O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE FRENTE...
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FACULDADE BAIANA DE DIREITO
CURSO DE GRADUAO EM DIREITO
LUCAS MEIRELLES MIRANDA
O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE FRENTE RELEVNCIA DAS RELAES
SOCIOAFETIVAS
Salvador 2016
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LUCAS MEIRELLES MIRANDA
O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
FRENTE RELEVNCIA DAS RELAOES SOCIOAFETIVAS
Monografia apresentada ao curso de graduao em Direito, Faculdade Baiana de Direito, como requisito parcial para obteno do grau de bacharel em Direito. Orientador: Profa. Luciano Lima Figueiredo
Salvador
2016
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TERMO DE APROVAO
LUCAS MEIRELLES MIRANDA
O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
FRENTE RELEVNCIA DAS RELAES SOCIOAFETIVAS
Monografia aprovada como requisito parcial para obteno do grau de bacharel em
Direito, Faculdade Baiana de Direito, pela seguinte banca examinadora:
Nome:______________________________________________________________
Titulao e instituio:____________________________________________________
Nome:______________________________________________________________
Titulao e instituio: ___________________________________________________
Nome:______________________________________________________________
Titulao e instituio:___________________________________________________
Salvador, ____/_____/ 2016
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus, por ter me dado foras, sade e discernimento para chegar at este momento. minha famlia, por todo carinho, amor e suporte incondicional. A todos os professores, amigos e colegas que, direta ou indiretamente, participaram da minha formao e me ajudaram nessa caminhada.
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A persistncia o caminho do xito.
Charles Chaplin
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RESUMO
O presente trabalho visa abordar o reconhecimento da multiparentalidade, temtica cada vez mais comum na sociedade brasileira e que ainda no possui legislao especfica que estabelea suas diretrizes. O direito de famlia dinmico e, na tentativa de acompanhar os avanos da coletividade, est em constante evoluo e precisa ser constantemente debatido. A famlia no mais limitada, havendo um grande leque para a sua constituio. Diversas so as possibilidades de parentesco de acordo com o Cdigo Civil. No h que se definir pai e filho apenas pela consanguinidade, mas tambm pela posse de estado de filho aliada ao afeto da relao entre eles, surgindo a figura da filiao socioafetiva. Dadas essas possibilidades, no h que se falar em um critrio prevalente, mas sim na possibilidade de aplicao de qualquer deles ou ambos, quando necessrio, surgindo o instituto da multiparentalidade. O reconhecimento desse novo estado paterno-filial o reconhecimento da afetividade como valor jurdico e a afirmao e consagrao dos princpios garantidos pela Constituio Federal de 1988 e que regem o Direito de Famlia. O critrio biolgico no mais o nico definidor da relao de filiao, dada relevncia das relaes socioafetivas. Configurada e provada a existncia de ambas as filiaes e considerando que este o melhor interesse para o filho, aps cuidadoso estudo de cada casa de maneira individual, o magistrado deve optar pela multiparentalidade, que trar consigo consequncias no mbito patrimonial, na prestao de alimentos, registro civil e direito de convivncia e que no podero ser usados como justificativa para o seu no reconhecimento por conta de omisso legislativa sobre o tema. Palavras-chave: Parentesco; filiao; familia; socioafetividade; melhor interesse do filho; posse de estado de filho; multiparentalidade; consequncias
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
art. artigo
CC Cdigo Civil
CF/88 Constituio Federal da Repblica
des. Desembargador
Coord. Coordenador
Ed. Edio
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justia
TJ Tribunal de Justia
RE Recurso Extraordinrio
RESP Recurso Especial
IBDFAM Instituto Brasileiro de Direito de Famlia
ECA Estatuto da Criana e do Adolescente
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SUMRIO
1 INTRODUO ...................................................................................................... 09 2 PRINCPIOS APLICVEIS.................................................................................... 11 2.1 PRINCPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR ......................................... 11
2.2 PRINCPO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ......................................... 14
2.3 PRINCPIO DA AFETIVIDADE ........................................................................... 15
2.3 PRINCPIO DA PLURALIDADE DAS FORMAS DE FAMLIA ............................ 17
2.4 PRINCPIO DA IGUALDADE DE FILIAO ...................................................... 19
2.5 PRINCPIO DA PROIBIO DO RETROCESSO SOCIAL ................................ 20
3 PARENTESCO E FILIAO ................................................................................. 22 3.1 ASPECTOS GERAIS .......................................................................................... 22
3.2 CONCEITO DE PARENTESCO ......................................................................... 25
3.2.1 Modalidades de paretesco ............................................................................ 26 3.3 CONCEITO DE FILIAO.................................................................................. 29
3.4 A FILIAO BIOLGICA ................................................................................... 31
3.5. A FILIAO SOCIOAFETIVA E A DEFINIO DE CRITRIOS PARA O SEU
RECONHECIMENTO ............................................................................................... 32
3.5.1 Da posse do estado de filho ......................................................................... 34 3.5.2 Da (im)possibilidade de revogao do vnculo afetivo .............................. 38 3.6 O FILIAO BIOLGICA X FILIAO SOCIOAFETIVA ................................... 42
3.7 A MULTIPARENTALIDADE: NOES GERAIS ................................................ 46
3.7.1 Definio do Conceito ................................................................................... 47
4 DO RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE ..................................... 49 4.1 DIVERGNCIAS QUANTO AO RECONHECIMENTO ....................................... 49
4.2 O POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL NO DIREITO BRASILEIRO ........ 54
4.3 DA LEGITIMIDADE PARA PLEITEAR O RECONHECIMENTO DA
MULTIPARENTALIDADE ......................................................................................... 58
4.4 DOS DIREITOS E DEVERES DECORRENTES DO RECONHECIMENTO....... 61
4.2.1 A questo dos Alimentos Devidos ............................................................... 62 4.2.2 Da relao sucessria ................................................................................... 64
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4.2.3 Do direito ao Nome ........................................................................................ 66 4.4.4 Do direito de Convivncia ........................................................................... ..68
6 CONCLUSO ...................................................................................................... ..70
REFERNCIAS ...................................................................................................... ..75
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1 INTRODUO
Trata o presente trabalho acerca da possibilidade de reconhecimento da
multiparentalidade em decorrncia da importncia que a realidade ftica possui na
vida dos indivduos e dos avanos alcanados pelo direito de famlia ao longo dos
anos.
O tema foi escolhido pois fonte de divergncias doutrinrias e jurisprudenciais
quanto a sua instituio, inclusive o Supremo Tribunal Federal havia reconhecido a
existncia de repercusso geral da matria, julgando-a e fixando sua tese vinculante
apenas no ms de setembro do ano de 2016, durante a execuo deste trabalho
monogrfico.
O direito de famlia est em constante transformao em decorrncia de uma rpida
evoluo da estruturao da sociedade e seus costumes. O carter patriarcal da
famlia no possui mais espao, perdendo tambm o seu condo patrimonialista. O
que se almeja agora a busca da felicidade e no h como discriminar os mais
diversos e diferentes arranjos familiares.
Quando se trata de multiparentalidade, deve-se entender que a relao
estabelecida entre um filho com mais de um pai ou de uma me de forma
concomitante, sendo um deles de origem consangunea e outro de origem
socioafetiva. uma relao que vai se desenvolver sob a luz dos princpios regentes
do direito de famlia, que vo possuir papel de destaque na abordagem dessa
temtica. Existe a linha de autores e magistrados que defendem a sua aplicao por
entenderem que no h sobreposio do carter socioafetivo ao biolgico e nesta
seara que o presente trabalho vai se manter.
Seguindo a subdiviso desta obra, o primeiro captulo trata de estudar os princpios
que embasam o direito famlia, com especial destaque para aqueles que tm
aplicabilidade direta quando necessrio o estudo para o reconhecimento da
multiparentalidade, sendo eles o princpio do melhor interesse. H a diviso entre o
princpio do melhor interesse do filho; princpio da dignidade humana; princpio da
afetividade; principio da pluraridade das formas de famlia; igualdade da filiao; e
por fim, o princpio da proibio do retrocesso social. Ver, a partir da suas
definies e conceituaes, a importncia destes para tal instituto.
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O segundo captulo responsvel por tratar acerca das diversas modalidades de
parentesco, inclusive a filiao, a mais importante delas. D-se inicio com uma breve
exposio da evoluo das famlias, seus conceitos e caractersticas com relao as
mudanas que a sociedade sofreu e passou a exigir que tal temtica ganhasse uma
nova abordagem. Vai se buscar esclarecer no que consiste o parentesco, suas
formas, at se chegar nas relaes filiatrias. Para o prosseguimento deste capitulo,
delimitaremos os critrios estabelecedores da filiao e os fatores relevantes na sua
anlise comparativa e individual, at alcanar o conceito de multiparentalidade.
Por fim, o terceiro captulo surge para tratar do reconhecimento desse novo instituto,
observando o que foi fixado pelo Recurso Extraordinrio 898.060 abordando
divergncias doutrinrias aliadas ao estudo do posicionamento jurisprudencial do
ordenamento brasileiro quanto a esse tema comparando, tambm, com o direito
estrangeiro e abordagem trazida por este. Em tpicos subdividos se dar a anlise
das consequncias, direito e deveres, oriundos do reconhecimento da
multiparentalidade, destacando os principais pontos que geram discusso, como a
multihereditariedade e aplicao da Lei de Registros Pblicos.
O trabalho se conclui com o levantamento de todos os pontos trazidos e, na viso do
presente autor, o melhor posicionamento quando se enfrenta tais casos, qual seja
admitir a multiparentalidade e a coexistncia das filiaes socioafetiva e biolgica,
alm da relativizao quanto aplicao de algumas normas que sero utilizadas de
forma anloga diante da omisso de uma legislao especifica regente.
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2 PRINCPIOS APLICVEIS
No h como tratar acerca do Direito de Famlia sem pontuar a importncia dos seus
diversos princpios norteadores. Muitos desses princpios esto expostos de forma
expressa e clara na Constituio Federal, no nosso ordenamento jurdico e outros
esto presentes de forma implcita, mas igualmente importantes nesse instituto.
No dizer de Pablo Stolze Gagliano (2011, p. 71), constitui tarefa muito pretensiosa
esgotar todos os princpios informadores do direito de famlia e por isso temos que
direcionar o estudo para uma melhor eficincia.
imprescindvel, portanto, discorrer acerca dos princpios que regulamentam e
fundamentam os direitos que viro a surgir em relao ao instituto da
multiparentalidade.
Dentre os diversos princpios que regem o direito de famlia, caber aqui a escolha
do presente autor, ao tratar sobre aqueles os quais julga ser mais importantes ao
tema em questo, sendo eles: (1) princpio do melhor interesse do menor, (2)
princpio da dignidade da pessoa humana, (3) princpio da afetividade, (4) princpio
da pluridade das formas de famlia, (5) princpio da igualdade de filio e (6)
princpio da proibio do retrocesso social.
Esses princpios possuem conexo direta com as consequncias geradas pelo
reconhecimento da multiparentalidade frente importncia das relaes
socioafetivas.
2.1 PRINCPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR
O referido princpio, como o prprio nome reflete, tem como premissa garantir ao
menor, prole, o seu desenvolvimento da melhor maneira possvel, onde as
decises tomadas pelos responsveis estejam sempre em consonncia com o
interesse do menor, devendo o judicirio, quando necessria for a sua ao, buscar
alcanar e proteger esse ideal principiolgico.
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Segundo posicionamento de Guilherme Gama (2008, p. 08)esse principio traz uma
nova linha de entendimento:
O princpio do melhor interesse da criana e do adolescente representa importante mudana de eixo nas relaes paterno-materno-filiais, em que o filho deixa de ser considerado objeto para ser alado a sujeito de direito, ou seja, a pessoa humana merecedora de tutela do ordenamento jurdico, mas com absoluta prioridade comparativamente aos demais integrantes da famlia de que ele participa. Cuida-se, assim, de reparar um grave equivoco na histria da civilizao humana em que o menor era relegado a plano inferior, ao no titularizar ou exercer qualquer funo na famlia e na sociedade, ao menos para o direito.
A Constituio Federal de 1988, em seu artigo 227, caput, garante criana,
adolescente ou jovem, de forma prioritria, o direito vida, alimentao, sade,
cultura, educao, ao lazer, profissionalizao, dignidade, ao respeito,
liberdade e convivncia familiar e comunitria, sendo reforado de forma expressa,
ainda, pela lei 8.069 de 13 de julho de 1990, conhecida como Estatuto da Criana e
do Adolescente, no caput do seu artigo 3, nos artigos 4 e no seu artigo 7:
Artigo 3: A criana e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes pessoa humana, sem prejuzo da proteo integral de que trata essa Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento fsico, mental, espiritual e social, em condies de liberdade e de dignidade. Artigo 4: dever da famlia, da comunidade, da sociedade em geral e do poder publico assegurar, com absoluta prioridade, a efetivao dos direitos referentes vida, sade, alimentao, educao, ao esporte, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria. Artigo 7: A criana e o adolescente tem direito a proteo vida e sade, mediante a efetivao de polticas sociais pblicas que permitam o nascimento e desenvolvimento sadio e harmonioso, em condies dignas de existncia.
Aqui a criana no mais tratada como aquela que tem sempre que se submeter s
vontades e anseios alheios, tendo o seu processo de amadurecimento e formao
da personalidade amplamente respeitados. Nas relaes oriundas da
socioafetividade, um dos principais, seno o principal fator a vontade que a parte
manifesta para a realizao daquela condio e agora o menor possui proteo
estatal naquilo que vai ser melhor para o seu desenvolvimento.
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Dos artigos acima expostos, deve-se destacar que o Estatuto da Criana e do
Adolescente pautado na doutrina da proteo integral. O principio do melhor
interesse do menor e a proteo integral esto completamente interligados, alm de
onde essa doutrina est pautada na peculiar condio de fragilidade e
vulnerabilidade em que se encontram o menor e o adolescente, o que gera para eles
o beneficio de uma proteo especial.
Nas palavras de Antnio Carlos Gomes da Costa (1992, p. 19), um dos redatores do
ECA, essa doutrina afirma o valor intrnseco da criana como ser humano; a
necessidade de especial respeito sua condio de pessoa em desenvolvimento; o
valor prospectivo da infncia e da juventude, como portadora da continuidade de seu
povo e da espcie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade, o que torna as
crianas e adolescentes merecedores de proteo integral por parte da famlia, da
sociedade e do Estado, o qual dever atuar atravs de polticas especficas para
promoo e defesa de seus direitos.
Nesse sentido, Rodrigo da Cunha Pereira (2012, p. 150-151) doutrina que no existe
de forma clara e aplicvel a todo e qualquer caso uma definio preconcebida
acerca do que vai ser melhor para a criana ou adolescente. Aqui deve-se entender
que esses indivduos, alm de possurem as garantias fundamentais que so dadas
a todo e qualquer individuo, possuem direitos fundamentais especiais, que mantm
relaes muito prximas com esse princpio que possui um contedo aberto, que
dever se ajustar aos contornos de cada caso concreto apresentado, para que se
alcance o melhor interesse da melhor maneira possvel.
Em suma, o principio do melhor interesse do menor alm de servir como guia para
as relaes entre a criana e o adolescente com seus familiares, sociedade e
Estado, fundamental na resoluo de conflitos de normas, uma vez que, sempre
que possvel, deve-se optar pelo interesse melhor da criana e do adolescente.
Garantir o melhor interesse da criana romper todas as barreiras de preconceitos
que possam existir em relao a ela, evitando que um julgamento moral errneo
possa interferir quando se tratar do desenvolvimento do menor.
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2.2 O PRINCPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO DE
FAMLIA
O principio da dignidade da pessoa humana um dos maiores, seno o maior
princpio existente no ordenamento brasileiro, sendo aplicvel a diversos temas e
entendimentos. Expresso na Constituio Federal de 05 de outubro de 1988, no seu
artigo 1, inciso III como um principio fundamental do estado brasileiro, esse principio
carrega consigo uma responsabilidade extrema, considerado por maioria da doutrina
como um princpio solar.
Para a definio do conceito deste, surge a dificuldade por conta da sua importncia,
mas conceituado, na sua noo jurdica, pelos autores Rodolfo Pamplona Filho e
Pablo Gagliano Stolze (2011, p. 74), como uma traduo de um valor fundamental
de respeito existncia humana, segundo as suas possibilidades e expectativas,
patrimoniais e afetivas, que so indispensveis felicidade e a realizao do
individuo como pessoa. Ainda, esse princpio tem o papel de garantir o direito de
viver de forma plena, sem a interveno de particulares ou do estado na sua
concretizao.
Corroborando com o exposto acima, Rodrigo da Cunha Pereira (2002, p.115) ao
citar a doutrinadora Carmem Lucia Antunes Rocha, leciona que esse princpio
estabeleceu uma nova forma de pensar o sistema jurdico, sendo a dignidade o
principio e fim do direito:
Dignidade o pressuposto da idia de justia humana, porque ela que dita a condio superior do homem como ser de razo e sentimento. Por isso que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. No se h de ser mister ter de fazer por merec-la, pois ela inerente vida e, nessa contingncia, um direito pr-estatal.
Ento, a partir da definio deste principio, entende-se o quo extenso vai ser o seu
alcance nas diversas reas do direito de famlia, sendo esse um macroprincpio base
para a aplicao de todos os demais, e, uma vez incorporado pela Constituio
Federal, torna-se limite para o prprio Direito e para a sociedade, posto que no se
permitido ir alm dos limites da dignidade humana. O Estado, alm de possuir o
dever de no agir de forma a ir de encontro a esse princpio, deve promover essa
dignidade atravs de condutas ativas, tentando assegurar ao mximo o bem-estar e
garantias mnimas a cada indivduo.
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No que diz respeito ao direito de famlia, Rolf Madaleno (2013, p. 45) deixa claro que
o planejamento familiar est embasado na dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsvel, cabendo aos pais, dentre outras garantias, assegurar o
direito dignidade, liberdade, ao respeito, que so garantias mnimas de uma vida
tutelada sob o signo da dignidade da pessoa.
O direito de famlia encarregado de tratar, alm de questes patrimoniais, de
aspectos biolgicos, afetivos e sociais que unem os sujeitos, onde se encontrar a
incidncia desse princpio de forma clara, no respeito s escolhas, no respeito s
atitudes e no respeito prpria famlia. na dignidade da pessoa humana que se
firma um dos principais pilares argumentativos para se defender as diversas formas
de relaes, sejam de filiao ou de famlia, em todas elas devendo ter a sua
vontade respeitada e encontrar no Estado a devida proteo que este lhes pode
garantir.
Maria Berenice Dias (2011, p. 62-64) leciona que na medida em que a dignidade da
pessoa humana foi elevada a fundamento da ordem jurdica, houve a opo
expressa pela pessoa, ligando os institutos realizao da sua personalidade. Esse
fenmeno despatrimonializou os institutos jurdicos, colocando a pessoa humana no
centro da proteo do direito. O princpio da dignidade da pessoa humana significa
uma igual dignidade para todas as entidades familiares.
Nesse sentido, conforme entendimento de Rodolfo Pamplona Filho e Pablo
Gagliano Stolze (2011, p. 76), conclui-se que o respeito ao principio da dignidade da
pessoa humana s estar completo, s ser plenamente efetivo, quando levado em
conta o mbito das relaes de parentesco e familiares.
2.3 PRINCPIO DA AFETIVIDADE
Nesse ponto, importante que se entenda esse principio como um dos principais
norteadores da formao, da unio familiar na sociedade. Durante muito tempo a
afetividade foi tratada s margens do direito de famlia, pois, numa sociedade com
um direito enrijecido, antiquada, no havia meios possveis ainda, diante de todo o
preconceito e julgamentos perante a sociedade que existiam de forma extensa em
um passado no to distante, desse principio ser comparado ao fator biolgico, s
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relaes consanguneas. Contudo, mesmo com essas dificuldades, as relaes de
afetividade foram ganhando espao.
Nos dias atuais, claro perceber que a afetividade j no mais mera coadjuvante
e garantiu lugar de destaque nas relaes de familia, sendo os seus laos
respeitados de maneira igual ou superior queles biolgicos. Maria Berenice Dias
(2015, p.52) afirma que o princpio da afetividade fundamenta o Direito de Famlia na
estabilidade das relaes socioafetivas em primazia das relaes patrimoniais e
consanguneas. Ainda h a possibilidade de aplicao do termo affectio societatis no
direito de famlia como forma de expor o afeto, a vontade entre duas ou mais
pessoas para formar uma sociedade, uma famlia.
O principio da afetividade est muito ligado ao principio fundamental felicidade,
sendo o Estado responsvel, alm de tudo, a atuar de modo que, de alguma forma,
ajude os cidados a realizarem seus projetos pessoais racionais e desejos legtimos.
Mesmo no estando entre os princpios da Carta Maior, o afeto foi enlaado no
mbito da sua proteo (DIAS, 2015, p. 52).
Em consequncia desse novo ponto de vista, dessa nova valorao referente
afetividade, segundo Jos Neves dos Santos (2014, p. 01), tal principio est
intrinsecamente ligado ao sentimentalismo humano, no podendo ser afastado de
forma alguma dos sentimentos de famlia, de querer ser famlia.
Neste sentido segue o leciona Rodrigo da Cunha Pereira (2012, p.215) ao tratar
sobre a relevncia desse princpio:
uma das mais relevantes consequncias do princpio da afetividade encontra-se na jurisdicizao da paternidade socioafetiva, que abrange os filhos de criao. Isto porque o que garante o cumprimento das funes parentais no a similitude gentica ou a derivao sangunea, mas, sim, o cuidado e o desvelo dedicado aos filhos
Caber ao juiz, quanto aferio da presena do carter afetivo, mais do que a
aplicao de uma interpretao racional, devendo compreender as partes
envolvidas, respeitando as diferenas e valorizando, acima de tudo, os laos de
afeto que os unem (PAMPLONA E GAGLIANO, 2011, p.92).
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2.6 PRINCPIO DA PLURALIDADE DAS FORMAS DE FAMILIA
Durante anos, a partir da Carta Magna de 1937 que instituiu normas sobre a famlia
e, principalmente, o casamento, que era este reconhecidamente o nico meio de
constituir uma famlia, at o advento da Constituio Federal de 1988.
A famlia, como ser tratada com maior riqueza mais adiante, possua, antes de
qualquer coisa, uma finalidade econmica, poltica e religiosa, onde prevalecia o
poder e a deciso da figura masculina. Com a promulgao da vigente Constituio,
o modelo patriarcal e hierarquizado foi superado, e ento nasceram princpios
norteadores que destituram o casamento do seu papel de protagonista, tornando-se
apenas uma das formas de constituio familiar no ordenamento brasileiro,
extinguindo-se o termo muito utilizado at ento de famlia legtima.
Em seu Artigo 226, a Carta Maior consagra o principio da pluralidade das formas de
famlia, trazendo consigo as possibilidades de formaes familiares previstas, dentre
elas, a unio estvel, as famlias monoparentais e, o mais conhecido, o casamento.
Mas, nesse momento, necessrio que se observe o mundo ftico e suas
evolues, onde se percebe que o contedo do referido artigo no um limitador,
mas sim rol meramente exemplificativo. Existem diversas outras possibilidades
familiares que se fazem presentes na sociedade moderna e s quais so devidos os
mesmos direitos e proteo estatal.
Com autoridade, Rodrigo da Cunha Pereira (2012, p. 194-195) doutrina:
da Constituio da Repblica que se extrai o sustentculo para a aplicabilidade do princpio da pluralidade de famlia, uma vez que, em seu prembulo, alm de instituir o Estado Democrtico de Direito, estabelece que deve ser assegurado o exerccio dos direitos sociais e individuais, bem como a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justia como valores supremos da sociedade. Sobretudo da garantia da liberdade e da igualdade, sustentadas pelo macroprincpio da dignidade, que se extrai a aceitao da famlia plural, que vai alm daquelas previstas constitucionalmente e, principalmente, diante da falta de previso legal.
A famosa unio estvel, segundo o Cdigo Civil de 2002, em seu artigo 1.723,
ser reconhecida como entidade familiar entre o homem e a mulher, configurada na
convivncia pblica, contnua e duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituio de famlia. Tambm, segundo a lei, a unio estvel deve ser equiparada
ao casamento e sua converso em casamento facilitada ao mximo. O
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entendimento de que esse artigo seria aplicado apenas relao entre homem e
mulher foi superado pelo Supremo Tribunal Federal, explicitado no seu informativo
n. 625, excluindo qualquer significado que impedisse o reconhecimento da unio
entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
Seguindo este entendimento, o Conselho Nacional de Justia editou a Resoluo
nmero 175, de 14 de maio de 2013, que passou a vedar a recusa de habilitao,
celebrao de casamento civil ou de converso de unio estvel em casamento
entre pessoas do mesmo sexo (PEREIRA, 2015, p. 31-35).
Neste mbito das diversas maneiras de se constituir uma famlia, existe uma que
necessrio tratar com maior ateno no presente trabalho, que so as chamadas
famlias parentais. Essas famlias podem se formar pelo vinculo de parentesco
biolgico ou pelo vnculo socioafetivo. No primeiro se encaixam as famlias
monoparentais, onde a prole criada por apenas um dos pais e nem por isso ser
descaracterizada como famlia. Existem tambm as comunidades formadas por
irmos que no convivem com seus pais e at mesmo avs e netos, todos estes
sendo abarcados pelo conceito de famlia.
O Estatuto das Famlias, Projeto de Lei 470/2013 que tramita no Senado Federal, no
seu artigo 69 traz a devida definio do que foi tratado acima:
Art. 69. As famlias parentais se constituem entre pessoas que tm relao de parentesco ou mantm comunho de vida instituda com a finalidade de convivncia familiar. 1 Famlia monoparental a entidade formada por um ascendente e seus descendentes, qualquer que seja a natureza da filiao ou do parentesco. 2 Famlia pluriparental a constituda pela convivncia entre irmos, bem como as comunhes afetivas estveis existentes entre parentes colaterais.
Alm do tratado acima, o novo direito nos permite citar inmeras outras
possibilidades, como as famlias reconstitudas, que consistem naquelas que
nascem de um novo relacionamento onde os envolvidos trazem filhos de um
relacionamento passado de forma a compor essa nova famlia, na qual nem todos
tero parentesco entre s, mas haver um grau de parentesco com a prole em razo
da unio do casal reconstitudo, no importando se o outro companheiro que se
separou ainda se faz presente fsica ou emocionalmente perante o filho que est no
seio desta nova famlia (FERREIRA e ESPOLADOR, 2009, p.107).
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Essa famlia ter na socioafetividade, onde a convivncia, sentimentos recprocos e
laos criados possuem tanta fora, a sua base. Dessa relao que busca a
felicidade plena e a dignidade humana, surgiro, alm do lao familiar reconhecido
pela sociedade e pelo direito, paradigmas mais novos ainda, como o fenmeno da
multiparentalidade, que ser tratada com mais cuidado ao longo desta obra.
Portanto, em sntese de Caio Mrio da Silva Pereira (2015, p. 33-36), as famlias
modernas desapareceram com a organizao patriarcal, havendo a mudana de
paradigma relacionado quela que era composta por homem, mulher e filhos. Dessa
nova concepo no h que se falar em desprestgio do termo famlia, pois no
mundo moderno imprime tambm uma feio moderna a ele. Com base nesse
princpio, o Estado se torna responsvel por garantir a proteo das diversidades de
ncleos familiares existentes, que so unidos pela busca pela da felicidade e
realizao pessoal.
2.4 PRINCPIO DA IGUALDADE DA FILIAO
Por um longo tempo, os filhos eram distinguidos de acordo com o estado civil dos
pais, eram divididos em legtimos, se os pais fossem casados, ou ilegtimos se os
pais no tivessem uma relao conjugal, sendo subdivididos entre os naturais,
adulterinos, quando fruto de uma relao paralela ao casamento ou incestuosos,
que se dava por parentes impedidos de se casarem (MADALENO, 2008, P. 99).
Com o advento da Constituio Federal de 1988, a discriminao relativa a filiao
foi afastada, em parte, no havendo mais tratamento diferenciado tanto no que diz
respeito aos direitos, como em relao s consequncias patrimoniais para aqueles
filhos havidos fora do casamento, assim como tambm quanto a denominaes
pejorativas.
Embora ainda no se tenha chegado ao modelo ideal de igualdade protegida por lei,
j houve um avano significativo no que diz respeito aos filhos biolgicos e adotivos,
mas que ainda gera discusses a respeito da filiao socioafetiva.
O Cdigo Civil Brasileiro traz em seu artigo 1.569 disposio no sentido de que
aqueles filhos havidos ou no da relao de casamento, ou por adoo, tero os
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mesmos direitos e qualificaes, proibidas quaisquer designaes discriminatrias
relativas filiao.
Tal artigo tem a sua matriz constitucional no artigo 227, pargrafo 6, da Carta Maior,
que assim estabelece, in verbis:
Art. 227. dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso.
6 Os filhos, havidos ou no da relao do casamento, ou por adoo, tero os mesmos direitos e qualificaes, proibidas quaisquer designaes discriminatrias relativas filiao.
Na atualidade, ante a evidente fora que a afetividade, a dignidade da pessoa
humana, dentre outros princpios e conceitos, torna-se fcil perceber que a
sociedade alcanou um novo patamar, no qual o principio da igualdade est
abrangendo, tambm, a filiao por afetividade. H, de forma clara, mais uma vez, a
equiparao da filiao biolgica com a filiao afetiva, tema amplamente tratado.
Ento, independentemente da origem do filho, seja biolgica, adotiva, reproduo
assistida, afetiva, etc., haver a isonomia de direitos entre eles, sem quaisquer
discriminaes. Por fim, uma consequncia importante da afirmao do principio da
igualdade entre os filhos tornar o interesse do menor o principal critrio na soluo
de conflitos familiares que os envolva, tirando aquela hierarquizao que dava
primazia a figura paterna (CHAVES e ROSENVALD, 2015, P. 103).
2.5 - PRINCPIO DA PROIBIO DO RETROCESSO SOCIAL
A proibio do retrocesso social de suma importncia no aspecto de
reconhecimento dos direitos de famlia e, em especial, para o tema que aqui ser
amplamente abordado: a multiparentalidade. Por esse princpio vedado retroceder
ao patamar anterior ao do reconhecimento, ante as necessidades ainda no
reconhecidas legalmente (SANTOS, 2014, p. 01).
-
21
Faz-se mister pontuar a importante proteo trazida por este principio queles
reconhecimentos como a igualdade entre filhos, a igualdade entre sexos, a
diversidade dos entes familiares, dentre outros.
A Constituio Federal de 1988 trouxe no seu bojo e atribuiu ao Estado a
capacidade e competncia para tutelar aquilo que surgisse e que fosse amplamente
conhecido, mas no tivesse um amparo legal. Esse foi o primeiro passo para que as
novas relaes que hoje esto espalhadas por toda a sociedade, dentre elas, o
reconhecimento multiparentalidade no Brasil, se consolidassem. (SANTOS, 2014, p.
02)
Aponta Ricardo Mauricio Freire (___, p. 08), que a eficcia vedativa do retrocesso
deriva da eficcia negativa, segundo a qual as conquistas relativas aos direitos
fundamentais no podem ser excludas pela supresso de normas jurdicas
progressistas.
Ainda, Renata Cezar (2011, p.01) afirma que o princpio da proibio do retrocesso
social confere aos direitos fundamentais, em especial aos sociais, estabilidade nas
conquistas dispostas na Carta Poltica, vedando a alterao pelo Estado. No
garante uma imutabilidade eterna, mas sim segurana jurdica contra aes
retrocessivas do Estado que ignorem os direitos adquiridos. Para que um direito
venha a ser alterado, que passe por um longo processo de analise para que traga
benefcios queles a que se destina, buscando modificaes que aumentem seu
alcance.
-
22
3. PARENTESCO E FILIAO
Todo homem possui a necessidade de se relacionar, de interagir e conviver com
outros indivduos. O homem, como ser social, tem na socializao a busca por
novas descobertas, a realizao pessoal na sua plenitude. Faz-se presente a
indispensabilidade de conhecer as suas origens, os seus antepassados e a cultura
na qual est inserido, como parte do seu desenvolvimento pessoal e social. A
influncia e as implicaes geradas por esses fatores so diversos, exercendo um
papel importante at mesmo na construo da identidade de cada individuo.
O conceito de famlia no se confunde com os conceitos de parentesco e de filiao.
Diversas so as formas como o parentesco e como a filiao vo se estabelecer,
podendo at coincidirem em alguns pontos, mas faz-se necessria a diferenciao
entre ambos, sem, contudo, gerar discriminaes ou desigualdades decorrentes dos
diversos tipos, em respeito ao principio da igualdade entre os filhos e a dignidade da
pessoa humana, princpios-basilares da Constituio Federal de 1988.
3.1 ASPECTOS GERAIS
No passado, a famlia possua caractersticas que eram incontestveis. Sob o olhar
do Cdigo Civil de 1916, a famlia era visualizada com carter fortemente
patrimonialista, com a finalidade de reproduo, tendo grande representao
religiosa e tambm poltica. Era uma relao hierarquizada, onde a figura do
homem, o carter patriarcal era muito forte, decidindo os rumos a serem tomados
pelos demais membros dessa sociedade, de forma, em regra, inquestionvel. O
menor no tinha a sua vontade levada em considerao e tampouco havia alguma
legislao que desse alguma garantia a suas escolhas e ao seu interesse, estando
sempre a vontade do patriarca frente da vontade dos demais, preservando a
unidade familiar acima de qualquer outra relao.
A famlia era criada com um forte carter patrimonial, onde existia a figura de unio
entre famlias por conta do patrimnio e, portanto, pensando sempre na preservao
desses bens que estavam em jogo com a instituio do casamento. Segundo o
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23
Cdigo Civil de 1916, havia a classificao entre filhos legtimos, que eram aqueles
filhos biolgicos concebidos na constncia do casamento, e os ilegtimos, que eram
fruto de relaes extraconjugais ou qualquer outra situao e que no possuam
qualquer direito perante o patrimnio ou ao afeto, o carinho e proteo que todo
menor, na concepo atual, deve receber. No era possvel o reconhecimento da
paternidade.
O tratamento dado a esses filhos era desprezvel, deixados sempre margem da
sociedade, preservando a instituio do casamento, garantindo a paz quela relao
que era assegurada na lei.
Paulatinamente, com o passar dos anos e o avano da sociedade, o carter
hierarquizado, patriarcal vai se mitigando na sociedade, no dia a dia, dando mais
espao mulher e aos filhos. Alguns marcos carecem ser citados como,
primeiramente, o advento do Decreto-Lei n 4.737, de 24 de setembro de 1942, que
tratava acerca do reconhecimento dos filhos naturais, seguido pela Lei n 883, de
1949, que permitiu a qualquer dos cnjuges o reconhecimento de filho havido fora
do casamento e ao filho foi dada a possibilidade de ao para buscar seu
reconhecimento. Posteriormente, com a Lei do Divrcio em 1977, que trouxe outras
alteraes de relevncia, como a equiparao do direito de herana de todos os
filhos (GILDO, 2016, p. 01).
A sociedade foi evoluindo, valorizando a importncia das relaes afetivas para a
realizao a nvel pessoal e coletivo dos indivduos que convivem entre si, e o
direito, que busca sempre acompanhar os avanos sociais, mesmo que de forma
lenta, consagrou tais mudanas com a promulgao da Constituio Federal
Brasileira em 05 de outubro de 1988.
Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenlvald (2015, p. 539-540), o
Texto Constitucional, no seu artigo 227, pargrafo 6, colocou fim a um perodo que
no deixou grande nostalgia, determinando a igualdade substancial entre os filhos,
evitando qualquer tipo de discriminao, almejando a dignidade da pessoa humana
como uma finalidade importante para a Repblica Brasileira. Alm do fim das
condutas discriminatrias entre filhos, entende ainda que no h qualquer outro
obstculo existente determinao da filiao, sendo vedado qualquer limite
determinao deste vnculo.
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24
A Constituio atual rompeu com o sistema que regulamentava o impedimento ao
reconhecimento ou a contestao da filiao, sendo consagrada, em seguida, pelo
Estatuto da Criana e do Adolescente - Lei 8.069/90 em seu artigo 26 e artigo 27,
e corroborada pelo Cdigo Civil de 2002, nos artigos 1.601, 1.606 e 1.596 (FARIAS
e ROSENVALD, 2015, p. 540).
O afeto passa ser a base das relaes familiares, ou seja, alm do vnculo
biolgico, a socioafetividade tambm reconhecida como um fator capaz de
estabelecer entidades familiares e relaes, tendo como orientao, como norte, o
princpio da afetividade.
Ainda, afirma de Rolf Madaleno (2008, p.472), no h como desconsiderar a
constante evoluo por que passam as relaes parentais no plano social e jurdico,
sendo criados e aceitos novos arranjos familiares, diferentes do modelo tradicional
familiar, como ocorre com as famlias reconstitudas, famlias monoparentais e
famlias homoparentais, que possuem seus vnculos reconhecidos pelos tribunais.
Ao ampliar os diversos conceitos de famlia, o legislador terminou por aumentar
tambm o conceito de parentalidade, dando-lhe um carter pluralista e, ao mesmo
tempo, afastando adjetivaes advindas da origem dessa relao. Com isso,
passou-se a reconhecer, alm do parentesco por vinculo biolgico e por vinculo
matrimonial, tambm um parentesco por vnculo socioafetivo, estabelecido por
outras maneiras menos usuais e no to comuns aos olhos da sociedade. (FARIAS
e ROSENVALD, 2015, p. 515).
Ento hoje, o que se deve entender quando se fala em famlia que esta gira em
torno de um vnculo de afetividade, ou seja, que a famlia um grupo social fundado
no lao afetivo, sendo este a diferena especifica que define a entidade familiar. o
sentimento mtuo entre os indivduos na busca da felicidade plena, com a realizao
pessoal da dignidade humana, conjugando suas vidas de forma intima em um
ambiente de solidariedade, com consequncias patrimoniais.
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25
3.2 CONCEITO DE PARENTESCO
Como j mencionado anteriormente, embora a filiao seja a relao de parentesco
com mais destaque, mais conhecida, esses conceitos no se misturam e
necessrio que se demonstre tais diferenciaes.
Parentesco, na acepo jurdica do termo, , segundo pensamento de Paulo Lbo
(2011, p. 205), uma relao estabelecida pela lei, nos limites definidos por esta, ou
por deciso judicial que unem uma pessoa aos demais que participam daquela
entidade familiar, identificando-as como pertencentes quele grupo social que
possuem direitos e deveres recprocos e para com o resto da sociedade.
Ento, possvel afirmar que o parentesco, fugindo rapidamente dos termos legais,
uma relao fundada na vontade, no afeto entre as partes, onde existe um
verdadeiro sentimento de pertencimento quele grupo familiar. Cristiano Chaves e
Nelson Rosenvald (2015, p.518) concluem que no se pode estar reduzido ao
vinculo gentico, sendo preciso reconhecer a presena de outras formas de
parentesco como o decorrente da adoo e da socioafetividade, consagrando o
principio da igualdade.
No Brasil, o vinculo de parentesco estabelecido por linhas e a contagem ser feita
por graus. No que tange a diviso em linhas, temos o parentesco em linha reta, que
estabelecido por aqueles que mantm uma relao de descendncia ou
ascendncia, decorrente ou no do vinculo biolgico, conforme o artigo 1.591 do
Cdigo Civil de 2002. Existem tambm as linhas colaterais ou transversais, que so
estabelecidas atravs de um ponto comum, de um s tronco, como definido tambm
no Cdigo Civil no artigo 1.592 Dentro dessa classificao caber o parentesco
decorrente da socioafetividade, independendo de um lao gentico. (FARIAS e
ROSENVALD, 2015, p. 522).
O grau entendido como a distncia entre as geraes que confere maior ou menor
aproximao entre as pessoas conectadas pelo parentesco. A classificao de
parentesco quanto a graus definida pelo artigo de numero 1.594 do vigente Cdigo
Civil e, no entendimento de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2011,
p. 650), este delimita um critrio fundamental para a fixao dos graus que o
critrio do numero de geraes, se aplicando tanto para o parentesco em linha reta
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26
como no colateral, sendo que neste ultimo necessrio encontrar o ascendente
comum e descer ao parente que se busca.
Entretanto, necessria se faz a observao de que parentesco no se confunde com
famlia, ainda que seja radicada nela as suas referencias, pois delimita a aquisio,
o exerccio e o impedimento dos mais variados direitos, mesmo dentro do direito
pblico (LBO, 2011, p. 205).
3.2.1 Modalidades de Parentesco
O parentesco permite outra modalidade de classificao, que derivada da
diferenciao quanto a sua natureza. A lei que rege a sociedade atual, no seu artigo
1.593, permite trs distines possveis, que so o parentesco natural, o parentesco
civil e o parentesco por afinidade, que ser amplamente exposto e discutido na parte
que segue.
Entretanto, cabe salientar que essa classificao no pode, e no tem a finalidade
de reconhecer diferentes direitos, qualificaes ou diferenas de tratamento entre as
modalidades de parentesco, sob o prisma do principio da igualdade, onde existe a
clara e correta proibio da discriminao. A seguir, ento, como forma meramente
organizacional para facilitar o estudo e entendimento, d-se sequencia s definies
abaixo.
O parentesco natural, como o prprio nome permite deduzir, aquele decorrente
dos vnculos consanguneos, sendo unidos pela carga gentica, podendo ser fruto
de relaes sexuais ou tcnicas de reproduo assistida, sem quaisquer
diferenciaes. fundado nas relaes de sangue existentes entre duas pessoas
quando uma descende da outra ou ambas de um antepassado ou tronco familiar
comum, cujo liame natural diferente daquele que forma a entidade familiar atravs
do casamento, por exemplo. (MADALENO, 2008, p.472).
Aqui j possvel identificar, a ttulo exemplificativo para facilitar o entendimento,
como o direito de famlia mutvel. Quando comparamos o conceito supracitado,
que j teve status de superioridade em relao aos demais e que hoje j no goza
desse privilgio. Quando comparado, por exemplo, com o Direito Romano,
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percebemos que este conceito acompanhou de perto as mudanas ao longo dos
anos. Na Roma antiga, o conceito de consanguinidade no possua tanta
importncia, pois naquele tempo o conceito de famlia englobava, de forma
preponderante, os liames civil e religioso. A base familiar era feita por aqueles que
estavam sob o ptrio poder da mesma pessoa, sendo indispensvel entre eles o
lao de culto.
O vinculo conhecido como Agnao no era derivado da consanguinidade, sendo
reconhecido pelo culto e no pelo nascimento, passando este a ganhar fora a partir
do enfraquecimento da religio. (VENOSA, 2015, p.235-237).
O parentesco por afinidade , logicamente, estabelecido por uma relao de afeto.
Atravs deste parentesco sero firmados liames vinculativos entre cnjuges ou
companheiros juntamente com seus respectivos parentes, naturais ou civis, com
limitao fixada nos ascendentes, nos descendentes e nos irmos do cnjuge ou
companheiro, extinguindo-se quando ocorre a anulao, o divrcio ou a morte de um
dos cnjuges.
de suma importncia, a essa altura, afirmar que essa regra no absoluta,
comportando uma exceo quanto linha reta, referente ao sogro, sogra, enteado
ou enteada, a afinidade jamais se extinguir por conta do da dissoluo do
casamento ou da unio estvel. Deve-se atentar ao fato de que marido e mulher e
companheiros, inclusive homoafetivos, no so parentes entre si, tendo seu vinculo
estabelecido em decorrncia da convivncia ou conjugalidade.
Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p. 529-530), a
afinidade, ento, depende da celebrao de um casamento ou da constituio de
uma unio estvel. Identifica que no h problemas quanto ao casamento, pois o
inicio da afetividade ocorre com a sua celebrao, que possui trs finalidades gerais,
que so a estabilidade do sistema das relaes sociais, seguido da manuteno
patrimonial com a sua posterior sucesso e a criao de direitos e deveres
recprocos limitados. Quanto unio estvel, se torna um pouco mais trabalhoso,
pois difcil a definio precisa do estabelecimento da afinidade, sustentando, de
forma concreta e serena, que estabelecida a convivncia more uxrio, possuindo a
inteno de viver como se fossem casados, comearo a fluir de forma automtica
os efeitos desse tipo de parentesco.
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Corroborando com o tema, Silvio de Salvo Venosa (2015, p. 237-239) traz que por
ser tratar de uma relao de fato, as unies estveis sem casamento tornam as
relaes de parentesco confusas e duvidosas, pois essa declarao da existncia de
um lao depende, em regra, das partes implicadas. Porem, essa relao no pode
deixar de ser considerada em todos os campos jurdicos, embora possua tais
dificuldades na sua caracterizao.
Faz-se mister, ainda, trazer lume a norma que reconhece a possibilidade de
reconhecimento da unio estvel mesmo entre aqueles que no esto morando na
mesma casa, norma esta sumulada pelo Supremo Tribunal Federal na smula de
numero 382:
STF, Smula 382: A vida em comum sob o mesmo teto, more uxrio, no indispensvel caracterizao do concubinato.
Sobre esse tema, o Cdigo Civil vigente estabelece, verbis:
Artigo 1.595: Cada cnjuge ou companheiro aliado aos parentes do outro pelo vnculo da afinidade. 1o O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmos do cnjuge ou companheiro. 2o Na linha reta, a afinidade no se extingue com a dissoluo do casamento ou da unio estvel.
No h como se aplicar a estabilizao da afinidade no casamento putativo, que
aquele no qual se verifica um vicio posterior sua celebrao, suscetvel de
anulao, pois, mesmo verificando-se a presena de boa-f dos cnjuges, os efeitos
desse casamento no alcanaro terceiros, sendo limitado a eles mesmos e prole,
entendimento este expressamente exposto no Cdigo Civil:
Art. 1561. Embora anulvel ou mesmo nulo, se contrado de boa-f por ambos os cnjuges, o casamento, em relao a estes como aos filhos, produz todos os efeitos at o dia da sentena anulatria.
1 Se um dos cnjuges estava de boa-f ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis s a ele e aos filhos aproveitaro. 2 Se ambos os cnjuges estavam de m-f ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis s aos filhos aproveitaro.
A ltima modalidade de classificao quanto natureza o parentesco civil. O
Cdigo Civil de 1916, em seu artigo 336, afirmava que esta forma de parentesco era
unicamente firmada atravs da adoo, entre adotante e adotado. Como sabido
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que o direito, em regra, busca acompanhar o desenvolvimento da sociedade, tanto
na parte cultural como nos princpios e costumes, natural se tornou a alterao deste
dispositivo frente s novas necessidades e novos valores que foram surgindo.
Nasce ento, com o artigo 1593 do Cdigo Civil de 2002, norma segundo a qual
expressa que o parentesco se d por consanguinidade ou qualquer outra origem,
trazendo consigo novas possibilidades.
A acepo desse termo permite, a partir de ento, concluir que o parentesco civil
no ser decorrente apenas da adoo, sendo que a doutrina e jurisprudncia
admitem mais dois tipos que se enquadram nessa definio. A primeira aquela que
decorre da reproduo heterloga, ou seja, aquela que utiliza material gentico de
terceiro. A segunda tem embasamento na parentalidade socioafetiva, na posse de
estado de filhos e no vinculo social de afeto (TARTUCE, 2015, p. 1188).
A interpretao do artigo 1.593 do Cdigo Civil de 2002 identifica a necessidade de
um conceito mais amplo de parentesco onde, diante de uma perspectiva
multidisciplinar, percebe-se a relevncia do afeto, consentimento e responsabilidade,
dando-se forma ao parentesco socioafetivo.
Esse tipo de parentesco, que no vai se enquadrar nas definies de parentesco
natural, mas sim resultante da socioafetividade pura, sendo esse perfil consensual e
a vontade mtua constante entre as partes, o amor, carinho que hoje despontam
como principal fator chave para a formao do ncleo familiar, possuindo grande
relevncia nas decises tomadas hoje pelo judicirio. (GAGLIANO E PAMPLONA
FILHO, 2011, p. 646).
3.3 CONCEITO DE FILIAO
A mais importante relao de parentesco , sem duvida, a filiao e dela vo se
estruturar todas as regras sobre parentesco consanguneo. um dos meios de
formao dos ncleos familiares e da realizao da personalidade humana.
Segundo Silvio de Salvo Venosa (2015, p. 245-248), na acepo jurdica, a filiao
um fato jurdico que tem como sujeitos os pais e filhos, compreendendo todas as
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suas relaes, sejam elas constitutivas, modificativas ou extintivas, das quais se
desenvolvem diversos efeitos.
Na concepo de Diogo Leite de Campos (2010, p. 316) quando se trata de filiao,
est-se adentrando a zona da liberdade, dos direitos da personalidade, onde todo
ser humano tem direito a procriar ou assumir um filho, tratando-se de uma faculdade
de cada indivduo de se realizar como humano e prosseguir a sua felicidade, a
felicidade do seu meio familiar. Por vezes a filiao no vai decorrer da
consanguinidade, restando igualmente possvel advir de uma relao de
convivncia, de afeto, possuindo uma importncia igual ou, em alguns casos,
superior quela gentica.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015, p. 543) definem que a
filiao uma relao de parentesco estabelecida entre pessoas que esto no
primeiro grau, em linha reta entre uma pessoa e aqueles que foram os seus
genitores ou que a acolheram, criaram, baseando-se no amor, afeto, carinho,
procurando sempre o seu melhor desenvolvimento, seu bem-estar e realizao
pessoal.
Corroborando com tal definio, segue Silvio Rodrigues (2002, p.319), propondo um
entendimento de filiao como uma relao de parentesco, em primeiro grau e em
linha reta, que liga uma pessoa quelas que a geraram ou a receberem como se a
tivessem gerado.
Eduardo A. Zannoni, doutrinador argentino especializado na rea, citado por
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015, p. 544) traz a definio de
filiao como o conjunto de relaes, determinadas pela paternidade e maternidade,
vinculando os pais e filhos.
Para Arnoldo Wald e Priscila M. P. Corra da Fonseca (2013, p. 304-305), seguindo
a linha de raciocnio j exposta neste trabalho, sob a luz da Constituio Federal de
1988, em seu artigo 227, paragrafo 6, este probe qualquer discriminao entre
filhos, abrangendo quaisquer das possibilidades de filiao possveis. Porm, ainda
h uma diferenciao no que tange queles filhos nascidos na constncia do
matrimonio e aqueles que no esto nessa condio quanto presuno de
paternidade. Os artigos 1.597 e 1.598 so a prova disso. Sendo assim, apesar da
filiao, qualquer que seja, no alterar os direitos da prole, quele concebido sob a
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gide do casamento ser conferida a presuno de paternidade do marido da
genitora.
Em suma, so trs os critrios de determinao da filiao: o primeiro o critrio
jurdico ou da presuno legal onde o legislador, no cdigo civil, faz algumas
presunes; o segundo critrio biolgico, decorrente do vnculo gentico, da
consanguinidade; por ultimo, o terceiro o critrio socioafetivo, que construdo no
cotidiano, sendo baseado no afeto, no melhor interesse da criana, na realizao
como pessoa e no principio basilar da dignidade da pessoa humana.
3.4 A FILIAO BIOLGICA
A filiao biolgica definida pelo vinculo sanguneo, ou seja, estabelecida pela
ligao gentica entre os sujeitos da relao, nesse caso, pais e filhos. O critrio
definidor para a descoberta da origem gentica de um indivduo o exame de DNA,
um grande avano para a cincia e responsvel por garantir a veracidade dessa
condio. A verdade alcanada por esse exame to satisfatria a ponto do
Superior Tribunal de Justia, na sua smula de nmero 301, afirmar que o pai que
se nega a se submeter ao exame de DNA induz presuno juris tantum de
paternidade.
Ensina Fabio Ulhoa Coelho (2011, p. 167) que a filiao biolgica pode ser natural
ou no. Na filiao biolgica natural o filho concebido numa relao sexual entre
os pais, e na filiao biolgica no natural concebido em decorrncia do emprego
de tcnica de fertilizao assistida.
Acerca da fertilizao assistida, o autor Carlos Alberto Ferreira Pinto (2009) leciona:
As principais tcnicas de reproduo assistida podem ser divididas em grupos: a inseminao artificial homologa ou heterloga [...] Na inseminao artificial, tcnica mais simples e antiga, na qual a fecundao se da dentro do corpo da mulher, temos tcnicas de reproduo assistida homologa e heterloga. A reproduo assistida homloga aquela na qual o material gentico empregado proveniente do casal interessado na reproduo. J a reproduo assistida heterloga aquela na qual h a impossibilidade de utilizar o seu material gentico, e nesse caso necessria a utilizao de gametas de terceiros (doadores) para que ocorra a reproduo.
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Sintetizando, a inseminao homologa pressupe que a mulher seja casada ou
esteja em unio estvel e que o smen utilizado seja fornecido pelo cnjuge ou
companheiro, sendo utilizada quando o casal enfrenta dificuldades quanto a
fecundao natural atravs de relaes sexuais. A heterloga aquela em que o
smen de um doador que no o marido/companheiro em decorrncia de casos de
esterilidade do marido, incompatibilidade do fator RH, etc e por conta disso, com
frequncia, se recorre aos bancos de esperma, onde os doadores no so e no
devem ser conhecidos. (VENOSA, 2015, p. 263)
Ao tratar de filiao biolgica lato sensu, cabe salientar que essa uma relao
jurdica estabelecida pelo curso natural da vida, obrigatria, que afeta os envolvidos
e toda a sociedade ao redor, pois essa verdade biolgica possui, ainda, um
significado muito forte perante a sociedade. Porm, nos dias atuais, no h como
esta prevalecer a todo o momento. O direito de conhecer sua origem gentica um
direito fundamental, relativo ao direito de personalidade. Ento, o papel do exame de
DNA revelar essa verdade, sem, no entanto, atestar nem impor uma convivncia
relacional entre as partes. No haver a imposio do verdadeiro sentido de
maternidade e paternidade.
Nesse sentido Thbata Fernanda Suzigan (2015, p. 01) aduz que de um lado existe
a verdade biolgica, facilmente comprovada com um exame de DNA, que demonstra
a ligao biolgica entre duas pessoas, e, de outro lado, h o estado de filiao, que
decorre do convvio dirio e do cotidiano vivido entre pais e filho, que constitui o
fundamento essencial da famlia, relaes fundadas no amor, no carinho e, portanto,
de mais valor, pois so relaes voluntrias, que no dependem de um laudo
pericial para serem provadas. nesse contexto que surge a importncia de abordar
a relevante temtica da filiao socioafetiva, que possui fundamental importncia no
campo da famlia.
3.5. FILIAO SOCIOAFETIVA E A DEFINIO DE CRITRIOS PARA O SEU RECONHECIMENTO
A essa altura, aps longo desenvolvimento deste projeto, resta claro que com todas
as evolues atravessadas pela sociedade juntamente com o direito e, em especial,
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o direito de famlia, a fora da afetividade no pode ser mais contestada e sim
desenvolvida para que a sua abrangncia se expanda.
O conceito de socioafetividade ganha fora aps o advento do Cdigo Civil vigente,
o qual, em seu artigo 1.593, ao usar a expresso outra origem, introduz ampla e
extensiva interpretao acerca desse conceito. Rodrigo da Cunha Pereira (2012, p.
215) exalta tambm a importncia do artigo 1.597 do mesmo Cdigo, a partir do
momento em que foi admitida a presuno de paternidade de filho advindo de
reproduo artificial heterloga, desprezando-se o vnculo biolgico e,
consequentemente, privilegiando-se o vnculo afetivo em decorrncia da autorizao
do pai, garantindo a ele todas as responsabilidades inerentes.
Ento, a filiao socioafetiva aquela que no advm do vnculo biolgico, mas sim
do vnculo afetivo, do ato de vontade, respeito recproco e do amor construdo ao
longo do tempo, dia aps dia, com base no afeto, independentemente da
consanginidade. Funda-se na clausula geral de tutela da personalidade humana,
salvaguardando a filiao como elemento fundamental para a formao da
identidade da criana e formao da sua personalidade.
Julie Cristine Delinski, citada por Rolf Madaleno (2013,p.487), identifica essa nova
estrutura da famlia brasileira que passa a dar maior importncia aos laos afetivos,
e aduz j no ser suficiente a descendncia gentica, ou civil, sendo fundamental
para a famlia atual a integrao dos pais e filhos atravs do sublime sentimento de
afeio e afirma que a paternidade e a maternidade possuem um significado mais
profundo do que a verdade biolgica, onde o zelo, o amor filial e a natural dedicao
ao filho revelam uma verdade efetiva.
Nathalia Gildo (2016, p.01) relaciona diretamente com princpios:
O princpio da afetividade est relacionado com a convivncia familiar e com o princpio da igualdade entre os filhos, constitucionalmente assegurado. A filiao evolui do determinismo biolgico para o afetivo, ao passo que, as inmeras relaes existentes, visam uniformemente o bem-estar pessoal. Embora implcito na Constituio, apresenta-se como dever jurdico, presumido nas relaes entre pais e filhos. O afeto, em si, um sentimento voluntrio, desprovido de interesses pessoais e materiais, inerente ao convvio parental, constituindo o vnculo familiar.
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Insista-se que o que vai garantir o cumprimento das funes parentais no a
semelhana e origem gentica mas sim o cuidado e zelo dedicados aos filhos. A
filiao biolgica no garantia de uma experincia de paternidade, de maternidade
ou de filiao verdadeira e nem a sua presena garantia de que o individuo se
estruturar como sujeito. De outra forma, o cumprimento de funes maternas e
paternas pode garantir um desenvolvimento saudvel pessoa. Portanto, a verdade
biolgica se torna insuficiente, pois famlia representa muito mais do que um dado
natural ou gentico, sendo, na sociedade atual, algo cultural, e com isso a filiao
abrange muito mais do que a semelhana entre os DNA (PEREIRA, 2012, p. 212-
217).
Na tentativa de estabelecer critrios, a doutrina traz tona a necessidade de
reconhecimento de trs requisitos bsicos para a identificao da filiao
socioafetiva, que so o reputatio, nominatio e o tractatio, conceitos estes ligados a
condio de posse do estado de filho. Estes trs conceitos garantem a experincia
de famlia e o pressuposto do afeto. A filiao socioafetiva decorre da posse do
estado de filho e corresponde verdade aparente.
3.5.1 Da Posse de Estado de Filho
Ao tratar deste tema, infelizmente, o Cdigo Civil vigente no contempla
expressamente o entendimento quanto a posse de estado de filho, estabelecendo
apenas no seu artigo de nmero 1.605, ao colocar que poder se provar a filiao
por qualquer meio de prova admitido em direito quando existirem veementes
presunes resultantes de fatos j certos, oferece uma margem de interpretao que
ficar a cargo dos doutrinadores do direito brasileiro e dos magistrados em cada
caso concreto. No entanto, muitos desses consideram que tal instituto j est
integrado ao nosso ordenamento jurdico de forma implcita.
A origem gentica comprovada pelo exame de DNA no o nico meio possvel
para afirmar a existncia de uma relao paterno-filial. Essa relao, esse vnculo
pode ser tambm demonstrado no cotidiano, nas atitudes do dia-a-dia, com a
presena da afetividade. a chamada dessacralizao do DNA, afirmando que
este no um meio vinculatrio. a partir de ento que surge o conhecimento da
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posse do estado de filho. O propsito da posse do estado de filho provar a
existncia de uma relao filiatria permitindo que o filho que convive
cotidianamente com o seu pai, mesmo que esteja registrado, demonstrando todos os
vnculos que um filho possuiria para com o seu genitor, podendo obter todas as
consequncias jurdicas dessa condio (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p.548)
Paulo Lbo (2011, p.237) afirma que a aparncia do estado de filiao revela-se
pela convivncia familiar e pelo efetivo cumprimento pelos pais dos deveres de
guarda, educao e sustento do filho, de modo similar ao comportamento que
caracterstico de outros pais e filhos que vivem em sociedade. a prova da filiao
pela situao de fato.
Caio Mario da Silva Pereira (2010, p. 375-376) coaduna com o acima exposto e diz
que a paternidade socioafetiva, sob a noo da posse de estado de filho, no se
funda no nascimento, mas sim num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da
afetividade. A posse do estado de filho uma posse anloga posse das coisas.
Longe de tratar uma pessoa como um objeto, significa que o individuo esta de posse
de uma situao equivalente de filho. Para a fixao desta posse, faz-se
necessrio a presena de trs requisitos concomitantemente: nominatio, tractatio e
reputatio.
De forma inicial, ao se falar em tractatio, remete-se a tratamento. E esse ponto que
importante. Para a caracterizao desse requisito exigido que se prove que o pai
concedia quele que se quer saber se filho ou no, tratamento como se filho fosse.
O requisito acima tratado, o tratamento, segundo Eduardo dos Santos (2003, p. 157-
158):
Depende da personalidade de cada pessoa, do seu temperamento e carter, da sua categoria e condio social, situao econmica e familiar, grau de educao e instruo e hbitos, isso porque se pode chamar algum de filho sem lhe dar, entretanto, o tratamento de filho. Para o jurista, o tratamento de filho (des)velado atravs de duas condutas: a primeira, pelos atos de proteo e amparo econmico (sustento, vesturio, educao ou colocao); a segunda, pela afetividade por parte dos pretensos pais (carinho, ternura, desvelo, amor, respeito). [...] No basta a prtica de um ato isolado, com sentido incerto, isto , no so suficientes meros fatos episdicos, sem relevncia. Exige-se reiterao, regularidade e seqncia. Os atos equvocos, clandestinos, espordicos, avulsos e isolados no revelam tratamento.
Em sequncia, cabe tratar acerca da reputatio, que a reputao social daquele
individuo, daquela relao mantida entre os envolvidos. O tratamento que se dava a
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parte era conhecido de maneira pblica, de forma notria na sociedade. Essa fama
a exteriorizao de uma realidade para o pblico, devendo haver convico acerta
dessa relao paterno-filial existente. Nesse momento no ser suficiente o fato de
algum ter apenas escutado um boato ou situao similar, sendo necessrio o(s)
terceiro(s) ter (terem) vivenciado de fato algum momento de afeto e convivncia
entre pai e filho (TOMASZEWSKI e LEITO, 2007, p.15)
Por fim, nominatio a utilizao do nome de famlia. Porm, no se exige que na
posse do estado de filho se utilize do nome familiar como um fator necessrio para o
seu reconhecimento e aceitao no caso concreto. Portanto, esse um requisito
que possui uma importncia pequena ou at nenhuma importncia, visto que na
sociedade brasileira, em regra, no convvio dirio, o individuo identificado pelo seu
pr-nome, no sendo possvel ao individuo ostentar de maneira clara e publica o
nome do seu pai afetivo, no comprometendo em nada no processo de acolhimento
da posse do estado de filho (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 548-549).
De acordo com o entendimento dos mesmos autores supracitados, o papel
preponderante da posse do estado de filho conferir juridicidade a uma realidade
social, pessoal e afetiva induvidosa, conferindo mais direito vida e mais vida ao
direito. Nessa mesma linha, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2011,
p. 632-634) concluem que o reconhecimento de novas possibilidades de constituio
das famlias e novas modalidades de filiao, se refletem em um Direito de Famlia
mais humano e solidrio.
A jurisprudncia atual corrobora com tal entendimento, como se colhe do v. acrdo
proferido na Apelao Cvel APC: 20150510068078, pela colenda 1 Turma Cvel
do Tribunal de Justia do Distrito Federal, que tinha por objeto alterar a reconhecida
existncia de paternidade socioafetiva, in verbis:
APELAO CVEL. DIREITO DE FAMLIA. AO DE RECONHECIMENTO DE FILIAO SOCIOAFETIVA POST MORTEM. INVESTIGAO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM. FILHA DE CRIAO. EXISTNCIA DE PAI E ME REGISTRAL/BIOLGICO. POSSE DO ESTADO DE FILHO. EXISTNCIA. NATURAL TRATAMENTO DA AUTORA COMO FILHA. APELAO CONHECIDA E NO PROVIDA. SENTENA MANTIDA. 1. Pretende a parte apelante a modificao da r. sentena da instncia a quo para que se reforme a declarao da existncia de paternidade socioafetiva entre a apelada e os falecidos genitores dos apelantes, e determinao de supresso da paternidade biolgica e registral, bem como a alterao do nome da apelada para contemplar o
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patronmico dos pretendidos pais afetivos, com o que poderia habilitar-se como herdeira dos de cujus; 2. Diz respeito a quaestio juris aqui debatida chamada paternidade socioafetiva, conceito relativamente recente na doutrina e jurisprudncia ptrias, segundo o qual, apartando-se da filiao meramente biolgica ou natural, e mesmo da filiao civil, pela adoo regular, tem-se o desenvolvimento da relao parental de filiao pelos laos afetivos que se podem estabelecer entre pessoas que, entre si e socialmente, se apresentem e se comportem como pai/me e filho; 3. A jurisprudncia, mormente na Corte Superior de Justia, j consagrou o entendimento quanto plena possibilidade e validade do estabelecimento de paternidade/maternidade socioafetiva. 4. A consagrao da chamada paternidade socioafetiva, na doutrina e na jurisprudncia, no pode representar a transformao do afeto e do amor desinteressado em fundamento para a banalizao da relao parental de filiao no-biolgica, porque a efetiva existncia desta, antes de tudo, h de decorrer de um ato de vontade, de uma manifesta inteno de estabelecimento da paternidade ancorada na densidade do sentimento de afeio e de amor pelo outro ente humano.[...] 6. A posse do estado de filho, condio que caracteriza a filiao socioafetiva, reclama, para o seu reconhecimento, de slida comprovao que a distinga de outras situaes de mero auxilo econmico, ou mesmo psicolgico. Rolf Madaleno cita o nomen, a tractacio e a fama como fatores caracterizadores da posse do estado de filho (REsp 1189663/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/09/2011, DJe 15/09/2011); 7. O que se comprovou nos autos foi o lao sentimental socioafetivo entre a apelada e os de cujus de forma declarada e pblica. Segundo se extrai dos depoimentos das testemunhas, a apelada era tratada publicamente como filha de casal, e os chamava de me e pai. dizer que havia, quer na relao privada, quer socialmente, a caracterizao de uma verdadeira relao paterno-filial; 8. Recurso conhecido e no provido. Sentena mantida integralmente. TJ-DF - APC: 20150510068078, Relator: ROMULO DE ARAUJO MENDES, Data de Julgamento: 02/09/2015, 1 Turma Cvel, Data de Publicao: Publicado no DJE : 11/09/2015 . Pg.: 103)
Ainda em anlise desse instituto jurdico, resta o questionamento quanto a se o fator
tempo de relacionamento possui alguma influncia nas decises que tenham por
objeto o reconhecimento da posse de estado de filho; se haveria algum prazo
mnimo para esse reconhecimento.
A doutrina no aceita que um prazo seja estabelecido, pois necessria a anlise
de cada caso de forma singular, sendo cada caso nico. Assim, o magistrado ter
discricionariedade para analisar fatos e provas que lhe venham a ser apresentados.
Em concluso, Adauto de Almeida Tomaszewski e Manuela Nishida Leito (2007,
p.16), expem que na anlise ftica desse instituto devem ser sopesados o amor e a
preocupao entregues ao filho, o ambiente saudvel que permita o pleno
desenvolvimento, fsica e psicologicamente, do mesmo, enfim, todas as condies
pessoais e materiais que permitam se alcanar o que garantido pelo principio do
melhor interesse da criana.
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3.5.2 Da (Im)Possibilidade de Revogao do Vnculo Socioafetivo
Foi visto durante todo este trabalho que o vnculo estabelecido com os pais,
principalmente quando fundado na socioafetividade, molda o carter do filho, sua
personalidade e os mais diversos aspectos da sua vida. Partindo da idia de que a
relao paternal molda a personalidade e a identidade do filho, eventual revogao
do estado de filiao desencadearia adversas consequncias, tanto de ordem
patrimonial, como tambm, e principalmente, de ordem emocional e psicolgica.
Afinal, alm de a desconstituio influir em alguns direitos e deveres, a mesma
desvincularia o menor dos seus pais e parentes colaterais, o que sem dvida
ocasionaria drsticas mudanas psicolgicas nesses indivduos. Dessa maneira,
considerar a possibilidade da retirada do menor do seio da sua famlia, dos cuidados
constantes dos seus pais, admitir que a vida do menor venha a desmoronar.
(SUZIGAN, 2015, p. 01)
Entendem Cristiano Chaves e Farias e Nelson Rosenvald (2015, p.549-550), que
quando se esta estabelecida a filiao baseada na posse do estado de filho,
caracterizando a paternidade/maternidade socioafetiva, no ser possvel a
retratao ou revogao por vontade unilateral ou mesmo bilateral dos envolvidos.
Todos os efeitos jurdicos decorrero normalmente, de forma automtica, no se
admitindo contradita fundada em fator gentico. O vinculo afetivo, quando
reconhecidamente estabelecido, gozar da mesma proteo e valor que garantido
aos vnculos biolgicos.
O reconhecimento da socioafetividade por via judicial no ser obrigatrio para que
esses direitos se efetivem, bastando os indcios e presunes quanto existncia da
paternidade.
O Superior Tribunal de Justia entende que a identidade dessa pessoa, resgatada
pelo afeto, no pode ficar deriva em face das incertezas, instabilidades ou at
mesmo interesses meramente patrimoniais de terceiros submersos em conflitos
familiares.
o que se colhe do v. acrdo a seguir reproduzido, proferido pelo e. STJ no RESP
1059214-RS, 2008/0111832-2, in verbis:
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Ementa: DIREITO DE FAMLIA. AO NEGATRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA NEGATIVO. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IMPROCEDNCIA DO PEDIDO. 1. Em conformidade com os princpios do Cdigo Civil de 2002 e da Constituio Federal de 1988, o xito em ao negatria de paternidade depende da demonstrao, a um s tempo, da inexistncia de origem biolgica e tambm de que no tenha sido constitudo o estado de filiao, fortemente marcado pelas relaes socioafetivas e edificado na convivncia familiar. Vale dizer que a pretenso voltada impugnao da paternidade no pode prosperar, quando fundada apenas na origem gentica, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. 2. No caso, as instncias ordinrias reconheceram a paternidade socioafetiva (ou a posse do estado de filiao), desde sempre existente entre o autor e as requeridas. Assim, se a declarao realizada pelo autor por ocasio do registro foi uma inverdade no que concerne origem gentica, certamente no o foi no que toca ao desgnio de estabelecer com as ento infantes vnculos afetivos prprios do estado de filho, verdade em si bastante manuteno do registro de nascimento e ao afastamento da alegao de falsidade ou erro. 3. Recurso especial no provido.
O egrgio Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul corrobora com a mesma linha
de pensamento, verbis:
APELAO CVEL. AO NEGATRIA DE PATERNIDADE. IRREVOGABILIDADE. PREVALNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Da apelao: Restou comprovado nos autos que o recorrente no o pai biolgico do apelado, mas os estudos sociais constataram a existncia de vnculo socioafetivo. A relao jurdica de filiao foi construda tambm a partir de laos afetivos e de solidariedade. O mero arrependimento no constitui razo capaz de revogar ato de reconhecimento da paternidade, efetuado modo espontneo, que irrevogvel. Do Agravo Retido: A paternidade apreciada por diversos meios de prova, sendo incabvel a percia postulada, inclusive, porque seu resultado no seria suficiente para afastar o relacionamento paterno filial que se instaurou no curso do tempo. Apelo e agravo retido desprovidos. (Apelao Cvel N 70047722079, Stima Cmara Cvel, Tribunal de Justia do RS, Relator: Munira Hanna, Julgado em 22/05/2013)
Sobre esse posicionamento, Thbata Fernanda Suzigan (2015, p. 01) entende que
se o interesse da criana for erguido ao patamar de princpio basilar, nem mesmo o
rompimento da convivncia tem o condo de afastar o vnculo criado, e o
reconhecimento da paternidade/maternidade socioafetiva produz tanto efeitos
patrimoniais como pessoais, gerando o chamado parentesco socioafetivo, para
todos os fins de direito, aplicando-se o princpio da solidariedade sob o fundamento
da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criana ou adolescente.
Seguindo a mesma linha de pensamento, Cristiano Chaves de Faria e Nelson
Rosenvald (2015, p. 594) expem ainda que:
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O lao socioafetivo depende, por obvio, da comprovao da convivncia respeitosa, publica e firmemente estabelecida. Todavia, no preciso que o afeto esteja presente no instante em que discutida a filiao em juzo. No raro, quando se chega s instancias judiciais, exatamente porque o afeto cessou, desapareceu, por diferentes motivos (no sendo razovel discuti-los). O importante provar que o afeto esteve presente durante a convivncia, que o afeto foi o elo que entrelaou aquelas pessoas ao longo de suas existncias. Equivale a dizer: que a personalidade do filho foi formada sobre aquele vinculo afetivo, mesmo que, naquele instante, no exista mais. Aqui calha, com preciso, a adoo brasileira, em que uma pessoa registra como seu filho um estranho e, depois de anos de afeto e de um cotidiano como pai e filho, quer negar a relao filiatoria por algum motivo. Mesmo cessado o afeto em determinado momento, nesse caso, a filiao se estabeleceu pelo critrio afetivo, que deve ser reconhecida pelo juiz.
A impossibilidade da revogao do vnculo socioafetivo reconhecido a posio
doutrinria e jurisprudencial preponderante, em regra, no ordenamento jurdico
brasileiro.
Mas convm ao presente estudo proceder-se uma rpida analise comparativa entre
os institutos da adoo e o da filiao socioafetiva no que concerne possibilidade
de revogao dos mesmos.
No h duvidas de que aps o reconhecimento jurdico do vnculo socioafetivo
surgem inmeras consequncias e responsabilidades para o pai em relao ao seu
filho e efeitos jurdicos decorrentes desse reconhecimento. Segundo leciona Adriana
Karlla de Lima (2011, p.05), os efeitos jurdicos da socioafetividade so idnticos aos
efeitos gerados pela adoo, que esto garantidos no Estatuto da Criana e do
Adolescente em seu artigo 39, que so: a) a declarao do estado de filho afetivo; b)
a feitura ou a alterao do registro civil de nascimento; c) a adoo do sobrenome
dos pais afetivos; d) as relaes de parentesco com os parentes dos pais afetivos; e)
a irrevogabilidade da paternidade e da maternidade sociolgicos; f) a herana entre
pais, filhos e parentes sociolgicos; g) o poder familiar; h) a guarda e o sustento do
filho ou pagamento de alimentos; i) o direito de visitas, entre outros.
Embora os efeitos jurdicos entre adoo e vinculo socioafetivo sejam iguais, como
explicitados acima, no primeiro caso pode-se admitir, de forma excepcional, a
revogao, o que, a nosso ver, no pode ocorrer no caso da filiao socioafetiva..
Com efeito, a adoo, conforme algumas decises dos nossos tribunais, quando se
configura apenas no plano legal, sem alcanar e concretizar-se no mundo ftico, no
atingindo a sua finalidade de unir adotante e adotado realmente como pai e filho, vai
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permitir a revogao desse ato, como reconhecido e decidido pelo Tribunal de
Justia do Rio Grande do Sul, na AC 70003681699, da qual foi relator o
Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, in verbis:
ADOO. REVOGAO. POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS. Tal excepcionalidade configura-se bem no caso concreto, onde o vnculo legal jamais se concretizou no plano ftico e afetivo entre adotante a adotada, uma vez que esta nunca deixou a convivncia de seus pais sangneos. Adoo que nunca atingiu sua finalidade de insero da menor como filha da adotante.DERAM PROVIMENTO, POR MAIORIA. (Apelao Cvel N 70003681699, Stima Cmara Cvel, Tribunal de Justia do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 27/02/2002
Em outra deciso muito mais prxima proferida pelo Tribunal de Justia de So
Paulo, foi revogada a adoo de uma mulher pela falta de vinculo socioafetivo, uma
vez que a adotada nunca havia se sentido como filha do adotante.
O Instituto Brasileiro de Direito de Famlia, em consonncia com essa deciso,
tambm entende que possvel a revogao da adoo nos casos em que no h
afetividade, portanto no retratando o registro civil o que ocorre na realidade, alm
da adoo, no caso, no constituir de forma efetiva nenhum beneficio ao adotando,
como ressalta o artigo 1.625 do Cdigo Civil.
Nas palavras da Defensora Pblica Cludia Tannuri, membro do IBDFAM:
Acredito que a possibilidade de excluso da paternidade e revogao da adoo seja possvel em situaes excepcionais, quando inexiste qualquer vnculo afetivo entre as partes. A relao entre pai e filho pressupe a existncia da afetividade; quando ela no existe, o registro civil passa a no retratar a realidade, uma vez que inexiste paternidade biolgica ou socioafetiva. importante ressaltar ainda que o artigo 1.625 do Cdigo Civil dispe que somente ser admitida a adoo que constituir efetivo benefcio para o adotando .
Aliado a essa situao, deve-se tambm analisar se existe vontade mutua entre as
partes, valorizando os princpios da dignidade da pessoa humana, do melhor
interesse do menor e da proteo integral.
Conclui-se, portanto, que possvel a revogao da adoo, quando ausente o
pressuposto da afetividade, o que jamais ocorrer no vnculo formado unicamente
atravs da socioafetividade, onde o primeiro requisito preenchido foi a vontade, do
carinho recproco, do sentimento de pertencimento a um mesmo ncleo familiar, no
cabendo, portanto, a desconstituio ou revogao deste vnculo socioafetivamente
formado.
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3.6 FILIAO BIOLGICA X FILIAO SOCIOAFETIVA
Da anlise realizada a respeito dos conceitos de filiao biolgica e filiao
socioafetiva, quando se passa a tratar da sua aplicao na resoluo de conflitos no
mundo ftico, surge o questionamento de uma possvel sobreposio, da existncia
ou no de uma hierarquia entre estes.
Por todo o aspecto valorativo dado socioafetividade e os princpios regentes do
direito de famlia, pode-se chegar a concluses divergentes, o que merece
cuidadoso estudo.
Quando se falou h pouco acerca da impossibilidade de revogao do vnculo
socioafetivo, no se pode entender que este sempre vai prevalecer sobre a filiao
biolgica.
O que se quer impedir com esse instituto que uma reconhecida filiao resultante
de uma relao socioafetiva, relao essa que foi fundada sobre os referidos
preceitos, no pode se romper pela simples falta de consanguinidade ou de registro,
em nada impedindo que o filho venha a buscar o reconhecimento da sua origem
biolgica de forma concomitante, sem a prevalncia ou extino de alguma das
formas ora tratadas.
At o advento da Constituio Federal de 1988, at quando o vinculo biolgico era
absoluto sobre o afetivo, no havia igualdade entre filhos e a famlia era definida
apenas com o casamento.
Com a Carta Magna de 1988, houve a insero de novos princpios e valores que se
adequaram aos anseios da sociedade, que se fundam na felicidade recproca,
havendo a desbiologizao da filiao e a expanso das formas de vinculo paterno-
filial forjado na socioafetividade.
Nesse diapaso, Paulo Luiz Netto Lbo (2010, p.62) sintetiza tal evoluo baseada
nos novos princpios constitucionais, como o melhor interesse da criana e do
adolescente:
O princpio inverte a ordem de prioridade: antes no conflito entre a filiao biolgica e a no-biolgica ou socioafetiva, resultante de posse de estado de filiao, a prtica do direito tendia para a primeira, enxergando o interesse dos pais biolgicos como determinantes, e raramente contemplando os do filho. De certa forma, condizia com a ideia de poder
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dos pais sobre os filhos e da hegemonia da consanginidade-legitimidade. Menos que sujeito, o filho era objeto de disputa. O principio impe a predominncia do interesse do filho, que nortear o julgador, o qual, ante o caso concreto, decidir se a realizao pessoal do menor estar assegurada entre os pais biolgicos ou entre os pais no biolgicos. De toda forma, deve ser ponderada a convivncia familiar, constitutiva da posse do estado de filiao, pois ela prioridade absoluta da criana e do adolescente.
Ento, com o passar dos anos e o aumento de aes envolvendo esses institutos, -
filiao biolgica e filiao socioafetiva - no desenvolvimento do posicionamento
doutrinrio cresceu a ideia de que no h uma formula estabelecida de qual dos
tipos de filiao ir prevalecer no caso concreto.
Cristiano Chaves de