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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA
O TEMPO NO LIVRO XI DAS CONFISSÕES DE AGOSTINHO
Patricia Adriana Corrêa Ferreira
São Paulo
2015
PATRICIA ADRIANA CORRÊA FERREIRA
O TEMPO NO LIVRO XI DAS CONFISSÕES DE AGOSTINHO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia da Universidade São Judas Tadeu, como exigência parcial para a obtenção do título de mestre em filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Floriano Jonas César
São Paulo
2015
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Universidade São Judas Tadeu Bibliotecária: Daiane Silva de Oliveira - CRB 8/8702
ficha
Ferreira, Patricia Adriana Correa F383t O tempo no livro XI das confissões de Agostinho/ Patricia Adriana Correa Ferreira. - São Paulo, 2015.
77 f. ; 30 cm.
Orientador:Floriano Jonas Cesar. Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2015.
1. Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430.2. Eternidade. 3.
Linguagem. 4. Tempo (Filosofia).I.Cesar, Floriano Jonas. II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título
CDD 22 - 115
DEDICATÓRIA
Aos meus filhos Leticia, Henrique e Renato
AGRADECIMENTOS
A Deus, que é a minha força.
Ao meu orientador professor Floriano por não desistir de mim.
Ao meu professor Paulo Henrique que me lecionou, durante um semestre e com toda dedicação mesmo eu sendo a única aluna.
Ao meu marido Carlos e aos meus filhos Leticia, Henrique e Renato por estarem junto comigo.
A minha mãe Rosa, tão querida.
A minha família Corrêa pela força, carinho, alegria e apoio.
A todos os meus amigos da Faculdade Canção Nova em especial ao meu amigo professor Dr. Lino Rampazzo, pela sua presença sempre humilde e sábia que me inspira a seguir o
conhecimento.
RESUMO
Dissertação com objetivo de refletir sobre a questão do tempo, tendo como base o livro XI das Confissões de Agostinho que tem como tema principal que a análise do tempo depende necessariamente da ideia de eternidade divina. Para Agostinho, o tempo é um tema tão cotidiano e comum na vida do ser humano que, ao tentar explicá-lo escapa seu sentido. Por isso o autor elabora uma análise sobre o tempo a partir da perspectiva da eternidade divina, tendo como foco a leitura das Escrituras Sagradas na passagem Genesis I, i. “No princípio criastes o céu e a terra”.
O tema sobre o tempo é assunto pertinente e fonte de pesquisa de muitos filósofos, mas é a partir de Agostinho que o tema é reinterpretado sob a luz da exegese bíblica, que fundamenta a origem de todas as coisas a partir da criação ex nihilo. O tempo, estando na condição de criatura, possui uma finitude que, em comparação à eternidade divina, que não tem começo nem fim, necessita de uma linguagem adequada para que seja expresso. Que linguagem usar para falar do tempo?
O tempo passa a ser analisado em si mesmo sob a forma de enigma, que serve para mostrar que o tempo, considerado na perspectiva da eternidade, pode ser considerado distensão da alma. Assim é possível viver a temporalidade que se dá pela escuta do Verbo divino que está presente no interior de cada homem. Para possibilitar uma solução, Agostinho muda a perspectiva da pergunta sobre o que é o tempo para a pergunta quem pode medir o tempo. E o tempo passa a ser analisado como uma possibilidade que ultrapassa o sentido das palavras, porque ele é percebido pela alma.
Pela distensão, a alma faz viver o tempo num presente atualizado pela junção da memória, da expectativa e da espera num presente contínuo. O que há de novo nesta pesquisa é o fato de ser possível descrever o tempo com a própria vivência da temporalidade, cultivada no interior de cada um pela escuta do Verbo divino. O homem que quer entender o tempo passa a reconhecê-lo num movimento que se dá do exterior para o interior. Palavras chave: tempo, eternidade, linguagem, distensão da alma.
ABSTRACT
The objective of this dissertation is to reflect about the question of time based on Book XI das Confissões de Agostinho, which has as main theme the analysis of time as necessarily dependent on the divine eternity. For Agostinho, the time is a common theme nowadays and also in human life and, when man tries to explain it, it’s meaning escapes. So the author compiles an analysis over time from the perspective of the divine eternity, with the reading of the Holy Scriptures focus on the passage Genesis I, i. "In the beginning you created heaven and earth." The issue of time is a relevant topic and research source of many philosophers, but it is from Augustine that the theme is reinterpreted in the light of biblical exegesis, that moved the origin of all things from the ex nihilo creation. Time, being in the condition of creature, has a finitude that compared to the divine eternity, which has no beginning or end, needs a proper language to be expressed. What language to use to talk about time? Time can be analyzed in itself in the form of an enigma and its objective is to show that time, considered from the perspective of eternity, can be considered distension of the soul. So it is possible to live temporality that is given by listening to the divine Word, which is present inside each man. To make a possible solution, Agostinho changes the perspective of the question about time to ask who can measure time. And time can be analyzed as a possibility that goes beyond the meaning of words because it is perceived by the soul. By stretching, soul that lives time in this updated by the junction of the expectation memory and waiting in a continuous present. What's new in this research is the fact that it is possible to describe the time with own experiences of temporality, cultivated within each one by the listening of the divine Word. The man who wants to understand time comes to recognize it in a movement that is from the outside to the inside. Keywords: time, eternity, language, distension of the soul.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 9
I CAPÍTULO -– O TEMPO NAS CONFISSÕES: ASPECTO TEOLÓGICO ...................... 12
1.1 A relação criatura-Criador como chave para a discussão sobre o tempo............................. 13
1.2 A criação ex nihilo e o problema do tempo ......................................................................... 19
1.3 A eternidade como “tempo de Deus” .................................................................................. 27
I I CAPÍTULO – O TEMPO NAS CONFISSÕES: DA EXPRESSÃO DO TEMPO ............ 30
2.1. O que é o tempo? ................................................................................................................ 31
2.2 O tempo em Agostinho ........................................................................................................ 35
2.3 A medida do tempo .............................................................................................................. 40
2.4 Linguagem e eternidade....................................................................................................... 43
III CAPÍTULO -– O TEMPO NAS CONFISSÕES: ASPECTO ANTROPOLÓGICO ....... 50
3.1 O conhecimento de si e o movimento da interioridade ....................................................... 51
3.2. A relação entre temporalidade e eternidade ....................................................................... 62
3.3. Eternidade e tempo ............................................................................................................. 66
CONCLUSÃO .............................................................................................................................. 72
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 76
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INTRODUÇÃO
A reflexão de Agostinho sobre o tempo encontra nas Confissões seu lugar natural,
especialmente no Livro XI. Esse livro tem um lugar importante na discussão sobre o tempo e é
referência para vários autores, sendo foco de constantes pesquisas e estudos. Renovar ou inovar
nessa pesquisa é tarefa muito difícil, dada as inúmeras interpretações e trabalhos centrados nesse
tema. O motivo mais relevante que inicialmente nos levou a abordar o assunto foi pensar na
possibilidade de analisá-lo o assunto de maneira filosófica, mas sem contrariar os preceitos
cristãos. Essa abordagem implicaria, então, que somente o crente poderia estudar o tempo em
Agostinho? Engana-se quem pense assim, pois a análise agostiniana sobre o tempo permite
diferentes leituras. Nossa primeira expectativa ao ler o livro XI das Confissões foi acreditar que o
texto agostiniano se desenvolveria no sentido de conduzir o leitor ao conceito de tempo, o qual, a
qualquer momento, Agostinho explicitaria. Isso não aconteceu como esperado. O exame do
tempo nas Confissões XI não se compromete com a certeza de uma resposta. Entre os contrastes,
antíteses, conceitos ora afirmados, ora questionados, Agostinho conduz a reflexão de maneira tal
que sua trajetória pessoal se mostra como sendo aquela do próprio homem. Ele trata questões
pertinentes ao seu estado de espírito como características de todo homem que está submetido a
este mundo, mas cuja vida supera qualquer expectativa puramente mundana. Precisamente essa
visão sobre o homem leva-o à análise do tempo na perspectiva da eternidade.
Tratar a questão do tempo no livro XI das Confissões se justifica por duas razões, pelo
menos. A primeira é historiográfica. A obra é um clássico reconhecido pelo seu grau de
importância e por sua influência sobre o pensamento filosófico de vários autores. É um tema
bastante tratado, e sobre ele existe uma gama de trabalhos. No Brasil, o assunto tem sido
abordado em vários estudos, e, tendo escolhido situar nossa dissertação nesse contexto,
recorremos a alguns comentadores cujas obras auxiliaram nossa análise, entre eles, Moacyr
Novaes, Cristiane Ayoub Abbud, Francisco Benjamim da Costa Neto e Jeanne-Marie Gagnebin.
A segunda razão para tratamos a questão do tempo no livro XI é sua importância atual. Como o
pensamento de Agostinho nos faz refletir sobre a relevância atual desse problema? Apesar de as
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Confissões serem um texto já bastante estudado, seria um engano pensar que o assunto se esgote
ali. O tema sobre o tempo faz parte das questões inerentes a todo homem. O homem está inserido
no tempo, fala no tempo e é envolvido por ele, mesmo que não queira pensar sobre isso, mas de
uma forma ou de outra, o tempo é cotidiano e sempre presente em sua forma mais simples,
notada na própria fala humana. Percebemos o tempo que passa, pelo relógio, num insistente andar
dos ponteiros, que nos indicam o atraso e os afazeres. Encurtamos o tempo, pela rapidez
tecnológica, que encurta distâncias e aproxima pessoas. Aproveitamos o tempo, perdemos tempo,
às vezes, nem temos tempo. As marcas do tempo se perdem num instante e permanecem em
nossos rostos impiedosamente, mas evidentemente, não será desse tempo tão cotidiano que
falaremos.
Considerando que a questão do tempo no livro XI das Confissões é importante, mas não
uma novidade, como se estruturará nossa interpretação? Nosso objetivo é pensar que a ideia de
tempo depende necessariamente da eternidade divina. Tal é o eixo principal da dissertação, cujos
capítulos se dividem da seguinte maneira. O capítulo I, “O tempo nas Confissões: aspecto
teológico” tem como foco principal a análise dos capítulos 1 a 13 do livro XI das Confissões, e
enfatiza uma interpretação do tempo a partir da dependência do homem em relação a Deus. Essa
dependência sugere que, através da análise do tempo, seja possível reconhecer que a eternidade
divina revela a verdadeira possibilidade de entender o que é o tempo. Para tanto, estabelecemos
alguns passos principais que definem o curso desse capítulo: mostrar que os capítulos iniciais do
livro XI não são uma simples introdução, mas uma preparação para a pergunta sobre o tempo,
tendo como ponto de partida a eternidade divina; analisar a questão do tempo a partir da Criação
e explorar a diferença entre tempo e eternidade. Na primeira seção do capítulo se discute a
relação criatura-Criador como chave para discussão sobre o tempo, delimita-se a natureza finita
do homem e a natureza infinita de Deus. Articula-se, em seguida, o tempo metaforicamente, na
tentativa de encontrar palavras para descrever o Verbo divino. A criação ex nihilo vem mostrar
que Deus, possuindo uma vontade diferente da vontade humana, criou todas as coisas, inclusive o
tempo. Após analisar o tempo em si mesmo, continuaremos o trabalho examinando-o na
perspectiva da eternidade.
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O capítulo II, “O tempo nas Confissões: Da expressão do tempo” desloca a análise agora
vinculando o tempo à eternidade divina. Primeiro, o tempo é investigado pela análise do seu ser.
Depois, Agostinho o transforma num enigma, que, ao ser resolvido, inverte a perspectiva do
questionamento sobre o ser do tempo para o lugar onde é possível medi-lo, a saber, a alma.
Assim, a linguagem adequada para dizer o tempo deve ser colhida no interior de cada um.
No terceiro capítulo, “O tempo nas Confissões: Aspecto antropológico”, tendo
consciência da temporalidade vivida interiormente, a partir do conceito de tempo como distensão
da alma, o homem vai conhecer a si mesmo num movimento de interioridade. Esse processo faz
com que o homem interior cresça em conformidade com a eternidade divina e, pelo estreitamento
da relação entre o homem e Deus, faz compreender o tempo como possibilidade interior.
A dissertação visa fazer uma análise sobre o tempo nas Confissões XI como um exercício
filosófico, sem a pretensão de encontrar aí um conceito pronto do que seja o tempo. Cada homem
é um ser único que possui a sua história e para o qual o tempo possui um significado particular.
Nosso objetivo é explorar o caminho que leva Agostinho à vivência de um tempo descoberto no
interior de cada um, sob a forma de temporalidade. Nesse processo, o homem não apenas toma
consciência desse tempo interior, mas encontra meios para aprofundá-lo e expressá-lo não
somente com palavras, mas com a vida.
Por fim, vale ressaltar que não ignoramos a amplitude dos conceitos citados no trabalho,
como ser, vontade, iluminação divina, nem desmerecemos outras abordagens sobre o tema.
Nosso interesse é apenas fazer uma análise possível sobre o tempo no livro XI, da perspectiva
apresentada acima. Estamos cientes, em particular, de que a linguagem é um tópico importante e
amplo. Nesta abordagem, a linguagem, quando tratada, vai refletir a tentativa agostiniana de
expressar e conduzir a discussão sobre tempo. Com dissemos, o eixo principal da dissertação é o
argumento de que, na dinâmica da discussão agostiniana sobre o tempo, não é possível dissociar
o tempo da eternidade. O relato a seguir espera indicar o caminho feito por Agostinho no livro XI
das Confissões ao refletir sobre eternidade e tempo, tempo e eternidade e a correlação entre eles.
Nessa análise filosófica sobre o tempo, no livro XI das Confissões, a Filosofia cumpre o seu
papel, e a linguagem se vê, enfim, destinada ao silêncio.
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I CAPÍTULO – O TEMPO NAS CONFISSÕES: ASPECTO TEOLÓGICO
Si l’analyse augustinienne du temps, dans le livre 11 des Confessions, ne cesse d’être revisitée par nos contemporains, il est légitime de s’interroger sur la pertinence de ces relectures. Actualiser la pensée augustinienne, n’est-ce pas inévitablement l’altérer ? L’historien ne peut qu’être défiant face à une telle entreprise. À l’inverse, toutefois, le philosophe ou le théologien peut déceler dans ces relectures un indice de la pertinence et de la fécondité de la réflexion d’Augustin sur le temps : elle nous donne aujourd’hui encore à penser.1
Há certa dinâmica na discussão sobre o tempo nas Confissões de Agostinho que torna
eternidade e tempo, temas indissociáveis. Essa dinâmica faz com que o conceito de tempo
dependa da ideia de eternidade divina, uma vinculação que se constitui no eixo principal de nossa
dissertação. A linguagem agostiniana, preocupada mais em explorar possibilidades do que
apresentar certezas,
impulsiona o texto para um exercício de busca pela natureza do tempo. Neste primeiro
capítulo, nossa análise segue à procura do significado do tempo no livro XI das Confissões,
enfocando o aspecto teológico desse exercício, uma leitura baseada particularmente nos capítulos
1 a 13 desse livro.
O que chamamos “aspecto teológico” enfatiza uma interpretação do tempo a partir da
dependência do homem em relação a Deus. Tal é o ponto central que este capítulo espera
explorar. Para discutir o tempo, Agostinho aborda primeiramente a eternidade e, a partir dela,
surge a questão tempo. O “Princípio eterno do tempo” 2 indica a dinâmica da discussão do tempo
e eternidade. Essa expressão, usada por Moacyr Novaes, sugere a unidade e, ao mesmo tempo, a
separação dos termos: o tempo, que não é eterno, possui um princípio eterno. Em tão poucas
palavras, ela resume a dinâmica que ocorre na explicação agostiniana sobre o tempo. A princípio,
pensamos abordar esses capítulos iniciais do livro XI como uma introdução ao problema do
tempo. Percebemos, porém, que eles são mais do que uma introdução. Trata-se de uma
1 BOUCHET, I. Variations contemporaines sur un thème augustinien: l'enigme du temps. 2001. 2 Cf. NOVAES, Moacyr. “Eternidade em Agostinho, Interioridade sem sujeito”. Analytica, Rio de Janeiro v. 9, n.1,
2005.
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“preparação para a pergunta sobre o tempo” 3, pois Agostinho não pergunta aí diretamente o que é
o tempo, mas prepara a pergunta. Ele declara, por oração e invocação, nossa dependência de
Deus e, ao focar a atenção na exegese das Escrituras a partir de Gênesis 1,1, “No princípio Deus
criou o céu e a Terra”, começa a refletir sobre a origem das criaturas, inclusive do tempo. O
homem é uma criatura finita que tem origem na infinitude divina, e precisamente essa relação
com o criador lhe permite procurar compreender o tempo. Ao buscar a verdade sobre o tempo,
Agostinho tenta entender, mas não responde diretamente o que seja o tempo e esbarra nos limites
da fé e da razão.
Os quatro passos principais que definem o curso deste capítulo são: mostrar que os
capítulos iniciais do livro XI não são uma simples introdução, mas uma preparação para a
pergunta sobre o tempo, tendo como ponto de partida a eternidade divina; analisar a questão do
tempo a partir da Criação; e explorar a diferença entre tempo e eternidade, uma diferença que
simultaneamente os distancia e aproxima.
1.1 A relação criatura-Criador como chave para a discussão sobre o tempo
Para dar o primeiro passo de nossa análise, ou seja, mostrar que os capítulos iniciais do
livro XI não são apenas uma introdução, mas uma preparação para a pergunta sobre o tempo,
tendo como ponto de partida a eternidade divina, vale examinar algumas evidências textuais,
entre elas, o lugar chave da relação criatura-Criador para a discussão sobre o tempo.
No livro XI das Confissões, Agostinho não pergunta imediatamente o que seja o tempo. A
questão não é tratada aí diretamente. Há primeiramente uma preparação para a pergunta sobre o
3 NOVAES, Moacyr. O tempo como enigma. In: A RAZÃO EM EXERCÍCIO. Estudos sobre a filosofia de
Agostinho. 2ª ed. São PAULO: Discurso Editorial: Paulus, 2009, p. 252. Acompanhar a reflexão agostiniana nesses capítulos das Confissões como uma “preparação para a pergunta sobre o tempo”, nos possibilita chegar à conclusão de o tempo investigado em si mesmo como enigma, não resolve o problema do tempo, mas possibilita mudar a investigação para o verdadeiro sentido do tempo, colhido sob a perspectiva da eternidade divina.
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tempo, que se estende do capítulo 1 ao13. Nessa parte preparatória, desde o início desse livro,
portanto, Agostinho revela, ora pela confissão, ora pela oração a sua dependência em relação a
Deus. A razão que questiona todas as coisas faz despertar questionamentos próprios do homem,
tais como: quem é Deus? Quem criou todas as coisas? Qual é o meu destino? Qual a razão de ser
de todas as coisas? E, posteriormente, o questionamento do próprio tempo. Agostinho caracteriza
essa relação de várias maneiras. Ao invocar e louvar a Deus a todo instante, ele retrata a miséria
humana na sua pessoa. O homem Agostinho representa aí a todos os homens. Através da
confissão, ele expressa a crença em um Deus infinitamente perfeito. Essa relação explicita a
finitude humana diante do infinito e dará a chave para se falar do tempo, finito, em contraste com
a eternidade infinita.
Para um cristão, assimilar a ideia da associação entre Deus e a eternidade parece tarefa
fácil e Agostinho, tendo então já se convertido ao cristianismo, de fato proporciona um diálogo
acessível a todo homem que crê em Deus. Seria, então, preciso acreditar em Deus para falar do
tempo em Agostinho? Parece que não, pois, se isso fosse condição, todos os questionamentos de
Agostinho sobre o tempo poderiam ser resolvidos pelo recurso da fé 4, e sua reflexão não seria, a
rigor, filosófica. Mas não é este o caso. A relação de Agostinho com Deus é certamente de
dependência e repercute em sua mentalidade, linguagem e postura diante de Deus, do mundo e do
homem. Mas Agostinho quer “crer para entender” e “entender para crer”. 5 Ele não quer colocar
em choque fé e razão, um tema determinante em sua biografia. 6 Esse caráter filosófico da análise
4 É importante notar que, a influência do pensamento agostiniano expresso em várias obras e principalmente nas
Confissões se estendem aos homens de fé e àqueles que buscam a verdade. Quanto à Filosofia, é inegável a importância das Confissões como fonte e referência para vários filósofos: “De São Tomás de Aquino, passando por Petrarca, a Descartes, de Rousseau, passando por Goethe, a Ludwig Wittgenstein e Martin Heidegger, os mais renomados pensadores ocuparam-se com esta obra”. (BRACHTENDORF, 2012)
5 Essa é uma expressão muito interessante de S. Agostinho, que influenciou muito a filosofia e a teologia: crede ut intelligas (creia para compreender) e intellige ut credas (compreenda para crer) (Sermão 43, 9). Trata-se do diálogo entre a fé e a razão. AGOSTINO, Santo. Discorso 43,9. Disponível em: <http://www.augustinus.it/italiano/discorsi/discorso_054_testo.htm>. Acesso em: 13 maio 2015.
6 “Quando era criança tinha aprendido da sua mãe Mônica a fé católica. Mas quando era adolescente abandonou esta fé porque não via a sua racionalidade e não queria uma religião, que não fosse também para ele expressão da razão, isto é, da verdade. A sua sede de verdade era radical e levou-o, portanto a afastar-se da fé católica. Mas a sua radicalidade era tal que ele não podia contentar-se com filosofias que não alcançassem a própria verdade, que não chegassem a Deus. Assim todo o percurso intelectual e espiritual de Santo Agostinho constitui um modelo válido também hoje na relação entre fé e razão, tema não só para homens crentes, mas para cada homem que procura a verdade, tema central para o equilíbrio e o destino de cada ser humano.
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agostiniana é uma discussão complexa, e não vamos nos aprofundar nessa questão. Apenas nos
propomos a acompanhar o raciocínio de Agostinho sobre a discussão da eternidade e do tempo.
Nesse âmbito, basta ressaltar que Agostinho, ao focar no estudo das Escrituras, não faz separação
entre filosofia e teologia, nem entre fé e razão, pois o que ele procura é a verdade. E a Verdade
que ele procura ao centrar sua leitura das Escrituras no livro do Gênesis acompanha toda
discussão que pretendemos analisar.
Agostinho inicia o livro XI descrevendo um efeito particular da eternidade divina: Deus,
que conhece todas as coisas, não precisa da informação do homem para saber qualquer
acontecimento. Ele questiona: “Confessar a Deus o que ele já conhece?”. “Sendo Vossa a
eternidade, ignoras porventura, Senhor, o que Vos digo, ou não vedes no tempo o que se passa no
tempo?”7 Agostinho retoma nessa passagem uma atitude do início das Confissões: não é para
Deus que escreve, mas, sim, para dar testemunho do amor a Deus e estimular os leitores a
fazerem o mesmo. Ele faz uma “análise filosófica sobre a essência do tempo” 8 e afirma que a
eternidade pertence a Deus e enuncia “na primeira frase o tema do livro um estudo dos conceitos
de eternidade e tempo”. 9
Seguindo esse contraste, Agostinho vai abordar o tempo combinando religião e filosofia.
Como dissemos, a análise sobre o tempo não ocupa todo o livro XI. Primeiramente, é feita uma
exegese de Gênesis 1,1, “No princípio criastes o céu e a terra”, que serve como uma preparação,
um ponto de partida para se compreender o que é realmente o tempo. Ainda no primeiro
parágrafo, a verdade citada será a das Sagradas Escrituras, que Agostinho, tendo se convertido ao
cristianismo, reconhece ser fonte da verdade revelada. A referência à verdade mostra a atitude de
Agostinho em busca da verdade desde seu despertar para a filosofia com a leitura de Cícero, cujo
estilo ia ao encontro de sua formação retórica até a sua conversão. Na primeira tentativa para ler
http://www.snpcultura.org/o_essencial_sobre_santo_agostinho_por_bento_xvi.html. Acesso em 13 maio 2015.
7 Confissões XI i 1. 8 Confissões XI, i. 9 AYOUB, Cristiane Abbud; NOVAES, Moacyr. Agostinho: A razão em progresso permanente. In: MARÇAL, Jairo (Org.). Antologia de Textos Filosóficos. Curitiba: SEED – Pr., 2009, 736p.
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as Escrituras, Agostinho achou-as indignas de comparação com a elegância ciceroniana. 10
“Agostinho estranha a simplicidade das Sagradas Escrituras e, apesar da estranheza, vê nas
Escrituras a possibilidade de encontrar a Verdade, buscada filosoficamente”. 11
A filosofia como ele já havia explicado restringe-se a uma observação racional do eterno e dos princípios, enquanto a fé apreende as verdades históricas, reveladas. Mas a Bíblia também contém declarações sobre o eterno, que não podem ser apenas objeto de fé, mas também podem ser filosoficamente conhecidas. 12
Agostinho, ao fazer uma análise filosófica a respeito do tempo, vê nas Escrituras a
possibilidade de encontrar a Verdade filosoficamente, mas percebe os limites da filosofia. Que
filosofia Agostinho está criticando? Parece criticar a Filosofia, mas não a busca filosófica. De
outra forma, seria estranho pensar que Agostinho faz uma análise filosófica a respeito do tempo
no livro XI e ao mesmo tempo critica a Filosofia.
Esta seção, “A relação criatura-Criador como chave para a discussão sobre o tempo”, tem
exatamente como objetivo mostrar como o homem que submete-se a Deus, acredita Nele e aceita
a dinâmica do criado com seu criador, do finito com o infinito, entra na discussão sobre o tempo e
a eternidade. Dessa forma, ao se relacionar com Deus, Agostinho tem a necessidade de saciar a
sede de alguém que está se convertendo e procura encontrar expressão para descrever os efeitos
dessa conversão. Agostinho, no capítulo 2 do livro XI das Confissões, articula o tempo
metaforicamente e lida com a relação do homem que crê com o criador. Seu desafio é encontrar
palavras para dialogar com o Verbo e não para descrevê-lo. Com efeito, “como descrever Deus?
Se por palavras o disser, muito longe se define realmente o seu ser”. 13
Quando poderei eu, com a língua da minha pena, enumerar todas as vossas solicitações, terrores, consolações e incitamentos com que me introduzistes a pregar a vossa palavra e
10 Cf. MATHEUS, Gareth B. Santo Agostinho. São Paulo: Edições 70, 2008, p. 21. 11 BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Tradução de Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições
Loyola Jesuítas, 2012. 12 Ibidem. 13 AYOUB, Cristiane Abbud e Moacyr Novaes. Agostinho: A razão em progresso permanente. In: MARÇAL, Jairo
(Org.). Antologia de Textos Filosóficos. Curitiba: SEED – Pr, 2009, p. 69-80.
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a distribuir a vossa doutrina ao vosso povo? Mesmo que fosse capaz de as enunciar por ordem, cada gota de tempo me é preciosa. Desde menino que anseio ardentemente meditar a vossa lei, e nela confessar-Vos a minha ciência e imperícia, os primeiros alvores da iluminação da minha alma e os restos das minhas trevas, até que a minha fraqueza seja absorvida pela vossa fortaleza. Não quero gastar em outras coisas as horas que me deixam livres as necessidades de alimentar o corpo e de repousar da contensão do espírito. Gastarei nisso os momentos livres dos serviços que devemos aos homens e dos que lhes prestamos sem lhos dever. 14
Nesse encalço, Agostinho, sem a preocupação com um discurso filosófico, discorre
filosoficamente sobre Deus, sobre o mundo e o homem. Esse diálogo é filosófico, mesmo sem as
pretensões do discurso filosófico, sendo caracterizado pelo homem que pergunta sobre a origem
de tudo e pela razão humana que pergunta o porquê das coisas. Agostinho parece contraditório,
mas é exatamente essa postura que constrói o seu discurso e marca o seu estilo. Entre
contradições e questionamentos, entre afirmações e conotações, entre metáforas e o jogo das
palavras, Agostinho ora afirma, ora não. Se a Filosofia não se propõe a responder aos
questionamentos, então se justifica considerar a confissão de Agostinho como um texto
filosófico.
Assim, Agostinho trilha o caminho do conhecimento para buscar a verdade que sustenta a
fé. A leitura da Bíblia e a interpretação da palavra de Deus fazem-no compreender a Verdade,
exercer a virtude e a fé. Nessa relação entre Deus, o mundo e o homem, será necessário
compreender como “no princípio Deus criou” 15 todas as coisas, mas é preciso lembrar que essa
compreensão depende da linguagem humana, que é limitada e falha. Por mais palavras que
existam, estas não expressam a verdade em si, mas a verdade que está “na morada do
pensamento”. 16 Sendo assim, as palavras não são suficientes para expressar a verdade revelada.
14 Conf. XI ii 2. 15 Há, nos capítulos 3 e 4 das Confissões, uma reflexão sobre o significado da criação. Em relação a “compreender
como no princípio Deus criou”, nossa leitura será feita abaixo, dentro do subtítulo “A criação ex nihilo”, quando citaremos as quatro interpretações agostinianas sobre o relato bíblico da criação. Para um melhor detalhamento dessas interpretações, conferir: AYOUB, Cristiane Negreiros Abbud. Iluminação Trinitária em Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2011.
16 Conf. XI iii 5.
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A mesma Verdade, que verdade, que não é hebraica, nem grega, nem latina, nem bárbara dir-me-ia interiormente, dentro do domicílio do meu pensamento, sem o auxilio dos órgãos da boca e da língua, e sem ruído de sílabas: “Moisés fala verdade”. E eu, imediatamente, com toda a certeza e confiança, diria àquele vosso servo: ”Dizeis a verdade”. Como o não posso consultar, interrogo-Vos, ó verdade cuja plenitude ele possuía e com a qual enunciou aquelas verdades. Suplico-Vos, ó meu Deus, que me perdoeis os pecados, e, já que permitistes que aquele vosso servo dissesse estas coisas, fazei também que eu compreenda. 17
A questão do tempo assim articulada, linguística ou metaforicamente, aponta para a
relação do homem de fé e o criador. Mostra que a linguagem humana possui limites e pode
articular apenas um exercício de esclarecimento da alma humana sobre essa verdade. E exercício
pressupõe constância. A linguagem temporal se constitui num exercício “de dirigir-se e amoldar-
se ao Princípio eterno e não de tentar explicá-lo”.18 Como dissemos, a questão do tempo é, por
vezes, articulada em Agostinho metaforicamente. Assim, num primeiro momento, é preciso
compreender como Deus criou, e esse “como Deus criou” será a chave para entendermos a
questão do tempo e sua dialética com a linguagem. Este tema será discutido no capítulo 2, seção
2.3 “Linguagem e eternidade” desta dissertação.
Em que sentido a análise de Gênesis I,1 “No princípio Deus fez o céu e a terra” leva à
análise do tempo? Segundo Brachtendorf, a maneira como Agostinho faz a exegese do início do
Gênesis é “de um tipo especial”.19 Agostinho não faz uma análise crítica da história, porque,
simplesmente, ele está interessado em fazer uma análise filosófica. “Agostinho trata o primeiro
versículo da Bíblia [...] como uma proposição metafísica, cuja verdade pode ser julgada pela
razão”. 20 “Segundo Agostinho, há aqui uma proposição metafísica, e por isso deve ser possível
uma intelecção de sua verdade”. 21
17 Ibidem. 18 Cf. NOVAES, Moacyr. “Eternidade em Agostinho, Interioridade sem sujeito”. Analytica, Rio de Janeiro v. 9, n.1,
2005. 19 BRACHTENDORF, 2012, p. 241. 20 Ibidem. 21 Ibidem.
19
A influência platônica na formação filosófica de Agostinho é inegável e marca
profundamente seu pensamento. A metafísica platônica, ora encontrada na explicação do tempo,
é, ao mesmo tempo, reinterpretada e superada por Agostinho. Essa influência dá margem para
entender o tempo na perspectiva do ser e do não-ser, e permitirá a interpretação do tempo com
vistas à eternidade. Essa interpretação será discutida no segundo capítulo desta dissertação.
Por que a interpretação histórica não basta? Mesmo havendo um sentido metafísico,
moralizante, divinamente pedagógico nos eventos históricos, os quais se procura desvendar,
Agostinho não o faz por meio de uma interpretação histórica. A maneira como ele conduz sua
exegese é sui generis. Agostinho não nega os eventos históricos, mas olha para além do que
aparece. Deus fala nos fatos, mas a interpretação racional abre espaço para a fé, instalando-se,
assim, o diálogo entre fé e razão. Por isso a insistência na linguagem como exercício de
esclarecimento da alma sobre a verdade. A exegese agostiniana do Gênesis22 deverá mostrar que
Cristo também foi mediador na produção da Criação. Em certo sentido, “é a meta de todo o
décimo primeiro livro que o homem, o qual está entre a eternidade e o tempo, ao voltar-se para a
verdade interna, dirige-se à sua pátria imortal”. 23
1.2 A criação ex nihilo e o problema do tempo
A questão do tempo nas Confissões se origina no problema de como Deus criou o mundo.
Como veremos, a base para compreendermos esse problema é a palavra, a palavra que cria versus
e a palavra que soa, contraste que mantém a dinâmica apontada anteriormente entre criador e
criado, começo e fim, eterno e finito, eternidade e tempo. Com esta seção, esperamos começar a
apresentar uma explicação mínima do que seja o tempo, mostrando que, com a criação ex nihilo,
22 Há quatro interpretações de Agostinho sobre o Gênesis, analisadas no livro Iluminação Trinitária em Santo
Agostinho, de Cristiane Negreiros. (AYOUB, Cristiane Negreiros Abbud. Iluminação Trinitária em Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2011).
23 BRACHTENDORF, 2012, pag. 241.
20
a discussão do tempo passa a tomar forma. Iniciamos, assim, o segundo passo deste capítulo, a
saber, retomar a reflexão agostiniana sobre a questão do tempo a partir da Criação.
A explicação agostiniana da criação ex nihilo acontece através de uma exegese do
primeiro capítulo do livro do Gênesis e mostra, no processo da Criação, que o tempo também é
uma criatura. Nada existia antes que fosse criado. Então, do nada Deus criou. 24
Existem, pois, o céu e a terra. Em voz alta dizem-nos foram criados, porque estão sujeitos a mudanças e vicissitudes. Ainda mesmo o que não foi criado e todavia existe nada tem em si que antes não existisse. Portanto sofreu mudança e passou por vicissitudes. Proclamem todas estas coisas que não se fizeram a si próprias: “Existimos porque fomos criados. Portanto, não existíamos antes de existir, para que nos pudéssemos criar“. 25
Segundo Etienne Gilson:
Para Agostinho o mundo só pode ter duas origens: ou Deus o criou do nada, ou tirou-o de sua própria substância. Admitir a última hipótese é admitir que uma parte da substância divina possa se tornar finita, mutável, submissa as alterações de todos os tipos e também a destruições que sofrem as partes do universo. Se tal suposição é contraditória, conclui-se que Deus teria criado o universo do nada. Entre o divino e o mutável, portanto, a oposição é irredutível, mas o problema apenas torna mais difícil saber como o eterno e o imutável podem ter produzido o temporal e o mutável. 26
Os passos iniciais da análise feita por Agostinho do livro do Gênesis 1,1, “No princípio
Deus fez o céu e a terra”, ou mesmo antes, a própria explicação do que sejam as Confissões,
contêm uma caracterização básica do que seja o tempo. Na dinâmica da Criação, “céu e terra”
revelam o motivo da mudança, afirmam “que foram criados” 27 e que a teoria da palavra criadora
e sua manutenção são parte da criação ex nihilo. Cabe então perguntar como Deus criou e qual o
princípio em que foi criado. Mas antes de enfrentar essa pergunta, vale ressaltar que a discussão
do tempo não está presa ao problema da Criação, “ela está situada já na decisão de interrogar
24 A questão da criação a partir do nada é trazida à tona em Conf. XI iv. 25 Conf. XI iv 6. 26 GILSON, Etiènne. Introdução ao estudo de santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2006. 27 Conf. XI iv.
21
(confissionalmente) as Escrituras.” 28 Nas Confissões, inicialmente, o homem precisa reconhecer
que possui uma natureza distinta da natureza divina para que possa superar essa “finitude”,
“recorrendo àquilo que nele se assemelha a Deus.” 29 Nesse sentido, não se trata apenas de
contrapontos ou de comparações extremas entre o finito e o infinito, mas é preciso “algum
conhecimento” do que seja o tempo para que a reflexão nas Confissões tenha prosseguimento.
Por isso, Agostinho afirma: “cada gota de tempo me é preciosa” 30. A atitude confessional
expressa, ao mesmo tempo, a limitação humana e o pedido de misericórdia divina. “Por isso,
patenteamos o nosso amor para convosco, confessando-Vos as nossas misérias, as vossas
misericórdias” 31. Ao confessar-se, Agostinho tenta se afastar do orgulho que o distanciou da
possibilidade de encontrar a verdade.
Por isso nos chamastes para que fôssemos pobres de espírito e mansos, para que chorássemos tendo fome e sede de justiça, para que fôssemos misericordiosos, puros e pacíficos. 32
Ao fixar o olhar na misericórdia divina, Agostinho percebe cada vez mais a diferença
imensa entre ele e Deus. Essa diferença leva-o a compreender o limite entre o que passa e o que
está “sempre presente” 33, fazendo com que a ideia de tempo dependa necessariamente da
eternidade divina, dependência que percorre toda a investigação desta dissertação.
Para responder “a questão de como Deus criou o mundo”, é importante ter em mente que
Agostinho escreveu quatro interpretações sobre o Gênesis. Não faremos uma análise extensiva
das quatro interpretações. O enfoque será dado, evidentemente, à terceira interpretação, das
Confissões, que mais nos interessa, pois as Confissões XI se constitue no texto central desta
pesquisa. 34
28 NOVAES, Moacyr. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho. 2ª ed. São Paulo: Discurso
Editorial: Paulus, 2009, p. 257. 29 Idem 30 Conf. XI ii. 31 Conf. XI i. 32 Ibidem 33 Cf. NOVAES, 2009 p. 258. 34 AYOUB, Cristiane Negreiros Abbud. Iluminação Trinitária em Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2011. O fato
22
Lembremos que a primeira verdade é fundamental: é necessário compreender como no
princípio Deus criou. Para isso, há quatro interpretações. A primeira exegese de Agostinho do
relato bíblico da Criação é seu Comentário ao Gênesis contra os maniqueus. Seguimos nesse
ponto a leitura de Cristiane Negreiros Abbud Ayoub, no seu livro Iluminação Trinitária em Santo
Agostinho. Esse primeiro comentário ao livro do Gênesis, Agostinho escreve em 388-389, quando
retornou de Roma à África e já estava convertido. O comentário é feito em oposição às críticas
maniqueístas ao Antigo Testamento. Sua estrutura consiste em citar a narração bíblica, apresentar
a explicação equivocada dos maniqueus e, finalmente, propor uma interpretação correta. O autor
dispõe os temas seguindo à letra o texto bíblico, cujo encadeamento ele busca esclarecer
recorrendo a outras passagens do Antigo Testamento.
A segunda interpretação, o Comentário literal ao Gênesis, inacabado, escrito no ano 393,
aproximadamente quatro anos após o término Comentário ao Gênesis contra os maniqueus,
consiste em uma tentativa de explicação literal dos primeiros capítulos do Gênesis. Agostinho
concebe como literal um comentário que tenderíamos a caracterizar como alegórico. Segundo
Agostinho, a criação é a “ referência”, é um “ato puro” por excelência e em sentido primordial,
porque o mundo começou quando foi feito por Deus a partir do nada e, a partir desse
acontecimento, todas as criaturas são o que são. A Criação é um acontecimento único que decorre
exclusivamente da vontade divina, sem precedentes, e pelo qual o mundo foi constituído.
A terceira interpretação, nas Confissões, é um misto de autobiografia e reflexão
metafísica. Agostinho comenta aí os versículos iniciais do Gênesis. Nesse contexto, ele
desenvolve sua explanação sobre o relato bíblico da Criação, referindo-se ao homem feito “à
imagem de Deus”. Para tanto, são articulados fundamentos já estabelecidos no Comentário literal
ao Gênesis inacabado.
de nos limitarmos à exegese das Confissões não significa, evidentemente, desprezo pelas demais. Muito pelo contrário, em conjunto, as interpretações compõem um processo de amadurecimento filosófico que refletem a genialidade de Agostinho e que não poderia deixar de ser mencionada.
23
A quarta interpretação, o Comentário literal ao Gênesis, Agostinho compôs em catorze
anos. Durante esse período de escrita, de 401 a 414, ele também se dedicou à redação do Sobre a
Trindade (399-414). Ambas as obras apresentam enfoques distintos sobre esse ponto. No Sobre a
Trindade, ele detalha a semelhança especial que o homem guarda com Deus, enquanto o
Comentário literal ao Gênesis versa sobre o relato bíblico da Criação. 35
...ao dizer algo sobre a leitura literal de um texto em geral, e da Bíblia em especial, importa mostrar aqui o quanto a leitura agostiniana é, em seus dois níveis, especulativa, isto é, o quanto está ela dirigida para a intenção do autor, concebendo-a como obra da razão divina mediante a razão humana. 36
Com enfoque nas Escrituras, Agostinho está diante “do problema da Criação ex nihilo”,
que, aos poucos, dá espaço para “o problema do tempo”.37 Assim, retomando a ideia de que a
primeira verdade é fundamental, é necessário compreender como no princípio Deus criou. Para
criar do nada, Deus não se comportou como um artesão que tem à sua disposição material bruto
para dar as formas do seu pensamento. O material que o artesão humano encontrou foi Deus
quem fez. O ato criador é “a produção do ser daquilo que é, e essa produção é possível
unicamente para Deus, porque somente Ele é o Ser 38”.
De que modo, porém, criastes o céu e a terra, e qual foi a máquina de que Vos servistes para esta obra tão imensa, se não procedestes como artífice que forma um corpo de outro corpo, impondo-lhe, segundo a concepção de sua mente vigorosa, a imagem que vê em si mesma, com os olhos do espírito? De onde lhe viria este poder, se Vós lhe não tivesse criado a imaginação? 39
Agostinho fala de corpo, não de matéria. O que isso tem de relevante para a questão do
tempo? Qual a importância do corpo para a reflexão sobre o tempo em Agostinho? Analisando o
problema pela perspectiva da formação de Agostinho, que foi influenciado pelo maniqueísmo,
35 AYOUB, Cristiane Negreiros Abbud. Iluminação Trinitária em Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2011. 36 SOUZA NETO, Francisco Benjamin de. “Tempo e memória no pensamento de Agostinho”. In: PALACIOS,
Pelayo M. (Org.). Tempo e Razão: 1.600 anos das Confissões de Agostinho. São Paulo: Loyola, 2002, p. 13. 37 NOVAES, Moacyr. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho. 2ª ed. São Paulo: Discurso
Editorial: Paulus, 2009, p. 255. 38 GILSON, 2006 p. 358. 39 Conf. XI 5 7.
24
que considerava o corpo naturalmente mau, Agostinho encontra no neoplatonismo elementos para
uma explicação diferente daquela proposta pelo maniqueísmo. Para ele, o mal não deve ser
buscado na natureza ou no corpo humano. A causa do mal deve ser procurada na alma, no livre-
arbítrio da vontade.
No contexto das Confissões, a relação de Agostinho e Deus, corpo e alma, exterior e
interior, mostram o itinerário do homem que deve aprender a trocar os bens do tempo pelos da
eternidade. Na concepção agostiniana, o corpo representa a exterioridade do homem e garante sua
visibilidade, é caracterizado como um elemento que sofre as alterações no tempo e ocupa lugar
no espaço, por ter comprimento, largura e altura. Ele sugere que só pode ser medido aquilo que
tem começo e fim. Nessa analogia, a importância do corpo para a reflexão do tempo em
Agostinho se encontra em que, assim como o corpo, o tempo é algo que posso expressar
materialmente porque posso senti-lo,porém, ele tem um sentido não apenas de finitude, mas de
possibilidade. Através do corpo, percebem-se verdades aparentes, mas que nos permitem buscar
verdades que não são aparentes. O tempo, que indica como tudo passa, também abre a
possibilidade de acessarmos aquilo que não passa. Assim como a materialidade humana é uma
criação de Deus, o tempo também foi criado por Ele. Portanto, a chave para compreendermos o
tempo não está em sondar o que acaba, mas em perceber que, pela Criação, ele participa daquilo
que não acaba.
“Portanto, é necessário concluir que falastes, e os seres foram criados. Vós os criastes pela
vossa palavra!”, afirma Confissões XI 7. Sendo assim, a atividade de Deus como criador não
pressupõe nenhuma matéria ou ferramentas. Então como Deus cria? Deus cria falando. Deus cria
por meio do seu Verbo, que não é temporal, não é produzido com a voz nem ouvido pelos
ouvidos, é a Palavra eterna. A palavra que soa é temporal, acaba, enquanto a palavra não dita pela
voz, que não pode ser percebida pelo ouvido, permanece na eternidade.
Mas como é que falastes? Porventura do mesmo modo como quando se ouviu de entre a nuvem a voz que dizia: “Este é o meu filho predileto”? Mt 3, 17; Com efeito, aquela voz ecoou e sumiu-se. Começou e findou. Ressoaram as sílabas e passaram a segunda após a
25
primeira, a terceira após a segunda, e todas pela mesma ordem, até a última, e, depois da última, o silêncio “[...]”] De onde claramente ressalta que uma criatura as pronunciou, mediante uma vibração temporal, a serviço da vossa eterna vontade. Essas palavras transitórias anunciaram-nas, por intermédio dos ouvidos externos, à inteligência que as compreende e cujos órgãos interiores da audição estão dispostos para escutarem o vosso Verbo Eterno. 40
Entender a Palavra divina exige distingui-la da palavra que soa no tempo, pois o verbo
divino é eterno. O interessante é que a fala humana diz tudo sucessivamente, e o Verbo eterno diz
tudo simultaneamente, perpetuamente. 41
Assim nos convidais a compreender o Verbo, Deus junto de Vós, que sois Deus, o qual é pronunciado por toda a eternidade e no qual tudo é pronunciado nem se diz outra coisa para dar lugar a que tudo se possa dizer, mas tudo se diz simultânea e eternamente. Se assim não fosse já haveria tempo e mudança, e não a verdadeira eternidade e verdadeira imortalidade.42
Até aqui se supõe que o tempo possa ser distinguido da eternidade,mas isso ainda não
problematiza o tempo. “O problema do tempo e o da eternidade é objeto de um exercício e não de
uma teoria.” 43 Por isso, é necessário se deixar conduzir pela reflexão de Agostinho. Nessa
reflexão, a Criação, como início de tudo, dá ao tempo a característica de criatura. O tempo
também tem um fim, acaba. Dessa forma, aos poucos, o tempo que passa se distingue do “tempo
que não passa”, que é a eternidade. Em relação à Criação, a palavra criadora faz parte da Criação
ex nihilo. A pergunta pela maneira como Deus criou o mundo no ato da Criação tem
consequências intrigantes. Se Deus criou, não pode ser num espaço, porque o espaço é criatura.
Tampouco pode haver mudança no ato de criar, embora as criaturas existam em movimento. A
mutabilidade é característica da criatura. Essa relação entre a imutabilidade da Criação e
alteração do criado se dá num mesmo ato, e é a palavra divina que inaugura essa relação. Na
razão divina nada começa ou desaparece. A verdade tem que ser buscada dentro do ser humano.
40 Conf. XI vi 8. 41 BRACHTENDORF, 2012, p. 242. 42 Conf. X vii 9. 43 NOVAES, 2009 p. 260.
26
Dizei-me a causa de tudo isto, eu vo-lo peço, Deus e Senhor meu! Alguma coisa entendo, mas não sei como me exprimir. Limito-me a dizer que tudo quanto começa a existir ou deixa de existir só principia ou acaba quando se conhece, na vossa Razão eterna, que tudo isso deve ter começado ou terminado, ainda que nela nada começa e nada desaparece. O Vosso Verbo é este princípio de todas as coisas porque também nos fala. Assim, falou-nos no Evangelho por meio do seu corpo. Ressoou essa voz exteriormente aos ouvidos dos homens para que acreditassem nele, o buscassem dentro de si mesmos e o encontrassem na eterna Verdade, onde o bom e único Mestre ensina a todos os discípulos. 44
A discussão que se segue é importante, porque marca a ação da palavra divina. Esta ressoa
aos ouvidos e os abre para a escuta da verdade, que habita no interior do homem. O mutável
dirige o homem para o imutável, pois, segundo Agostinho nas Confissões, o homem confessa não
apenas as suas faltas, mas também as suas potencialidades e, como errante que é, aprende
internamente o que a Palavra ensina. Esta reflexão sobre a ação da Palavra divina em cada um
evidencia o papel da subjetividade no processo de aprendizado. Esse processo faz parte da
possibilidade do conhecimento para Agostinho. O homem não para nas suas limitações, mas tem
o potencial de buscar, através do exercício da razão, aquela verdade que está além da verdade que
aparece, e ele só pode buscá-la interiormente.
Importante ressaltar que não basta o esforço humano para o homem se voltar para a
verdade revelada interiormente. Ao contrário, há aí um movimento de baixo para cima e de cima
para baixo, de fora para dentro e de dentro para fora. O ato criador em si instaura no ser humano
essa potencialidade de iluminação pela sabedoria divina. É o movimento da vontade e da graça.45
Essa vontade aparece no decorrer do livro XI das Confissões como desejo humano de mudança
em direção àquilo que não muda, a vontade divina. Assim, sem que nenhuma matéria existisse
anteriormente, Deus, por sua vontade, que não se iguala à nossa, fez com que as coisas fossem, e
elas passaram a ser. Isso é precisamente o que se denomina criar ex nihilo.
44 Conf. XI viii 10. 45 Vontade e graça são dois temas importantíssimos para Agostinho. Eles não serão, porém, aprofundados aqui, pois
isso nos desviaria de nosso objetivo central, o tempo.
27
1.3 A eternidade como “tempo de Deus” 46
“Que faria Deus antes da Criação?” Essa é a questão apresentada pelo cético e que
aparece no capítulo 10 do livro XI das Confissões.
Não é verdade que estão cheios de velhice espiritual aqueles que nos dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra? Se estava ocioso e nada realizava”, dizem eles, “porque não ficou sempre assim no decurso dos séculos, abstendo-se, como antes, de toda ação? Se existiu em Deus um novo movimento, uma vontade nova para dar o ser a criaturas que nunca antes criara, como pode haver verdadeira eternidade, se n'Ele aparece uma vontade que antes não existia?47
A partir desta pergunta “ocorre a transição para o tratado sobre o tempo,” 48 quando
Agostinho, através do exame do tempo, percebe que ele em si mesmo possui limite e que esse
limite significa possibilidade quando focada na eternidade. Mudar o foco para a eternidade faz
entender que a eternidade “se opõe ao tempo”. “ A temporalidade do mundo e a imutabilidade de
Deus parecem se contradizer”, 49 Agostinho procede estabelecendo a oposição entre o eterno e o
temporal, porque toda essa inserção, para além da possibilidade de apresentar respostas, visa
marcar a diferença entre Deus e sua criação, e essa diferenciação inclui a vontade de Deus, que
não muda. Ao apontar essa diferença, Agostinho vai estabelecendo o limite necessário para a
reflexão sobre o que seja o tempo e a eternidade.
De fato, a resposta a esta pergunta se baseia no pressuposto de que o início de Gênesis I, 1
deve ser entendido como início temporal. Somente então surge a pergunta sobre o que Deus fazia
antes da criação. Há um antes? O mundo existe desde a eternidade? O questionamento se estende:
“Mas, se desde a eternidade é vontade de Deus que existam criaturas, por que razão não são as
46 Os capítulos 10 a 13 apresentam a eternidade como tempo de Deus, termo usado para reforçar que o tempo para
Deus e para o homem possuem significados diferentes. “O tempo de Deus não é o nosso”. (ANÔNIMO). 47 Conf. XI x 12. 48 BRACHTENDORF, 2012, p. 243. 49 Ibidem.
28
criaturas eternas?” 50 A resposta de Agostinho, dando sequência à discussão, é que “o tempo não
pode medir a eternidade”. 51 Para ele, quem faz essas perguntas “não compreende o que seja a
eternidade, pois pensa a eternidade como uma longa sequência e uma sucessão”. “A eternidade é
o todo simultaneamente presente: em Deus não há sucessão”. 52
Quem afirma tais coisas, ó “Sabedoria de Deus”, Luz das inteligências, ainda não compreendeu como se realiza o que se faz por Vós e em Vós. Esforça-se por saborear as coisas eternas, mas o seu pensamento ainda volita ao redor das ideias da sucessão dos tempos passados e futuros, e, por isso, tudo o que excogita é vão. A esse, quem o poderá prender e fixar, para que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade perpetuamente imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a confronta com o tempo, que nunca para? Compreenderá então que a duração do tempo não será longa, se não se compuser de muitos movimentos passageiros. Ora, estes não podem alongar-se simultaneamente. Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente... 53
Deus, que é eterno, criou o mundo com o tempo e não no tempo. Deus é causa de todos os
tempos. Deus antecede a todos os tempos, não de forma temporal, mas num sentido atemporal,
numa eternidade sempre presente, que transcende o humano. Não há um período em que Deus
poderia não estar fazendo nada, pois não há um período antes da Criação. O tempo surgiu junto
com a Criação. Para Agostinho, quem quiser perceber isso deve parar e sentir um pouco do
deslumbramento de uma eternidade permanente, constante, e compará-la com os tempos que
passam sem parar e pode fixar o seu coração na eternidade que é sempre imutável. Portanto, o
tempo não pode medir a eternidade. E, se assim podemos dizer, a eternidade é “tempo de Deus”.
Esse presente sem pretérito ou futuro não é tempo, é algo diferente do tempo. Essa eternidade é
presente eterno, e não se pode conceber um tempo em que não existisse tempo.
Sendo, pois, Vós o obreiro de todos os tempos – se é que existiu algum tempo antes da criação do céu e da terra –, por que razão se diz que Vós abstínheis de toda a obra?
50 Conf. XI x 12 14. 51 BRACHTENDORF, 2012 p. 243. 52 Ibid. 2012 p. 243. 53 Conf. XI xi 13.
29
Efetivamente fostes Vós que criastes esse mesmo tempo, nem ele podia decorrer antes de o criardes! Porém, se antes da criação do céu e da terra não havia tempo, para que perguntar o que fazíeis então? Não podia haver “então” onde não havia tempo. Não é no tempo que Vós precedeis o tempo, pois, de outro modo, não seríeis anterior a todos os tempos.54
Antes da Criação, da Palavra criadora, Deus não atuava, nada foi criado, nem o tempo. Há
algo de atemporal na eternidade. O hoje de Deus é eternidade, enquanto nosso tempo existe numa
tensão entre passado, presente e futuro.
Precedeis, porém, todo o passado, alteando-Vos sobre ele com a vossa eternidade sempre presente. Dominais todo o futuro porque está ainda para vir. Quando ele chegar, já será pretérito. “Vós, pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo, e os vossos anos não morrem.” Os vossos anos não vão nem vêm. Porém os nossos vão e vêm, para que todos venham. Todos os vossos anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não passam. Quanto aos nossos anos, só poderão existir todos, quando já todos não existirem. Os vossos anos são como um só dia, e o vosso dia não se repete de modo que possa chamar-se cotidiano, mas é um perpétuo “hoje”, porque este vosso “hoje” não se afasta do “amanhã”, nem sucede ao “ontem”. O vosso “hoje” é a eternidade. Por isso gerastes coeterno o vosso Filho, a quem dissestes: “Eu hoje te gerei”. Criastes todos os tempos e existis antes de todos os tempos. Não é concebível um tempo em que possa dizer-se que não havia tempo.55
“Desde o início da discussão do problema do tempo tudo importa, menos inquietar-se com
a pergunta sobre o que fazia Deus antes de criar o céu e a terra”.56 Agostinho argumenta aí com o
intuito não de convencer o nosso entendimento, mas de reverter o foco em direção ao
questionamento necessário para dar sequência à sua reflexão sobre o tempo. “É do ser do tempo
não seguir existindo e do eterno seguir existindo”.57 Tendo chegado às evidências textuais sobre o
limite entre tempo e eternidade, prosseguiremos explicitando o que é o tempo. Tal é a questão que
será discutida no capítulo seguinte.
54 Conf. XI xiii 15 11. 55 Conf. XI iii 16. 56 SOUZA NETO, 2002, p.16. 57 Ibidem.
30
I I CAPÍTULO – O TEMPO NAS CONFISSÕES: DA EXPRESSÃO DO TEMPO
Nas Confissões XI, não é possível dissociar a análise do tempo da eternidade. Estes
possuem naturezas distintas, não sendo a eternidade simplesmente um tempo sem fim. Tendo
caracterizado e delimitado tempo e eternidade, Agostinho pode refletir sobre o tempo. Nesta
reflexão, ele aborda primeiramente a eternidade, em seguida, essa abordagem dá lugar ao tema do
tempo, que contrasta com a eternidade. Este segundo capítulo, “Da Expressão do Tempo”, tem
como argumento principal a ideia de que a linguagem usada por Agostinho para expressar o
tempo desencadeia um processo que, demarcando e contrastando tempo e eternidade, possibilita
progressivamente uma forma de expressão de tempo que ultrapassa a simples expressão verbal.
Para compreendermos o tempo pela ideia de eternidade divina, é necessário que o tempo
possa colher da eternidade divina, infinita, o seu sentido; tal é a parte do argumento principal da
dissertação que este capítulo espera explorar. Embora as Confissões XI façam uma investigação
sobre o tempo, não é certo que elas pretendam oferecer uma compreensão sobre o tempo. A
maneira como elas expressarão o tempo será determinado pelo modo como o homem examina o
enigma do tempo, como este o nomeia usando a linguagem e de que forma a questão do tempo
vai sendo investigada e compreendida. O que dizer e o que pensar sobre o tempo, o que muda por
causa do tempo? O homem expressa o tempo através da linguagem, mas nenhuma expressão
linguística é suficiente para dar uma significação concreta e totalmente correspondente à
realidade do tempo.
Nossa argumentação sobre o tempo neste capítulo envolve quatro passos principais,
através dos quais esperamos sustentar nosso ponto de vista: interrogar o que é o tempo, examinar
uma possível via linguística de compreensão do tempo em Agostinho, questionar sobre a possível
medida do tempo, e analisar a linguagem como possibilidade de expressão do tempo. A cada
31
passo, por conta da eternidade, as evidências textuais reestruturam a discussão sobre o tempo, e
esse processo vai paulatinamente desenvolvendo a noção de temporalidade, então assimilada na
argumentação geral do capítulo. Este tem como base os capítulos 14 a 24 do livro XI das
Confissões.
2.1. O que é o tempo?
O objetivo desta seção é perguntar pela natureza do tempo, investigar o ser do tempo,
sendo este o eixo central deste nosso primeiro passo. Para tanto, tomamos como base o
comentário de Brachtendorf às Confissões, que desenvolve bem esse aspecto do problema.
“Que é, pois, o tempo?” Agostinho faz essa pergunta no parágrafo 14 do livro XI das
Confissões. “Ela é precedida de uma introdução (I, 1-13, 16), cujo tema é retomado numa
sequência concluída no final do livro XI, nos capítulos 19,39. e nos capítulos 31,16”. 58 Segundo
Brachtendorf, nesse quadro geral, é possível “obter as linhas básicas para a compreensão do que
realmente é possível chamar tratado sobre o tempo”.59 O tempo é “essencialmente um fluir”, ele
não permanece e “se contrapõe à posição estável de Deus”, por isso, “não há nenhum tempo que
seria coeterno com Deus” 60. Deus permanece sempre, não sofre mudança em si mesmo, ao
contrário do tempo, no qual não há estabilidade. O tempo não existe desde a eternidade, ao
contrário de Deus. Talvez seja esse o motivo por que a pergunta sobre o tempo venha depois da
discussão sobre a eternidade nas Confissões.
Sendo assim, de onde o tempo vem e para onde ele flui? O tempo é certamente um tema
discutido já muito antes de Agostinho, mas o que nos interessa aqui é a proximidade dessa
58 Cf. BRACHTENDORF, 2012 p. 240. 59 Ibidem. 60 Ibid., p. 244.
32
discussão antiga com a eternidade e “que os primeiros pensadores cristãos tinham começado a
reinterpretar em função das ideias de criação, de encarnação, de salvação”. 61 Agostinho supera
essa discussão, dando novo sentido ao próprio tempo, como aos poucos explicitaremos. Em
consequência dessa influência platônica, é possível interpretar a reflexão agostiniana sobre o
tempo pela investigação do ser do tempo.
A metafísica platônica, a que Agostinho deve coisas decisivas, vê na estabilidade e no permanecer o caráter fundamental do ser. É no sentido eminente aquilo que não se torna e não passa, mas sempre permanece igual. Também para Agostinho o “Ser mesmo” está livre de toda mudança e se encontra acima da esfera do mutável. Esse Ser mesmo é o Deus imutável, sempre igual e sempre presente. As coisas do mundo também são, mas não porque seria o Ser mesmo, mas porque participam do Ser mesmo. Por essa participação elas possuem certa estabilidade. Agostinho, no entanto, ressalta que elas são criadas do nada e ainda estão, de certa forma, impregnadas pelo nada, e isso se caracteriza em sua mutabilidade e sua transitoriedade.· .
“Essa abordagem metafísica acarreta dificuldades quanto à pergunta pelo ser do
tempo”,62 pois o tempo descrito em si mesmo é diferente do “ser mesmo”.63 Ora, algumas simples
observações mostram que o tempo não possui duração, não tem permanência, “pois ele é puro
fluir”. Mas ele “não é o nada”, que é o contrário do ser. Por isso, o tempo “deve possuir ser” de
alguma maneira. Daí a pergunta, “Que é, pois, o tempo?” (14,17). Em que sentido o tempo é? A
partir dessa passagem célebre das Confissões, em que se pergunta sobre o tempo, Agostinho
descreve a experiência que temos do tempo pelas impressões e convicções que ele produz em
cada um. O tempo é próximo e conhecido. Falamos e sabemos o que ele é. Entendemos quando
alguém nos fala dele. Eu sei o que é tempo, mas não sei explicar se alguém me perguntar. Essa
ambivalência do tempo sugere que a questão do tempo nas Confissões seja investigada pelo viés
do ser do tempo. Para tanto, apontaremos os limites e objetivos desta análise, e os três passos
dados nas Confissões para se chegar a uma conclusão, temporária, sobre o ser do tempo.
61 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Trad. Constança Marcondes César. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994, p.52. 62 Cf. BRACHTENDORF, 2012 p. 240. 63 Ibid., p. 244.
33
O que é o tempo? O tempo possui ser? O foco de nossa análise são os capítulos 14 a 20
do livro XI das Confissões. Recorremos a Brachtendorf nessa nossa análise. Segundo ele, dada a
investigação sobre o ser do tempo, Agostinho primeiramente estabelece uma discussão entre “os
defensores da tese negativa” do tempo, “O tempo não é”, e os “defensores da tese positiva”, “O
tempo é”. Na primeira etapa da discussão, a conclusão a que se chega é: “Ora, o que não é pode
possuir propriedades como as de ser longo ou breve (15,18). Por isso, o tempo deve ser”. 64
O segundo passo vai contra essa opinião: “o lado negativo levanta a objeção ao afirmar
que se tratando do passado e do futuro eles não poderiam ser longos nem breves, porque não
possuem presente.” Dando sequência a essa afirmação, o lado negativo prevalece e chega à
seguinte conclusão: “Parece, pois, que nem passado, nem futuro, nem presente são. O tempo não
é”. 65
No terceiro passo, “o lado positivo” observa que há intervalos de tempo, e nós os
percebemos. Segundo o lado negativo, é certo afirmar que não se pode medir o que passou nem o
que ainda não existe, mas podemos medir o tempo enquanto ele passa. Segundo Agostinho, a
impressão que temos das coisas são “presentificadas” na memória e observadas no presente. A
divisão feita pela Gramática entre passado, presente e futuro é vista por Agostinho na perspectiva
de que não há três tempos, mas apenas um, o presente: presente das coisas passadas, presente das
coisas futuras e presente do presente. Neste sentido, a reposta a que ele chega é que o tempo
existe. O tempo possui ser.
Nas Confissões, “em especial o Livro XI permite estudar de que modo Agostinho manejou
a matriz filosófica platônica, para explorar seus limites e exibir a necessidade de ir além dela.” 66
Nesse aspecto, Brachtendorf permite-se considerar a influência platônica tendo como perspectiva
64 Ibid., p. 245. 65 Ibidem. 66 AYOUB,Cristiane Abbud; NOVAES, Moacyr. Confissões: Livro XI. In: MARÇAL, Jairo (Org.). Antologia de
Textos Filosóficos. Curitiba: SEED, 2009. Disponível em: <http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/cadernos_pedagogicos/caderno_filo.pdf>. Acesso em: 6 abr. 2015.
34
a análise do ser tempo. Ao examinarmos a influência platônica indicada por Brachtendorf, porém,
não nos parece caracterizado que Agostinho conserve essa influência. Parece-nos haver aí uma
superação, e a questão do tempo parece ir além do discurso platônico e da discussão do ser e do
não ser do tempo. É essa linha de discussão que queremos seguir. Procuraremos, nesse sentido,
analisar a questão da temporalidade mantendo o olhar no diálogo entre o ser do tempo e a
Criação, origem eterna do tempo. Uma investigação centrada somente no ser ou não ser do tempo
serviria apenas para desviar a atenção do foco principal da reflexão agostiniana e desta
dissertação, ou seja, analisar o tempo na sua dependência em relação à eternidade divina.
A investigação sobre o tempo abrange, além do seu caráter conceitual, a discussão sobre a
eternidade. Então, a pergunta que não quer calar: por que a pergunta sobre o tempo vem depois
da discussão sobre a eternidade? Para respondermos a essa questão, e compreender por que o
tema do tempo segue a discussão sobre a eternidade, tomaremos como base o texto de Moacyr
Novaes “O tempo como enigma” 67. A dinâmica Agostiniana nos impulsiona a ir além do que
aparece. Dessa forma, eternidade e tempo retomam o “como” do problema “recorrente das
Confissões”, a saber, a eternidade.68 Isso quer dizer que a análise do tempo vinculado à eternidade
divina tem sentido de ser. Em outras palavras, ao perguntarmos sobre a eternidade, por conta da
criação ex nihilo, somos conduzidos ao tempo. Este se torna, então, um enigma, que em si mesmo
não define nem sua natureza nem a natureza de Deus, mas permite a Agostinho reelaborar sua
reflexão, que deve voltar ao “tema da eternidade” para tomá-lo como modelo, e, por conta disso,
o modo “da temporalidade terá de ser ultrapassado”. 69 Tal discussão será tratada no terceiro
capítulo deste trabalho.
A demarcação entre tempo e eternidade através do estabelecimento da investigação sobre
o tempo via eternidade divina exige uma nova postura: conhecer o tempo reconhecendo nele a
eternidade. Para examinar esse ponto, precisamos percorrer algumas etapas, que caracterizam a
67 NOVAES, 2009. 68 Ibidem. 69 NOVAES, Moacyr, Analytica, vol. 9, número 1, 2005.
35
análise agostiniana sobre o tempo, entre elas, a maneira como Agostinho elabora o enigma do
tempo e as dificuldades da linguagem para expressar o tempo e a eternidade. Esses tópicos serão
analisados na próxima seção.
2.2 O tempo em Agostinho
O objetivo desta seção é mostrar como Agostinho conduz a pergunta sobre o tempo e
constrói o enigma do tempo. Para essa análise, retomamos os capítulos 14 a 20 do livro XI das
Confissões, onde Agostinho começa a elaborar o enigma do tempo. A mudança começa partir da
substituição da “pergunta inicial” “Que é, pois, o tempo” pela pergunta: “Quem poderá explicá-lo
clara e brevemente?”. A pergunta “O que é o tempo?” procura uma resposta que reflete a
exterioridade do tempo. Ao perguntar quem responderá pelo tempo, Agostinho direciona a
pergunta para o interior do homem. Essa transposição forma um contraste entre o homem exterior
e o homem interior. Para explicar o tempo, o homem precisa de uma linguagem, e os meios
linguísticos que ele possui são insuficientes para expressar o tempo, o qual em si mesmo não
pode ser explicado por palavras. Ao buscar exprimir em palavras e entender o que seja o tempo,
Agostinho dá os primeiros passos para elaborar o enigma do tempo, cuja construção analisaremos
retomando os capítulos 14 a 20 das Confissões.
...o estudo do tempo se acrescenta a uma reflexão sobre a eternidade na medida em que ele pode vir a esclarecê-la pelo fato mesmo de deixar patente que a única possibilidade humana de conhecimento do tempo reside na sua semelhança com a eternidade. Nesse sentido, o tempo não é conhecido como tal, mas apenas naquilo que exibe de semelhante a ela, como vestígio ou imagem de um original. Se a eternidade oferece dificuldades para ser conhecida e expressa, em razão de ser transcendente, o tempo se mostrará ainda mais enigmático e, ele sim, inefável 70.
Nessa construção do enigma, Agostinho apresenta algumas impressões correntes
sobre o tempo, claras e facilmente constatáveis por qualquer pessoa. A partir do capítulo 15 do
livro XI das Confissões, Agostinho reúne afirmações sobre o tempo, que contribuem para a
70 Ibid., p. 264.
36
elaboração do enigma. Primeiramente, o tempo se divide em presente, passado e futuro. A
discussão vai sendo conduzida a partir dessa constatação inicial, e é preciso se deixar conduzir
por ela. Com efeito, se tentamos ver aí respostas, distanciamo-nos da condução da reflexão de
Agostinho que, investigando o modo como o entendemos, apreendemos as coisas, vai dando
forma ao enigma do tempo.
Ora, mesmo não afirmando se o tempo é ou deixa de ser, dizemos que ele é longo ou
breve. “Contudo, dizemos tempo longo ou breve, e isto, só o podermos afirmar do futuro ou do
passado”.71 Mas como eu posso dizer “longo ou breve, o que não é”? 72 Pois o passado já não é, e
o futuro ainda não é. 73 Ao expressar o tempo, Agostinho apresenta suas ideias não com o
compromisso de nos convencer de certa opinião, mas para nos conduzir a uma reflexão sobre o
tempo em conformidade com o objetivo de sua análise de nos levar à eternidade. Por isso,
precisamos nos deixar conduzir pelas argumentações de Agostinho para formarmos certa
compreensão sobre o tempo, ainda que, em nenhum momento, ele prometa responder ou
apresentar a verdade sobre o tempo. Para responder ou apresentar a verdade é diferente de buscar
e querer a verdade. Por maior que seja nosso esforço, a linguagem não é suficiente para descrever
as nossas impressões. Como responder, então, à pergunta o que é o tempo? 74 O enigma do tempo
nos faz perceber que, mesmo que o tempo seja constatado na realidade, não é possível descrevê-
lo. Diante da dificuldade, Agostinho conclui que o tempo somente pode ser conhecido “nos
vestígios de eternidade que o homem pode reconhecer nele”. 75 Isto é, o tempo por si mesmo não
pode ser conhecido, mas apenas o “signo da eternidade, à medida que ele “significa”, faz lembrar
o seu protótipo” 76, que é a eternidade.
71 SOUZA NETO, Francisco Benjamin de. Tempo e memória no pensamento de Agostinho. In: PALACIOS, Pelayo
M. (Org.). Tempo e Razão: 1.600 anos das Confissões de Agostinho. São Paulo: Loyola, 2002, p. 19. 72 Ibidem. 73 Ibidem. 74Ibid ., 2002, p.20. 75 NOVAES, 2009, p.265. 76 Ibidem.
37
Ao interrogar sobre o tempo, Agostinho retoma e aprofunda a discussão sobre a
eternidade. 77 “O Princípio criador deve ser desvinculado de noções temporais”, 78 e o próprio
tempo proporciona um exercício de reflexão que levará à eternidade, “muito embora tal visão não
seja mais do que uma imitação do verdadeiro “conhecimento” divino da eternidade”. 79 De certa
forma, é necessário ter clareza e compreensão, “por outro lado”, seja de que forma for a
explicação, o tempo faz parte do ser limitado “do homem” e de “sua linguagem”. É necessário
explicar, mas a capacidade de entender é humana. A linguagem pode pretender formular algo
sobre o tempo, o que não é precisamente conhecimento sobre ele, assim “como Deus o
conhece”.80
Nessa análise sobre o tempo, o texto de Benjamin de Souza Neto “Tempo e memória de
Agostinho” vem contribuir para nossa reflexão sobre o tempo presente. “O que dizemos longo,
passado e futuro, só é como presente carecendo de ser”. “O tempo presente não tem nenhuma
estensão”. 81 Dessa forma, à primeira afirmação, de que o tempo se divide em presente, passado e
futuro, Agostinho acrescenta que “o tempo presente clama que não pode ser longo”. 82
A segunda afirmação, com a qual Agostinho continua sua análise, é que é possível medir o
tempo quando “percebemos os intervalos dos tempos” e, quando os comparamos, dizemos “que
são mais longos ou mais breves”, “mais comprido ou mais curto”. 83 Assim, a segunda afirmação
mantém o enigma, pois parece que Agostinho insiste em dizer que entendemos o tempo de
alguma maneira, e a linguagem expressa isso, mas o tempo que sentimos passar não se
compreende “pela sensibilidade” 84. Sendo assim, é possível medir o tempo, mas de que maneira
77 Ibidem. 78Ibid., 267. 79 Ibid., p. 267. 80 Cf. MOACYR, 2009, p.268. 81 Segundo Souza Neto, a palavra “estensão” remete à palavra “spatium”, escrita propositalmente com “s” para fugir
de uma leitura cartesiana. Esse tópico não é o foco desta pesquisa. Para uma discussão mais detalhada deste ponto, ver Souza Neto, Francisco Benjamin de. Tempo e memória no pensamento de Agostinho. In: PALACIOS, Pelayo M. (Org.). Tempo e Razão: 1.600 anos das Confissões de Agostinho. São Paulo: Loyola, 2002, p. 20.
82 Conf. XI xv 20. 83 Conf. XI xvi. 84 Ibidem.
38
medir o tempo, se isso não pode ser feito pela sensibilidade? A questão poderia ser mudada para:
“Donde, pois senti-los e medi-los” 85.
A terceira afirmação é que ninguém se atreveria a afirmar que não existe o presente, o
passado e o futuro. “Não é possível ver o que não existe” 86. Agostinho realça aí o enigma
dizendo que o futuro e o passado existem porque são vistos com a alma.
A quarta afirmação é que, “se existem coisas futuras e passadas”, onde quer que estejam
não são nem no passado nem no futuro, mas no presente. O vaticínio é provável simplesmente
por força da inspiração divina, porque só Deus conhece todas as coisas. 87 “A memória” 88
“presentifica” 89 as impressões causadas pelo passado, e a visão do futuro se dá com base nos
fatos existentes atualmente. Portanto, “as coisas futuras ainda não existem” e, por isso, “não
podem ser vistas”. “Mas, podem ser prognosticadas pelas coisas presentes que já existem e se
deixam observar” 90.
Desde o início da análise sobre o tempo, tomando como ponto de partida a exegese de
Gênesis I,1, Agostinho emprega contrastes, dualidades, para tentar estabelecer um caminho,
acesso a um entendimento possível sobre o tempo. O homem que sente o tempo não pode dizê-
lo, pois o sentimento não pode medir esse tempo. O sentimento não nos oferece meios para
afirmar a existência dele, mas também não nos leva a negá-lo. Se a busca pelo tempo é uma
busca filosófica, o sentimento nesse processo faz com que o homem que quer saber a origem e o
porquê de todas as coisas abra espaço para a razão, justificando assim essa busca. O fato de abrir
espaço para a razão não significa que ela não estava presente antes, mas a adequação à razão
intensifica a busca pelo conhecimento sobre o tempo e, consequentemente, sobre a eternidade.
85 SOUZA NETO, 2002 p.21. 86 Conf. XI xvii. 87 Ibid., 2002, p.21. 88 A questão da memória especificamente é tratada no livro X das Confissões, no qual não vamos nos aprofundar,
pois o foco da dissertação é o livro XI, sobre o tempo e a construção da reflexão agostiniana sobre ele. 89 “Presentificação” é um termo usado por Brachtendorf . 90 Conf. XI xviii.
39
A princípio pareceu que haveria uma dualidade entre sensibilidade e razão. Esta
impressão é nossa, não está claro que Agostinho contraponha sensibilidade e razão. Mas
percebemos que seria contraditório pensar assim em relação a Agostinho, porque nas Confissões
o homem, ao se confessar, reconhece a sua pequenez diante da grandeza de Deus, mas também
reconhece sua limitação como possibilidades. Seguindo Agostinho, a conversão é “algo
definitivo, decisivo, mas a decisão fundamental deve desenvolver-se, deve realizar-se em toda
nossa vida” 91.
Nesse contexto, o homem que sente, escolhe a razão, e, pelo uso de sua razão, entende-se
limitado e com potencialidades, mas só é capaz do ilimitado pela participação como ser criado.
Ele traz em si a marca do eterno, porque, assim como o tempo, o homem também é criatura. O
homem que questiona a si quer entender o tempo, mas não basta só o querer. O querer só pode
conduzir à razão, que possui em si a capacidade de apreender o tempo por ela mesma, dada sua
condição de ser criado que participa do divino e consequentemente, do eterno. O homem é um ser
que sente, e isso não pode ser ignorado, mas também é um ser que possui uma razão.
Sensibilidade e razão estão ligados num mesmo ser que é o ser do homem. Sendo assim, dentro
da dinâmica agostiniana, para trilhar o caminho do possível entendimento do tempo, o ser do
homem se rende à razão para acessar o próprio tempo. A fé junto com a razão “são duas
dimensões que não devem separar-se nem contrapor-se, mas devem estar sempre unidas”. 92 Fé e
razão estão ligadas na busca da verdade e não possuem sentidos antagônicos.
A conclusão a que se chega é que, para Agostinho, não existem três tempos, mas só um, o
presente, e é por ele que é possível medir o tempo, mas a questão “Como pode medir-se o
tempo”? 93 abre novas dificuldades, que serão discutidas na próxima seção.
91 Cf. Bento VI, Fé e razão em Agostinho. Consultado em http://www.zenit.org/pt/articles/bento-xvi-fe-e-razao-em-santo-agostinho-de-hipona em junho de 2015. 92 Ibidem. 93 Ibidem.
40
2.3 A medida do tempo
O homem que vê nem sempre sabe dizer, mas para Deus, no Verbo não há diferença entre
fazer e dizer, “tudo se diz simultânea e eternamente” 94 A contraposição “o homem que vê não
sabe dizer” aparece recorrentemente no capítulo 21. “Medimos os tempos ao decorrerem”, e se
alguém me perguntar “Como o sabeis?”, responder-lhe-ei: “Sei-o porque os medimos” 95.
O que permanece é o fato de o processo de conhecimento do tempo passar pela nossa
percepção. “O que é o tempo?” “Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos”. “Se
ninguém me perguntar, eu sei”. 96 Compreender e saber se ligam ao conhecimento, e a percepção97
que se dá por meio da inteligência possibilita “sentir e medir os tempos, antes de entendê-los” 98.
O objetivo desta seção é mostrar que, tendo sido mostrado que “medimos os tempos que
passam”, 99 a constatação de que a medida do tempo é possível, embora não resolva o enigma do
tempo, abre espaço para se desvendar o enigma da medida do tempo ao transformar a questão em
outra. Onde medir o tempo? Se a sensibilidade não pode medir o tempo, onde se medirá? “O meu
espírito ardeu em ânsias de compreender este enigma tão complicado”. 100
O enigma é um processo que não anula a natureza humana, mas “a partir do
estabelecimento do limite entre tempo e eternidade, essa linha demarcatória possibilita,
progressivamente, uma forma de expressão de tempo que ultrapassa a simples expressão verbal”.
94 Cf. Conf. XI xvii 9. 95 Para (NOVAES, 2009, p.268) “Tal contraposição será recorrente, como se constata no parágrafo 19: sentimos e
medimos os tempos antes de entendê-los”. 96 Conf. XI xiv 17. 97 “E, contudo, Senhor percebemos intervalos dos tempos”, [...] (Conf., XI, xvi, 21) . 98 Esta expressão é usada por NOVAES, 2009, p. 268, e encontrada no parágrafo 19. 99 Conf. XI xxi 27. 100 Conf. XI xxii 28. É desta maneira que Agostinho se sente diante de um enigma que parece adentrar cada vez mais ao que ele se propõe, satisfazer a nossa razão sobre o entendimento humano do tempo. Mas como a questão da
medida do tempo é mais um passo para mostrar a tentativa de expressar o tempo “são palavras muito claras, mas ao mesmo tempo obscuras. Portanto, é “necessária uma nova análise”. (Conf. XI xxii).
41
101 “A exigência de uma nova análise sobre o tempo, possibilita chegar à conclusão de que o
tempo é certa distensão”. Essa conclusão abre caminho para uma resposta à pergunta “Onde
medir o tempo?” e resolve assim o enigma da medida, mas não resolve o enigma do tempo.
“ Para resolver o enigma é preciso descartar a solução cosmológica para obrigar a
investigação a buscar só na alma, logo, na estrutura múltipla do tríplice presente, o fundamento
da extensão e da medida”. 102 Toda fundamentação feita por Agostinho para entender o tempo
nessa etapa da resolução do enigma serve para desviar a atenção para o que ele quer realmente
fazer: desenvolver a ideia de um tempo, dependente da idéia de eternidade divina.
A dificuldade não está somente em a eternidade nos escapar; o tempo, que nos domina, permanece uma realidade misteriosa para nós: toda sua substância refere-se ao instante indivisível que é o presente. Ora, o que é indivisível não poderia ser mais longo ou mais curto do que é; assim como podemos falar de um tempo mais longo ou mais curto ou mesmo de um tempo que é o dobro de outro? Contudo, de fato, medimos o tempo. Como, então, podemos medir a duração de um passado que já não é de um futuro que ainda não é ou de um presente instantâneo? 103
Logo após esse conjunto de constatações a respeito do tempo, Agostinho faz uma oração
inspirada em sua limitação para entender “o enigma tão complicado”. Em seguida, faz uma
investigação, a partir da referência cosmológica a respeito do tempo e propõe uma nova análise.
Agostinho não concorda que “o tempo não é mais que o movimento do sol, da Lua e dos astros”. 104 Para Étienne Gilson, apresentando o tempo como movimento, esta identificação se propõe a
resolver o problema da medição do tempo. Ao aceitarmos como verdadeira essa solução, a
dificuldade desapareceria. Então, “o movimento pode ser para si mesmo a sua medida e sempre
se poderá medir o tempo com o tempo e o movimento com movimento”. 105 Mas outro obstáculo
aparece: “o movimento do corpo é seu deslocamento” de um ponto a outro num mesmo espaço;
101 Estas palavras se encontram no início do capítulo. 102 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Trad. Constança Marcondes César. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994 p.31. 103GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Trad. Cristiane Negreiros Abbud Ayoub. São Paulo: Discurso, 2006, p. 366. 104 Conf. XI xxiii 29. 105 Ibidem.
42
“esse deslocamento permanece o mesmo”, independentemente do tempo que o corpo gastou para
realizar esse movimento106. Agostinho, assim, conclui neste parágrafo 23 “que o tempo não é o
movimento dos corpos celestes”. “O tempo é certa distensão” 107. Ao finalizar o parágrafo 23,
Agostinho afirma e questiona: “Vejo, ou parece-me que vejo? Só Vós, luz e Verdade, me
demonstrareis. 108 A maneira como isto será demonstrado se encontra já num apelo que aparece no
parágrafo 19 em forma de oração:
“Declarai-nos, [...] de que modo ensinais às almas [...] Esse modo misterioso está
demasiado acima da minha inteligência. Supera as minhas forças. Por mim não poderei
atingi-lo. Porém, podê-lo-ei por Vós, quando me concederdes, ó doce luz dos ocultos
olhos da minha alma”. 109
Parece que a sensibilidade não pode medir o tempo, mas a certeza de senti-lo é indício de
que o tempo existe, e parece estar na alma a possibilidade de acesso ao entendimento dele. O
apelo é constante para que Deus conceda o entendimento de tão grandiosa empresa. Excluindo-se
o movimento dos astros como medida dos tempos, não se exclui o movimento em geral, mas com
a constatação a respeito da afirmação “de que o tempo é o movimento de um corpo”, Agostinho
chega à conclusão de que, “sendo diferentes o movimento do corpo e a medida da duração do
movimento”, “o tempo não é movimento dos corpos”. 110
A partir desse ponto, tendo descartada a solução cosmológica como explicação para a
medida do tempo, Agostinho passa da confusão entre existência e medida para a interioridade da
medida do tempo. Na sequência há um retorno à investigação do tempo como modo interior, que
inaugura um novo caminho “de reflexão, o da temporalidade”, característica particular “nossa” e
106 Ibidem. 107 Conf. XI xxiii 30. 108 Ibidem. 109 Conf. XI xix 25. 110 Conf. XI xxiv 31.
43
“de seres que não só nascem, e morrem “no” tempo, mas, sobretudo, que sabem, que tem
consciência dessa sua condição temporal e mortal 111.
2.4 Linguagem e eternidade
O objetivo desta seção não é fazer uma análise descritiva do que seja a linguagem
agostiniana, mas refletir sobre a linguagem como possibilidade de expressão de um tempo que
não é mais percebido em si mesmo, mas pensado e medido com os olhos da alma. A linguagem é
um aspecto importante na análise do tempo feita por Agostinho. Desde o início das Confissões,
ele exalta “o valor da linguagem”, pois é através dela que ele invoca a Deus, e declara várias
vezes a insuficiência da linguagem diante de diferentes situações. Esse homem busca a verdade
através da razão, e o caminho para encontrá-la se dá dentro do “domicílio do pensamento”, 112 que
é “morada do eu interior e do tempo”. A respeito desse tempo pensado como modo interior,
queremos investigar a possibilidade de se alcançar uma linguagem adequada para sua expressão.
No livro XI das Confissões, a referência à linguagem aparece desde o primeiro até o nono
capítulo. 113 A própria confissão já remete à linguagem no que diz respeito à narração, “às
palavras divinas”, “à palavra criadora”, ao “verbo de Deus”, “a palavra humana”, e a
possibilidade de escutar a voz de Deus no interior de cada um. Várias vezes, Agostinho faz seus
apelos em forma de oração. Ao que parece isso acontece como forma de pedir a Deus socorro,
inspiração para cumprir a tarefa a que se propôs, a saber, encontrar palavras que melhor
esclareçam a eternidade divina e o tempo. A verdade que não é mais buscada na exterioridade do
sentido, marcado pelo tempo em si mesmo, mas na verdade encontrada no interior de cada um,
111 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Dizer o tempo. In. Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro: Imago. 1997. 112 Cf. Conf. XI iii 5. 113 A referência aos capítulos 1 ao 9 é indicada na sequência dos temas.
44
encontra seu sentido no reconhecimento da verdade identificada como o Verbo. Para Agostinho, o
verbo divino é “a verdadeira tradução do logos grego”. 114
Importante notar que esse “lugar”, esse “espaço” não é físico. Tomemos como exemplo a
seguinte analogia. Entre duas pessoas que vão se conhecer há certo ritual. Será necessário o
diálogo, feito através da conversa, da palavra que cria um lugar comum onde é possível a
comunicação. Esse lugar não é físico, é uma possibilidade de encontro, a que chamamos logos.
Assim, o logos é o que dá sentido, abertura ao ser das coisas, e a condição para o logos entre as
duas pessoas que se conhecem é o “inter-esse” “ser-dentro”, “estar-dentro”, “ir dentro”, ir para
onde o “lugar” é possível. Esse “lugar”, esse “espaço” é o logos.
Como encontrar o lugar adequado da palavra e a expressão adequada, se o homem por si
mesmo é limitado e tende a ser dividido? É óbvio pensar que suas palavras tendam,
consequentemente, a expressar as impressões causadas em sua natureza dividida. Essa divisão
acontece e é marcada pela diferença entre a natureza de Deus e a natureza humana. A Deus cabe a
eternidade, enquanto aos homens cabe o tempo. Essa diferença, que parece distanciar a realidade
humana da realidade divina, se estreita à medida que o homem reconhece a grandeza de Deus e
sua misericórdia e rende a Ele louvor confessando a própria miséria. A confissão possibilita estar
no limite entre o humano e o divino. E isso pode significar ruína ou possibilidade.
Na análise do tempo no livro XI das Confissões, no que se refere ao capítulo 1, Agostinho
recorre à narração como recurso para fazer sua confissão. O limite entre a natureza de Deus e a
natureza humana é registrado por sua insistência na fala, ao narrar a Deus acontecimentos que Ele
já conhece. Ele declara que sua narração revela o desejo de amar a Deus, caminho para estreitar a
relação com o divino, e, no final do segundo parágrafo, dá a chave para a formação de uma
linguagem adequada que revele não a exterioridade do homem, mas o seu interior.115 Quando
exatamente se revela o interior do homem, torna-se possível encontrar os meios para chegar a
Deus.
114 NOVAES, Moacyr. Linguagem e Verdade nas Confissões. In: PALACIOS, Pelayo M. (Org.). Tempo e Razão:
1.600 anos das Confissões de Agostinho. São Paulo: Loyola, 2002, p. 30. 115 Conf. XI i.
45
O amor a Deus muda o sentido da busca para o que seja o tempo e a eternidade e,
consequentemente, o lugar onde se encontra esse tempo, que assim como o logos não é um lugar
físico, pois esse lugar é a alma de cada um e exige uma nova postura do homem, por causa da
tensão entre o humano e o divino, que percorre toda análise confessional de Agostinho, por isso, a
mudança de postura não se dá apenas pela vontade humana que, apesar de ser um fator
importante, deve se caracterizar pelo esforço de mudança no sentido de uma adequação ao
chamado divino: [...] “sejamos felizes em Vós, cessando de ser miseráveis em nós. Por isso nos
chamastes para que fôssemos pobres de espírito e mansos”. 116 O apelo à mansidão e à humildade
contrasta com a personalidade de Agostinho, que reconhece seu orgulho latente. Sua conversão é
um processo marcado por essa luta incessante, que aos poucos ganha uma nova dimensão.
Na leitura das Sagradas Escrituras, Agostinho enfrenta primeiramente a si mesmo, sua
dificuldade para aceitar o estilo simples em que Bíblia foi escrita, cuja simplicidade não
correspondia à grandeza de Deus. O seu orgulho, influenciado por seu gosto pelas letras,
dificultava o acesso ao estudo bíblico. Por isso, é importante ressaltar a importância de Cícero e
Ambrósio na sua formação, os quais, mesmo representando diferentes influências, unem-se na
mesma paixão, a arte de bem falar. Para Cícero, “a eloquência é uma virtude”. “Quem cultiva a
eloquência, cultiva sua própria humanidade”. 117 Por trás dessa arte existe um compromisso com a
busca pela verdade. “O autor pagão é admirado por Agostinho pela sua capacidade de reorientar a
vontade, para o amor da sabedoria”. 118
Marca a Filosofia encontrada por Agostinho certo senso de superioridade, de auto-
suficiência, centrada em si mesma. Ela pretende ter a explicação racional para todos os
problemas. Talvez o embate de Agostinho seja não com a Filosofia, mas com essa vaidade da
Filosofia. Esse é o foco da sua crítica, e ele reconhece que também possui tal vaidade. Para
Agostinho, a exigência em relação ao estilo é maior por conta de sua formação retórica. Ele
questiona a simplicidade das palavras bíblicas ao falar de Deus. Ao se deparar com as sagradas 116 Conf. XI 1. 117 Gilson, Ètienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins fontes, 2007. 118 NOVAES 2002, p. 37.
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escrituras, ele sente dificuldade para aceitá-las, pois não vê nelas luz, refinamento; elas eram
diferentes do que ele costumava ler e estudar. Como palavras tão simples podem ser consideradas
palavras de Deus? O que potencializará sua interpretação das Escrituras será a leitura alegórica. A
alegoria representará sua tentativa de falar de Deus, não em contraste com a Filosofia, mas
potencializando a Filosofia, portanto, indo além dela.
Frente à simplicidade bíblica e seu orgulho de dominar as letras, Agostinho sem dúvida
considerava a Bíblia um livro cheio de imperfeições. Mas o mesmo Agostinho, em sua reflexão
sobre o tempo nas Confissões, vê na linguagem metafórica uma possibilidade de encontrar uma
linguagem adequada para o que seja o tempo e a eternidade.
O que senti, quando tomei nas mãos aquele livro, não foi o que acabo de dizer, senão que me pareceu indigno compará-lo à elegância ciceroniana. A sua simplicidade repugnava ao meu orgulho e a lua da minha inteligência não lhe penetrava no íntimo.119
Agostinho procura resguardar o valor, a capacidade da linguagem, dadas as possibilidades
de seu uso. Ao tentarmos nomear a expressão do tempo no livro XI, levados pela necessidade de
explicitarmos nossas ideias, recorremos ao termo “linguagem”. Mas Agostinho, em nenhum
momento emprega esse termo, pelo menos não da maneira como o fazemos. No decorrer da
dissertação, os termos “linguagem metafórica” e “linguagem” por vezes se identificam e, ao
mesmo tempo, se opõem e se completam. Dizemos “linguagem metafórica” justificada por
algumas metáforas encontradas no livro XI das Confissões:
“Quando poderei eu, com a língua de minha pena,… cada gota de tempo me é
preciosa120”.
“... os primeiros alvores de minha alma e os restos das minhas trevas121”,...
“Escutai a minha alma, Senhor,... ouvi-a enquanto clama do mais profundo abismo em
que se encontra122.”
119 Conf. III v 9. 120 Conf. XI ii. 121 Conf. XI ii 2. 122 Conf. XI ii 3.
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“A mesma Verdade, que não é hebraica nem grega, nem latina, nem bárbara,[…], dirme-ia
dentro do domicílio do meu pensamento123,[...]”.
Se nossa opinião é correta, Agostinho se apropria da linguagem metafórica nas Confissões
como uma maneira de expressar Deus e os caminhos que levam a Ele, porque a linguagem
humana é limitada e acaba refletindo a própria miséria humana, tornando-a insuficiente. Como
falar então? Em relação à linguagem metafórica, ela não substituirá a Filosofia, mas vai
potencializar a linguagem filosófica, que também nos permite falar de Deus, embora de maneira
insuficiente. A linguagem filosófica parte do princípio de que a Filosofia é a busca da verdade, a
amiga da sabedoria. A Filosofia não resolve os problemas, os dilemas, mas leva a
questionamentos que abrem a possibilidade de um caminho, um programa filosófico, de amor à
sabedoria, na busca da verdade. Portanto, a linguagem metafórica é uma via possível para se falar
de Deus; ela aponta um caminho, mas não dá a certeza da chegada. Em suma, a expressão
“linguagem metafórica” não aparece nenhuma vez no livro XI das Confissões. Ela é uma
apropriação nossa para identificarmos a maneira como Agostinho expressa seu narrar e invocar a
Deus.
A questão da linguagem aparece já no início das Confissões.124 O homem que fala bem de
Deus e quer fazê-lo conhecido por todos com seu testemunho, quer chamar, exaltar, expressar-se
através da linguagem. Em outras palavras, diante da grandeza do Ser, o homem deseja se
expressar, e isso é feito pela linguagem. Nosso objetivo aqui é mostrar que o tema da linguagem é
recorrente e justifica a atualidade no livro XI. Em todo livro das Confissões, o início é o louvor a
Deus, e para isso é necessária a fala. No livro XI, o foco se volta primeiro para a eternidade que
desencadeia a oração e a narração. Esta exige uma linguagem que não é talvez suficiente para
123 Conf. XI iii 5 . 124 “O homem fragmentozinho da criação quer louvar-Vos; o homem que publica a sua mortalidade, arrastando o
Testemunho do seu pecado e a prova de que Vós resistis aos soberbos. Todavia, esse homem, particulazinha da criação, deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos favores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós. Concedei Senhor, que eu perfeitamente saiba se primeiro Vos deva invocar ou encomiar, se primeiro, Vos deva conhecer ou invocar. Mas quem é que Vos invoca se antes Vos não conhece? Esse, na sua ignorância, corre perigo de invocar a outrem. Ou, porventura, não sois antes invocados para depois serdes conhecido?”(Conf. I i 3).
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explicar o que sejam a eternidade e o tempo. Então, como falar de Deus? É necessário ir além e
descobrir uma maneira adequada para se falar Dele.
Agostinho fala do tempo, a partir da Criação. Ele passa de uma narrativa de si mesmo
para o mundo. Ao discutir a Criação, Agostinho aborda a questão da linguagem, pois é a partir da
palavra, que todas as coisas são criadas, não pela palavra humana, mas pelo Verbo. É neste foco
que queremos nos deter. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era
Deus” 125. O significado de verbo difere quando se refere a Deus e quando se refere ao homem.
Em Deus, o Verbo é o que cria todas as coisas. “Portanto, é necessário concluir que falastes, e os
seres foram criados. Vós os criastes pela vossa palavra”! 126 Para os homens, na condição de
criatura, o verbo é a expressão humana e, portanto, limitada. A condição humana de criatura faz
refletir nas suas ações as suas limitações e, consequentemente, sua fala não alcança a significação
adequada para expressar a Deus, a eternidade e o próprio tempo. As palavras que soam no tempo
são transitórias, 127 enquanto o Verbo de Deus permanece nas criaturas, e esse Verbo nunca se
acaba. Por ele, tudo é dito “simultânea e eternamente”. 128
Esta seção, “Linguagem e eternidade”, quis colher indícios da possibilidade de se
expressar um tempo novo, que se dá a partir da consciência de que o tempo é uma distensão da
alma, e que a adequação à eternidade divina se faz num processo de busca interior, que muda a
perspectiva da vivência humana comum no tempo. A consequência dessa mudança é o
amadurecimento de uma caminhada antes prolongada pelo orgulho, mas agora diminuída pela
humildade. Neste sentido, é importante entender os dois recortes feitos nesta seção.
125 Jo 1,1-2. 126 Conf. XI v. 127 Conf. NOVAES, 2002, p. 41. 128 Conf. XI vii.
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Primeiramente, tendo focado nos primeiros capítulos do livro XI das Confissões (do
capítulo 1 ao 9), nosso objetivo foi mostrar a importância da linguagem para Agostinho, na forma
de narração da análise sobre o tempo, feita a partir da exegese bíblica. Com base nas Escrituras
Sagradas, e dado seu processo de conversão, Agostinho mostra o caminho para a escuta do
Verbo, que criou todas as coisas, e o homem, pela participação Nele como criatura, pode colher
dentro de si a voz do Verbo que ecoa em silêncio na alma. Ele pode fazê-lo dispondo os órgãos
da alma a escutarem esta palavra, que não se perde no tempo como as palavras humanas, mas que
permanece eternamente.
Paralelamente, todo processo da análise do livro XI das Confissões desembocará na
consciência da temporalidade, quando será então possível entender que o verdadeiro sentido do
tempo depende necessariamente da ideia de eternidade divina, que é o tema desta dissertação. O
homem deve buscar em seu interior a eterna Verdade. Esse lugar que, como o logos, não é um
espaço físico, reflete um tempo que não deve ser descrito por palavras. Esse tempo é vivido a
partir da adequação do homem a esta verdade, numa atitude de escuta interior. A possibilidade de
expressão do tempo passa a refletir as consequências deste processo. Como expressar essa
verdade? Ao que parece, os reflexos desta relação resultam não numa linguagem falada, mas
numa mudança de atitude, “sejamos felizes em Vós, cessando de ser miseráveis em nós”, levando
o homem a silenciar para escutar em seu interior a palavra que soa e “que nos conduz à origem do
que somos” 129
129 Conf. XI viii.
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III CAPÍTULO - – O TEMPO NAS CONFISSÕES: ASPECTO ANTROPOLÓGICO
Nossa análise sobre o tempo no livro XI das Confissões de Agostinho tem como eixo
principal o argumento de que a reflexão sobre o tempo se vincula aí necessariamente à ideia de
eternidade divina. Nesse sentido, vimos que o homem que reflete sobre o tempo recorre
primeiramente à eternidade, caracterizada em seu aspecto teológico no primeiro capítulo. Na
sequência, ele é conduzido a um tempo que se apresenta como um enigma, ao qual ele tenta dar
expressão, conforme mostrado no segundo capítulo. Esse homem toma consciência do tempo
que se desdobra num modo particular e marcadamente importante, a saber, pensado interiormente
como temporalidade.
Tomada essa consciência, a temporalidade não cessa sua projeção para a eternidade.
Consequentemente, esse homem que percebe o tempo precisa se voltar novamente para
eternidade, para que o modo, a maneira, da temporalidade seja remodelada. Nisso se resume o
argumento principal deste capítulo.
Partindo do pressuposto de que o homem de que falamos já possui consciência da própria
temporalidade e passou a se deixar amoldar pela eternidade divina, é a parte do argumento
principal da dissertação que o capítulo espera provar. Ao tomar consciência de si, o homem, no
uso de sua razão, encontra elementos que o ajudam a discernir o que lhe é nocivo, passa a não
permanecer nas próprias limitações e, ao assumi-las, encontra meios para superá-las. O homem
que tenta explicar o tempo percebe que é no seu próprio interior que se encontra a possibilidade
de viver a temporalidade. Com efeito, no exterior, o homem vive o reflexo de suas ações,
enquanto no interior ele consegue, apesar de sua finitude, colher a infinitude, por participar do
eterno como ser criado. E um novo molde permeia130 o homem que submeteu a sua razão à ação
no tempo pela eternidade divina.
130 Para esclarecer o sentido do termo “molde que permeia”, criado por nós, o termo “permear” tem o mesmo sentido
de “ocorrer”, “que está presente por toda extensão de: a metáfora permeia o discurso bíblico”. https://www.google.com.br/?gws_rd=ssl#q=permear. Acesso em 01 ago. 2015.
51
Os quatro passos principais através dos quais este capítulo espera provar seu argumento
são: enfatizar a questão da temporalidade, analisar o processo de interiorização apresentado desde
os capítulos xxv até o fim do livro XI das Confissões sem, evidentemente, pretender responder a
tudo, mas esperando pensar sobre esse processo de temporalidade traçando o caminho feito por
Agostinho. Por fim, enfatizando o caráter filosófico deste trabalho, queremos levantar a questão
de como deve ser a postura do homem que assumiu sua temporalidade por uma nova perspectiva
do tempo submetido à eternidade.
3.1 O conhecimento de si e o movimento da interioridade
Sustentando nosso primeiro passo, enfatizar a questão da temporalidade, existem algumas
evidências importantes nas Confissões, entre elas se encontra o conhecimento de si e o
movimento da interioridade. Essa é a primeira evidência relevante para a questão da
temporalidade: o “eu confessional” 131 passa da narração de si mesmo para a verdade inteligível
das escrituras a partir de Gn 1.1 “No princípio criastes o céu e a terra”, afirmando “o Princípio
eterno dos tempos”. 132
O processo de interiorização começa a partir da meditação sobre a eternidade e tempo e
prossegue num movimento que não cessa, o qual chamamos movimento da interioridade. Essa é a
primeira evidência que nos ajuda a pensar sobre a nossa questão. Para Moacyr Novaes, por
exemplo, os conteúdos da razão “ocasiões de introspecção progressiva”. 133
Ao estabelecer que o tempo deva ser pensado como temporalidade numa realidade
interior, o homem conhece melhor a si mesmo, e o movimento da interioridade prossegue. O
homem agora não se resume mais àquele que está sob a perspectiva de quem nasce e se
131 NOVAES, Moacyr, Analytica, vol. 9, número 1, 2005. 132 Ibidem. 133 Ibidem
52
desenvolve até a morte, mas “tem consciência de sua condição temporal e mortal”, 134 e pode
falar sobre o tempo e pensar sobre ele. Ora, como o homem precisa usar a linguagem para “dizer
o tempo” 135, a relação linguagem entre tempo irá decidir sobre a “possibilidade de uma definição
do tempo”.136 O tempo e a linguagem estão estreitamente ligados, a análise do tempo se difere de
sentido quando se define o tempo em si mesmo e quando o tempo é definido na perspectiva da
eternidade, porque um é o tempo cronologia dos fatos e o outro é o tempo como movimento da
interioridade.
Nesse sentido, Jeanne Marie Gagnebin, Em seu texto “Dizer o tempo”, seguindo Paul
Ricoeur, valoriza precisamente a questão narrativa. Segundo ela a investigação sobre o tempo,
tendo como fundamento a leitura das Confissões, a confissão mistura o processo narrativo e a
realidade, e é possível identificar elementos da literatura como a trama, enredo, aventura e
suspense. Percebermos alguns elementos, entre eles, que a narração da própria história acaba
sendo o processo de conhecimento de si mesmo, e o processo da confissão não é histórico, mas a
constatação do sujeito, ruptura da história. Com a confissão, a possibilidade da fé liberta e
Agostinho recorre à oração, pois a bondade e o perdão de Deus desligam o homem da realidade,
ou melhor, a eternidade abre a perspectiva de que a realidade não acaba, porque frente a Deus é
possível a reelaboração da própria história.
O contraste entre tempo humano e eternidade divina se desdobra, pois, no contraste entre os longos e difíceis meandros da história humana que se vive e se conta – e a omnisciência instantânea de Deus que não precisa divina não precisa de nossas histórias para conhecer a verdade. 137
A relação linguagem-tempo aparece desde o início do livro XI das Confissões. “Sendo
Vossa a eternidade, ignoras porventura, Senhor, o que eu Vos digo, ou não vedes no tempo o que
134 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Dizer o tempo. In: Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro:
Imago, 1997. 135 Ibidem 136 Ibidem 137 Ibidem.
53
se passa no tempo? Por que razão Vos narro, pois, tantos acontecimentos?” 138 Agostinho, a todo
momento e repetidamente, vai contrapondo as ideias, e essa contraposição conduz
necessariamente não somente a conceitos divergentes mas também por oposição ou contraste de
uma realidade que não pode ser conhecida em si mesma. Por isso, começa o livro XI por aquilo
que é o fim, a saber, a eternidade.
A obtenção gradual do significado agostiniano do tempo se dá com o avanço da
meditação e ganha contorno com outro elemento, a distensão. “O tempo integra a condição do
‘eu’ confessional, uma vez que o tempo é distensão do espírito, e a vida do espírito não é senão
ela própria distensão”. A alma racional percebe que a eternidade é um conteúdo ao qual ela deve
se deixar moldar. 139
Quando muda a perspectiva da investigação fazendo a pergunta “Que é, pois o tempo?
Quem poderá explicá-lo clara e brevemente?” 140, Agostinho move o foco do que seja o tempo
para quem irá explicá-lo. Ele vai vencendo obstáculos em relação à apreensão do tempo e
conduzindo sua reflexão, mas sem garantias de respostas. Ora, se um caminho se faz
caminhando, este possivelmente nos revele o que é o tempo, mas talvez revele o próprio homem.
Confesso-Vos, Senhor, que ainda ignoro o que seja o tempo. De novo Vos confesso também, Senhor – isto não o ignora –, que digo estas coisas no tempo e que já há muito que falo do tempo, e que esta longa demora não é outra coisa senão uma duração de tempo. E como posso saber isto, se ignoro o que seja o tempo? Acontecerá talvez que não saiba exprimir o que sei? Ai de mim, que nem ao menos sei o que ignoro! 141
A postura de Agostinho contribui para avançarmos na questão sobre o conhecimento de si
e para o movimento dessa interioridade que vai se formando. De fato, diante das questões para
entender o tempo, Agostinho não recorre a “uma afirmação de crença ou de fé, mas sim a uma
138 Conf. XI i. 139 Ibidem. 140 Conf. XI xiv 17. 141 Conf. XI xxv 32.
54
reflexão critica sobre nossa linguagem”. 142 Isso quer dizer que o fato de não conseguirmos
determinar onde “se encontra esse tempo sempre fugidio”, não determina como esse tempo deva
ser concebido e nem que ele não exista “como querem os céticos”. 143 Como pensamos e falamos
sobre o tempo, tendemos a expressá-lo por “imagens”, bloqueando assim o entendimento de onde
ele realmente surge. 144
Em sua análise sobre as Confissões, Paul Ricoeur explica o tempo pela atividade
narrativa. A análise de Ricoeur em sua obra Tempo e Narrativa tem como horizonte filosófico “a
relação entre tempo vivido e narração ou entre experiência e consciência”. 145 Para ele, está posto
que o tempo nas Confissões se insere na perspectiva de análise da eternidade e do tempo, pode
fazer perder o sentido da proposta de que a análise sobre a eternidade e o tempo, pois, se
analisamos as Confissões isolando o tempo da eternidade, perdemos o sentido da proposta
agostiniana de que a análise do tempo depende da ideia de eternidade divina. Ele nota, porém,
que Agostinho, na sequência de sua análise, refere-se à eternidade somente “para marcar mais
fortemente a deficiência ontológica característica do tempo humano”.146 A separação na análise
agostiniana entre tempo e eternidade serve, portanto, apenas para ressaltar certas aporias.
For Augustine, the existence of time is, ideally speaking, a matter of either/or. The fact that this either/or can-not be realized is part of the aporia of time and of the exile of the human soul, not living properly, but through the distentio animi, stretched out, backward in memory and forward in expectation. That is why Meijering correctly refers to time as being and not being at once. One of the impli-cations of this Augustinian view is that there can be no before or after. There is no actual succession of moments that can be measured analo-gous to the way we measure movement. So Augustine's punctum as con-tamination of point and moment is not the beginning of something else; it neither divides nor unites the present. The punctum is indivisible and reflects the "near-nothingness of the present." 147
142 Cf. GAGNEBIN 1997. 143 Ibid., p.5. 144 Ibidem. 145 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Trad. Constança Marcondes César. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994, p.20.
Abrindo um parêntese para esta questão da atividade narrativa da qual não irá nos aprofundar, nas Confissões dois aspectos literários se mostram o enredo e a trama. Eles são realidade? Platão e Aristóteles definiam o tempo como real e espacial. Mas a partir de uma elaboração do sujeito e da trama não se tem o tempo preso ao registro dessa realidade espacial.
146 Ibidem. 147 CAREN, Maxence.Saint Augustin. Paris: Les Éditions du Cerf, 2009.
55
Esse estilo aporético mencionado por Paul Ricouer consiste num aspecto do texto
agostiniano que achamos importante esclarecer, porque contribui para nossa análise, mas
ressaltamos que a atividade narrativa não definirá o rumo que seguiremos. Será apenas uma
forma de acompanhar a reflexão agostiniana sobre o tempo. Esse “caráter aporético” não será
resolvido por uma definição teórica do termo. O possível é uma aproximação ao sentido poético
não para definir, mas para libertar “a aporia do não sentido”, 148porque na poesia, a imaginação é
um elemento necessário, tanto para o autor como para o leitor, para que seja possível o sentido da
poesia.
“Senhor, Iluminareis as minhas trevas”. “Vós acendereis a minha candeia, Senhor Meu
Deus, e iluminareis as minhas trevas”.149 Nesta passagem há um pedido insistente para que a
iluminação aconteça. Agostinho entrega-se a Deus, sem abandonar “sua finitude”, mas buscando
“nela” o fundamento “de superação”.150 Com isso, elabora uma “nova teoria sobre o tempo” 151
na qual desenvolve com dedicação e por etapas a evolução de significações de uma ideia já
provocada, a distensão. Assim, fica marcada ”a importância do homem interior para Agostinho”. 152
Agostinho afirma que mede os tempos, mas que é difícil compreendê-los: “meço-os, e não
sei o que meço”. 153 Mesmo com todo nosso esforço, não atingimos “a medida certa para o
tempo”. Parece “que tempo não é outra coisa senão distensão” 154; mas do que ele é a distensão
não sei. “Seria de admirar que não fosse a própria alma”.155O interessante é perceber que há
interrogações que merecem a nossa atenção para que possamos dar sentido à nossa análise. “Que
meço eu então”, pergunta Agostinho. Há aqui a passagem sutil do como, para onde eu meço o
tempo. É na alma que o meço. E o que eu meço é “o tempo que decorre no presente e não o que
148 Ibidem. 149 Conf. XI xxv 32. 150 Cf. NOVAES, 2009, p. 276. 151 Conf. XI xxvi 33. 152 NOVAES, 2009, p. 276. 153 Conf. XI xxvi 26. 154 Ibidem. 155 Ibidem.
56
passou e nem o que ainda não existe”. 156
À medida que o homem toma consciência de si, surge mais um contraste, entre o
homem exterior e o homem interior, e na passagem de um para outro a distensão aparece como
uma tentativa de responder à questão da medida do tempo. Esse resultado faz com o homem
conheça melhor a si mesmo e a interioridade vá se firmando na mudança de perspectiva sobre a
medida do tempo, de como medir, para onde medir. Segundo Brachtendorf a partir de agora,
Agostinho vai conferindo “um viés subjetivo” à discussão sobre o tempo.
Na terceira seção da parte principal (26,33-27,36), Agostinho retoma a questão do intervalo temporal. Em sua explicação da medida dos intervalos de tempo, os lapsos de tempo mais breves são colocados em relação como os mais longos. Assim, uma sílaba longa, por exemplo, dura o dobro de uma breve. Isso, no entanto, não produz uma medida fixa para o tempo da sílaba longa, mas apenas uma medida relativa, pois a mais breve pode, por sua vez, ser pronunciada rápido ou devagar. É decisivo constatar que o tempo é “distensão” do presente pontual até o espaço de tempo. Mas o que é distendido aqui? Agostinho confere à sua análise um viés subjetivo, quando no início, apenas experimentalmente diz: ”Seria para admirar que não fosse o próprio espírito” (26,33). Na medida em que o espírito percebe a passagem dos objetos, ele se estende e dá ao fluxo ilimitado a forma de um espaço de tempo limitado. É o espírito que dá ao tempo a forma de intervalos e o torna mensurável. 157
Seguindo em detalhes o pensamento de Agostinho, primeiro se destaca que o tempo é
medido enquanto transcorre, não quando transcorrido, por exemplo, quando ele fala da voz que
começa a soar e depois para. Ela foi medida no presente, enquanto soava. Na verdade, sendo
assim, ela não estava parada, mas passou pelo ouvinte e agora pode assim pode ser medida.
Agostinho ressalta que o tempo é medido enquanto transcorrido: “O passar pelo espírito
perceptivo é uma condição da constituição do intervalo de tempo. [...] Só se deixa medir o que
tem limites. [...] Não medimos o tempo futuro, nem o passado, nem o presente, nem o que passa.
Contudo, medimos o tempo”. (27,34) Pelo visto, o ponto crucial aí é o passar pelo espírito. O
homem que conhece, percebe o tempo, e tal experiência se torna um elemento na formação do
intervalo de tempo.
156 Conf. XI xxvi 33. 157 BRACHTENDORF, 2012, p 247.
57
O conhecimento de si se dá à medida que o movimento da interioridade vai sendo
aprofundado. Assumir a distensão como movimento da alma leva a algumas consequências e
muda nossa postura em relação ao tempo, entre elas, à dissociação entre o tempo e a ordem
cronológica dos fatos. Como é possível admitir o conceito de tempo sem tempo? Quanto mais se
avança na tentativa de descrever ou estabelecer um conceito certo de tempo, principalmente a
partir do ponto em que chegamos, a distensão, recorreremos à contribuição de Paul Ricouer.
Segundo ele, somente Agostinho arrisca aceitar como verdadeiro falar de “espaço de tempo”, sem
fazer menção à cosmologia. É nesse sentido que a noção de distentio animi substitui “esse
suporte cosmológico de tempo” 158.
Ao tomarmos esse novo rumo de análise, a partir da distensão, o movimento da
interioridade vai sendo firmado. Abordando essa questão, Agostinho faz menção à alma humana.
Tudo fica resolvido e ao mesmo tempo suspenso. Para Paul Ricouer só compreenderemos a nós
mesmos quando tivermos ligado à noção de distentio animi à dialética do tríplice presente. A
distentio animi resolve o enigma “do ser que carece de ser” e o tríplice presente, que é a
explicação do tempo pela tríade: memória, intenção e espera (pretérito, presente e futuro),
existente na mente humana, considera o tempo apenas como presente. Presente do passado,
presente do presente e presente do futuro, quando o homem mede o tempo, assim o faz por meio
da impressão ou percepção que tem dele. Por isso, a distentio animi resolve o outro o enigma da
extensão, “de uma coisa que não tem extensão” 159. O homem conhece a si mesmo
presentificando o tempo pelos olhos da alma.
“Em ti, ó meu espírito, meço os tempos” 160 “Agostinho resolve a dificuldade de medir o
tempo voltando-se para o próprio espírito”. O que é medido não são as coisas que passam, mas,
sim, “a impressão ou percepção” que o espírito capta quando “a impressão é produzida”.161 A
impressão aparece enquanto os eventos acontecem, o que ocorre enquanto ela é presente, e a
158 RICOUER, 1994, p. 32. 159 Ibid. p. 32. 160 Conf. XI, xxvii. 36. 161 Ibidem.
58
impressão fica mesmo após o acontecido ter passado. Do eu narrador influenciado pela
exterioridade e pela necessidade de explicar a Deus as suas faltas, de entender o que são as coisas
e o próprio mundo, o homem passa do conhecimento externo para o conhecimento de si e assim a
medida só é possível quando percebe que é no espírito que se pode fazer com que algo
permaneça, inclusive, o próprio tempo. Meço a impressão enquanto é presente, “ou esta
impressão é os tempos ou eu não meço os tempos”. 162
A investigação para por causa do “recurso à impressão” 163. Quando o espírito percebe e
se mantém passivo diante das coisas que passam. “Só um espírito assim diversamente estendido
pode ser distendido”. 164 A distensão é uma metáfora através da qual Agostinho tenta uma
compreensão possível para o problema do “permanente com o transitório”. Pela distensão no
presente, passado e futuro coexistem, e isso nos “permite perceber a duração e medi-la”. 165 É
possível medir o tempo? Se considerarmos o tempo por ele mesmo não é possível uma medida. A
possibilidade de considerar a medida do tempo se encontra na alma, através do recurso à
memória, pois aquilo que não mais existe, pode permanecer como memória, tornando possível a
comparação e “certa medida dos intervalos delas”. 166
Quanto mais avançamos nesta reflexão sobre o tempo, mais surpreendente o
questionamento vai ficando. Por mais que tenhamos consciência de que a meditação sobre o
tempo precisa recorrer à eternidade, não é possível sabermos o que é a eternidade em si mesma.
Por isso, é preciso entendê-la pelo seu contraste, ou seja, o tempo. Entretanto, tampouco o tempo
pode ser conhecido em si mesmo. No entanto, no curso desta reflexão, muitos contrastes surgem
que no permitem cercar e tornar viável certo entendimento sobre o tempo e, sobre a eternidade.
Até aqui, guiados pela nossa impressão, nenhuma certeza temos. Poderíamos pensar, porém, que
podemos dizer algo sobre o tempo, mas, exatamente no penúltimo parágrafo do capítulo 27 do
livro XI das Confissões, contra nossa tentativa de dizer algo sobre o tempo, Agostinho vem
162 Ibidem. 163 RICOUER, 1994, p. 32 164 Ibid., p.38. 165 Ibidem. 166 Ibidem.
59
ressaltar que o silêncio é importante.
Para encontrarmos o sentido próprio do pensamento de Agostinho quanto a esse silêncio,
recorreremos ao texto de Moacyr Novaes “O tempo como enigma” para entender que a questão
do silêncio é relevante porque ele “sugere” uma pertinente “espacialização do espírito”, seja qual
for o “som que passe para ser medido”. “As pausas” significam “espaço” proporcional “àquele
ocupado pelas sílabas sonoras”. O fato de Agostinho recorrer ao silêncio e às pausas de um verso
ou de uma música para compreender a espacialização do espírito ainda não conduz a uma solução
para a medida do tempo. Mas, ajuda a dar acesso a uma solução: que é explicar o que é “longo”
como “longo do espírito”.167 Essa espacialização não deve ser entendida como “espacialização
local”. Agostinho conduz sua reflexão envolvendo cada vez mais “o homem interior”. 168
Quando medimos os silêncios e dizemos que aquele silêncio durou o mesmo tempo que aquela voz, não dirigimos o pensamento para a duração da voz, não dirigimos o pensamento para a duração da voz, como se ressoasse ainda, a fim de podermos avaliar no espaço de tempo o intervalo dos silêncios? Com efeito, quando, sem abrir a boca nem pronunciar palavra, fazemos mentalmente poemas, versos ou qualquer discurso, ou medimos quaisquer movimentos, comparamo-los pelos espaços de tempo e achamos a relação de uns com os outros como se os pronunciássemos em voz alta. 169
De acordo com o capítulo xxviii do livro XI das Confissões, a dinâmica de relação entre o
“Tempo e o Espírito”, dividida num futuro que diminui e num passado que cresce, desdobra-se
em três ações: “expectação, atenção e memória”. E isso só pode se realizar no espírito: “Aquilo
que o espírito espera passa através do domínio da atenção para o domínio da memória”. 170 É no
espírito que o tempo pode ser presentificado. O presente como impressão permanece. “Assim a
medida do tempo se encontra no espírito”. 171 A maneira como Agostinho avalia o tempo
presentifica não somente o presente, mas também o passado e o futuro, e esta ação só é possível
graças ao espírito.
167 NOVAES, 2009, p. 278. 168 Ibidem. 169 Conf. XI, xxvii. 36, 10. 170 Conf. XI, xxviii 37. 171 BRACHTENDORF, 2012, p.248.
60
Quem, por conseguinte, se atreve a negar que as coisas futuras ainda não existem? Não está já no espírito a expectação das coisas futuras? Quem pode negar que as coisas pretéritas já não existem? Mas está ainda na alma a memória das coisas passadas. E quem contesta que o tempo presente carece de espaço, porque passa num movimento? Contudo, perdura a atenção perdura, e através dela continua a retirar-se o que era presente. Portanto o futuro não é um tempo longo, porque não existe: o futuro longo é apenas a expectação do futuro. Nem é longo o tempo passado porque não existe, mas o pretérito longo outra coisa não é senão a longa lembrança do passado. 172
A distensão está no contraste entre as três ações, que são a expectação, atenção e
memória. Agostinho recorre ao exemplo do hino que ele já sabe. Antes que ele comece a dizê-lo,
a expectativa percorre todo o hino se estendendo até a memória, ”colhendo tudo o que passa de
expectação para o pretérito”. “A minha atenção está presente e por ela passa o que era futuro para
se tornar pretérito”. 173“A passividade acompanha com sua sombra três ações, expressas por três
verbos”: a saber: o espírito espera, está atento e se recorda. O verbo não cessa de movimentar-se
entre “a atividade e passividade”. 174 Agostinho insiste nos versos e na música e recorre a eles
para acrescentar argumentos para a compreensão do tempo em sua possível medida. À distensão
cognitiva do espírito, na “vida” de um ato isolado como um canto sobrepõe-se `a distensão da
vida humana em geral, isto é, a sua distribuição pelo tempo, e na multiplicidade de gerações. 175
Ora, o que acontece em todo o cântico, isso mesmo sucede em cada uma das partes, em cada uma das sílabas, em cada ação mais longa – da qual aquele cântico é talvez uma parte – e em toda vida do homem, cujas partes são os atos humanos. Isto mesmo sucede em toda a história “dos filhos dos homens”, da qual cada uma das vidas individuais é apenas uma parte. 176
Como dissemos acima, a distensão consiste no contraste de três ações, espera, atenção e
recordação, “e as forças vivas de minha atividade são distentidas em direção à memória, por
172 Conf. XI xxviii 37. 173 Conf. XI xxviii 38. 174 RICOUER, 1992, p.38. 175 NOVAES, 2009, p. 280. 176 Conf. XI xxviii 38.
61
causa do que eu disse, e em direção à expectativa, por causa do que vou dizer”. 177 Agostinho
chega à distentio animi por uma reflexão que reflete a condição interior do homem na construção
da temporalidade. Quanto mais cresce o homem interior, mais o homem exterior se apequena por
conta da definição superficial de tempo ligada a este último. Com efeito, não há possibilidade de
pensar a temporalidade como objeto externo ao pensamento.
Agostinho não define a “experiência do tempo” como um objeto externo ao pensamento.
“Ora, essa não se diz em termos espaciais objetivos, mas em termos ativos de esticamento, de
dilaceração, de tensão entre o lembrar e o esperar”. 178 A “distentio” e a a “attentio” estão na
alma, “uma indica uma luta que não para entre a ação do passado e ação do futuro, e a outra a
tomada de consciência ativa desse incessante esticamento”. 179 Quando acontece uma ação que
foi anteriormente pensada é no espírito que a expectação, atenção e memória realizam o processo
de passar pela medida do tempo como um todo, do futuro ao passado, “e assim mantém todo
intervalo de tempo no presente”. 180
Agostinho, tendo usado o exemplo do cântico, 181 ressalta que o que acontece com o
cântico pode ocorrer também em outras partes ou em algo maior que talvez seja cantar todo o
cântico. O mesmo pode se dar “em toda a vida do homem, cujas partes são os atos humanos”.
Agostinho compara o cântico com “toda a história” da humanidade e as partes como a vida de
cada um. 182 Associar o tempo e o que se passa nele com a distensão do espírito permite que
Agostinho dê mais um passo que, no entanto, ainda não resolve o problema.
177 RICOEUR, 1992, p.39. 178 Cf. GAGNEBIN, 1997, p.11. 179 GAGNEBIN, 1997, p.11. 180 BRACHTENDORF, 2012, p. 249. 181 Cf. Conf. XI xxviii 38. 182 Ibidem.
62
3.2. A relação entre temporalidade e eternidade 183
Ao longo da reflexão agostiniana sobre o tempo, muitos contrastes aparecem. O principal
deles é a tentativa de definir a eternidade pelo tempo. Outro contraste, do homem exterior com o
homem interior, ganha relevância. De acordo com o exemplo citado anteriormente, ao considerar
a vida humana em geral como distensão, “Agostinho estabelece a oposição entre distentio e
intentio”.184 A maneira como Agostinho conduz a reflexão sobre o tempo até aqui, faz com que,
através da elaboração dessa reflexão, de maneira gradual, o homem interior ganhe vida e
diminua a relevância do homem exterior.185 “ Mas “porque a vossa misericórdia é superior às
vidas” “Confesso-Vos que a minha vida é distensão”. 186 Pode parecer óbvio que, por estarmos
inseridos numa reflexão há promessa de encontrar uma resposta ou uma certeza. Até o momento,
somos conduzidos apenas à conclusão de que a noção de distensão apresenta “o aspecto
estritamente humano da noção do tempo”. 187
O viés que queremos dar a esta seção, sobre a relação entre temporalidade e eternidade,
implica o de constatar que, tendo Agostinho avançado na reflexão sobre o tempo e a eternidade,
necessariamente os conteúdos de temporalidade necessariamente o fazem retomar à questão do
tempo invertendo a dinâmica de conteúdo. Em outras palavras, a temporalidade se ajusta à
eternidade para que se possa refletir sobre o tempo a partir dessa perspectiva.
183 Toda estrutura desta dissertação está orientada pelo Livro XI das Confissões. Desde o inicio foi seguido na
sequência dos capítulos desde o I até o fim. Esta seção contempla os últimos três capítulos, que são os 29, 30 e 31.
184 NOVAES, 2009, p. 280. 185 MARROU, Henri-Irénée. L'Ambivalence du temps de L´histoire chez Saint Augustin. Montreal & Paris: Institut
d'Études medievales & J.Vrin,1950. Depois de ter questionado o tempo e sua compreensão, as Confissões em relação a ambivalência do tempo,que o homem tende a divisão, a menos que em seu interior ele encontre a sua unidade..
186 Conf. XI, xxix. 39. 187 NOVAES, 2009, p. 280. Perguntamos qual seria outro aspecto que não fosse o humano em relação a noção do
tempo. Se noção remete a discernimento, conhecimento, entendimento. Quem responderia sobre o tempo. Se a pergunta sobre o tempo mudou de perspectiva, de onde para quem dirigir a pergunta sobre o tempo. Se na alma humana é que o tempo pode ser medido. Aonde chegaremos?
63
O fato de sermos conduzidos ao argumento “o aspecto humano da noção de tempo” faz
coincidir pontos divergentes e, ao mesmo tempo, comuns na meditação sobre o tempo. De fato,
na sequência da argumentação agostiniana, fica claro que esse seu último argumento não
representa o fim de sua reflexão. Ora, quando ressaltamos que corremos o risco de, no curso de
nossa análise, querer caminho desta reflexão, querer expressar incisivamente o que seja o tempo,
devemos acrescentar que essa vontade se justifica pela nossa humanidade, que pode e deve falar
no tempo e que assumiu essa consciência de seres que não estão destinados somente a nascer e
morrer no tempo. Assim, temos dois pontos divergentes, a saber, a noção de distensão e a outro é
a pretensão de definir o tempo. Embora distintos, eles possuem um ponto em comum: os dois
servem para dinamizar o sentido exato do propósito desta dissertação, e da reflexão agostiniana
proposta no livro XI das Confissões: “a reflexão sobre o tempo está subordinada ao problema da
eternidade, e de sua relação com o tempo”. 188
Gradualmente, o homem interior vai ganhando relevância na mesma medida em que a
temporalidade se desenvolve, mas essa temporalidade somente tem sentido quando está numa
relação com a eternidade. Daí o título desta seção. “Vós que sois uno, e nós, que além de sermos
muitos em número, vivemos apegados e divididos por muitas coisas”. Há nessa passagem uma
constatação: “Vós sois uno”, 189 e nós divididos, pois quanto mais o homem se aprofunda na
temporalidade mais ele se conhece e mais perto de Deus fica. Quanto mais perto de Deus, mais
evidente se torna que é difícil ser humano, não viver apegados às coisas e não ser dividido. Por
isso “a Unidade do meu ser” 190 acontece pela união a Deus como atualização no presente. O
desapego pelo passado e futuro se dá pela escolha do presente, seguindo a Deus que é Uno. Ele,
que tudo sabe, entoa o canto da minha vida que Ele sabe de cor.
O fato de Agostinho afirmar que somos divididos indica que, na tentativa de entender o
tempo, no uso consciente de nossas forças intelectuais, nos apegamos até mesmo às nossas
188 Ibidem. 189 Conf. XI, xxix 39. 190 Conf. XI, xxix.
64
certezas, mesmo que a reflexão sobre o tempo nos conduza à “noção de tempo como uma
distensão do espírito”. 191 Como tem um modo particular de fazer suas considerações, Agostinho,
no mesmo momento em que afirma algo, muda o foco para aquilo que realmente quer dizer. Mas
isso não significa que ele fale em vão, pois a provocação à intelecção sobre o tempo insiste no
questionamento, privilegiando não as respostas em si mesmas, mas sim, o fluir da reflexão e a
possibilidade de abrir caminhos para que ela não pare. Portanto, não “se deve definir o tempo
como distensão do espírito”, nem esta análise deve levar ao contentamento de uma consciência
do que seja distensão. 192
A relevância dessa se encontra principalmente em apontar elementos que deem suporte
para que a temporalidade seja uma realidade exercitada e, consequentemente, vivida. Quanto ao
exercício, ele só pode ser bem sucedido através de um esforço intelectual que privilegie o
crescimento do homem interior que, em sintonia com Deus que, sendo Uno, torna possível a
Unidade do ser do homem e volta a atenção para o que está acima do passado e do futuro.
“Com fervor de espírito, dirijo-me para a palma da celestial vocação, onde ouvirei o cântico dos vossos louvores e contemplarei a vossa alegria, que não conhece futuro nem passado”. 193
Como aponta Paul Ricoeur, examinando a experiência do tempo no livro XI das
Confissões, “dois traços da alma humana aí se acham confrontados e que Agostinho chama de
intentio e distentio animi”.194 À narração vincula-se um mundo temporal: “o tempo torna-se
tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo”. 195 A narração ganha
sentido quando elabora a experiência temporal. “A tese da reciprocidade entre narrativa e
temporalidade”, Paul Ricoeur interpreta Agostinho da seguinte forma: “A análise agostiniana
191 Cf. NOVAES, 2009, p. 281. 192 Cf. NOVAES, 2009 p. 281. Há pouco o tempo era distensão e possibilidade de solução, agora não se deve
considerar mais como solução. Há privilégio na consideração sobre distensão, mas ainda não encerra a análise proposta.
193 Conf. XI, xxix. 39. 194 RICOEUR, 1994, p.19. 195 Ibid., p.15.
65
oferece, com efeito, uma representação do tempo na qual a discordância não cessa de desmentir o
anseio de concordância constitutiva do animus” . 196 Neste exercício filosófico sobre o tempo que
conduz à consciência da temporalidade, muitos caminhos nos levaram a conhecer algo e tivemos
a certeza da apreensão. Agostinho nos remetia a outra reflexão e nos impulsionava a ir além do
que parecia. É claro que, chegado este momento, parece que não nos resta outra coisa senão
expressar o que seja o tempo. Mas não nos enganemos. Como tendemos a viver “apegados e
divididos”,197 nessa vontade de dizer o tempo e todas as “dificuldades” da “linguagem temporal,”
Agostinho “conduz um exercício” de tentar perceber que, além da expressão temporal e do que
ele pretenderia significar”, há algo a mais pelo qual a questão do tempo e linguagem foi posto à
prova, que “é a eternidade”. 198
O tempo, como signo, remete também, e, sobretudo, ao futuro da salvação: indica que o significado daquilo de que se tem experiência, do que se vê, ou em que se crê, está ainda além do presente. 199
A relação entre temporalidade e eternidade acontece justamente na dialética dos
opostos. O homem interior vai se formando passando pela experiência da temporalidade, em
oposição ao homem exterior. Tendo chegado à distensão, que passa a representar “um aspecto
humano da noção do tempo”. 200 “A temporalidade humana dilacerada só vai adquirir sentido por
causa da eternidade divina”. 201 Portanto, a distensão não resolve a questão do tempo, mas abre
possibilidades como que é o aprofundamento da “temporalidade humana” 202, e isso não acontece
somente pelo querer do homem. Há apelos incessantes durante a meditação sobre o tempo no
livro XI das Confissões para que a iluminação divina aconteça. Nessa linha da iluminação divina,
a intentio atualiza “a imagem do eterno presente de Deus em nós”. 203 Tendo consciência da
experiência temporal, a dialética entre intentio e distentio torna possível o aprofundamento da
196 Ibidem. 197 Conf. XI, xxix. 39. 198 NOVAES, 2009, p. 282. 199 Ibidem. 200 NOVAES, 2009, p. 280 201 GAGNEBIN, 1997, p.12 202 Ibidem. 203 Ibidem.
66
temporalidade. Consequentemente, quanto mais há o aprofundamento, mais possibilidades de
aproximação com a eternidade divina é possível.
Vós, Senhor, consolação minha, sois eternamente meu Pai. Mas eu dispersei-me pelo tempo, cuja ordem ignoro. Os meus pensamentos, as entranhas íntimas da minha alma são dilaceradas por tumultuosas vicissitudes, até o momento em que eu limpo e purificado pelo fogo do vosso amor, me una a Vós. 204
Tendo a consciência de que a compreensão do tempo só é possível a partir da perspectiva
da eternidade, parece que é possível pensar que o tempo não deva ser definido, mas vivido. Mas
como não dizer de algo que se vive? A questão não é apenas dizer. Tendo assumido esta
perspectiva da eternidade, não se pensa o tempo como uma realidade fora do homem. Não se
trata de escolher ou aplicar conceitos, ou mesmo passar de uma descrição externa para uma
descrição interna sobre o tempo. A questão da linguagem e do tempo persiste. Como os
pensamentos e a alma estão sujeitos a instabilidades, tendemos à dispersão. Mas o tempo como
distensão, que “caracteriza nossa existência temporal”,205 revela nossa limitação e insuficiência
diante da plenitude do amor de Deus. Por isso, pela atenção da alma, a dialética do tempo e da
eternidade faz com que a relação entre a vivência da temporalidade e a eternidade permaneça.
3.3. Eternidade e tempo
Tendo tomado consciência da temporalidade percebida a partir da reflexão sobre a
eternidade e o tempo, esperamos ter chegado a um ponto que nos permita retomar essa nova
eternidade que muda a perspectiva da temporalidade. Dadas nossas limitações, não temos,
evidentemente, a pretensão de esgotar o assunto, mas queremos pensar sobre essas questões ainda
que fragmentariamente.
204 Conf. XI, xxix 39. 205 GAGNEBIN, 1997, p.12.
67
A retomada do problema da eternidade reaparece de maneira destacada nas Confissões XI,
xxix, 39 com o tempo caracterizado como distensão do espírito. Essa caracterização ultrapassa a
exegese inicial do livro XI, Com base nos capítulos xxx e xxxi do livro XI, alguns pontos se
destacam nessa redefinição. Para tanto, retomamos, em parte, a análise de Paul Ricouer, que
enfatiza o fato da contribuição da meditação sobre o tempo constatar que “falta algo ao sentido
pleno da distentio animi e que só o contraste com a eternidade traz”. 206 Ao analisar o contraste
entre tempo e eternidade, Paul Ricouer estrutura sua discussão distinguindo “três incidências
sobre a eternidade a respeito da especulação sobre o tempo”. 207 Dentre elas, destacaremos a
terceira, por sua contribuição para a sequência da análise que queremos fazer. Esta se dá a partir
“da intensificação da experiência da distentio no plano existencial, chamando essa experiência a
se superar, em direção à eternidade, e se hierarquizar interiormente, contra o fascínio pela
representação de um tempo retilíneo”. 208
O destaque aí é dado à análise “sobre a semelhança entre eternidade e tempo” 209, a partir
da análise comparativa que a inteligência é capaz de realizar entre eternidade e tempo. Essa
semelhança é encontrada “na capacidade de aproximação da eternidade” inscrita por Platão na
“definição do tempo”, reinterpretada pelos “primeiros pensadores cristãos” e que, a partir de
Agostinho, une eternidade e tempo “pelo Verbo interior e do retorno”. “O Verbo é o mestre
interior buscado e ouvido no interior” por isso destaca que não há apenas distanciamento entre
“Verbum eterno e a vox humana, mas instrução e comunicação”. Através deste processo, que
adquirimos “conhecimento”, e é a Verdade que nos instrui. Nessa dinâmica da linguagem, “nossa
primeira relação com a linguagem não é falarmos, mas escutarmos”. O que se deve escutar é o
“Verbum interior”, que está além do verbo exterior. O “retorno” se caracteriza precisamente por
essa escuta e é possível mesmo na ocorrência do erro, dado o conhecimento adquirido pela
verdade que instrui. Essa instrução colhida no interior “eleva o tempo em direção à eternidade”.
206 NOVAES, 2009, p. 280. 207 Ibidem. 208 Ibidem. 209 RICOEUR, 1994, p.52.
68
210
A busca pela verdade esteve marcadamente presente na vida de Agostinho e por ela ele
percorreu muitos caminhos.211 “Para além dos tempos”. 212 É exatamente desta forma que é
enunciado o capítulo xxx do livro XI das Confissões, pelo qual damos sequência a nossa análise
sobre o tempo, agora na perspectiva da elevação do tempo à eternidade. Na sequência desta
análise, algumas evidências serão postas, para mostrar não, evidentemente, que uma solução para
a questão do tempo seja possível, mas que, dada a perspectiva da eternidade, podemos pensar que
existe um caminho pelo qual seja possível “relançar a alma nas estradas do tempo”. 213
“Peregrinação e narração estão fundamentadas numa aproximação da eternidade pelo tempo, a
qual longe de abolir a diferença não cessa de aprofundá-la”. 214
Tendo chegado a essa consciência de que a eternidade pode ser colhida no interior do
homem, a postura em relação ao entendimento do tempo muda. Não se trata, portanto, de
constatação de alguns sentimentos e nem de fazer uma análise psicológica, mas entender na
sequência qual a contribuição para a análise do tempo.
Estarei firme e imutável em Vós na minha forma, na vossa verdade. Não tolerarei as questões dos homens que, devido à enfermidade, castigo da sua culpa, tem mais sede de saber do que permite a sua capacidade. 215
A meditação sobre o tempo e todas as questões que envolvem a atividade intelectual para
o seu entendimento consiste, para Agostinho, essas duas forças: a vontade e a capacidade
humana. A vontade do homem não implica uma capacidade de escolher ou encontrar a verdade.
210 Ibidem. Todo parágrafo recorre a sequência de análise feita por Paul Ricouer e que julgamos importante como
recurso para destacar posteriormente indícios do aprofundamento desta temporalidade. 211 Para o homem que foi constatado dividido, há a decisão e o direcionamento para a verdade. Esta verdade é
caracterizada por um mediador que é Jesus Cristo. Jesus Cristo como mediador é a superação e solução cristã dada por Agostinho para assumir enfim como verdade que foi procurada em muitas correntes filosóficas.
212 Conf. XI, xxx. 213 RICOEUR, 1994, p. 53. 214 Ibidem. 215 Conf. XI xxx 40.
69
Não basta o querer. O que é possível à vontade é o esforço de mudar a perspectiva humana, da
pretensão humana do tempo para a eternidade. Quanto à retomada da discussão sobre a
eternidade “a distentio torna-se sinônimo da dispersão na multiplicidade e da errança do velho
homem, a intentio tende a se unificar com o homem interior”.216 Por isso, Agostinho pede para
que a graça aconteça e os pensamentos sejam iluminados pela graça divina e que a reafirma que
“nenhum tempo pode existir sem a criação” 217 e que a insistência dos homens em pensar o que
Deus fazia antes da Criação abre a falsa possibilidade de imaginar que haveria outros tempos. Por
isso, Agostinho “dá à sua tese o aspecto da reductio ad absurdum”. 218 Se existisse um tempo
anterior aos tempos, este também seria criado por Deus, porque Deus é anterior a todos os
tempos.
Agostinho afirma ao considerar que Deus conhece de um modo diferente das criaturas, 219
sustentando a existência de um espírito superior a todas as criaturas, inclusive, ao próprio
homem, e conhecedor de todo o passado e futuro como se esses fossem um canto que ele já sabe.
”Esse espírito é extraordinariamente maravilhoso e vertiginosamente estupendo”, diz ele. 220
Nada pode ser escondido de Deus, “nem do passado nem dos restantes séculos”. Como
de um canto já conhecido em que se canta sem nada lhe faltar. Mas uma pequena observação
deve ser feita Agostinho afirma que, quando se canta um canto que se sabe de cor, “o afeto varia
e o sentimento” estende-se entre “a expectativa e a recordação”. Tal não acontece com Deus, que
é “imutavelmente eterno e a ciência não varia”. 221
Tendo chegado a esse ponto, algumas considerações devem ser feitas. Na primeira fase de
discussão sobre a eternidade e tempo nas Confissões XI, na exegese sobre o Gênesis, o tempo é
examinado e descobre-se um tempo interior. Toda a discussão gira primeiramente em torno do
tema no exame da eternidade. Passa, então, depois para o enigma do tempo e, na sequência, 216 RICOEUR, 1992, p. 50. 217 Ibidem. 218 Ibid., p. 47. 219 Conf. XI xxxi. 220 Ibidem. 221 Ibidem.
70
retoma-se o problema eternidade. Esta última se constitui em nosso presente foco e suscita
algumas questões. Dentre elas está o modo como a temporalidade terá de ser reconsiderada.
Primeiramente é notável que Agostinho dê um passo na reflexão sobre o tempo ao
considerar a questão da distensão. Como afirmamos anteriormente, mesmo tendo chegado a esse
conceito, ele, a rigor, não define o tempo. Não há definição, mas indicação de um caminho, o
mesmo que elucida o tema desta seção, eternidade e tempo. “A noção de distentio animi só tem
necessidade, para ser compreendida, de seu contraste com a intentio imanente à ação do espírito”. 222
A linguagem não consegue expressar o significado completo do que seja o tempo e a
eternidade. Por isso, usamos o termo “oposição” para tentar expressar a dicotomia existente na
linguagem agostiniana, à qual o próprio Agostinho acorre nas Confissões. Assim, recursos
metafóricos e dicotomias a princípio parecem querer confundir. Mas as diferenças, os contrastes,
o aparentemente óbvio e o confuso, o claro e o obscuro, tudo faz com que as palavras produzam
os meios necessários para que a inteligência alcance, no silêncio do raciocínio, o que elas não
conseguem definir, e é o próprio Verbo que ensina. A linguagem por si só é pobre para expressar
o que é a eternidade, o tempo e, consequentemente, Deus.
Como esta dissertação se trata de um exercício filosófico, necessário se faz retomar o
sentido fundante da Filosofia e refazer a experiência da busca pela verdade por esse amor à
sabedoria, desvelando o ser do tempo, para estar a caminho do Ser, que para Agostinho é Deus.
Agostinho reflete sobre o tema eternidade e tempo, tendo como base o primeiro versículo da
Bíblia. Mas não há em nenhum momento a promessa de responder a qualquer questionamento,
mas tão somente de conduzir uma investigação, uma meditação. Fazendo jus à visão, filosófica,
ao cunho filosófico de não ser tarefa da Filosofia dar respostas aos questionamentos, Agostinho
se depara com dois problemas: primeiro, conciliar “transcendência e presença no absoluto
222 RICOEUR, 1992, p. 42.
71
inefável e inteligível”, 223 segundo, descobrir o como estar a caminho de “tal absoluto, que
conduz a atenção humana desde a realidade das criaturas, o exterior, até o homem interior”. 224
“Procura”, “condução”, “tarefa”, “experiência”, “busca”, “retomar sentido”, “alcançar
dicotomias” e “metáforas” são expressões e palavras que nos põe a caminho e auxiliam na
compreensão da linguagem agostiniana sobre a eternidade e o tempo, sobre o homem e Deus. No
entendimento da eternidade, compreende-se o tempo, que “é nossa via de peregrinação”. 225 Os
passos dessa peregrinação devem representar não um afastamento, mas o caminho que é buscado
incessantemente. Na dinâmica da Confissão, a conversão é a luz que redireciona o caminho para
esse tempo que não acaba, a eternidade: “Tudo nos é dado por acréscimo, a nós, que buscamos o
reino do céu e vossa justiça”. 226
223 NOVAES, 2007 p. 211. 224 Ibidem. 225 Conf. XI ii 4, 5s. 226 Ibidem.
72
CONCLUSÃO
Tendo analisado o conceito de tempo sob a perspectiva da eternidade, Agostinho propõe a
vivência de um tempo que define com a vida o seu verdadeiro sentido. A busca de sentido para o
tempo percorreu toda análise do livro XI das Confissões.
Na primeira etapa de discussão, analisando o tempo como parte da criação, ficou claro o
limite substancial entre o tempo e a eternidade. O estabelecimento da diferença fez com que os
contrastes ficassem cada vez mais evidentes. O homem, assim como o tempo, possui sua origem
na eternidade divina, mas como o homem insiste por sua limitação, ele não se sente completo e
por isso busca sempre retomar o caminho possível para que a Verdade possa ser encontrada.
Nesse caminho, a diferença pode afastar ou pode aproximar o homem da verdade que ele busca.
Apesar de reconhecer que é limitado, o homem pode escolher entre o homem novo e o homem
velho.
A reflexão sobre a criação reforça a discussão sobre o tempo porque, ao estabelecer a
diferença de natureza entre Deus e o homem, o reconhecimento de que o tempo ideal só pode ser
vivido sob a perspectiva da eternidade coloca o homem a caminho.
Pelos contrastes, Agostinho analisa primeiro um tempo que é visto no exterior e por outro
lado possibilita a vivência de um tempo que precisa ser explicado, mas as palavras não alcançam
uma significação suficiente para explicar o tempo. Mas é pela linguagem temporal que o homem
faz o exercício de amoldamento à eternidade divina, onde ele encontrará o verdadeiro sentido de
ser do tempo e de sua temporalidade. Mas se não for pela linguagem que se define o tempo,
como esse tempo será definido?
O objetivo desta dissertação foi analisar o tempo no livro XI das Confissões e para uma
lógica na análise foi dividido o livro em três partes, onde a ideia principal foi a reflexão do
73
tempo. Percebemos que existe um modo particular na análise de Agostinho, que faz com que seja
possível analisar um texto que é tão estudado e que pode até convencer que não exista algo novo
para se descobrir. Mas, só pode caminhar quem se coloca a caminho. E é desta maneira que
queremos apontar alguns indícios que nos mostram como entender o tempo em Agostinho. Tudo
depende de como se começa.
A análise do tempo começa pela análise da eternidade. Esta estratégia de Agostinho já
responde ao próprio contraste, ou seja, o entendimento do tempo só é possível quando se tem
consciência da própria limitação. Pelo limite é possível estabelecer superação. Dado todo
percurso de Agostinho, tendo declarado a dependência do homem em relação a Deus , pela
condição de criatura, o homem sente necessidade de encontrar uma explicação do que seja o
tempo, o próprio homem e mesmo Deus. São questões inerentes a todo ser humano. Mas como
encontrar uma maneira adequada para expressar todas essas questões é que propomos nomear o
segundo capítulo, da expressão de tempo. A própria tentativa de explicação coerente das questões
próprias a que a análise do tempo em Agostinho nos propõe, estabelece limite para analise, pois,
não houve garantias de que chegaríamos a um conceito de tempo. Mas, mesmo diante desta
consciência, a tendência humana do orgulho e da necessidade de explicar tudo, fez com que
caíssemos neste erro. Mas, então, o que nos resta se não podemos afirmar o que seja ainda o
tempo?
A insistência curiosa na definição fez parecer que em alguns momentos a definição de que
Agostinho teria uma forma própria de definir o tempo, instigava mais à persistência do que uma
certeza. Quando Agostinho, a certa altura da discussão, declara que o seu espírito ardia em ânsias
para compreender o enigma tão complicado, a mesma sensação tomava conta da própria
investigação. Em meio às orações, Agostinho parecia buscar um fôlego, um pedido de socorro
para dar conta de uma razão de ser.
Curiosamente Agostinho procura o sentido do tempo e o que ele encontra é a si mesmo,
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por que o verdadeiro sentido do tempo não pode ser descrito por palavras, e isso já foi enfatizado.
Agostinho propõe um exercício, como um caminho a seguir. Pela caminhada tem-se a percepção
de que o tempo e o homem possuem a mesma condição, a condição de seres criados e finitos, e
que explicar o tempo nesta perspectiva faz com que apenas reforcemos o que já se sabe sobre o
tema e nada se pode acrescentar. Pois, poderíamos reafirmar assim, que o tempo passa muito
rápido e cada vez mais percebemos que ele corre sem que possamos alcançá-lo, porque nos
parece sempre fugidio.
A que conclusão podemos chegar então? Tendo como objetivo estudar o tempo em
Agostinho pensamos a princípio que se conseguiria normalmente chegar a um conceito e para
nossa decepção, ao finalizar uma primeira leitura no livro XI, a explicação foi se transformando
em oração e, chegado ao fim, o conceito de tempo não estava lá. Mas é exatamente assim que
Agostinho mostra toda sua genialidade. É preciso olhar além do que aparece, pois, quando
afirmado acima que tudo depende de como se começa, quer dizer que Agostinho já respondeu
como se deve entender o tempo na primeira frase, pela eternidade divina. O tempo então não
deve ser falado com palavras, o tempo deve ser vivido interiormente, mas insistimos. Ele nos dá a
chave reforçando na oração final do livro XI a mesma maneira como é possível viver este tempo
rezada no início do livro XI, “por isso nos chamastes para que fôssemos pobres e mansos, para
que chorássemos tendo fome e sede de justiça, para que fôssemos misericordiosos, puros e
pacíficos”. 227 A mesma postura que ele indica para viver o tempo no início da reflexão ele insiste
no fim, “a vossa morada são os humildes de coração”. 228 Pois enquanto o nosso orgulho insiste
em nos dividir e a dizer, contraditoriamente, a humildade ensina-nos a viver e silenciar. É o
caminho que esta interpretação sobre o tempo no livro XI em Agostinho sugere.
A interpretação sobre o tempo é um caminho de possibilidades, e essas não se esgotam,
todo o percurso intelectual e espiritual de Santo Agostinho contagia ainda hoje a maneira de
pensar de todos os homens de boa fé. O tempo não é um tema não só para homens que acreditam
227 Conf. XI i 1. 228 Conf. XI xxxi 41.
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em Deus, mas para cada homem que procura a verdade, tema essencial para o ajuste adequado e o
destino de cada um, porque esse processo depende do esforço para começar o caminho.
“Levantais os que caíram, e não caiam aqueles de quem Vós sois a altura”! 229
229 Ibidem.
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