Ocupação Person

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A trajetória de Luiz Sergio Person – um cineasta apaixonado pelos palcos, um diretor de teatro que entrou para a história do cinema brasileiro.

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Realização

São Paulo, 2016

OCUPAÇÃO

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coordenação editorial Carlos Costa edição Thiago Rosenberg conselho editorial Ana de Fátima Sousa, Ana Paula Fiorotto, Camila Fink, Claudiney Ferreira e Kety Fernandes Nassar coordenação de design Jader Rosa projeto gráfico e diagramação Liane Iwahashi produção editorial Luciana Araripe supervisão de revisão Polyana Lima revisão Rachel Reis colaboradores Daniel Bueno, Fernanda Castello Branco, Inácio Araujo, Indio San, Juliano Barreto, Lourenço Mutarelli, Luís Antônio Giron, Noemi Jaffe e Thiago Lacaz

FOTOSp. 2 e 3: Acervo/Estadão Conteúdo.p. 10: José Amaral/Maristela Filmes (cena de Casei-Me com um Xavante) e Ramalho Filmes (cenas de Anuska, Manequim e Mulher).As demais imagens de arquivo foram cedidas pela família Person.

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Analisados em conjunto, os filmes de Luiz Sergio Person (1936-1976) descrevem uma

espécie de trajeto, com idas e vindas, entre a realidade concreta e a fantasia. Essa é, pelo

menos, uma forma de olhar para parte da breve mas bastante heterogênea obra desse

cineasta – e produtor e diretor teatral – paulistano.

São Paulo Sociedade Anônima (1965) e O Caso dos Irmãos Naves (1967), os longas-

metragens que colocaram Person no radar e na história do cinema brasileiro, têm o mundo

real como base: é com a própria capital paulista, em acelerado processo de industrialização,

que contracena o protagonista do primeiro, enquanto o segundo retrata uma tragédia verídica

– o drama de dois irmãos que, durante a Era Vargas, foram injustamente presos e torturados

na cidade mineira de Araguari.

Essa representação certeira de figuras, episódios e contextos históricos, no entanto,

dá lugar a personagens caricatos e paisagens imaginárias em trabalhos como o faroeste

pastelão Panca de Valente (1968), ambientado na fictícia Espalha Brasa, e a chanchada

erótica Cassy Jones – o Magnífico Sedutor (1972), que se passa em uma Ipanema idealizada.

Ligada à 28ª edição do programa Ocupação Itaú Cultural, esta publicação também

percorre diferentes níveis de realidade para apresentar a trajetória de Person. Partindo de

matérias sobre trabalhos assinados pelo artista – e sobre seus projetos inacabados –, tanto

no cinema quanto no teatro, o percurso se encerra com resenhas de um filme que nunca foi

feito, mas que o diretor chegou a roteirizar e sonhava produzir: A Hora dos Ruminantes. Por

sinal, o longa seria uma adaptação do romance homônimo de José J. Veiga, autor que definia

seu universo literário como um “mundo fantástico real”.

Além de preparar estas páginas e uma exposição – em cartaz entre fevereiro e

abril de 2016 na sede do Itaú Cultural, em São Paulo –, a Ocupação Person se estende

para a internet. O site do programa (itaucultural.org.br/ocupacao) traz, entre outros

conteúdos, depoimentos em áudio e vídeo de parentes, amigos e parceiros de trabalho

do artista homenageado.

Itaú Cultural

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POR LUÍS ANTÔNIO GIRON

Existe uma forma musical denominada tema

e variações, que passou a ser usada como

metáfora do trabalho artístico em geral. Nela, o

compositor apresenta uma série de variantes

para uma mesma base melódica, rítmica

ou harmônica – há portanto uma lógica que

determina o desenrolar da composição. Mas o

que aconteceria se um artista abolisse o tema,

ficasse apenas com as variações e fizesse

disso a sua obra? Assim poderia ser definida a

produção de Luiz Sergio Person – no cinema, na

televisão, na publicidade e no teatro.

De fato, ele propôs variações em torno de tema

algum, ou de todos os temas ao mesmo tempo:

variações sobre a criatividade, sobre a busca de

ideias inovadoras, sobre a inquietação que não

lhe permitiu ser fiel a uma área de expressão, a um

gênero ou a um movimento estético.

A condição de percurso efêmero e inacabado

que caracteriza a trajetória do artista pode ser

atribuída ao fato de ele ter morrido abruptamente

aos 39 anos, quando seu carro bateu de frente

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com um ônibus na Rodovia Régis Bittencourt, em

São Paulo, no dia 7 de janeiro de 1976. A morte

interrompeu as ideias, os projetos e os sonhos

de um homem no ápice de sua carreira – e abriu

espaço para que a posteridade especulasse

sobre o que teria sido o seu legado definitivo. Os

pedaços de uma utopia artística ganham sentido

com o fim trágico de quem a concebeu e lhe dão

grandeza na medida em que reservam a cada um

de nós a tarefa de completá-la a partir do ponto

em que foi interrompida – em meados dos “anos

de chumbo”, quando o totalitarismo assombrava

a vida cotidiana no Brasil e tudo ainda estava para

acontecer no sentido de exorcizar o país de suas

desgraças de então.

Poderosos, sensíveis e ofuscantesO nome de Person se fixou nos anais do cinema

brasileiro graças a dois longas-metragens que

ele roteirizou e dirigiu nos anos 1960: São Paulo

Sociedade Anônima (1965) e O Caso dos Irmãos

Naves (1967).

O primeiro aborda, a partir de um drama

pessoal, o surto de industrialização e

crescimento urbano que tomou a capital paulista

na virada da década de 1950 para a de 1960.

Carlos (Walmor Chagas), o protagonista, galga

postos numa empresa de autopeças e sofre um

processo de padronização espiritual enquanto

lida com dilemas morais, dividido entre o amor

doméstico de Luciana (Eva Wilma) e a sedução

do sexo, encarnada em Ana (Darlene Glória).

O segundo longa, por sua vez, narra o

caso real de dois irmãos que, nos anos 1930,

foram injustamente acusados de um crime

pela polícia corrupta da cidade de Araguari, no

interior mineiro. As cenas em que Joaquim (Raul

Cortez) e Sebastião Naves (Juca de Oliveira)

são torturados pelos oficiais ainda perturbam,

sobretudo porque dramatizam uma prática

comum até hoje nos momentos de confronto

político e cultural.

Poderosos e sensíveis, os dois filmes deram a

Person o estatuto de referência cinematográfica,

inclusive no plano internacional. No entanto, eles

de certa forma ofuscaram outras facetas da

produção do artista.

Um péssimo atorNascido em 12 de fevereiro de 1936, em

São Paulo, Person demonstrou desde cedo

seu gosto pelas artes. A primeira paixão foi

o teatro – participou de grupos amadores

quando estava no tradicional Colégio São

Bento, e essa experiência o levou, aos 15 anos,

a iniciar uma formação de ator. Ingressou

como bolsista da prefeitura no curso de

interpretação cinematográfica do Centro de

Estudos Cinematográficos de São Paulo e, em

seguida, fez testes para integrar o elenco da

peça O Massacre, de Manuel Robbins, que seria

encenada no Rio de Janeiro. Selecionado, o

rapaz foi proibido pelos pais de seguir adiante –

para que pudesse completar o curso clássico no

São Bento.

O esforço dos pais, porém, se mostrou inútil.

Já em 1955, quatro anos depois, ele se juntaria a

um grupo de jovens amadores – Flávio Rangel,

Antunes Filho e Cláudio Petraglia, entre outros

– que, no futuro, se tornariam fundamentais para

a evolução do teatro no Brasil. Ao lado deles,

trabalhou na montagem de peças que eram

apresentadas na casa de amigos e em outros

espaços não oficiais.

Com o desejo de sistematizar seu

conhecimento e contribuir para a divulgação das

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Os filmes que definirama obra de Person

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artes, o jovem Luiz Sergio criou, em 1956, a revista

Sequência, dedicada ao cinema e ao teatro.

A publicação, no entanto, só teve um número:

Person queria fazer, com recursos próprios, uma

revista cultural de um homem só, e logo se deu

conta de que a aventura era impossível. Então

enveredou pela carreira de galã de teatro popular,

entrando para a Companhia de Comédias Odilon

Azevedo – com a qual se apresentou em Vamos

Brincar de Amor, encenada no Teatro Municipal

de Campinas. Um ano depois, em 1957, foi visto

em dois filmes: A Doutora É Muito Viva, de Ferenc

Fekete, e Casei-Me com um Xavante, de Alfredo

Palácios – assumindo também, na segunda obra,

o posto de assistente de direção.

Mesmo com as glórias que, mais tarde, obteve

como cineasta – e apesar de jurar que não

passava de um péssimo ator –, Person nunca

deixou de atuar. Ainda apareceu em longas como

O Estranho Mundo de Zé do Caixão, de José

Mojica Marins, O Quarto, de Rubem Biáfora,

e Anuska, Manequim e Mulher, de Francisco

Ramalho Jr., os três de 1968.

Diante das câmeras: Person em cena nos filmes Casei-Me com um Xavante (acima) e Anuska, Manequim e Mulher

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São Paulo-Roma-São PauloEm 1959, mais uma vez a família interveio e

o artista foi trabalhar com o pai na fábrica de

instrumentos abrasivos Person Bouquet S.A.,

fundada três anos antes. Exerceu o cargo

de diretor comercial da empresa até 1961,

quando se cansou das máquinas e fez as malas

para se matricular no Centro Sperimentale di

Cinematografia, em Roma.

E foi na Itália que Person – valendo-se, em

grande medida, de sua experiência na fábrica

do pai – redigiu o roteiro de São Paulo S.A.,

Person em Roma, durante as filmagens de Al Ladro, curta bastante influenciado pelos princípios do neorrealismo italiano – como o uso de atores amadores e de locações externas

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inicialmente batizado de Agonia. Antes de voltar

para o Brasil, ainda realizou três curtas-metragens

por lá: o documentário Il Palazzo Doria Pamphili

(1963) e as ficções L’Ottimista Sorridente (1963),

como trabalho de conclusão de curso, e Al Ladro

(1962). Baseada nos princípios de espontaneidade

e improviso do neorrealismo italiano, esta última

obra foi premiada nos festivais de Veneza e de

Bilbao – o sucesso foi tamanho que o diretor Luigi

Zampa convidou Person para ser seu assistente

na realização do drama Gli Anni Ruggenti (1962),

sobre como a visita de um líder fascista abala a

ordem de um pequeno povoado italiano.

Tão logo retornou à capital paulista, em 1964,

o cineasta começou a produzir São Paulo S.A.

Para tal, levantou fundos por meio de um regime

de cotas, sistema inovador na época, sem o

patrocínio do Estado – o que seria habitual

entre 1969 e 1990, com a fundação da Empresa

Brasileira de Filmes (Embrafilme).

Assim como O Caso dos Irmãos Naves, que

viria em seguida, a obra amealhou vários prêmios e

logo o trabalho de Person passou a ser identificado

com a corrente do cinema novo – identificação

refutada pelo diretor. Person se filiava, isto sim, ao

movimento cinematográfico paulista – ao lado de

Walter Hugo Khouri, José Mojica Marins e Rubem

Biáfora, entre outros –, que buscava um cinema

menos intelectualizado do que o defendido pelos

cinemanovistas, situados fundamentalmente no Rio

de Janeiro. Desde os anos 1940, com a utopia da

Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que queria

recriar Hollywood em São Bernardo do Campo

(SP), os artistas paulistas desejavam estabelecer um

mercado consumidor para o cinema nacional – com

empreendimentos consistentes e filmes acessíveis

a todos. Person sonhava com o cinema popular.

No fim, as origensEm 1968, no auge da fama, Person começou a

se preocupar com a distribuição deficiente dos

filmes no Brasil e colaborou para a criação da

Reunião de Produtores Independentes (RPI).

No mesmo ano, com o apoio da cooperativa, ele

Na página ao lado, Plínio Passos e Laerte Morrone em cena da peça Orquestra de Senhoritas – apresentada em 1974 no Auditório Augusta (à esquerda)

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lançou Panca de Valente, seu maior fracasso

de bilheteria, e dirigiu “Procissão dos Mortos”,

episódio do longa Trilogia de Terror – que também

contou com segmentos assinados por Ozualdo

Candeias e José Mojica Marins.

O quarto e derradeiro trabalho de Person

no cinema, Cassy Jones – o Magnífico Sedutor

(1972), foi lançado depois de um período em que

o artista se dedicou à publicidade. Perguntado

por que escolhera a nova carreira, ele ironizou:

“Todo mundo sabe que não existe publicitário que

não seja gênio”. Se não foi genial, em todo caso,

foi bem-sucedido na área – dirigiu centenas de

comerciais entre 1969 e 1971.

Como que voltando às origens, enfim, Person

focou suas últimas ações em benefício do teatro.

Em sociedade com Glauco Mirko Laurelli, ele

fundou em 1973 o Auditório Augusta, onde

promoveu a difusão de dezenas de peças e

não deixou de dirigir produções de impacto,

como a que inaugurou o espaço: El Grande

de Coca-Cola, com Armando Bogus, Laerte

Morrone, Suely Franco e Ricardo Petraglia,

entre outros, no elenco. Comédia musical

escrita pelos norte-americanos Diane White

e Ronald House, o espetáculo se passava em

um cabaré hondurenho comandado por Don

Pepe Hernandez (Felipe Carone), um sujeito que

promete trazer grandes e internacionais atrações

para o seu palco, mas – como as estrelas

convidadas não aparecem – acaba colocando

os membros de sua família para cantar, dançar e

fazer mágicas e malabarismos para o público.

O sucesso foi estrondoso e animou o diretor

a encenar, em 1974, o drama Entre Quatro

Paredes, de Jean-Paul Sartre, e a comédia

Orquestra de Senhoritas, de Jean Anouilh. Essa

última produção causou escândalo por trazer

atores – como Ney Latorraca e Paulo Goulart –

travestidos de mulher, num desafio à censura do

regime ditatorial vigente.

Se atentarmos apenas aos seus dois

filmes consagrados, a impressão que Person

transmite é a do cineasta intelectual, vinculado

ao neorrealismo italiano e com uma pitada de

experimentalismo do cinema novo. No entanto,

basta conhecer sua trajetória para descobrir um

empreendedor em busca de um mercado cultural

que só floresceria décadas depois de sua morte.

As variações que Luiz Sergio Person criou

giram em torno não de um tema único, mas de

uma inquietação artística plural que continua

a fascinar. Sua obra sugere variações sobre

infinitos temas – variações das quais todos são

convidados para participar.

Luís Antônio Giron é jornalista e escritor. Publicou,

entre outros livros, o romance Ensaio de Ponto (1995) e

a biografia Mario Reis – o Fino do Samba (2001).

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POR INÁCIO ARAUJO

Quando pensamos em São Paulo Sociedade

Anônima (1965), a primeira coisa que vem

à lembrança não são as pessoas, mas as

paisagens: a via Anchieta e suas fábricas, a Praça

da República e seu jardim, a rua residencial e

suas casas, os grandes prédios e suas janelas

ostensivas. Afinal, esses são os ambientes que

acolhem as pessoas com quem vamos conviver

ao longo do filme.

A principal marca do primeiro longa-

metragem de Luiz Sergio Person é a exatidão.

Antes de mais nada, ele registra fotograficamente

a passagem da São Paulo provinciana – que

vemos, por exemplo, em O Grande Momento

(1958), de Roberto Santos – à potência industrial

em que a cidade se transformou.

A consolidação da indústria automobilística

paulista abre espaço para o surgimento da

indústria de autopeças. E é essa situação que

nos leva ao personagem de Otelo Zeloni, Arturo.

Arturo e seu chapéu: parecem inseparáveis,

como se o primeiro decorresse do segundo,

e não o inverso. O chapéu representa o seu

caráter – otimista, empreendedor, pouco

honesto. É um homem feito para o sucesso. Já

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Um homem perdido numa cidade em transformação: Walmor Chagas (e Ana Esmeralda, na imagem de baixo) em cenas de São Paulo S.A.

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Carlos (Walmor Chagas), o protagonista do

longa, é o avesso de seu futuro sócio. Versado

em mecânica, será primeiro o funcionário-chave

da nova indústria. E ascender socialmente

significa, em boa medida, corromper alguém na

montadora a fim de vender peças de segunda

categoria ou fazer vista grossa às barbaridades

trabalhistas que se passam na fábrica. É como

se Carlos fosse, de certa forma, o simpático

Zeca de O Grande Momento, agora engolido

pela engrenagem industrial já em movimento.

A incapacidade de absorver a cidadeTalvez não seja inexato dizer que desse

cenário decorre a permanente insatisfação do

personagem: Carlos vive para a crítica, para uma

espécie de crítica que inevitavelmente se volta

contra ele mesmo. Nada lhe serve porque ele

mesmo não se aceita. E não se aceita na medida

em que sua crítica se exerce sobre um mundo

– ou uma cidade – em transformação rápida e

decisiva, que o engolfa.

Sua crise parece ligada a essa circunstância.

Novamente é a cidade que vem à frente.

“Recomeçar, recomeçar...” – essa é sua

frase insistente. Mas, ao ver Carlos, logo nos

perguntamos: recomeçar para quê? Por quê?

Para onde? Ele fala em recomeçar, mas não sabe

o quê nem como. Mais tarde, seu périplo para fora

da cidade nos esclarecerá sobre a inconsistência

de sua crise. Ele não é mais do que um homem

perdido, sem eira nem beira.

Seu casamento com Luciana (Eva Wilma) é a

expressão dessas contradições. Ela representa

a mulher do passado, digamos. Na década

de 1960, é uma moça que se prepara para o

casamento, para ser “dona de casa”, como se

dizia então. Carlos pressente a mudança dos

tempos, mas corre atrás de Luciana como quem

persegue a própria desgraça. Em algum nível, as

três mulheres de sua vida são inatingíveis, pois

também Hilda (Ana Esmeralda), a intelectual,

a mulher livre, está fora de seu alcance, assim

como a fútil Ana (Darlene Glória).

O impasse de Carlos é material, digamos

assim, antes de ser existencial: é a incapacidade

de absorver a cidade – com suas decorrências,

sua transformação incessante, sua pujança

econômica, sua corrupção etc. – que o assombra.

Situação bem diferente da experimentada

pelos personagens de, por exemplo, Noite Vazia

(1964), de Walter Hugo Khouri, a quem o aspecto

metropolitano de São Paulo não incomoda: seus

problemas são mais interiores, psicológicos.

Sempre que revejo a obra, fico

impressionado com sua atualidade. Em vez

de torná-la anacrônica, as mudanças pelas

quais passaram as paisagens ali retratadas

parecem atualizá-la. O Centro deixou de ser

um centro, os jardins da República são vigiados

por policiais, a via Anchieta é hoje uma “estrada

velha”, os bairros residenciais estão tomados

por escritórios e suas ruas estão abarrotadas de

carros. No entanto, essas paisagens ainda são

fundadoras: elas definem, até hoje, o caráter da

cidade – não só sua dinâmica, mas, sobretudo,

seu caráter mutante. Esse é o aspecto fundador

de São Paulo S.A., um ponto de inflexão do

cinema urbano paulista.

Um filme que nos olhaÉ bem o inverso o que se dá com O Caso dos

Irmãos Naves (1967). A primeira coisa que

me vem à mente, quando penso nele, são os

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rostos: o de Raul Cortez e o de Juca de Oliveira,

sobretudo. Em São Paulo S.A. a paisagem me

parece essencial e a intriga circunstancial – os

personagens poderiam ser outros sem que isso

alterasse a substância do filme. Em O Caso dos

Irmãos Naves, ao contrário, a história poderia

se passar em qualquer outro lugar. O que mais

importa, aqui, é a evolução dos rostos: a prisão, a

tortura, o progressivo desânimo que toma conta

da expressão dos irmãos.

Quando foi lançada, a obra me pareceu mais

interessante do que São Paulo S.A., mas hoje

tenho a impressão de que isso se dava apenas

por uma conjunção entre um assunto e um tema.

Falava-se, na época, da falência da Justiça, das

atitudes arbitrárias, das confissões obtidas por

métodos torpes. Em suma, falava-se da ditadura

iniciada em 1964. Não que o filme tenha perdido

atualidade – os procedimentos policiais no Brasil

continuam, em linhas gerais, os mesmos. E este

é o ponto que, hoje, mais importa no filme, o que

faz sua atualidade: não é como olhamos para ele,

mas como ele nos olha – como esse olhar dos

irmãos Naves nos toca e nos provoca.

Desejo de imagensDos últimos filmes de Person, eu diria que vale a

pena passar ao largo do constrangedor Panca

de Valente (1968). Cassy Jones – o Magnífico

Sedutor (1972), ao contrário, é uma interessante

investida no cinema de grande público.

Se São Paulo S.A. é um filme de paisagens

e O Caso dos Irmãos Naves é um filme de

rostos, Cassy Jones é um filme em que o mais

memorável são os corpos: é a agilidade de Paulo

José, acompanhada pela leveza da câmera e

pela paisagem encantadora do Rio de Janeiro, o

que mais se deixa lembrar.

A injustiça que se revela nos rostos dos irmãos Naves, interpretados por Raul Cortez e Juca de Oliveira

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Comédia que mistura elementos do burlesco,

do musical e do romântico, o trabalho pode ser

visto como o marco de uma suposta conversão

de Person – de “autor sério” a “cineasta

comercial”. Que ele estava desiludido com o

cinema era voz corrente. Que tenha buscado

contato com um público ainda mais amplo –

seguindo o caminho de seu assistente em São

Paulo S.A., Pedro Carlos Rovai – é possível.

É improvável, no entanto, que se pense em

termos de “degradação”. Não se pode esquecer

que Person deve boa parte de sua formação

à Companhia Cinematográfica Maristela –

produtora criada no início dos anos 1950, em

São Paulo – e, depois, ao Centro Sperimentale

di Cinematografia, na Itália. Não era alguém

predisposto, por esses parâmetros, a renegar a

natureza popular do cinema.

É difícil imaginar que caminhos trilharia sua

obra cinematográfica caso ela não tivesse sido

interrompida prematuramente pelo acidente

que vitimou o artista. Seu caráter até certo ponto

heterogêneo não permite distinguir com clareza

o tipo de cineasta que Person teria gostado de

seguir sendo. Talvez se possa intuir, apenas, que

continuaria agindo como um cineasta de cinema:

seja na comédia, seja no drama, o que Person

deixou transparecer em todos os seus filmes foi

um imenso desejo de imagens.

Inácio Araujo é crítico de cinema. Autor de Hitchcock

– o Mestre do Medo (1982) e Cinema – o Mundo em

Movimento (1990), também publicou o romance

Casa de Meninas (1987) e o livro de contos Urgentes

Preparativos para o Fim do Mundo (2014).

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O corpo é a alma em Cassy Jones: acima, Sandra Bréa em cena como Clara, a moça que abala as estruturas do sedutor Cassy, vivido por Paulo José (ao lado)

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POR JULIANO BARRETO

Em 1957, aos 20 anos, Luiz Sergio Person

escalou o cômico Ronald Golias para

protagonizar um filme que se chamaria Um

Marido para Três Mulheres e retomaria fórmulas

clássicas das chanchadas das décadas

anteriores. A grande sacada era a aposta no

carisma e na espontaneidade de um ator cujo

sucesso, naquele momento, se limitava aos

picadeiros e aos teatros populares – Golias

só receberia a consagração maior do público

uma década mais tarde, ao integrar o elenco

do programa de televisão Família Trapo.

Ironicamente, o projeto também teve de esperar

exatos dez anos para chegar às telas – com outro

nome, Marido Barra Limpa, e outro diretor nos

créditos, o produtor Renato Grecchi, que acabara

de encontrar e comprar o material há tanto tempo

filmado e abandonado.

Foi nesse intervalo que Person viajou à

Itália para estudar no Centro Sperimentale di

Cinematografia e, de volta para o Brasil, lançou

São Paulo Sociedade Anônima (1965), marcando

com um fenômeno sua estreia nas salas de

cinema. Grecchi até tentou convencê-lo a

concluir a comédia, mas Person não se animou

muito com o convite. Nem quis entrar como

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codiretor da obra – o que faria dela, e não de São

Paulo S.A., seu primeiro longa-metragem. Por que

abrir mão de uma estreia que já se mostrou tão

bem-sucedida?, talvez ele tenha pensado. Em

todo caso, Um Marido para Três Mulheres/Marido

Barra Limpa foi um dos poucos projetos – quem

sabe o único – aos quais o artista renunciou por

vontade própria.

Ideias não formavam filas retas e pacíficas na

cabeça de Person. Ao longo de sua carreira, ele

deu uma série de passos para trás visando dar

saltos para a frente no futuro: antes de desistir

de um trabalho, tentava driblar as dificuldades

momentâneas criando um segundo projeto que

financiaria ou alavancaria o primeiro. Mas nem

sempre essa estratégia deu certo...

“Você sabe quem é Roberto Carlos?”O sucesso de São Paulo S.A. impulsionou a

realização do segundo longa assinado pelo

diretor: O Caso dos Irmãos Naves (1967). O

que poucos sabem é que, entre o lançamento

das duas obras, Person enveredou por uma

iniciativa que em nada combinava com a

temática política e com a estética impactante

do filme que reproduziu as injustiças sofridas

pelos Naves. “Um belo dia, enquanto eu

fazia a pesquisa para escrever o roteiro de

O Caso dos Irmãos Naves, Person apareceu

empolgadíssimo e me perguntou: ‘Você sabe

quem é Roberto Carlos?’ ”, recorda Jean-

Claude Bernardet, teórico e crítico de cinema

então convertido por Person em roteirista.

Person, ao lado do humorista Ronald Golias, em Marido Barra Limpa

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Sem entender nada, Bernardet respondeu

negativamente à pergunta do diretor e foi

apresentado a um projeto completamente diferente

daquele que eles estavam elaborando. Atento à

crescente popularidade dos cantores de iê-iê-iê

– ritmo brasileiro que imitava a primeira geração

do rock’n’roll norte-americano –, Person decidiu

registrar em película uma aventura adolescente

focada na exuberância de Erasmo, Roberto e

Wanderléa. O objetivo, além de explorar o fenômeno

musical brasileiro da mesma forma como os

ingleses fizeram com os Beatles, era lucrar o

suficiente para financiar O Caso dos Irmãos Naves.

Para ajudá-lo na produção do roteiro, Person

chamou, além de Bernardet, outro amigo que

também trazia o contraste de muito talento

artístico e pouca experiência no cinema: Jô

Soares. E dessa união surgiu o argumento de

SSS contra a Jovem Guarda, filme que giraria em

torno das tentativas da retrógrada Sociedade

Secreta Sigilosa de sequestrar Roberto

Carlos e sabotar a voz do cantor. Só assim,

pensavam os vilões carecas, a tradicional família

brasileira ficaria livre da má influência do iê-iê-iê.

Independentemente do enredo, antes mesmo de

ter uma data de lançamento o filme já começava

a fazer barulho por significar a primeira aparição

do jovem “rei” nos cinemas.

Por um lado, a imprensa previa a enorme

bilheteria gerada pelos fãs da jovem guarda às

salas de projeção; por outro, não faltava quem

estranhasse o interesse do elogiadíssimo

cineasta em um projeto para adolescentes, sem

maiores pretensões artísticas. “O artista que quer

considerar-se atual e contemporâneo não pode

ficar alheio ao movimento popular”, respondeu

Person ao questionamento da reportagem da

revista Manchete, em 1966. “Precisamos acabar

com a ideia romântica do artista ser um eterno

divulgador de suas experiências e frustrações

pessoais. Sem a comunicação entre o intérprete

e o público, a arte se deforma e deixa uma porta

aberta para a mediocridade. Eu não poderia,

portanto, ficar alheio ao iê-iê-iê, gênero que

atinge noventa por cento do gosto popular.”

Mas a incredulidade da imprensa acabou não

sendo o maior obstáculo para a produção do

filme. “As reuniões para o desenvolvimento do

roteiro eram feitas não só com os artistas”, conta

Bernardet. “Toda semana, quando íamos para

a agência que cuidava da carreira dos astros da

jovem guarda, dividíamos espaço na mesa com

vários empresários, produtores, assessores.”

Assim, as conversas sobre o filme eram

constantemente interrompidas para que Roberto

Carlos aprovasse uma infinidade de produtos.

Enquanto Person, Bernardet e Jô tentavam decidir

como seria uma cena, designers interrompiam

a reunião para mostrar projetos de cintos, de

sapatos ou de uma revista em quadrinhos feita

por Mauricio de Sousa. “Para piorar a situação”,

diz Bernardet, “a escolha de Roberto como

protagonista irritava Erasmo e Wanderléa”.

Com muita diplomacia, paciência e insistência,

Person e seus corroteiristas deram um jeito de

apaziguar o ânimo dos músicos e de seguir à fase

de filmagem da obra – ignorando o fato de que

maiores dificuldades viriam pela frente.

Não faltaria dinheiro. O problema era que

o protagonista da trama estava no auge de

sua popularidade e muitas vezes nem sequer

conseguia aparecer no set. Seduzido com a

chance de decolar em carreira internacional,

Roberto chegou a abandonar as gravações para

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Trecho do roteiro de SSS contra a Jovem Guarda

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fazer uma turnê em Portugal. E, depois de romper

seu contrato com a agência que gerenciava a

jovem guarda, o astro desistiu de vez do filme de

Person. Apenas dois anos mais tarde, em 1968,

estrelou o longa Roberto Carlos em Ritmo de

Aventura, dirigido por Roberto Farias.

Mãos à ruminaçãoNa perspectiva de Person, o fracasso de SSS

contra a Jovem Guarda trouxe alívio e foco para

a realização de O Caso dos Irmãos Naves, até

porque o produtor Mario Civelli havia entrado

em cena e garantido a viabilidade do filme – que

conquistou uma boa bilheteria e uma ótima

resposta da crítica. A parceria de Person e Civelli

funcionou tão bem que o produtor deu sinal verde

para um próximo trabalho do cineasta.

Person então encomendou ideias ao parceiro

Bernardet, que fez uma visita à livraria e lhe trouxe

um recém-publicado romance do escritor goiano

José J. Veiga, A Hora dos Ruminantes (1966).

Ambientada em uma pequena cidade que é pega

de surpresa por uma série de acontecimentos

estranhos – como a invasão de misteriosos

forasteiros e, depois, de dezenas de cães e centenas

de bois –, a narrativa foi lida por Person como um

retrato preciso de alguns dos males que assolam a

alma brasileira, como a ganância, o preconceito e a

incompetência das autoridades. E sua adaptação

para o cinema seria uma continuação espiritual de

O Caso dos Irmãos Naves. “Vivíamos uma época de

forte repressão, com vários amigos sendo presos

e torturados”, lembra a cineasta Regina Jehá, viúva

do diretor. “O filme seria uma forma de crítica às

pequenas violências que sofremos no dia a dia.”

A empolgação com o projeto era enorme. Civelli

o aprovou de primeira e os direitos de adaptação

foram comprados. E, enquanto Bernardet

desenvolvia o roteiro em ritmo acelerado, Person

já pensava em como filmar cenas tecnicamente

complicadas, como a da invasão da cidade

pelas cabeças de gado. A dupla combinou que a

montagem do filme seguiria a fórmula usada pelo

japonês Tadashi Imai em Juramento de Obediência

(1963). Ou seja, a obra traria uma sequência de

histórias diferentes, cada uma com o seu núcleo

de personagens, mas ligadas por um denominador

comum – uma situação que se repete com

intensidade crescente e ilustra a “mensagem

central” do trabalho, sem que para isso seja

necessário lançar mão de uma reflexão teórica

explícita ou de diálogos explicativos.

O tom “pesado” do projeto dividiu as opiniões

dos amigos que leram as primeiras versões do

roteiro. O autor Lauro César Muniz, por exemplo,

achou a ideia “toda errada”. Mas Person não dava

o braço a torcer – pelo contrário: o uso de alegorias

para criticar o governo totalitarista instalado no

Brasil, recurso que liga O Caso dos Irmãos Naves a

A Hora dos Ruminantes, seria defendido ainda em

um terceiro filme, baseado no levante comunista que

ocorreu em Natal em 1935 e durou apenas três dias.

Os sonhos do cineasta com o que chamava

de “trilogia da violência”, no entanto, foram

interrompidos bruscamente pela notícia de que

Civelli, por problemas de saúde, não poderia mais

trabalhar na captação de recursos para A Hora

dos Ruminantes. O que era certo ficou nebuloso.

Com o roteiro da obra já finalizado, Person se

despediu da certeza de rodar o filme nos próximos

meses. Só tinha em mãos alguns metros de

negativos coloridos doados por Civelli como uma

forma de indenização pelo tempo e pelo trabalho

gastos com o projeto que havia sido apalavrado.

Segundo familiares e amigos próximos, esse foi o

grande desapontamento de sua vida.

Page 31: Ocupação Person

31

Fica a interrogaçãoEm 1968, Person vendeu os tais negativos para

financiar uma produção mais barata e, assim

acreditava ele, de retorno mais certeiro: o bangue-

bangue cômico Panca de Valente. “Ele tinha a ideia

de fazer sete, oito filmes acompanhando toda a

trajetória do protagonista – primeiro no interior,

depois viajando para a cidade e se adaptando

à vida urbana”, explica Regina. “Dessa forma,

haveria uma fonte de recursos para fazer outros

projetos.” O plano só não previa o fracasso – de

público e de crítica – do longa. “Foi a produção

mais decepcionante de Person. Não apenas

pela temática, mas também pela simplicidade da

produção”, comenta Amir Labaki, crítico de cinema

e organizador do livro Person por Person (2002).

Essa nova decepção acabou afastando

temporariamente Person do cinema. Depois de

se dedicar à publicidade, ele só voltou a lançar um

longa em 1972, com Cassy Jones – o Magnífico

Sedutor. A comédia erótica não era o projeto dos

seus sonhos, mas era um filme possível, tanto

por ter um orçamento mais modesto do que o

de A Hora dos Ruminantes quanto por tratar de

temas menos provocadores. Mesmo assim, a

vontade de adaptar o romance de José J. Veiga

não foi deixada de lado. Em 1973 – seis anos

após a conclusão do roteiro da obra –, durante

uma entrevista ao jornal O Pasquim, Person

desabafou: “Esse filme chama-se aquilo que

ou eu faço ou eu nunca mais vou fazer cinema.

Esse é o meu maior filme, é uma coisa que eu

tento realizar...”. “Cassy Jones?”, interrompeu

Zélio Alves Pinto, que integrava o grupo de

entrevistadores. “Não”, respondeu Person, “A

Hora dos Ruminantes. E, depois disso, fim”.

Apostando na boa repercussão que O Caso

dos Irmãos Naves teve nos Estados Unidos e

contando com uma conexão dos tempos de Centro

Sperimentale di Cinematografia, Person tentou

viabilizar The Plague of the Ruminants, versão em

inglês da obra. Viajou para Nova York e passou

dois meses batendo à porta de grandes nomes

da indústria cinematográfica norte-americana

– chegou até a enviar uma cópia do roteiro para

Marlon Brando. Mas os resultados, mais uma vez,

foram frustrantes. O cenário da Hollywood do

começo dos anos 1970 era de crise, com pouco

espaço para apostas em diretores estrangeiros

e projetos arriscados. A resposta de Brando veio

negativa e seca – apenas uma carta datilografada

pela secretária do ator, dizendo que ele tinha

agenda cheia pelos próximos dois anos e que

roteiros não solicitados não eram lidos. Além disso,

os produtores norte-americanos deixavam clara

a sua preferência por temáticas mais coloridas e

alegres, por filmes que mostrassem um Brasil

mais “Carmen Miranda” do que “Vidas Secas”.

Panca de Valente: o projeto que caiu do cavalo...

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Carta da secretária de Marlon Brando para Person:

Estamos devolvendo o seu manuscrito de A Hora dos Ruminantes.

O roteiro não foi lido, já que, a pedido do sr. Brando, não aceitamos materiais não solicitados. Além disso, a agenda do sr. Brando para os próximos dois anos está cheia e ele não estaria disponível para participar do projeto.

Com os melhores votos, obrigada pela sua consideração.

Page 33: Ocupação Person

33

Em uma reunião com um desses produtores, o

diretor juntou vários clichês que vieram à sua mente

e, num instante, criou um projeto de mentirinha, com

tudo de mais tropical, no estilo “para inglês ver”. O

sujeito ficou animado com o negócio, mas jamais viu

Person em sua frente de novo.

De acordo com o roteiro do filme, A Hora

dos Ruminantes terminaria com um ponto de

interrogação. Rabiscado por um personagem que,

com um sorriso questionador, encara a plateia, o

sinal acabou se encaixando melancolicamente na

própria história do projeto – que o diretor ruminou

e, sem sucesso, tentou filmar até a sua morte, em

1976. “Infelizmente”, assim Bernardet e Person

concluíram o texto, “não entra a palavra FIM”.

Juliano Barreto é jornalista. Autor da biografia Mussum

Forévis – Samba, Mé e Trapalhões (2014), mantém

desde 2006, com a colaboração de amigos, o blog

Resenha em 6 (resenhaem6.com.br).

No teatro Person também deixou algumas ideias pelo

caminho. Uma delas foi a de adaptar a peça Trotsky

no Exílio, do alemão Peter Weiss. Depois de traduzir

o texto – que, por meio de flashbacks, acompanha a

trajetória de Leon Trotsky desde a sua participação

na Revolução Russa de 1917 até o seu assassinato, em

1940, no México –, o diretor se viu proibido de encená-

lo pelos censores da ditadura militar. Levando em

conta que, nos anos 1970, a obra transformou Weiss

em persona non grata na Alemanha Oriental, não é

de admirar que a Divisão de Censura de Diversões

Públicas tenha barrado a exibição do trabalho no Brasil.

O episódio, porém, não bastou para que Person

desistisse de falar de política. Num domingo de 1975, ao ler

um artigo em que o jornalista Ricardo Kotscho comentava

os tempos de Getulio Vargas, o artista pensou em criar

uma comédia musical ambientada nesse período – e que

não deixasse de ser uma crítica ao atual momento político

do Brasil. Person convidou o jornalista – que nunca havia

produzido nada para teatro ou cinema – para coescrever

a peça, intitulada Pegando Fogo. A dupla redigiu o primeiro

ato, mas Person morreu antes de concluir os demais.

Juliano Barreto é jornalista. Autor da biografia Mussum

Forévis – Samba, Mé e Trapalhões (2014), mantém

desde 2006, com a colaboração de amigos, o blog

Resenha em 6 [resenhaem6.com.br].

A sequência final – e pressagiadora? – do roteiro de A Hora dos Ruminantes

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São Paulo, 2016. Às vésperas de completar

80 anos, Luiz Sergio Person está irritado. Não

consegue anexar à mensagem do e-mail a sua

foto favorita – uma em que exibe sorridente a

barba branca bem cheia, no terraço de seu sítio

em Itapecerica da Serra (SP). Precisa mandar

a imagem, com certa urgência, para o jornal

que quer noticiar a lista dos 20 melhores filmes

brasileiros de todos os tempos.

Seu longa-metragem de estreia, São Paulo

Sociedade Anônima (1965), está lá na tal lista.

Cinquenta anos depois de lançado, o trabalho

continua sendo o mais aclamado de toda a sua

extensa obra no cinema. Mas isso não o irrita –

Person tem grande estima pelo filme. “Ainda é

muito atual”, costuma dizer aos amigos.

Para tentar resolver o problema do e-mail

que não consegue mandar, ele pede ajuda a

Marina, sua filha mais velha. Sorridente, ela diz:

“Calma, papai. Eu mesma fico confusa com a

internet”. Person muda de assunto e pergunta se

percebemos que, em Califórnia, primeiro longa de

ficção de Marina, lançado em 2015, Caio Blat se

chama Carlos, exatamente como Walmor Chagas

no seu São Paulo S.A. Tem o maior orgulho de ser

POR FERNANDA CASTELLO BRANCO

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uma grande referência para as filhas, a verdade

é essa. Esquece completamente de que precisa

mandar a foto para o jornal e abre os braços,

gargalhando: Domingas, a sua caçula, chegou

com os dois filhos para o almoço de domingo.

Sobre o acidente de carro sofrido em 1976,

que quase o levou à morte, Person fala pouco.

Mas diz que, depois dele, a “frase-mantra” de

Carlos passou a fazer mais sentido em sua vida.

Recomeçar, recomeçar, recomeçar...

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[Corta para a vida real]

Person ao dobroSão Paulo, 2016. O tempo realmente não para.

A morte de Person “empata” com a vida. Há 40

anos, o país perdia um dos seus mais importantes

cineastas, a um mês de completar 40 anos de

idade. Apesar de o tempo ser remédio para

todos os males, praticamente não há quem tenha

convivido com Person que não solte, às vezes

meio sem perceber, uma frase ou uma história

que o situe no tempo atual.

“Nem imaginava que já faz 40 anos da morte

do Person. Para mim, parece que foi ontem”,

conta o ator Sergio Mamberti, amigo que chegou

a ser convidado para trabalhar com o diretor

no teatro, mas, por questões de agenda, nunca

conseguiu realizar esse sonho de ambos.

“Sempre que me encontro com as meninas, as

filhas dele, e com a Regina, a viúva, falo dele como

se ele ainda estivesse por aqui. Person estava

sempre com uma coisa a ser realizada, e não

apenas em um campo. Ele é muito um homem do

nosso tempo”, completa.

Eva Wilma, que deu vida à Luciana de São

Paulo S.A., concorda. “Ele estaria realizando

mil coisas ao mesmo tempo”, diz ela. Estaria

exatamente como sempre foi, “só que ao dobro”.

Na mesma trincheiraSe a atuação no cinema e no teatro foi algo que

dividiu Person ao longo da vida, essa dualidade o

acompanha também na morte. Na verdade, cada

um dos amigos imagina Person ativo aos 80 anos

na expressão artística da qual faz parte. Já que é

para imaginar, por que não aumentar as chances

de convivência com essa figura tão inesquecível?

“Acho que para o cinema ele não voltaria.

Para a publicidade também não!”, especula

Mauro Giorgetti, autor da trilha sonora da

peça Orquestra de Senhoritas (1974). “Acho

que ele estaria no teatro ou talvez também

escrevendo. Naturalmente teria diminuído a

intensidade. Ele estaria na produção de alguma

peça, mas fazendo coisas mais espaçadas.

Difícil projetar o Person, uma personalidade

tão complexa”, explica.

Voltando para o cinema – meio pelo qual

o trabalho de Person ficou mesmo mais

conhecido –, Renato Magalhães Gouvêia,

produtor de São Paulo S.A., não tem dúvida:

“Ele seria um dos maiores diretores de cinema

atualmente. Com seu filme de estreia ele já

rompeu com o cinema que existia naquela

época. Hoje estaria na crista da onda, afinal era

um sujeito com muitas ideias”.

No ano de 1986, em depoimento para o

Museu da Imagem e do Som (MIS), Claudio

Petraglia, músico, compositor, maestro, roteirista

e produtor, foi ainda mais específico na sua

previsão. “Vejo Person fazendo um filme de ficção

científica. Tenho certeza de que ele ia botar um

robô em um filme.”

No livro Radiografia de um Filme: São

Paulo S.A. (2010), Ninho Moraes também

arrisca um palpite: “Ao completar a primeira

década dos anos 2000, a batalha do cinema

brasileiro continua a mesma de sempre.

Person, se vivo fosse, provavelmente

estaria na mesma trincheira: na busca de

comunicação com o público”.

Page 38: Ocupação Person

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Person com as filhas , Marina (ao lado)e Domingas

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Para sempre do presenteMarina Person, a filha mais velha do artista,

prefere se apegar à realidade, sem fazer

suposições sobre o que não pôde vivenciar.

“Não tenho essa imagem do meu pai com 80

anos”, conta ela. “Para conseguir superar uma

morte, acho que você tem de parar de pensar.

Já passei muito tempo da minha vida pensando

como seria se meu pai estivesse vivo. Mas isso

não funciona porque não foi assim. Acho que

para me proteger eu não faço esse exercício. A

vida é o que ela é. Temos de viver com as coisas

que a gente tem.”

Mesmo voltando os olhos para o real, Marina

confessa: “Claro que às vezes eu me pego

pensando como ele iria se virar com a internet,

por exemplo. Quando eu mesma fico confusa

com a internet, sempre penso como seria para

ele. O mundo é confuso para mim, imagina para

uma pessoa que nem viveu os anos 1980! Ele não

viu a abertura política, a Aids, as Diretas Já. Tudo

isso são coisas que ele não viveu”.

Para Domingas Person, o pai provavelmente

estaria fazendo algo muito diferente. “E assim

ele nos surpreenderia mais uma vez. Como atriz,

gosto de pensar que ele teria continuado a fazer

obras instigantes, no cinema e no teatro – e eu teria

a oportunidade de ser dirigida por ele”, diz. Mas

toda essa elaboração, segundo Domingas, é um

“exercício de imaginação”. “Eu o vejo, como numa

transgressão do tempo, com a mesma idade e o

mesmo espírito daquela época”, completa.

A verdade é que Person é um homem que se foi

mas ainda está aqui. É um homem do presente. Um

homem do presente para sempre. E não apenas

porque sua obra é eterna. Talvez, no imaginário de

quem conviveu com ele, sua presença seja vista

da mesma forma como ele via o cinema: “É assim

mesmo que vejo o cinema. Um cinema cujo tempo

presente seja a sua matéria e o seu fim”.

Fernanda Castello Branco é jornalista e trabalha como

editora do site do Itaú Cultural.

Texto do cartunista Jaguar, escrito em 1976 para o jornal O Pasquim

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adap

tado

da

obra

de

josé

j. ve

igaum

filme de luiz sergio person

a hora dos ruminantes

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adap

tado

da

obra

de

josé

j. ve

igaum

filme de luiz sergio person

a hora dos ruminantes

O roteiro de A Hora dos Ruminantes é tudo o que temos daquele que, nas palavras de Luiz Sergio

Person, seria o seu maior filme. Mesmo se mantendo fiel ao projeto durante os seus últimos nove

anos de vida, o cineasta não conseguiu transformar o texto – adaptado do romance homônimo

de José J. Veiga e escrito em parceria com Jean-Claude Bernardet – em imagens.

É alguma coisa, mas está longe de ser o suficiente para que possamos saber como a obra

de fato ficaria. Afinal, Person era adepto da ideia de que o roteiro de um filme não é um filme por

escrito: para ele, um roteirista deveria se concentrar sobretudo na organização dramática de

sequências e cenas e na descrição de ações e diálogos; e os enquadramentos, os movimentos

de câmera, a duração dos planos e outras questões ligadas à maneira como determinada

história é narrada – e não à história em si – seriam definidas posteriormente, no decorrer das

filmagens. Além disso, decisões relativas ao elenco e à equipe técnica que trabalhariam no

longa-metragem nunca foram tomadas.

Pensar nesse projeto interrompido, assim, é se lançar numa série de dúvidas, num

mistério que remete àquele que assola os habitantes da pequena e fictícia Manarairema – a

cidade em que se passa a narrativa e que se vê ocupada por forasteiros de origem indefinida

e intenções obscuras, por cães endiabrados e bois que lotam as ruas e enclausuram as

pessoas em suas casas.

Mas é sempre possível imaginar. Com base no tal roteiro, os escritores Lourenço Mutarelli

e Noemi Jaffe “assistiram” ao filme. Nas páginas a seguir, eles comentam suas impressões – e

fazem com que, pelo menos na realidade que a ficção encerra, Person tenha a chance de

concluir a sua tão ruminada obra.

Os cartazes criados para esta seção são de autoria de Thiago Lacaz (ao lado), Indio San (p. 42) e Daniel Bueno (p. 46).

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um filme de luiz SERGIO person

grandeOtelo

myriammuniz

wilsongrey

você é homemou ruminante?

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um filme de luiz SERGIO person

grandeOtelo

myriammuniz

wilsongrey

você é homemou ruminante?

RUMINANDOPor Lourenço Mutarelli

A Hora dos Ruminantes é para mim um dos maiores filmes da cinematografia brasileira.

Não apenas isso, é muito mais. É um daqueles filmes que transformam. Está entre os dez

que mais me marcaram. A intrigante história que parte do romance de José J. Veiga ganha

materialidade alucinatória e perturbadora nas mãos de Luiz Sergio Person. É uma obra,

monumento, que se apossou de meu imaginário como uma lembrança ancestral. Uma noite

de febre e pesadelos. É o ápice da genialidade de Person. Ele, que já havia me assombrado

outras vezes, especialmente em O Caso dos Irmãos Naves, agora me provoca aquilo que deve

ser experimentado na hora da morte. O momento em que o ceticismo dá lugar à possibilidade

da transcendência mística. O momento em que podemos vislumbrar a essência do Mal no

social, no que parece corriqueiro.

É impressionante a transliteração que Person e Jean-Claude Bernardet fizeram do

livro ao roteiro. Embora saibamos que o roteiro é apenas o mapa, já estava quase tudo ali.

O que não estava se fez tempo em imagem. Desde a onírica cena de abertura – quando,

de forma mágica, a câmera sobrevoa e revela aos poucos a geografia mítica da alegórica

Manarairema, pairando sobre a ponte e suavemente mergulhando na campina até se

aproximar do casario e invadi-lo por uma janela fechada, sequência digna de Orson Welles,

desvendando a cidade no claro-escuro cortante da fotografia granulada de Dib Lutfi – até

o enigmático garrancho final – o ponto de interrogação que um dos personagens desenha

antes de, encarando o espectador, sair de cena.

Homem ou ruminante?A tarde cai e no lusco-fusco avistamos os primeiros vultos dos estranhos que se

avizinham. João Ninguém (Geraldo Del Rey) conversa com dois outros sobre a ponte.

Ainda que em silhuetas borradas, logo de pronto vemos os homens que chegaram à

cidade e iniciam sua misteriosa construção.

O contato inicial entre os habitantes de Manarairema e os forasteiros, porém, se dá após

15 minutos de filme. Uma cartela o anuncia: “Primeiro encontro – de como o vigário e seu

assistente conhecem os homens”. São os representantes da igreja – padre Prudente e seu

auxiliar, Balduíno – que primeiro se deparam com os “alienígenas” – acompanhados, nesse

momento, por um cão. E o que dizer de padre Prudente? Que melhor nome teria? Afinal, não

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é a igreja parceira ou cúmplice das inquisições e dos holocaustos? Não é na igreja que são

comungados os praticantes dessas atrocidades? Essa máxima parece esculpida no rosto

que Jofre Soares empresta ao clérigo.

Quando Balduíno (Ricardo Blat) encara o homem estranho, como esse homem retribui

o olhar? Com uma careta – mostrando a língua numa careta. Quando o povo corre às

autoridades, pedindo socorro ao delegado, ao prefeito e ao juiz, ninguém o socorre. Ninguém

o orienta. Os poderes se mostram muito mais fracos e perdidos do que o povo humilde da

pequena Manarairema. Mais adiante no filme um bando de cães toma as ruas e a igreja e as

casas. Os cães tomam a cidade. E o que se faz? O que fazem as autoridades? Nada. Esperam

que os animais se acalmem e façam o que quiserem até decidirem partir. Como já foi dito, o

inferno é o lugar onde não se diferencia o homem do animal. Como o próprio cartaz do filme já

adianta: “Você é homem ou ruminante?”.

Sólido demaisO segundo encontro ocorre quando um dos homens estranhos tenta comprar a carroça

de Geminiano (Grande Otelo), coagindo-o. “Um homem é um homem.” Geminiano pensa

em reagir, mas o padre o acalma, e então o carroceiro se faz escravo da força secreta que

corrompe a cada um dos personagens. E um grupo festeja em trajes folclóricos enquanto

ele leva outra carga de areia para a entrada do terceiro capítulo: “Um homem comerciante é

mais homem”. Aqui quem se destaca é Lima Duarte, o dono da venda e valentão Amâncio – o

primeiro a se associar ao grupo forasteiro, do qual se torna uma espécie de porta-voz. O

primeiro a compactuar.

Aí o próximo capítulo: “Um homem, não se sabe o que é, apenas para que serve”. Como

todos, justifica o nome. É nesse ponto da narrativa que os cães invadem a cidade. Que

Geminiano quase desfalece de desilusão e fraqueza. A mulher que reage à janela é

Myriam Muniz. Aliás, o elenco do filme é brilhante – o delegado é Wilson Grey; Walmor

Chagas interpreta o prefeito; e José Lewgoy, o juiz. E vemos as mãos de Person: por

vezes agem feito as de um titereiro, comandando atuações naturalistas. Tudo é tão

verdadeiro, mergulho profundo que reforça o suspense da trama e gera um clima de

terror psicológico sufocante. São cenas inesquecíveis as dos cães tomando a cidade.

O que dizer do velho que tira a comida da boca e a entrega ao vira-lata que rosna com

o focinho colado em sua cara? E cada vez mais nos perguntamos: quem são esses que

vestem uniforme e comandam as bestas? E por que todos se rendem a seu poder? O que

constroem do outro lado da ponte? Como corrompem cada um dos que com eles vão ter?

Seja o que for, pouco a pouco todos se dobram. Seja lá o que for que constroem, é sólido.

Sólido demais.

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Nossa esperança segue com o carpinteiro Florêncio (Leonardo Villar), mas ninguém

pode com os forasteiros. Por fim nos resta aquele que julgamos ser o nosso herói, o

ferreiro Apolinário (Othon Bastos); Sebastiana, sua esposa, é interpretada por Eva

Wilma. Talvez nossa última chance. Aquele que é livre e desprendido. Mas ele também

se dobra. Os bois tomam a cena. É o golpe final.

Pelo roteiro, o filme teria uma hora e 20 minutos de duração, mas na montagem

final, feita como se fosse a punhal, em cortes secos, a obra ganha uma hora a mais

– em imagens contemplativas, na mais pura afiguração do expressionismo alemão,

acompanhadas da trilha narrativa, que a princípio seria feita à moda de viola, mas foi

substituída pela rabeca e pelo canto irônico e aflito de Zé Coco do Riachão.

A Hora dos Ruminantes não é um filme para assistir – esse filme é preciso encarar.

Lourenço Mutarelli é escritor, desenhista, roteirista e

ator. Publicou, entre outros títulos, a HQ Quando Meu

Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente (2011)

e os romances O Cheiro do Ralo (2002), O Natimorto

(2004), A Arte de Produzir Efeito sem Causa (2008)

– os três adaptados para o cinema – e O Grifo de

Abdera (2015).

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CRIADOS DO MEDOPor Noemi Jaffe

“Você é homem ou ruminante?” Essa é a pergunta que dá início ao mais recente filme de Luiz

Sergio Person, A Hora dos Ruminantes, adaptado do romance homônimo de José J. Veiga.

No poema “Um Boi Vê os Homens”, de Carlos Drummond de Andrade, pode-se dizer que

subsiste a mesma dúvida – porém não do ponto de vista de um homem, mas justamente do

de seu “espelho invertido”, uma cabeça de gado:

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm

e correm de um para outro lado, sempre esquecidos

de alguma coisa. Certamente, falta-lhes

não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres

e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,

até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam

nem o canto do ar nem os segredos do feno,

como também parecem não enxergar o que é visível

e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes

e no rastro da tristeza chegam à crueldade.

Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se

a um simples baixar de cílios, a uma sombra.

Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade,

e como neles há pouca montanha,

e que secura e que reentrâncias e que

impossibilidade de se organizarem em formas calmas,

permanentes e necessárias. Têm, talvez,

certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem

perdoar a agitação incômoda e o translúcido

vazio interior que os torna tão pobres e carecidos

de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme

(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo

como pedras aflitas e queimam a erva e a água,

e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

Poema originalmente publicado no livro Claro Enigma (Cia. das Letras), de 1951; Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

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Entendida no seu sentido literal – o de mastigação repetida de um alimento –, a ruminação

denota contemplação, extensão do tempo, meditação. A sensação, enfim, que têm os

humanos ao deparar com as vacas no pasto: a de que o tempo parou e de que ali habita uma

sabedoria perdida, pela qual ansiamos em nosso frenesi de conter o tempo.

Mas, quando entendida metaforicamente, a ruminação pode adquirir, como o boi do

poema, sentidos diversos. Por um lado, um pensamento maquiavélico e malicioso, como

o dos “homens estranhos” da obra de Person; por outro, a atitude de alguém incapaz de

se impor como agente da própria história, caso dos tristes habitantes de Manarairema, a

cidade fictícia em que se passa o longa-metragem. Nesse caso, fica mesmo difícil distinguir

quem são os ruminantes do filme: os homens – tanto os misteriosos invasores quanto os

moradores originais de Manarairema – ou os cachorros e os bois que, enigmaticamente,

tomam conta da cidade?

De que serve a nossa capacidade de engolir sem ruminar?Os “homens estranhos”, estrangeiros que ocupam a cidade pacata – representante alegórica

de tantas cidades do interior do país –, não dizem nada. Chegam, assentam-se e, como que por

mágica, tornam-se proprietários de tudo e de todos. Algo em seu silêncio e em sua ruminação

escraviza os antigos moradores, que, subservientes, se adaptam a tudo, inclusive a inaceitáveis

invasões de animais.

O filme é pautado, do início ao fim, por tabuletas típicas do interior onde se leem as

seguintes inscrições: “Um homem é um homem”; “Um homem comerciante é mais homem”;

“Um homem, não se sabe o que é, apenas para que serve”; “O cachorro é o melhor amigo do

homem”; “O que será da espinha do homem que não dobra?” e “Ai dos não violentos”.

São afirmações, perguntas e lamentos que, no conjunto, questionam o significado do humano.

Afinal, os humanos, em sua suposta superioridade evolutiva, são mesmo melhores do que os

outros animais? De que servem a razão e a linguagem e a nossa capacidade de engolir sem

ruminar? Nós, que fazemos dos animais nossos escravos, que os utilizamos para nossos fins,

somos menos propensos a nos tornarmos servos e a sermos meros meios para fins alheios?

Uma nação estrangeiraComo na Macondo do recente Cem Anos de Solidão (1967), de Gabriel García Márquez,

também na Manarairema concebida por Veiga e filmada por Person se reconhecem aspectos

do “realismo mágico”, preponderante na literatura da América Latina.

Os leitores e os espectadores podem se perguntar sobre as razões desse predomínio da

linguagem alegórica e fantástica no nosso continente. Mas, ao mesmo tempo, filmes como

A Hora dos Ruminantes também lançam a pergunta: “Como poderia ser diferente?”, ou “Que

outra linguagem poderia persistir num continente em que toda linguagem direta é interdita?”.

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Mesmo os personagens mais teimosos e intransigentes da obra, como Apolinário e

Amâncio – o que pensa e o que amansa –, acabam por ceder à pressão tácita dos homens

estranhos e se tornam, como todos, criados do medo. Sendo assim, se todos, do mais humilde

ao mais renitente, estamos condenados a nos adaptarmos ao medo, de que serve o humano

senão para servir, para dobrar a espinha como um animal?

Se os habitantes de Manarairema não podem contar nem com o padre, com o prefeito ou

com o delegado da cidade, todos perseverantes em sua demagogia, com quem poderão contar

se sua vida diária é só na lida do ofício que cada um foi obrigado a desenvolver e se sua única

diversão é a bebida?

A pergunta repetida ao longo do filme – “O que a gente fez para merecer isso?” – talvez

diga, em uma frase, mais do que esta resenha seja capaz de dizer. É a visão resignada de uma

população que, vendo-se como vítima de uma situação, não encontra recursos materiais ou

até psicológicos para revertê-la e, por isso, acaba por aceitá-la.

Em determinada cena, Amâncio, um dos primeiros a ceder aos homens estranhos, diz:

“Se todo mundo aqui fosse como eles, Manarairema seria um pedaço do céu – uma nação

estrangeira”. “Estrangeiro” e “estranho” têm a mesma origem – aquele que não pertence, o

de fora. É uma forma de compreender esses homens que surgem do nada e que, do nada,

tomam conta da cidade que sonha em ser estrangeira. Como se, à falta de identidade própria,

cada um precisasse assumir a identidade alheia.

Sim, talvez seja preferível ser mesmo um cachorro ou um boi. Desta vez, no sentido literal.

Noemi Jaffe é escritora, professora de literatura

e crítica literária. Escreveu O que os Cegos Estão

Sonhando? (2012), A Verdadeira História do Alfabeto

(2012) e Írisz: as Orquídeas (2015), entre outros.

Mantém o blog Quando Nada Está Acontecendo

(nadaestaacontecendo.blogspot.com.br).

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OCUPAÇÃO PERSON

Concepção e realização Itaú CulturalCuradoria Família Person e Itaú CulturalProjeto expográfico Valdy Lopes Jn. e Carolina Montoia (assistente)Pesquisa Isabela Mota

ITAÚ CULTURAL

Presidente Milú VillelaDiretor-superintendente Eduardo SaronSuperintendente administrativo Sérgio Miyazaki

NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURAGerência Claudiney FerreiraCoordenação Kety Fernandes NassarProdução-executiva Ana Paula Fiorotto e Camila FinkEdição de vídeo Karina Fogaça

NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima SousaCoordenação de conteúdo Carlos CostaProdução e edição de conteúdo Fernanda Castello Branco e Thiago RosenbergSupervisão de revisão Polyana LimaRevisão de texto Rachel Reis (terceirizada)Produção editorial Luciana Araripe (terceirizada)Redes sociais Renato CorchCoordenação de design Jader RosaIdentidade visual Liane IwahashiComunicação visual Guilherme Ferreira e Yoshiharu ArakakiProdução e edição de fotografia André SeitiEventos e comunicação estratégica Melissa Contessoto e Simoni Barbiellini

NÚCLEO DE PRODUÇÃO DE EVENTOSGerência Henrique Idoeta SoaresCoordenação Edvaldo Inácio Silva e Vinícius RamosProdução Carmen Fajardo, Cristiane Zago, Daniel Suares (terceirizado), Érica Pedrosa, Fernanda Carnaúba (terceirizada) e Wanderley Bispo

NÚCLEO DE EDUCAÇÃO E RELACIONAMENTOGerência Valéria Toloi Coordenação de atendimento educativo Tatiana PradoEquipe Amanda Freitas, Caroline Faro, Danilo Fox, Thays Heleno, Victor Soriano e Vinicius MagnunEstagiários Alan Ximendes, Bianca Ferreira, Breno Gomes, Daiana Terra, Edson Bismark, Giovani Monaco, Giovanna Nardini, Graziele de Almeida, Leandro Lima, Lennin de Almeida, Lidiany Shuede, Liticia Sato, Lucas Albuquerque, Lucas Balioes, Marcus Ecclissi, Maria Luiza Kazi, Marina Moço, Mayra Rocha, Paloma Rodrigues, Pamela Mezadi, Rafael Freire, Renan Ortega, Renata Sterchele, Samara Pavlova Fantin, Sara Barbosa, Sidnei Santos, Silas de Almeida, Thomas Angelo, Victoria Pinheiro, Vitor Rosa e William MirandaCoordenação de programas de formação Samara FerreiraEducadores Carla Léllis, Claudia Malaco, Edinho Santos, Josiane Cavalcanti, Lucas Takahaschi, Luísa Saavedra, Malu Ramirez, Raphael Giannini, Thiago Borazanian e Viny Rodrigues

AGRADECIMENTOS

Amir Labaki, Cinemateca Brasileira/SAv/MinC, Domingas Person, Eva Wilma, Francisco Ramalho, Jean-Claude Bernardet, Jorge Bodanzky, Marina Person, Mauro Giorgetti, Máximo Barro, Museu da Imagem e do Som (São Paulo), Oswaldo Mendes, Regina Jehá, Renato Magalhães Gouvêia e Sergio Mamberti

O Itaú Cultural realizou todos os esforços para encontrar os detentores dos direitos autorais incidentes sobre as imagens/obras fotográficas aqui publicadas, além das pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou identifique algum registro de sua autoria, solicitamos o contato pelo e-mail [email protected].

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Centro de Memória, Documentação e Referência Itaú Cultural | Itaú Cultural

Ocupação Person / organização Itaú Cultural. - São Paulo : Itaú Cultural, 2016.

52 p. : il.

ISBN 978-85-7979-081-2

1.   Luiz Sergio Person. 2. Teatro brasileiro. 3. Diretor. 4. Cinema brasileiro. 5. Publicidade. 6. Exposição de arte – catálogo  I. Instituto Itaú Cultural. II. Título.

CDD 791.43092

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entrada gratuitaitaucultural.org.br fone 11 2168 1777 [email protected] avenida paulista 149 são paulo sp [estação brigadeiro do metrô]Alvará de Funcionamento de Local de Reunião – Protocolo: 2012.0.267.202 – Lotação: 742 pessoas Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB) – Número: 121335 – Vencimento: 1/9/2017

Realização

OCUPAÇÃO

sábado 20 fevereiro a domingo 3 abril 2016

terça a sexta 9h às 20h [permanência até as 20h30]

sábado, domingo e feriado 11h às 20h

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