o Realismo

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Os Maias, Romance Pedagógico? Propriamente a acção d' Os Maias, um círculo perfeito, consiste numa dupla experiência e num duplo malogro: malogro no amor (tema principal); malogro nas ambições intelectuais (tema secundário). No que diz respeito ao segundo tema, a experiência de Carlos é representativa, tem um sentido colectivo. Falhando nos seus projectos juvenis de trabalhar, de ser útil ao país, de o fazer ressurgir, Carlos tipifica os intelectuais da sua geração - isto é, mais ou menos, os da geração de 70 . Resta saber até que ponto, pelo amor que o arrasta ao incesto, além de simbolizar o Homem fulminado pelo Destino ele é expoente duma classe social. Quem defende esta ideia é António Coimbra Martins, vendo no incesto uma parábola: «o incesto d' Os Maias», escreve Coimbra Martins, «constitui, no nosso entender, uma crítica à classe dirigente portuguesa do tempo do liberalismo» 5 . O narcisismo dessa classe estaria representado pelo amor entre irmãos. Sob forma alegórica, Eça denunciaria, pois, a esterilidade duma élite. Infelizmente esta original interpretação, que daria a Os Maias uma mais densa unidade, parece-me um tanto forçada. Repugna-me pelo que há nela de redutor: se a admitíssemos como exclusiva, anularíamos em grande parte o que, na humanidade d' Os Maias, eu adivinho vivo e universal. A ter de adoptar, acharia preferível a tese psicológica: o incesto, expressão simbólica, através dum caso- limite, do sentimento do amor como obstáculo, tabu moral, um paraíso que esconde a perdição. Lembram-se da esmerada educação, à inglesa, que Afonso proporcionou a Carlos: ar livre, natureza, ginástica, observação directa das coisas, ausência de preconceitos, tudo norteado por um ideal de mens sana in corpore sano. Machado da Rosa classifica esta educação de «funesta»: «Carlos», observa, «não tem o mais leve traço de grandeza moral. É vítima de uma educação mais funesta que a de Pedro , porque destruiu nele os valores tradicionais de um mundo estreito, mas coerente, e roubou-lhe até o que de mais primário existe no homem civilizado: o sentido da dignidade.» 6 A opinião de Machado da Rosa vem justificar, contra Afonso da Maia, as palavras do P. e Custódio de Santa Olávia: «Esta educação faz atletas mas não faz cristãos» (p. 66). Simplesmente, de modo nenhum corresponde ao ponto de vista inculcado pelo romancista - e pelo mesmo Eça de Queirós defendido nas Farpas. Não: se soubermos ler Os Maias, Carlos não fraquejou por causa da educação recebida, mas apesar da ____________ No âmbito do estudo da obra Os Maias, de Eça de Queirós.

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Os Maias, Romance Pedaggico?Propriamente a aco d' Os Maias, um crculo perfeito, consiste numa dupla experincia e num duplo malogro: malogro no amor (tema principal); malogro nas ambies intelectuais (tema secundrio). No que diz respeito ao segundo tema, a experincia de Carlos representativa, tem um sentido colectivo. Falhando nos seus projectos juvenis de trabalhar, de ser til ao pas, de o fazer ressurgir, Carlos tipifica os intelectuais da sua gerao - isto , mais ou menos, os da gerao de 70. Resta saber at que ponto, pelo amor que o arrasta ao incesto, alm de simbolizar o Homem fulminado pelo Destino ele expoente duma classe social. Quem defende esta ideia Antnio Coimbra Martins, vendo no incesto uma parbola: o incesto d' Os Maias, escreve Coimbra Martins, constitui, no nosso entender, uma crtica classe dirigente portuguesa do tempo do liberalismo5. O narcisismo dessa classe estaria representado pelo amor entre irmos. Sob forma alegrica, Ea denunciaria, pois, a esterilidade duma lite. Infelizmente esta original interpretao, que daria a Os Maias uma mais densa unidade, parece-me um tanto forada. Repugna-me pelo que h nela de redutor: se a admitssemos como exclusiva, anularamos em grande parte o que, na humanidade d' Os Maias, eu adivinho vivo e universal. A ter de adoptar, acharia prefervel a tese psicolgica: o incesto, expresso simblica, atravs dum caso-limite, do sentimento do amor como obstculo, tabu moral, um paraso que esconde a perdio.Lembram-se da esmerada educao, inglesa, que Afonso proporcionou a Carlos: ar livre, natureza, ginstica, observao directa das coisas, ausncia de preconceitos, tudo norteado por um ideal de mens sana in corpore sano. Machado da Rosa classifica esta educao de funesta: Carlos, observa, no tem o mais leve trao de grandeza moral. vtima de uma educao mais funesta que a de Pedro, porque destruiu nele os valores tradicionais de um mundo estreito, mas coerente, e roubou-lhe at o que de mais primrio existe no homem civilizado: o sentido da dignidade.6 A opinio de Machado da Rosa vem justificar, contra Afonso da Maia, as palavras do P.e Custdio de Santa Olvia: Esta educao faz atletas mas no faz cristos (p. 66). Simplesmente, de modo nenhum corresponde ao ponto de vista inculcado pelo romancista - e pelo mesmo Ea de Queirs defendido nas Farpas. No: se soubermos ler Os Maias, Carlos no fraquejou por causa da educao recebida, mas apesar da educao recebida. Quais, portanto, os motivos da sua frustrao? Dois, basicamente: o temperamento, portuguesmente mole e apaixonado; o meio lisboeta, portuguesmente ocioso7. O romance uma pseudo-experincia de resultados pr-determinados; um homem com o temperamento de Carlos e a sua educao, colocado no meio lisboeta, posto perante as situaes que ele teve de enfrentar, reage como Carlos reagiu. A anlise dessa experincia , concomitantemente, na ptica do romancista, a anlise do caso portugus. Uma lio de desengano.Formado pelo curso de Medicina e pelo conhecimento da Europa, Carlos chega a Lisboa desejoso de estudar, de investigar, de publicar. Mas o tdio moroso do seu gabinete f-lo bocejar; do Rossio vm uma sussurrao lenta de cidade preguiosa, um ar aveludado de clima rico que envolvem Carlos numa indolncia e numa dormncia (p. 103). Alis, como o Ega, como Craft, no passa dum requintado dilettante. Talvez seja sincero, talvez no tenha j iluses quando diz Gouvarinho, sorrindo: A gua fria e a ginstica tm melhor reputao do que merecem... (p. 207). De qualquer modo, h foras, leis inexorveis, que nenhuma educao, por mais racional, consegue vencer. Neste sentido Os Maias so um romance positivista, determinista. medida que se desenrola a aco vemos que, de longe a longe, Carlos ou Ega tm assomos breves de actividade; Carlos escreve uns artigos, Ega volta ideia do cenculo, representado por uma revista que dirigisse a literatura, educasse o gosto, elevasse a poltica, fizesse a civilizao, remoasse o carunchoso Portugal... (p. 521). Logo, porm, reconhecem que no nasceram para criar civilizaes, mas para, deliciadamente, lhes colher os frutos. Tempos depois, levados pela sua imaginao de meridionais (note-se como o narrador intervm pedagogicamente), outra vez Carlos e Ega refazem entusiasmados o projecto duma revista (a revista que o prprio Ea viria a fundar); depressa, todavia, surgem dificuldades, e s uma coisa fica decidida: a casa da redaco. Devia ser mobilada luxuosamente, com sofs do consultrio de Carlos a algum bricabraque da Toca: e sobre a porta (ornada de um guarda-porto de libr) a tabuleta de verniz preto, com "Revista de Portugal" em altas letras a ouro (p. 567).Os Maias encerram um pensamento, destinam-se a fazer pensar. Com ironia grave, alertam sobre os perigos do amor-paixo, pem em dvida a justeza dos espritos fortes (pois no teve razo Vilaa ao prevenir de que as paredes do Ramalhete eram fatais?), desafiam as leis da verosimilhana, combinam positividade e transcendncia. Mas o que domina como objecto de reflexo Portugal, personagem oculta por detrs das personagens visveis. Um pas aparentemente sem remdio, um pas que as lites no so capazes de salvar. Afloram, aqui ou ali, as ideias feitas de Ea de Queirs sobre o feitio portugus. Mas o projecto global de escrever, de explicar Portugal como problema , no romance, o seu mais forte princpio de unidade, desdobrando-se nos temas centrais do Amor e do dio, abrangendo a histria dos Maias, a tragdia de Carlos e a comdia lisboeta8.____________

No mbito do estudo da obra Os Maias, de Ea de Queirs.