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O PROCESSO SELETIVO PARA INGRESSO NO COLÉGIO DE APLICAÇÃO DA
UFRGS: REMEMORAÇÕES DE PROFESSORAS (1954-1983)
VALESKA ALESSANDRA DE LIMA1
Abrindo a porta
Neste estudo, busco me aproximar o processo seletivo para ingresso de alunos no
Colégio de Aplicação (CAp) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), entre
os anos 1954 e 1983, a partir da rememoração de antigas professoras. Refletir sobre as três
primeiras décadas deste importante espaço educativo de Porto Alegre/RS, nos aproxima de
práticas educativas que conferiram singularidade e identidade ao colégio.
O estudo vincula-se aos pressupostos teóricos da História Cultural e inscreve-se no
campo da História da Educação em suas interfaces com a História das Instituições Educativas.
A partir da História Cultural é possível narrar uma História que atribui importância a sujeitos,
objetos e temas ignorados pelas abordagens historiográficas mais tradicionais. Deste modo, a
escola e as relações que se estabelecem em seu interior se tornaram alvo da análise de
pesquisadores devido a um certo estranhamento destes, frente ao cotidiano educacional
(LOPES e GALVÃO, 2010).
Fomentada pela ampliação das fontes de pesquisa, a História das Instituições
Educativas toma como referência as memórias de uma escola, de um contexto e de indivíduos
que dela fazem parte. Para Gatti Júnior (2002), esta tendência confere relevância ao exame
das singularidades sociais, presentes em uma instituição específica, ao invés das análises de
conjunto. Pesquisar uma determinada escola, neste caso o Colégio de Aplicação da UFRGS,
objetiva contribuir para a construção de narrativas sobre os diferentes processos daquele
cenário, além de formular novas interpretações sobre a educação a partir das relações
existentes no local.
Para Magalhães (2004), a História das Instituições Educativas, ao usar a memória e o
arquivo, duas fontes que se relacionam, constrói uma narrativa coerente sobre a identidade
histórica da instituição. Estes documentos compõem o mosaico das realidades que se pretende
mostrar e relaciona aspectos do passado da escola com a comunidade na qual está inserida.
1 UFRGS, Mestranda em Educação, apoio CNPq
Para desenvolver a pesquisa, elegeu-se principalmente a memória como documento e
a História Oral, como metodologia. É pertinente dizer que a memória é um processo, onde o
passado e o presente comparecem em uma narrativa baseada nas experiências vividas,
composta tanto por lembranças, quanto por esquecimentos. Assim, considerando a
singularidade da experiência de cinco docentes que atuaram no CAp, entre 1954 e 1983, as
escolhi para abordarem pontos relevantes da História desta instituição, principalmente no que
tange ao processo seletivo para ingresso de novos alunos. No processo de mergulhar no
Aplicação por meio da narrativa destas mulheres, exercitei não apenas atenção e respeito à
fala do outro, mas também uma espécie de cumplicidade com as narradoras que, por vezes,
pediram para não identificar o nome de pessoas sobre as quais estavam falando. Segui então,
as orientações de Janaína Amado (1995) e procurei ser fiel não só às palavras das
informantes, mas aos seus pedidos de não usar algumas falas que me foram confiadas. Deste
modo, procurei respeitar o limite das revelações de cada uma e atribuí a elas, pseudônimos de
pássaros: Rouxinol; Pardal; Bem-te-vi; Cardeal e Sabiá.
A inspiração para as aves vem do Projeto Memórias e Histórias da FACED, no qual os
dezessete entrevistados foram identificados pelo codinome de árvores2 típicas do Rio Grande
do Sul que se encontram nas imediações do prédio da Faculdade de Educação, no Campus
Central da UFRGS. Pelas afinidades existentes entre o CAp e FACED, escolhi para as
depoentes desta pesquisa o nome de aves, pois, metaforicamente, há uma ligeira semelhança
entre elas e os pássaros3 que, ao se alimentarem das árvores, levam suas sementes para outros
ambientes, plantando mesmo sem saber, novas árvores. Penso que estas professoras, também
alunas da Faculdade, atuaram como agentes polinizadores, pois foram também responsáveis
por disseminar conhecimentos para outras instituições com que se envolveram.
A história trazida pelas memórias destas mulheres são memórias possíveis, baseadas
nos percursos trilhados por cada uma. Há que se considerar que, no documento oral, trabalha-
se com a interação da narrativa, da imaginação e da subjetividade. A fala é suscetível às
vicissitudes de cada momento, todavia, não significa que a memória seja intangível, pelo
contrário, permite a aproximação de verdades que se quer produzir sobre o vivido. E guarda o
mérito de trazer à tona nuances do passado, que podem estar esquecidas e que, por vezes, se
2 Ébano Oriental; Figueira; Flamboyant; Grevilha; Ipê amarelo; Ipê roxo; Jacarandá; Mimo de Vênus; Paineira;
Palmeira; Tipuana; Canafístula; Cinamomo; Cipreste; Acácia; Araçá; Plátano 3 A escolha dos pássaros e a atribuição de tal nome às entrevistadas foram aleatórias. Considerei apenas o fato do
pássaro ser nativo da região Sul do Brasil.
encontram inatingíveis em outras formas de documentação, além de dar visibilidade aos
sujeitos na construção da história. Interessa, pois, o fio narrativo que cada depoente escolhe
para contar sua história.
Contudo, conforme enfatizado por Magalhães (1999), para que se faça uma “síntese
multidimensional que traduza um itinerário pedagógico” (p. 02) de uma instituição, é preciso
valer-se também da análise de outros documentos. O arquivo da Faculdade de Educação
(FACED) e da Comissão de Ensino (COMEN4), do Colégio de Aplicação foi importante para
que houvesse um maior entendimento dessas histórias e, principalmente manuseasse muitos
documentos sobre os quais eu apenas havia ouvido.
Contudo, as depoentes trouxeram recortes de jornais, revistas, provas e relatórios que
estavam guardados em suas casas. Elas buscaram em seus arquivos pessoais, documentos
antigos que pudessem servir de âncoras para uma conexão com o passado. Interessante notar
que elas elegeram com antecedência seus evocadores de memória, pois, como sabemos as
memórias não são espontâneas, precisam ser provocadas. Assim, o caminho metodológico
assumiu contornos que foram “da memória para o arquivo e do arquivo para a memória”
(MAGALHÃES, 1999, p. 02).
Um novo colégio
Para esta investigação, parece pertinente mencionar que as
concepções escolanovistas ganharam espaço privilegiado na educação brasileira nos anos
1930, principalmente se levarmos em consideração a influência de intelectuais que haviam
participado de estágios e missões de estudo em Universidades norte-americanas e europeias.
Eles foram os responsáveis por trazer subsídios teóricos que embasaram a discussão de
possíveis caminhos para promoção de uma renovação educacional no Brasil (BRASIL, 1993).
Deste modo, os debates sobre a democratização do ensino se intensificaram entre os
educadores escolanovistas e resultaram em diferentes ações como a implantação de reformas
educacionais nos diferentes níveis e modalidades de ensino.
A chamada Reforma Francisco Campos, de 19315, proposta pelo então Ministro da
Educação e Saúde, foi a primeira destas ações de caráter nacional que organizou o ensino
4 As pastas da Comissão de Ensino (COMEN) estão arquivadas na sala do Laboratório de Ensino de História e
Educação (LHISTE) da UFRGS, que também abriga parte da documentação institucional. 5 Decreto nº 19.890 - De 18 de Abril de 1931.
secundário, comercial e superior e era caracterizada por um conjunto de Decretos que
regulamentavam estas modalidades de ensino. Na esteira desta Reforma, o Estatuto das
Universidades possibilitou que, em 1934, fosse criada a Universidade de Porto Alegre6 que
integrou os cursos livres7 de Ensino Superior existentes na capital gaúcha. Nesta Universidade
foi instalada a Faculdade de Educação, Ciências e Letras8 que, entre outros cursos, congregou
o Curso de Pedagogia, a partir de 1943 (REGNER, 1993).
Conforme o Ministério da Educação, este grupo de educadores que incluía Anísio
Teixeira e Lourenço Filho, por exemplo, objetivava elaborar instituições de pesquisa
educacional, nos moldes observados no Teachers College americano e no Instituto J. J.
Rousseau, de Genebra. Era o prenúncio, nos anos 1930, para a criação dos Ginásios de
Aplicação, que refletiriam “o anseio nacional pela renovação pedagógica, a partir da
experimentação de novos meios e pela revisão dos objetivos educacionais” (BRASIL, 1993,
p.11).
Esta ideia de experimentação pedagógica difundiu-se de tal modo que, em 1946,
ocorreu a publicação do Decreto‐Lei 9.053 no qual “todas as Faculdades de Filosofia
Federais, reconhecidas ou autorizadas a funcionar no território nacional, ficavam obrigadas a
manter um ginásio de aplicação destinado à prática docente dos alunos matriculados no curso
de didática” (CAMPOS, 1957, p. 236, grifos do autor). Esta instituição parecia conveniente à
aplicação de experiências de novos modelos didáticos, fato que contribuiu para a sua
diferenciação em relação ao ensino das demais escolas.
A legislação previa o prazo de um ano após sua publicação para que as Faculdades
implantassem seus Ginásios. Loureiro (2009) destaca que muitas Universidades no país não
conseguiram se organizar em um ano e isso forçou que uma nova Lei9 ampliasse o prazo de
instalação dos Ginásios para três anos. Desta forma, em 15 de abril de 1954, teve início o
6 Decreto Estadual nº 5.758 (28/11/1934). Em 1947, a Universidade de Porto Alegre passou a denominar-se
Universidade do Rio Grande do Sul (URGS) até a federalização (Lei Federal nº 1.254, 04/12/1950), em 1950,
quando adotou o nome atual, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 7 Escola Livre de Farmácia e Química Industrial (1895); Faculdade de Medicina e Farmácia de Porto Alegre
(1898); Escola de Engenharia de Porto Alegre (1896); a Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre (1900);
Instituto de Belas Artes (1908) e Faculdade de Agronomia e Veterinária (1910). 8 O Decreto Estadual nº 6.194 (30/03/1936), criou a Faculdade de Educação, Ciências e Letras. O Decreto
Federal nº 1.190 (04/04/1939), extinguiu as Faculdades de Educação, Ciências e Letras do país e criou a
Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro, que objetivava orientar a formação de professores
nacionalmente. O Decreto Lei nº 12.386 (11/05/1943) originou os cursos de Letras Clássicas, Letras Neolatinas,
Letras anglo-germânicas, Pedagogia e Didática. 9Lei nº 186, de 17 de dezembro de 1947.
Ginásio de Aplicação da UFRGS, que tinha por finalidades “ministrar o ensino secundário a
seus alunos; servir à prática docente e aos estágios dos alunos do curso de Licenciatura e
servir de campo de investigação pedagógica para a Faculdade de Filosofia” (REGNER, 1993,
p. 33).
Conforme estabelecido pelo Decreto 9.053, o Ginásio seria “responsabilidade do
Diretor da Faculdade de Filosofia” (BRASIL, 1946, p.1) e caberia ao catedrático de Didática
Geral, sua direção. Com isso, a professora Graciema Pacheco assumiu a direção e teve ao seu
lado, a professora Isolda Holmer Paes. De acordo com as entrevistadas, eram duas mulheres
com diferentes trajetórias de vida que parecem ter dedicado muito tempo à pesquisa e ao
ensino, porém vemos poucos escritos sobre suas concepções pedagógicas. Dona Graciema
como é lembrada, dirigiu o CAp por vinte e sete anos, até sua aposentadoria em 1981, já Dona
Isolda em meados de 1974, deixou o CAp para se dedicar a outras atividades na Universidade
(ALMEIDA e LIMA, 2015).
A primeira turma foi composta por trinta alunos, de ambos os sexos, que não haviam
sido aprovados no Exame de Admissão ao Ginásio do Instituto de Educação General Flores da
Cunha e do Colégio Estadual Júlio de Castilhos (PAES, 1983). A entrevistada Bem-te-vi
(2015), que foi aluna desta primeira turma, conta que em uma reunião ocorrida no Instituto de
Educação (IE), Dona Graciema, “uma senhora muito distinta”, convidou os pais daqueles
alunos excedentes a levarem seus filhos para “o Ginásio de Aplicação, um colégio novo, um
colégio diferente, com experiências diferentes”, por estar dentro da Universidade. Ela recorda
que muitas daquelas crianças, eram filhas de moças que haviam sido alunas de Dona
Graciema no Instituto de Educação. Provavelmente por isso, pelo prestígio da educadora, foi
que as famílias levaram seus filhos para se tornarem alunos do novo colégio.
Estamos falando de uma época em que o CAp não possuía a distinção que tem hoje.
Era um momento em que pairavam mais dúvidas do que certezas sobre o colégio e podemos
apenas imaginar o que levava os pais a inscreverem os filhos nos exames de admissão
realizados ali, uma escola que recém iniciava. Contudo, enquanto a primeira turma cursava a
1ª série ginasial “na sala 301 da antiga Faculdade de Filosofia” (PAES, 1983, p.75), o CAp
recebia quarenta e oito inscrições para o exame que seria realizado em dezembro de 1954, nos
moldes do que era obervado em outras escolas do país. Atualmente, não é demais ressaltar, a
prática de seleção para ser aluno do Colégio é sorteio público, adotado a partir de 1982.
Exame de Admissão ao Ginásio e Provas de Seleção ao CAp
Cabe dizer, que o ensino escolar, no início do século XX, possuía uma divisão que o
distinguia entre Curso Primário e Curso Secundário. O Primário durava cinco anos, sendo que
o último era preparatório ao Exame de Admissão ao Curso Ginasial, que durava três anos. O
Exame de Admissão ao Ginásio foi instituído como parte da Reforma Francisco Campos e sua
obrigatoriedade perdurou até 1971, quando a Lei n° 5.692 uniu os Cursos Primário e Ginásio
e os transformou no 1º Grau, um ciclo único de estudos com duração de oito anos.
O exame de admissão constituiu por décadas a linha divisória entre o ensino primário
e a escola secundária oficial brasileira. Funcionou como um verdadeiro rito de passagem à
continuidade dos estudos, representada pelo ingresso no ginásio acadêmico, que teve procura
intensificada a partir dos anos 1930, pela aprovação do candidato em provas escritas e orais
de Português, Aritmética e Conhecimentos Gerais. Nesse período ocorreu a ampliação do
acesso ao ensino primário, porém, na contramão se limitou o acesso ao ensino ginasial, devido
a seleção que exigia muito dos alunos.
Para a senhora Pardal (2014), “havia uma mística de que os alunos do Aplicação eram
gênios [...]. Estamos falando não de uma elite econômica, mas muito mais de uma elite
intelectual”. Mimo-de-Vênus (2012) corrobora com essa ideia e ressalta que o público alvo
nos anos da seleção, “era a elite, da elite, da elite [...] porque estudar no CAp era o pedigree”,
ou seja, os alunos eram pertencentes a famílias intelectualmente mais favorecidas. Porém,
ambas asseguram que independente da origem familiar, quando os alunos estudavam tinham
grandes chances de aprovação.
De acordo com a legislação, para ingressar no ginásio, o aluno deveria ter idade
mínima de 11 anos, ser aprovado nos exames e estar classificado dentro do número de vagas
existentes na instituição. Sabiá (2015) recorda que os exames eram “criteriosíssimos”,
duravam cerca de uma semana com uma prova por dia, porém Dona Graciema acreditava que
era necessário conhecer bem a criança,
[...] não só como aluno, mas como pessoa para que pudéssemos oferecer uma escola
que fosse efetivamente atingi-lo. Para que, ao sair do CAp, ele saísse com um
excelente nível pessoal e intelectual. Não havia a ideia de que para lá fossem apenas
os melhores, isso se dava ao longo da escolarização deles. O processo seletivo por
provas era uma coisa da época, vinha da padronização dos exames de admissão que
escalonavam os alunos (Sabiá, 2015).
Para a direção, conhecer as potencialidades do aluno era tão importante quanto a nota
obtida no exame de admissão. Após o ingresso, realizavam uma entrevista, com a família e
aluno, para conhecer aspectos mais pessoais dos discentes, inclusive, promoviam a aplicação
da chamada “Prova de Adaptação”. Este questionário, por assim dizer, era um mapeamento
idealizado por Isolda e Graciema, destinado a dar aos professores um panorama geral sobre o
novo aluno e abordava “questões e exercícios baseados em experiências comuns de vida dos
alunos e não relacionada à matéria escolar, propriamente dita” (Instruções para o Exame de
Admissão/dezembro, 1954). Segundo Sabiá, todas as avaliações realizadas procuravam
diagnosticar os conhecimentos dos alunos para, de certa forma, qualificar o ensino ali
ministrado.
A amostra mais significativa das provas localizadas no arquivo é composta pela
avaliação de Língua Portuguesa e Matemática, talvez os conteúdos de maior peso na
avaliação. Elas não variavam muito em quantidade de folhas, continham entre dez e quinze
páginas por ano, uma característica que supervaloriza tais conhecimentos em detrimento de
outros. Por exemplo, as provas de História, Geografia e Ciências não passavam de sete ou oito
páginas, conhecimentos marginalizados que talvez, ainda hoje, não tenham ascendido
na hierarquia dos saberes escolares.
Como as provas não vinham do Estado, eram preparadas pelos professores da própria
instituição, sempre orientados pela professora Graciema Pacheco que, segundo Pardal (2014),
era a teórica principal responsável pelas didáticas. Mediante a análise de alguns exames que
se encontram no arquivo do CAp e também no arquivo pessoal de algumas professoras,
percebe-se que as provas de Língua Portuguesa, são preciosos documentos para observar a
cultura desses jovens e de suas famílias. A avaliação era composta primeiramente pelo ditado
de um texto com vários parágrafos, questões gramaticais e de interpretação de textos, além de
uma redação que deveria ser feita a partir de imagens.
Os exames respondidos preservados pelo CAp demonstram vestígios do que era
considerado desejável pensar e expressar sobre a vida ou a escola, quando solicitados a redigir
a redação à vista de uma gravura. Bem-te-vi recorda que os alunos que se candidatavam ao
CAp sabiam “que as exigências eram diferentes [...] uma coisa era sempre exigida, a gente
tinha que ser criativo, [...] tinha que escrever com suas palavras” aquilo que era solicitado. Na
Matemática, a ênfase estava nas operações matemáticas, nas medidas e na resolução de
problemas. Em Geografia, estudavam-se os mapas, os continentes, os corpos celestes; em
Ciências, o corpo humano e a natureza e, na disciplina de História, o destaque estava no
estudo da História do Brasil, com suas datas, nomes e feitos relevantes.
Contudo, mesmo após a extinção dos Exames de Admissão ao Ginásio, em 1971, o
Colégio de Aplicação da UFRGS manteve um processo seletivo próprio por meio de provas
elaboradas pelo corpo docente. O procedimento para divulgação, inscrição e realização das
provas permanecia inalterado, porém ao invés de cinco provas separadas, os alunos
respondiam uma Prova Global de conhecimentos linguísticos e matemáticos. A ideia não era a
da memorização dos conteúdos, mas do trabalho feito a partir de um nível crítico de
conhecimento para atingir um processo de compreensão, análise e síntese que culminava em
avaliações e auto-avaliações que buscam efetivar-se de algum modo objetivo, crítico e
participativo (MARCOLIN, 1994). Ainda nos primeiros anos de atuação, o CAp adotou na
admissão dos alunos, um exame que visava classificar os candidatos, tomando por referência
a habilidade dele para desenvolver um trabalho intelectual. Desta forma, eram aplicados testes
de inteligência padronizados, a partir de 1956. Contudo, ao longo dos anos tais testes foram
sendo modificados até serem extintos com o processo seletivo, em 1982.
Sabiá recorda que os testes, quando começaram eram uma tendência da época e
“pretendiam mensurar o nível cognitivo dos alunos” para qualificar o ensino. Dona Graciema
foi uma pessoa dedicada a pensar uma Didática pscicológica, termo por ela usado na tentativa
de aliar seus conhecimentos de Psicologia à Didática. Ao que tudo indica, a diretora incentiva
práticas mais voltadas para questões psicológicas e psicotécnicas. Sabemos pelos estudos de
William Gomes (2003), que ela lecionou Psicologia no Instituto de Educação General Flores
da Cunha e procurava apresentar aos alunos autores como Piaget, William James, Decroly,
Claparède e Thorndike. Para Graciema, era importante associar o ensino com a pesquisa e,
desde a década de 1930, buscou se especializar nos Testes ABC de Lourenço Filho como
técnica de avaliação das capacidades e características individuais dos alfabetizandos. Talvez,
seja em decorrência deste fato e dos estudos que realizou sobre a obra de Binet e Simon,
autores franceses da aferição dos Testes de Nível de Inteligência que, na década de 1950,
Graciema tenha empregado um caráter psicopedagógico à avaliação daqueles que buscavam
ingressar no CAp.
Desde modo, já em 1956 havia a aplicação de testes padronizados de inteligência no
CAp, pois discutia-se a necessidade de “averiguar em que nível de desenvolvimento os alunos
que ingressariam no CAP estavam” (SABIÁ, 2015), para que o trabalho realizado, pudesse
garantir que ao “ao sair do CAp o aluno tivesse com um excelente nível pessoal e intelectual”
(SABIÁ, 2015). Desta forma, implantaram o Teste de Inteligência Não Verbal (INV) Pierre
Weil, que buscava aferir a aptidão e personalidade dos alunos. No ano seguinte, foi a vez do
Teste de Complemento de desenho Warteg, uma prova gráfica projetiva de personalidade que,
mediante uma série de traços ou estímulos iniciais, leva o aluno a produzir desenhos.
A partir destes primeiros testes, Sabiá menciona que a cada ano o instrumento era
alternado, para que as famílias não tivessem a chance de treinar as crianças para que se
saíssem bem por condicionamento. Nos anos seguintes introduziram novos instrumentos,
como as Matrizes Progressivas de Raven (raciocínio lógico), o Teste Machover (desenho da
figura humano), o Teste de Q.I. Dominó (lógica), o Teste do Desenho da Família (demonstra
indícios da dinâmica familiar como relações entre pais e irmãos) e a Técnica de Zulliger “Z-
teste” (estrutura da personalidade).
Cabe destacar que por seu caráter experimental, a instituição estava fortemente
marcada por pressupostos educacionais psicológicos no que tange as teorias de aprendizagem.
Naquele momento, não seguiam apenas uma tendência pedagógica, mas estavam preocupados
em testar diferentes princípios educacionais com práticas implementadas de modo
experimental, como a aplicação de tais testes, por exemplo (MARCOLIN, 1994). Assim,
buscando qualificar cada vez mais a seleção não apenas por critérios quantitativos, estudava-
se a criação de um teste próprio, exclusivo da instituição. E a partir de 1968, começou a ser
aplicado o Teste de Habilidades para o Trabalho Mental (HTM), em substituição aos exames
padronizados. Vivíamos um momento em que “os testes padronizados não respondiam a
maior parte dos questionamentos, pois eram treináveis pelas famílias. O HTM, por ser uma
inovação do CAp, não teria a chance de ser treinável e seria alterado a cada ano” (Sabiá).
Este instrumento, fruto de anos de estudo e pesquisas, foi elaborado pela equipe das
professoras do Serviço de Orientação Escolar (SOE) do Colégio de Aplicação. Conforme uma
das entrevistadas, após a elaboração da prova modelo, houve uma aplicação interna de modo
experimental com uma turma de alunos que já cursavam o ginásio e essa amostragem serviu
para que identificassem falhas a melhorar. Quando aplicado na prática, novos pontos foram
observados e o teste foi alterado, mais de uma vez, em forma e conteúdo buscando sempre
atender as expectativas do SOE e da direção sobre o modo como o aluno deveria ser visto. Os
resultados eram analisados pelo SOE e passados aos professores de modo individual para que
tivessem uma dimensão das características dos alunos. Depois com a implantação dos
Conselhos de Classe, todos os materiais de diagnostico discente formava uma espécie de
dossiê que acompanhava o aluno do ingresso até a saída do colégio.
Tínhamos noção de quais eram as dificuldades e os avanços do aluno, bem como das
estratégias que poderiam ser utilizadas para que ele avançasse e procurávamos
deixar as famílias a par, ao menos em parte, do que fazíamos. Os parecer descritivos
também nascem aí, pois veja como é mais fácil escrever sobre alguém que tu tens
um acompanhamento periódico (SABIÁ, 2015).
Alguns anos mais tarde, as docentes do SOE publicaram o livro que leva o nome do
teste e ainda hoje é utilizado em consultórios de psicologia, segundo pesquisas em páginas de
internet relacionadas ao assunto. O trabalho era dividido em três partes (Figura 1): a Parte I
investigava a habilidade para entender conceitos expressos em palavras; a Parte II verificava a
facilidade com que o aluno trabalhava com conceitos, relações e operações numéricas e o
último, a Parte III verificava a capacidade de perceber detalhes, semelhanças e diferenças em
formas e letras.
Figura 11: Prova de Habilidade para o Trabalho Mental (HTM)
Fonte: COMEN/UFRGS
Com base nos registros, sabe-se que ao final destas avaliações, diferente dos Exames
de Admissão, os candidatos não eram reprovados caso tivessem um desempenho considerado
insatisfatório em relação aos demais. O HTM não era eliminatório, apenas diagnosticava o
nível de raciocínio lógico verbal, numérico e abstrato da criança e dava aos professores e ao
SOE uma ideia do perfil do aluno.
Embora o processo seletivo através da realização de provas, tenha durado mais tempo
no CAp que na maioria das escolas, entre 1982 e 1983, iniciou-se um novo período na
instituição no qual “o ingresso tinha que ser mais democrático, fazendo seleção por sorteio”
(PARDAL, 2014). Cabe dizer, que, o início dos anos 1980 marcou significativamente o
Colégio de Aplicação da UFRGS e a Faculdade de Educação que viviam momentos de
mudanças, do mesmo modo que o experimentado em nível nacional pelos diferentes setores
da sociedade.
Em meio às primeiras agitações da década, ao completar setenta anos, em 1980, a
professora Graciema Pacheco, deixou o Colégio de Aplicação por força da aposentadoria
compulsória e, aparentemente, sua saída “foi fundamental para a mudança” (PARDAL, 2014).
Mas que mudança terá sido essa? Pelos relatos foram mudanças, que elegeram diretoras,
alteraram o ingresso de alunos, modificaram a contratação de professores e ampliaram o
campo de estágio.
As entrevistadas são unânimes em dizer que naquela década não havia mais sentido de
o colégio se manter alheio as realidades da população porto-alegrense e continuar com uma
prática, de certo modo, excludente. Iniciou-se, assim um novo desenho sendo esboçado no
Colégio de Aplicação que o levou para junto das camadas mais populares, ampliando a oferta
de vagas, ao mesmo tempo em que o país começava a respirar os novos ares da reabertura
política.
Encostando a porta para ser reaberta...
Estes achados e inferências dão pistas sobre o modo como a escola era articulada
pedagógica e administrativamente e como foi sendo modificada ao longo dos anos. Assim,
busco inspiração em Foucault (1997), para quem a história é essencialmente descontínua, para
refletir com mais atenção sobre as permanências e rupturas ocorridas nas práticas do Colégio
de Aplicação da UFRGS. Pesquisar uma escola como esta, contribui para a construção de
narrativas sobre os diferentes processos educacionais, além de formular novas interpretações
sobre a educação a partir das relações existentes no local.
Ao usar a memória e o arquivo, temos uma narrativa coerente sobre as práticas
educativas presentes na instituição, vistas pelo olhar de quem fez parte ativa de sua execução,
é uma história baseada em memórias possíveis. Mosaicos de uma realidade que apresenta o
passado da escola em interação com a comunidade na qual estava inserida. A história trazida
por este documentos escritos e orais são importantes para que haja um maior entendimento
dessas histórias.
As práticas educativas do CAp são um, entre tantos exemplos da cultura escolar de um
tempo e são importantes para conhecer os processos que permitem a transmissão de
conhecimentos e a inculcação de condutas circunscritas a um espaço como escola. A cultura
escolar expressa no papel regulador que os exames assumiram, fazem parte de um contexto
eminentemente escolar e são “um produto específico da escola” (JULIA, 2011, p. 33), ainda
em nossos dias.
REFERÊNCIAS
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