O Q UE É
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O QUE É. ,CULTURA?.
E OUTRAS PERGUNTAS
Sumário
Introdução…………………………………………………………………...3
O que é Cultura?.................................................................. 4
O que é Concepção Tridimensional de Cultura?....................8
Dimensão Simbólica……………………………………………8
Dimensão Cidadã………………………………………………..9
O que é Direito Autoral?...................................9
O que é a Dimensão Econômica da Cultura?........................12
O que é Indústria Cultural?.......................................13
O que é Identidade Cultural?...............................................17
Referências………………………………………………………………..20
2
Introdução
Longe de ser especialista no assunto e de pretender estabelecer
definições fechadas sobre o imenso “aglomerado” que chamamos de cultura, o
que você encontrará aqui é o esforço de reunir descrições, conceitos teóricos,
ideias e percepções particulares, mas que pretendem universalizar-se através
de seu compartilhamento.
Para isto, é necessário um primeiro passo, inseguro, talvez prematuro,
mas esperançoso e dedicado. Sempre.
Na implacável rotina dos trabalhadores da cultura de criar imagens
palavras ou sons, significados e símbolos, reflexões e percepções de mundo,
sustentar-se financeiramente, se organizar politicamente, além de ter de
reinventar-se sempre profissional e artisticamente, quase sempre não há
espaço para respirar, afastar-se e finalmente questionar quais estruturas estão
sendo mobilizadas neste processos.
Não existem respostas, mas existem perguntas. A ideia aqui é trazer
alguns conceitos e referências para que possamos fazê-las, e quem sabe,
construir, em vez de respostas, possibilidades.
3
O QUE É CULTURA?
Ao pensar em nossas práticas, enquanto público, artistas e produtores
culturais, a cultura se relaciona com a ideia de produtos artísticos como peças
teatrais, composições musicais, cinema e poesia, por exemplo. No entanto,
levando em conta a origem etimológica da palavra, ligada ao cultivo e ao cuidado,
lidamos com um conceito ainda mais amplo que se relaciona com as definições
do conceito de cultura dentro das ciências sociais e humanas, mais
especificamente ligada à antropologia.
Roque de Barros Laraia em seu livro Cultura: um conceito antropológico
apresenta os antecedentes históricos da definição de cultura que se
compreende hoje. Kultur é o termo alemão que expressava os aspectos
espirituais de um povo, sendo a língua um desses principais elementos. Na
França, a palavra Civilization era utilizada principalmente para se referir às
produções e realizações materiais de uma comunidade.
A partir dessas noções, o antropólogo Edward Tylor (1832-1917) desenvolve
o conceito de Culture, que carrega tanto os aspectos simbólicos quanto os
materiais de uma sociedade, resultando em uma das principais definições
teóricas de cultura:
“[...] é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte,
moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos
pelo homem como membro de uma sociedade.”1
Contemplando também essa perspectiva, a filósofa Marilena Chauí
identifica cultura como a forma de lidar com o ausente: é a capacidade humana
de criar símbolos, o que se manifesta em suas crenças, mitologias, história,
rituais, além de seus modos de fazer e viver, o que consiste no trabalho, nas
1 1. Edward Tylor, 1871, cap.1, p.1, apud Laraia, 1986, p.14
4
realizações materiais e na transformação da natureza. Trata-se de criar material
e simbolicamente o que ainda não existia, “de lembrar o passado, de construir o
futuro”. 2
Por que isso é importante?
Porque a partir das definições apresentadas entende-se
que cultura é parte da condição humana, do ser, estar e se
relacionar com o mundo.
A cultura não se refere a um conhecimento ou saber
específico, como se houvessem pessoas cultas ou incultas,
pessoas com cultura e pessoas sem cultura. Ela é, na verdade,
parte de todos indivíduos em todas as sociedades do mundo.
Como bem lembra Marilena Chauí, nas sociedades divididas em classes, a
cultura possui diferentes formas de se realizar, diferentes sentidos e
instrumentos, de forma que, dentro de uma mesma sociedade, os sujeitos
experienciam a cultura de formas diferentes.
O antropólogo Roque de Barros Laraia, ao sintetizar as formas pelas quais
opera a cultura, afirma que “Os indivíduos participam diferentemente de sua
cultura”, pois não existe na sociedade, seja esta qual for, a socialização completa
e ideal de um indivíduo - um sujeito não participa perfeitamente de todos os
aspectos de sua comunidade.
Outro aspecto a ser destacado sobre as diferenças no modo como opera a
cultura, mas num plano coletivo, refere-se ao processo de qualificação cultural.
Chauí constata a divisão entre cultura popular e cultura erudita, por exemplo,
onde a primeira é comumente vista como “atrasada e inferior'' e a segunda
entendida como “intelectualizada, moderna e superior”. Essas definições
refletem a diferenciação e hierarquização que legitima certas manifestações
culturais em detrimento de outras e, para além das categorizações entre cultura
2Chauí, 2018.
5
popular e erudita, podemos também questionar: o que qualifica os bens
enquanto culturais?
As categorias com as quais lidamos cotidianamente aparentam ser dadas
e inquestionáveis, no entanto, a Sociologia das Classificações destaca seu
caráter social e adquirido. Mesmo os nomes e definições que atribuímos às
coisas refletem processos de distinção que não são naturais, mas construídos e
partilhados: “A hierarquia lógica não é senão outro aspecto da hierarquia social”,
afirma o teórico francês Émile Durkheim, um dos fundadores da ciência social
moderna.
Desta forma, o que é entendido enquanto cultural ou não, popular ou
erudito, relevante ou desprezível, belo ou feio, é fruto de classificações sociais,
simbólicas e coletivas que são herdadas culturalmente. Essa herança cultural
condiciona a visão de mundo dos sujeitos e interfere até mesmo no plano
biológico, afirma Laraia.
“O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa,
os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são
assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação
de uma determinada cultura.” 3
“A cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo”4, ela
condiciona a nossa percepção sobre nós e nossos pares, mas também sobre os
outros, portanto, é muito comum utilizarmos a nossa própria lógica (ou lente)
para compreender aquilo e aqueles que são “diferentes”. Etnocentrismo é o
termo referente à tendência de enxergar os outros povos a partir dos
parâmetros de sua própria cultura, o que leva a uma pretensa superioridade.
3 Laraia, 1986. p. 36 4Benedict, Ruth. O crisântemo e a espada. Perspectiva, São Paulo, 1972.
6
Isso significa que cada cultura também tem suas percepções específicas
e suas próprias categorias. Ao longo da história das ciências humanas e
principalmente da antropologia, procurou-se definir sociedades e culturas como
mais ou menos lógicas, e portanto mais ou menos “evoluídas”. Em contraste com
essas noções, que por muitas vezes sustentam teorias ocidentalistas e racistas,
o estruturalismo do antropólogo contemporâneo Claude Lévi-Strauss parte do
princípio de que cada cultura possui um sistema, uma lógica própria que a
sustenta.
Outro aspecto a se destacar sobre a forma como opera a cultura é o fato
de que ela é dinâmica. As culturas não são estáveis ou totalmente permanentes
no tempo, estão sempre se reconstruindo e passando por processos de
transformação, no entanto, há mudanças mais disruptivas que outras, bem como
culturas mais propensas a transformações constantes, tendo as tecnologias
grande influência sobre esses processos que acabam por acelerar-se.
Esses movimentos e mudanças se constroem porque nós humanos,
apesar de nossos hábitos naturalizados, somos também capazes de
questioná-los.
Algo que a própria antropologia nos ensina através de seus conceitos e
seu percurso histórico enquanto ciência, é que a complexidade e o dinamismo
característico das culturas humanas implica na constante variação de conceitos
e definições, de forma que a própria percepção do que é cultura - nas teorias
acadêmicas ou nas representações sociais de uma comunidade - se transforma
nestes movimentos, que são resultados de um lugar e um tempo específico.
7
O QUE É CONCEPÇÃO TRIDIMENSIONAL DE CULTURA?
Pudemos ver de forma breve no tópico anterior as definições da ideia de
cultura e outros conceitos que a orbitam numa perspectiva teórica. É importante
entendermos como essas descrições se relacionam com as políticas públicas
que também partem de definições teóricas para se estruturarem.
A Concepção Tridimensional de Cultura é o que fundamenta as políticas
nacionais através do Sistema Nacional de Cultura (SNC)5 que prevê a ação
integrada dos entes federativos, ou seja, dos governos da esfera federal,
estadual e municipal, para um plano unificado de democratização do setor. A
tridimensionalidade da cultura que pauta esse sistema refere-se às esferas
simbólica, cidadã e econômica.
“Toda ação humana é socialmente construída por meio de símbolos
que, entrelaçados, formam redes de significados que variam conforme os
contextos sociais e históricos” 6
De acordo com o documento básico do Sistema Nacional de Cultura (SNC),
este é o pressuposto assentado na perspectiva antropológica que compreende a
cultura enquanto um conjunto de modos de viver, e portanto, parte sempre da
ideia de culturas no plural. Sob tais fatores constitui-se a cultura em sua
5 “O Sistema Nacional de Cultura (SNC) é a ponte entre o Plano Nacional de Cultura (PNC), estados, cidades e o Governo Federal. O Sistema estabelece mecanismos de gestão compartilhada entre estados, cidades, Governo Federal e a sociedade civil para a construção de políticas públicas de cultura. A adesão ao SNC é voluntária e pode ser realizada por meio de um Acordo de Cooperação Federativa. Ao aderir ao SNC, o estado ou a cidade elabora um plano de cultura, ou seja, um documento que reúne diretrizes, estratégias e metas para as políticas de cultura naquele território por um período de dez anos. Sendo assim, pode receber recursos federais para o setor cultural e assistência técnica para a elaboração de planos, bem como sua inclusão no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC). Se o seu estado ou sua cidade não aderiu ao PNC, é preciso entrar em contato com o responsável pela Cultura na prefeitura ou no governo do estado. A Secretaria da Diversidade Cultural (SDC), no âmbito da Secretaria Especial da Cultura, é a unidade responsável por acompanhar as adesões ao SNC.” Informações do Site do Plano Nacional de Cultura 6Estruturação, Institucionalização e Implementação do Sistema Nacional de Cultura, 2011, p. 33
8
dimensão simbólica, considerando igualmente a relevância dos produtos
culturais populares, eruditos e massivos, assim como as categorias de fomento
à cultura e proteção do patrimônio.
A cultura como expressão simbólica reflete uma abrangência e
transversalidade que a compreende para além de produções artísticas,
habitando outras áreas como o turismo, a saúde, a comunicação e o meio
ambiente, sendo ela até mesmo alma e parâmetro para as noções
contemporâneas de desenvolvimento.
Já a dimensão cidadã da cultura, está ligada de forma geral aos direitos
culturais e seu acesso. Entende-se que tais direitos integram os direitos
humanos desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, e hoje se
constituem como: o acesso ao Direito Autoral, o Direito à participação na vida
cultural, o Direito à identidade e diversidade cultural, além do Direito à
acessibilidade para a participação na vida cultural da pessoa com deficiência.
O que é Direito Autoral?
Segundo a Fundação Biblioteca Nacional7, órgão responsável
pelos direitos autorais no Brasil desde 1989, o direito do autor é: “o
direito que todo criador de uma obra intelectual tem sobre a sua
criação.” O Direito Autoral constitui-se enquanto um direito moral,
intransferível e ligado à pessoa física do autor, e como um direito
patrimonial , que se refere à utilização econômica da obra e pode ser
cedido a outros que não o próprio criador, através do licenciamento ou
cessão de direitos.
Os direitos autorais contemplam também os direitos conexos ,
estes dizem respeito à proteção dos benefícios dos profissionais que
através de interpretações e/ou execuções artísticas agregam valor à
obra.
7 Biblioteca Nacional, Direitos Autorais. Disponível em <https://www.bn.gov.br/servicos/direitos-autorais/perguntas-frequentes> Acesso em 15. dez. 2020
9
Por exemplo, “O bêbado e o equilibrista" é uma obra composta
por Aldir Blanc e João Bosco, artistas que possuem seus direitos
autorais (morais e patrimoniais) garantidos enquanto autores da
canção, esta que foi eternizada na voz de Elis Regina, que goza dos
direitos conexos enquanto intérprete da música.
O ECAD8 é a entidade responsável pela arrecadação e
distribuição desses direitos autorais e conexos. A instituição privada
se mantém através da Lei n. º 9.610, de 1998, que consolida o marco
legal dos direitos autorais no Brasil, e constitui-se também a partir das
associações integradas as quais filiam-se os artistas, intérpretes,
autores, produtores, etc, sendo estas a ABRAMUS, UBC, ASSIM,
SBACEM, entre outras.
Quando encontra-se em pauta o direito e o acesso à cultura, é preciso
destacar a importância de garantir o consumo dos bens culturais, mas para além
disso, também o acesso às ferramentas de sua produção. Como bem apontado
por Isaura Botelho no artigo Dimensões da Cultura e Políticas Públicas, mais do
que se pensar a democratização da cultura para espaços ou grupos vulneráveis,
por exemplo, deve-se falar em democracia cultural, entendendo os indivíduos
não apenas como público, mas como criadores e produtores de cultura.
“Não se trata de colocar a cultura (que cultura?) ao alcance de todos,
mas de fazer com que todos os grupos possam viver sua própria cultura.” 9
O mesmo princípio se aplica ao direito à participação na vida cultural da
pessoa com deficiência, que está previsto na Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº
13.146), sancionada em 2015, mas que possui suas especificidades no que diz
respeito às diferentes vivências e questões com as quais lidam as pessoas com
deficiência, como as barreiras físicas de acesso e também as sociais,
8 Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) 9 Botelho, 2001, p. 82
10
estimuladas pelo capacitismo, preconceito, falta de de representatividade, por
exemplo.
A dimensão cidadã da cultura ainda procura garantir o direito à identidade
e diversidade cultural dos indivíduos, o que se manifesta principalmente através
da valorização e proteção das culturas populares, indígenas, afro-brasileiras,
ciganas e LGBTs, sendo o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional) e o Instituto Brasileiro de Museus importantes órgãos estatais para a
proteção do patrimônio material e imaterial do país.
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O QUE É A DIMENSÃO ECONÔMICA DA CULTURA?
Segundo o Sistema Nacional de Cultura, a dimensão econômica pode
compreender a cultura como um sistema de produção, materializado em cadeias
produtivas. Nesse sentido, os bens culturais são entendidos como uma
mercadoria, e por esse dado, estão sujeitos a um sistema que envolve três
etapas (produção, distribuição e consumo) que compõem o que chamamos de
cadeia de produção cultural, onde todos os bens e serviços culturais se
encontram de alguma forma localizados.
Para que uma música chegue aos ouvidos de um consumidor, ela
primeiramente passa pelo processo de criação, o que em geral envolve a
presença de um compositor, intérprete e arranjador, além disso, há o processo
de pós-produção dessa música: captação de som, mixagem e masterização.
Essa primeira etapa é definitivamente uma das mais importantes, pois diz
respeito ao trabalho criativo e artístico presente do início ao fim de uma obra
qual seja sua linguagem, no entanto, a arte é fundamentalmente um processo
comunicativo, e para que se realize, é também necessário pensar sua
distribuição e circulação, entendida como a segunda etapa desta cadeia.
Uma música pode circular de diversas formas, através de apresentações
ao vivo do artista, por meios físicos como CDs, Vinis e cassetes, ou digitais,
como plataformas de streaming (Youtube, Spotify, Deezer, etc). Por muito
tempo, a mídia física foi a principal ou única forma dos músicos distribuírem seu
trabalho, mas com a expansão dos meios digitais essa realidade foi se
transformando.
É importante destacar como a distribuição está intrinsecamente
relacionada à etapa final de acesso/consumo. Pensando em grandes artistas da
música, por exemplo, o foco de investimento e distribuição é
predominantemente o meio digital e isso só ocorre porque o acesso às
plataformas online se expandiu. Nem sempre foi dessa forma e esse acesso
também ainda não alcança todos os lugares.
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A noção de cultura como mercadoria é fonte de muitas discussões, seja no
campo das políticas culturais ou da sociologia. Em nosso cotidiano temos uma
percepção naturalizada desse enquadramento, pois lidamos frequentemente
com bens culturais e artísticos numa lógica de consumo e entretenimento. No
entanto, existem conceitos e perspectivas teóricas que procuram desnaturalizar
essa relação, apresentando-a como uma construção histórica e social derivada
do modo de produção industrial capitalista.
O que é Indústria Cultural?
Num passo para além do campo cultural, podemos afirmar que
na modernidade é consolidado o modo de produção industrial, baseado
na produção em grande escala, para amplo consumo e maximização
dos lucros.
A perspectiva crítica ao modo de produção industrial que
caracteriza o capitalismo moderno já pode ser observada de forma
concreta em no século XIX com a clássica obra de Karl Marx, mas passa
a ser aplicada ao âmbito cultural com a Escola de Frankfurt,
especialmente com a obra Dialética do Esclarecimento, de Theodor
Adorno e Max Horkheimer, publicada no ano de 1944.
Trata-se de um contexto culturalmente marcado pela
subjetividade de consumo e o estabelecimento dos meios de
comunicação de massa, fatores que estão envolvidos no processo de
transformação da arte em mercadoria, lógica que pauta o conceito de
indústria cultural. Nesse processo é possível observar a expansão das
linguagens artísticas como forma de entretenimento.
Nesta chave de análise, por questões estruturais referentes ao
funcionamento do sistema capitalista, ocorrem transformações na
natureza destes produtos culturais, que por prezarem pela
reprodutibilidade e lucro, acabam por apresentar um conteúdo
homogêneo e viciado, sem espaço para reflexão.
13
A visão marxista é uma perspectiva interessante para se pensar
os desdobramentos da relação entre os diferentes produtos culturais e
sua forma de financiamento, já que segundo o marxismo ortodoxo, a
realidade material é determinante para a subjetividade, e nela se
encontram os bens culturais. No entanto, é com a Escola de Frankfurt
que se passa a pensar, a partir do marxismo, a dimensão cultural
também como elemento estrutural para a construção e manutenção de
uma ideologia.
Pensar a dimensão econômica de cultura, e dentro disso, a forma como
ela se sustenta através de recursos materiais, significa pensar também sobre os
diferentes modos de produção artística e suas possibilidades de financiamento.
Existem propostas que possuem maior e menor apelo comercial e,
pensando no contexto brasileiro, propostas mais experimentais e referentes à
construção de uma linguagem artística têm muita dificuldade em se manter
através dos mecanismos do mercado, o que pode limitar a criação artística por
priorizar o amplo consumo e não o valor simbólico das criações.
Partilhando dessa perspectiva, o manifesto Arte contra Barbárie, de 1999,
foi redigido por grupos teatrais ativos na construção e experimentação da
linguagem cênica que afirmaram seu compromisso com a função social da arte
em oposição ao processo de mercantilização da cultura, resultado da ausência
de políticas públicas para o setor.
Se de 1930 a 1980 o Brasil passou por um processo lento, mas progressivo,
de responsabilização do Estado pelas políticas culturais, a década de 90 foi
marcada pelo desmonte dos setores de cultura estatais, de modo que o governo
Fernando Henrique Cardoso contou apenas com políticas de incentivo fiscal para
a área.10
Diante deste cenário, o manifesto Arte contra Barbárie afirma que “O
Teatro não pode ser tratado sob a ótica economicista” e reivindica políticas para
10 Silva, 2014.
14
a definição de ações específicas por parte do Estado, como apoio para criação,
pesquisa e manutenção de grupos de Teatro, planejamento para circulação e
acesso do público aos espetáculos, assim como fomento à uma produção e
dramaturgia nacional. A organização da classe artística foi fundamental para a
conquista e ampliação de políticas que incentivem e assegurem a produção
artística enquanto bem simbólico e coletivo. Também como resultado desta
articulação, foi aprovada em 2002 a Lei de Fomento ao teatro do município de
São Paulo que visa "Apoiar e manutenção e criação de projetos de trabalho
continuado de pesquisa e produção teatral visando o desenvolvimento do teatro
e o melhor acesso a população ao mesmo" (Art. 1º da LEI Nº 13.279)
Há uma forte crítica que se constrói ao processo no qual são
enfraquecidos os órgãos e mecanismos estatais voltados à cultura, tornando o
mercado o principal ou único meio de financiamento para o setor. Não se trata
de ignorar as importantes relações entre cultura e mercado que se desenvolvem
inevitavelmente num sistema capitalista, mas de reconhecer que tais relações
não contemplam todos os fatores que habitam o universo da cultura.
O financiamento de projetos a partir do incentivo fiscal, como é no caso da
Lei Rouanet (Lei Federal de Incentivo à Cultura) e do ProAC ICMS, fornecem
isenção fiscal para que empresas possam investir em cultura. Segundo Belém11,
o que se inicia como uma proposta de parceria entre o poder público e o setor
privado, se construiu na verdade como um “mercado de patrocínios culturais”, já
que os recursos são públicos, mas a responsabilidade pela seleção de projetos é
privada. Sendo assim, é grande parte o direcionamento das empresas que
determinam quais projetos devem ser realizados, de forma que os recursos
públicos são instrumentalizados como divulgação para o próprio mercado: cerca
de 53% das empresas nomearam o marketing cultural como o principal meio de
divulgação de suas marcas.12
11 Belém (2013) 12 Silva (2014)
15
Mesmo com os bens culturais estando sujeitos ao funcionamento do
mercado, é fundamental compreender seu valor simbólico mesmo na chave
econômica. Diferentemente de outros produtos, os bens culturais são
"portadores de ideias, valores e sentidos e destinam-se a ampliar a consciência
sobre o ser e o estar no mundo." (2011, p. 35) e portanto, não pode submeter-se
apenas com os termos de competitividade e lucro que estruturam o mercado.
Tais apontamentos se encontram na própria descrição do Sistema Nacional de
Cultura, ao considerar, na noção de desenvolvimento econômico, a cultura como
fator essencial para sua humanização.
Essas articulações demonstram a importância de se pensar a política não
apenas a partir da estrutura burocrática e hierárquica do Estado, mas também
como um movimento que se constrói a partir da percepção crítica dos atores e
sua capacidade de organização frente ao processo de apagamento e elitização
de bens de cultura, para fazer com que o Estado exerça seu papel em assegurar a
manutenção e proteção dos bens culturais e seus trabalhadores, além de
promover a pluralização do conceito de cultura, em todas as suas dimensões e
categorias.
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O QUE É IDENTIDADE CULTURAL?
De acordo com Laraia, a cultura condiciona nossa visão de mundo, o modo
como entendemos os outros e nós mesmos e, nesse sentido, a identidade é
inevitavelmente um assunto do campo da cultura. As definições de cultura
contemporâneas têm se relacionado de forma cada vez mais próxima com este
conceito: a valorização dos aspectos simbólicos, o foco nas noções plurais de
cultura e a identidade cultural como direito dos indivíduos estão presentes no
documento básico do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e pautaram o
direcionamento das políticas culturais principalmente na gestão de Gilberto Gil
como Ministro da Cultura (2003-2008), onde criou-se a Secretária de Diversidade
Cultural e Identidade.
Para além do plano burocrático, o reconhecimento das questões
referentes à identidade - como orientação sexual, gênero, raça, etnia, história,
nacionalidade, idioma, religião, lugar… - passaram a integrar de forma mais
presente nosso cotidiano, chegando em espaços e canais que até então não
eram ocupados por essas pautas, apesar das lutas LGBTs, feministas,
antirracistas, indígenas, se construírem há muito mais tempo.
O claro processo de diversificação das identidades na contemporaneidade
revela processos muito mais amplos que resultam no deslocamento das noções
de sujeito, nação e identidade cultural, tal como aponta o sociólogo teórico
cultural Stuart Hall.
Uma nação não se resume aos seus aspectos políticos e burocráticos
enquanto Estado, mas deste em conjunto com as representações culturais e
simbólicas aos quais os indivíduos se identificam como integrantes. Refletindo
sobre como são construídas tais noções de identidade cultural nos
Estados-nações, Stuart Hall compreende as culturas nacionais como
comunidades imaginadas: se baseiam em um discurso, possuem histórias,
memórias e imagens que consolidam uma narrativa de unidade. No entanto, o
autor afirma que a cultura nacional é uma estrutura de poder cultural que se
17
constrói enquanto única, porém é mais fragmentada do que aparenta ser. A
maioria das nações ocidentais possuem uma diversidade de culturas que foram
unificadas por meio de processos violentos que devem ser esquecidos em prol
de uma única narrativa a qual sustenta-se a identidade cultural de uma nação.
Em geral, toda nação é composta por diferenças internas (de classes
sociais, gêneros e etnias, por exemplo) e diferenças externas (com outras
culturas), sendo a última um fundamento para a construção de traços distintivos,
firmados na pressuposição de superioridade das nações europeias frente aos
povos colonizados. Sendo assim, o teórico britânico-jamaicano afirma que a
cultura nacional revela-se uma estrutura de poder que tem de lutar para
estabelecer sua hegemonia perante as diferenças já existentes.
O fenômeno da globalização - de caráter imediatista e desestabilizador
das fronteiras territoriais - é um fator determinante para o processo efetivo de
deslocamento das noções unificadas de identidade. A pós-modernidade para
Stuart Hall, marcada pela globalização, caracteriza-se pela contestação e o
deslocamento das identidades centradas na cultura nacional, pluralizando-as,
tornando-as mais políticas e posicionais, mais diversas e menos unificadas e
fixas.
Esse processo revela uma “crise de identidade”, onde mesmo as noções de
classe, raça, sexualidade, gênero e nacionalidade não representam definições
estáveis de identidade para os indivíduos. O sujeito pós-moderno é fragmentado,
e assim também símbolos e representações sociais.
Esses processos de deslocamento possuem resultados objetivos e um
exemplo recente são as derrubadas e intervenções em estátuas racistas e
escravistas em diversos países com a onda de protestos do movimento Black
Lives Matter.13
13 O movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) se desenvolveu da esfera local para a global, após teve início após o assassinato de George Floyd por um policial branco na cidade de Minneapolis, em Minnesota nos Estados Unidos no ano de 2020. Teve como pauta principal a crítica à repressão e violência policial norte-americana, questionando todas as nuances de um racismo que permeia o imaginário social, o mercado, as instituições, os patrimônios culturais e os espaços públicos. Com a onda de protestos que se espalharam pelo mundo no ano de 2020, diversos atos resultaram na intervenção e/ou derrubada de estátuas que representavam figuras escravagistas e racistas. Dentre
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O patrimônio cultural e histórico é justamente resultado da estatização de
bens culturais para a construção de narrativas dominantes, que passam a entrar
em conflito na conjuntura explorada por Stuart Hall e vivenciada por nós hoje
enquanto sujeitos pós-modernos.
elas, estão as estátuas do Rei Leopoldo II na Bélgica, de Cristóvão Colombo nos Estados Unidos, Edward Colston na Inglaterra, bem como o busto de De Gaulle no norte da França.
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REFERÊNCIAS
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Sesc, 2015.
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construção do “mercado de patrocínios culturais”. Novos Rumos
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Disponível em: <https://youtu.be/-YQcFNoiDMw>. Acesso em: 15 dez. 2020.
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Nacional de Cultura. IN: Estruturação, Institucionalização e Implementação
do Sistema Nacional de Cultura. Dezembro de 2011.
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20
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Silva, Rodrigo Manoel Dias da. As políticas culturais brasileiras na
contemporaneidade: mudanças institucionais e modelos de
agenciamento. Sociedade e Estado 29.1 (2014): 199-224.
Por Letícia Rosa
Obra realizada com recursos da Lei Aldir Blanc (nº14.017)
na cidade de Jundiaí-SP.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.
Brasil, Dezembro de 2020.
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