menino ficou bomDepois de andar aleijado.
[...]
Faz leitor, o teu pedidoEm nome da falecidaQue também a tua vozDe certo será ouvidaFaz de Severa RomanaA protetora querida.16
15 ANÔNIMO. História completa de Severa Romana. Belém: Museu da UFPA, 1997. (Cordel apresentado por SALLES, Vicente. Acervo Museu da Universidade Federal do Pará, p. 14.
16 Idem, p. 22-23.
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Diferente de Jararaca e Severa Romana, Padre João Maria não teve morte trágica, e
também foi louvado nas páginas de cordéis, entre eles, “História completa do nascimento,
vida e morte do Padre João Maria Cavalcanti de Brito – Natal-RN” de Raimundo Bezerra de
Moura. No folheto, o autor carregado de emoção biografou o Padre João Maria, nascido na
Fazenda Logradouro, município de Caicó/RN, em 23 de junho de 1848. Desde jovem já havia
decidido entrar para um seminário, para se ordenar padre e cuidar dos pobres, o que ocorreu
em 1861, quando ingressou no Seminário de Olinda em Pernambuco. Após todos os trâmites
e ordenações retornou para sua terra natal, e se tornou pároco em várias cidades do Seridó
Potiguar – Caicó, Jardim de Piranhas, Flores (atual Florânia) e Acari. Em Flores, a fama de
Padre João Maria começou a ganhar corpo, por conta de sua atenção aos pobres durante a
epidemia de “bexiga preta”, no final do século XIX. Sua conduta de levar comida e água aos
necessitados, dar assistência às famílias, distribuir donativos arrecadados por ele, fez com que
fosse reconhecido em vida como homem santo. Depois de passar por Santa Luzia no Estado
da Paraíba, retorna ao Rio Grande do Norte, na antiga paróquia de Paparí, atual Nísia Floresta e,
depois, em Natal. É justamente na capital que, mais uma vez, Padre João Maria se viu diante de
mais uma epidemia, de varíola, que em 1880 matou milhares de pessoas no Nordeste brasileiro
(Soares, 2015).
Novamente Padre João Maria arregaçou as mangas e se pôs a ajudar os pobres
assolados pela doença. Montado em seu jumento visitava as famílias enlutadas e com doentes
na casa, para dar auxílio espiritual e ajuda com alimentos, água e tudo que podia ser necessário
para minimizar a dor de seus fiéis. Várias vezes foi visto carregando latas de água na cabeça
para levar aos que não tinham força para tanto. Sua fama e reconhecimento só aumentavam.
Em 1900 o Padre João Maria foi diagnosticado com diabetes em estágio avançado,
necessitando de internação urgente. Inconformado por não poder sair para fazer seu trabalho
pastoral, ficou cada vez mais debilitado, até que em 16 de outubro de 1905 veio a falecer.
Após a morte, os fiéis de sempre passaram a visitar seu túmulo e pedir graças, sendo
transformado em milagreiro, e se tornando uma das devoções mais exitosas do panteão do
catolicismo não oficial potiguar.
No cemitério do AlecrimLá ele foi enterradoHouve muitos discursosMuitos deles prolongadosTendo falado por últimoO governo do Estado.
Foi um dia de tristezaPara a pobreza em geralNotava-se o sentimentoNo centro da capitalFoi o maior dos enterrosQue já se viu em Natal.
Já no dia de finados
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Era grande a multidãoDos pobres da capitalDo agreste e do sertãoPagando suas promessasNa cova do padre João.17
Mortes trágicas e vidas santas compõem a constituição de uma cosmogonia arquitetada
por devotos que veem no morto especial a possibilidade de contato direto com o sagrado, sem
intermediações, sem condições pré-estabelecidas, sem ritos complexos, sem burocracias,
sem disputas, com imediatismo e fé alinhados, integrando os mesmos interesses. O túmulo
passa a cumprir um papel de portal de ligação entre o vivo e o morto, este alçado à condição
de milagreiro. A sepultura que para muitos pode causar medo, apreensão e certo horror, é
ressignificada em espaço de devoção e esperança.
O cordel também vai além do horror, e o cemitério e seus túmulos podem aparecer
como lugares de estranhezas, passíveis de humoradas experiências ou, em linguagem
cordeliana, de gracejos inebriantes. O gracejo tem como objetivo principal fazer o leitor rir
de situações inusitadas e muitos ainda agregam a este estilo uma moralidade, fazendo do riso
também uma reflexão.
Um cordel que pode ser enquadrado neste estilo é “A festa no cemitério – o mal que a
ganância faz” de José Medeiros de Lacerda. O autor narra a saga de Nonato de Antão Lotério,
famoso sanfoneiro que ganhou muito dinheiro tocando em bailes e fazendo todos dançarem
sem parar. Num dos bailes foi procurado por um estranho que, dizendo-se muito rico e
conhecedor de sua fama, queria contrata-lo para tocar em seu povoado no dia de finados.
Num primeiro momento, Nonato recusou, pois já havia acertado com Tomáz para tocar num
baile, mas depois de ouvir a proposta do estranho que pagaria o triplo do valor, ficou animado
e decidiu tocar para o desconhecido. Chegando o dia, o tal rapaz chegou à casa de Nonato
e de seu grupo e pediu que ele o seguisse. Assim o fizeram. No caminho estranharam a falta
de casas e de pessoas, mesmo após o Zabumbeiro Norberto ter informado que havia visto
uma procissão com velas, terço e coroa, mas como ninguém mais viu, seguiram o insólito
caminho. A gasolina acabou e como que por um toque de mágica, o tanque encheu sozinho.
O estranhamento foi geral. Ao chegar ao povoado avistaram muitas mulheres lindas, homens
bem vestidos, muita comida e bebida, e um belo terreiro onde ocorreria o baile. Tudo caminhava
bem, inclusive quando Nonato foi para o mato com uma linda mulher e por lá consumaram
o ato sexual. Todos dançavam e não parava de chegar gente sem que ocorresse confusão.
Ao final do baile o rapaz pagou o que devia e o conjunto pegou o caminho de volta. Um dos
componentes se sentiu mal depois de tanto comer e beber, e decidiram parar numa farmácia.
Ao colocar a mão no bolso para pegar o dinheiro, Nonato percebeu que o dinheiro tinha se
transformado em folha seca. Decidiram retornar para cobrar do embusteiro.
17 MOURA, Raimundo Bezerra de. História completa do nascimento, vida e morte do Padre João Maria Cavalcanti de Brito – Natal-RN. Natal: UFRN, 1980 (Acervo da Cordelteca da Universidade Estadual de Londrina – UEL), p. 20.
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Voltemos de imediatoAtrás do cabra safadoPois sabia que ele tinhaFicado no povoadoMas ao chegar no lugarSabe o que é que tinha lá?Um cemitério encantado!
O lugar tinha viradoUm escuro cemiterãoPerdido no meio do matoSem cerca, muro e portãoVendo que não tinha jeitoEu pensei logo: - Bem feito,Foi a minha ambição!
[...]
Em mim ainda se renovaDe vez em quando me assustaViro, remexo e não achoA resposta da perguntaQue trago no coração:Toquei pras assombraçãoE transei com uma defunta?
Os outros tavam sem junta,Sem nervos, sem reaçãoOlhando praquelas covasResto de velas no chãoTomo mundo se assombrouE acabou-se até a dorDe barriga do peidão!18
O gracejo advindo de uma situação inusitada entre um conjunto musical e assombrações
cemiteriais dá lugar a um discurso moral, reafirmando que a ganância pode levar a perdas
financeiras, perda da confiança de amigos e ter que conviver com seres indesejados, os mortos
que se tornam vivos no dia de finados. Mais uma vez, o cordel cumpria alguns de seus objetivos,
entreter e ensinar.
Uma das personagens do cordel que mais aparece em situações de horror e humor é
o diabo. Sua performance em situações diversas faz dele uma figura “constante em diferentes
manifestações da cultura popular do Nordeste brasileiro. Aparece como personagem de primeiro
plano em numerosos contos, lendas, cantigas, autos, romances, desafios e representações
pictóricas” (Pontes, 1979, p. 11). Neste sentido, “o diabo é absolutamente necessário na literatura
18 LACERDA, José Medeiros. A festa no cemitério: o mal que a ganância faz. Boa Vista do Gurupi: Edição do autor, 1980, (Acervo particular), p. 9-10.
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de cordel, do mesmo modo que o é na vida real dos porta cordelistas e de seu público” (Curran,
2011, p. 36).
Os títulos que trazem o diabo como personagem central são variados, entre eles “O
bode subversivo que deu no diabo” de Franklin Maxado Nordestino (1982); “O exemplo da
moça que vendeu os cabelos ao diabo e visitou o inferno” de Severino Francisco Carlos (s./d.);
“O cabeludo que o diabo assombrou” de Pedro Gonçalves (s./d.); “O casamento de Lusbel ou
a história da jumentinha e Maria Alice a moça que enganada casou-se com o diabo” de Luís da
Costa Pinheiro (1957); “Como São Pedro enganou o diabo” de João Severiano de Lima (s./d.);
“Como Antônio Silvino fez o diabo chocar” de Leandro Gomes de Barros (s./d.); “Discussão de
Roberto Carlos com o diabo” de Pedro Jacob de Medeiros (1980); mas, um em especial tem o
cemitério como cenário de uma luta sem precedentes: “A luta de Zé do Caixão com o diabo”
de Manoel D’Almeida Filho (s./d).
Este que se tornou um clássico dos cordéis narra a luta de Zé do Caixão, personagem de
José Mojica Marins, famoso cineasta brasileiro especialista em filmes de terror, com o diabo em
um cemitério. Zé do Caixão adentra o cemitério e a meia-noite evoca as almas embrutecidas,
e o próprio Satanás para ter com ele. Este é o primeiro a chegar e já vem contando vantagem
sobre o que resolveria qualquer problema de Zé, desde que pudesse levá-lo para o inferno. Zé
não aceitou o acordo e a discussão começou em tom assombroso. O diabo o chamou de caça-
defunto, bochudo, feiticeiro e macumbeiro. Por sua vez, Zé do Caixão o chamou de mofino,
cara de bode, nojento dos pés de pato e bicho-preto. O diabo tentou mais uma vez convencer
seu antagonista a acompanhá-lo para o inferno, argumentando que lá ele encontraria todas
as personagens e locações que precisaria para seus filmes. Zé diz que na Terra tem tudo que
necessitava para continuar produzindo.
Como os argumentos não funcionaram, a discussão virou luta física, e o cemitério e
seus túmulos passaram a incrementar a narrativa
Apoiado no tridentePartiu a Zé do Caixão,Zé abaixou-se e o DiaboPassou como um furacãoBateu numa catacumbaQuase se lasca no chão.
[...]
Porem encolheu as pernas,Fez o espinhaço duro,Deu um balão no CapetaQue voou como um monturoPor cima das sepulturas,Foi cair no pé do muro.19
19 D’ALMEIDA FILHO, Manoel. A luta de Zé do Caixão com o Diabo. São Paulo: Luzeiro, s./d.. (Acervo particular), p. 11-12.
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Mostrando todas as suas habilidades, Zé do Caixão colocou o diabo em situação
vexatória, dominando-o e fazendo um nó em seu rabo. Satanás não se conformou e convocou
todos os diabos do inferno para salvá-lo. E assim acontece. Os seus comandados chegaram
em peso e com fúria, e a descrição destes demônios demostraram suas diversas formas e
inusitadas feições. Os primeiros a serem convocados foram Forrobodó, a negra de um peito
só, a mãe do Calor-de-Fogo e a preta do Bendengó (D’Almeida Filho, s./d., p. 16). Em seguida
o exército demoníaco é formado:
Comandava o batalhãoO general Caifaz,Cão-coxo vinha ao seu ladoServindo de capatazMontado na égua velhaDa mãe do rei Satanás.
Acompanhavam tambémTição, Tinhoso e Canhoto,Capa-verde e Pé-de-Pato,Mofento, Olho-de-boto,Parafuso, Cafuçu,Catapora e Capiroto.
Bexiga-preta e CanguinhaTrupezupe e Bigodeira,Bajé, Tangeriça e Combota,Mata-calado e Sujeira,Sanguessuga e Mosea-tonta,Traz-cá, Bazé e Goteira.
Vira-volta e Boca-insossa,Lambe-lambe e Corta-dedo,Rompe-ferro, Arranca-rabo,Cotó e Cachorro-azedo,Tromba-suja e Caboré,Mofino e Quebra-segredo.
Faísca, Raio e Pacaia,Futrica, Não-sei-que-diga,Quebra-faca e Mata-sete,Mau-olhado e Dou-te-figa,Cachimbo e Arranca-tampa,Peitica e Pega-barriga.
Marmim, Motuca e Mosca,Arranca-toco e Macumba,Cão-de-bico e Mata-burro,Fura-olho, Catacumba,Topa-murro, Quebra-côcoGaita, cuíca e Zabumba.
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Bruxaria e Bebe-sangue,Caranguejeira, Lacrau,Cascavel, Surucucu,Carcará e Bacurau,Onça-pintada e Macura,Violino e Berimbau.
Tacape, Cordão-de-saia,Arranca-prego, Corisco,Quebra-canga, Pirilampo,Pé-de-peia, Junta-cisco,Espalha-brasa, Marzoca,Tapa-boca e Apaga-risco.
Bebe-molho e Maçarico,Vento-mau, Língua-de-trapo,Chifre-de-porca e Sarampo,Dedo-do-cão, Saratrapo,Ponta-pé, Rabo-de-arraia,Atadura, Esparadrapo.
Cataclisma e Sapiranga,Cotoco e Saia-godê,Rasga-tanga e Carrancismo,Cata-pulga e Fabelê,Bode-preto e Cabra-morta,Fuxico e Cão-é-você.20
Esta longa descrição de nomes, que mais parecem alcunhas, foi necessária para reforçar
a narrativa do autor, hiperbolizando a vitória de Zé do Caixão. O cordelista ainda informou que
estes eram apenas alguns dos demônios convocados, pois sua memória não guardou o nome
de todos.
Ao concluir a narrativa, o autor descreveu como Zé do Caixão venceu Satanás e seu
exército: bateu com uma cruz nos demônios e os jogou ao chão. Mas, após os braços da cruz
serem quebrados, passou por um péssimo momento, só se resolvendo quando encontrou
em uma tumba um cordão de São Francisco, e com ele derrotou, amarrando os demônios e
fazendo-os desaparecer do cemitério.
Neste cordel, o cemitério era o canal de ligação entre a Terra e o Inferno, e campo
de disputa entre o diabo e os homens, neste caso Zé do Caixão, que mesmo sendo uma
personagem estava lá, para vencer as forças do mal utilizando elementos cristãos. Vale ressaltar
que a nominação dos demônios sugere também o humor, visto que muitos deles se tornam
engraçados aos olhos do leitor acostumado com a lógica do cordel e seus gracejos. Na última
estrofe, o poeta desvendou a trama e não deixou de dar o tom moral ao seu folheto, utilizando
um acróstico, comum em cordéis para garantir a autoria.
20 Idem, p. 18-20.
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Assim Zé do caixãoLevado a mais outro dramaMisterioso, terrível,Embora fosse na cama,Isso porque foi um sonho,Deus dá um mundo risonhoA quem só por Ele chama.21
Considerações finais
O cordel nos apresenta os cemitérios em suas diversas dimensões simbólicas
e narrativas. Há para todos os gostos ou melhor, para todos os públicos. O cordelista não
desafia a lógica de seu leitor, de seu cliente, muito pelo contrário, ele reforça aquilo que já está
consolidado entre o público receptor e o mercado. O cemitério como lugar de enterramento
e da garantia de uma boa morte também se apresenta na poética cordeliana como a morada
de fantasmas, monstros, assombrações, demônios, milagreiros, mortos-vivos que convivem
nas páginas dos folhetos causando para alguns repulsa e horror e, para outros, humor e boas
gargalhadas. O cemitério é espaço dinâmico e em constante transformação e o cordel, da
mesma forma, não deixa esta dimensão ser esquecida, introduzindo a necrópole como espaço
privilegiado de vivências humanas, inumanas e sobrenaturais.
O cemitério nos cordéis é descrito pelas sensibilidades que lhes são inerentes, e os
cordelistas são os porta-vozes destes olhares, sons, cheiros e narrativas que chegam até nós
pelas páginas de folhetos que não pararam no tempo. O cordel não jaz. O cordel se refaz, se
ressignifica, se atualiza... como os cemitérios... que assim seja!
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21 Idem, p. 31.
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Recebido em: 29 de outubro de 2017.
Aprovado em: 29 de novembro de 2017.