O Papel Da Critica Literária e o Estruturalismo

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REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP SABER ACADÊMICO - n º 07 - Jun. 2009/ ISSN 1980-5950 100 O PAPEL DA CRÍTICA LITERÁRIA NO ESTRUTURALISMO BOTOSO, Altamir 1 Resumo: O propósito deste artigo é evidenciar o papel da crítica literária no Estruturalismo, a partir do comentário das idéias contidas no texto “Estruturalismo e crítica literária”, do teórico francês Gérard Genette. Palavras-chave: crítica literária – estruturalismo – Gérard Genette. Abstract: The purpose of this article is to evince the role of literary critique in Structuralism, starting with the commentary of the ideas contained in the text “Structuralism and literary critique”, by the french critic Gérard Genette. Key-words: literary critique – structuralism – Gérard Genette. Toda crítica viva isto é, que empenha a personalidade do crítico e intervém na sensibilidade do leitor parte de uma impressão para chegar a um juízo, [...]. Antonio Candido INTRODUÇÃO “Criticar a crítica é a coisa mais difícil que conheço. O mesmo que saltar por cima da própria sombra.” (ARARIPE JÚNIOR apud CAIRO, 1996, p. 18). Essa afirmação de Tristão de Alencar Araripe Júnior constitui uma belíssima metáfora do trabalho de todos aqueles que pretendem estudar e compreender textos e obras de crítica literária. É necessário para tal tarefa um grande esforço e também um pouco de ousadia. Afinal, para todos os estudiosos de literatura, as obras críticas são um desafio do qual não se pode fugir. Sendo assim, o objetivo de nosso artigo é uma tentativa de captar e entender o papel da crítica literária no estruturalismo, a partir de um artigo de Gérard Genette (COELHO, s/d, p. 367-392), intitulado “Estruturalismo e crítica literária”. Nossa preocupação básica é “traduzir” as idéias sobre a crítica literária contidas nesse artigo.

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O PAPEL DA CRÍTICA LITERÁRIA NO ESTRUTURALISMO

BOTOSO, Altamir1

Resumo: O propósito deste artigo é evidenciar o papel da crítica literária no Estruturalismo, a partir do comentário das idéias contidas no texto “Estruturalismo e crítica literária”, do teórico francês Gérard Genette. Palavras-chave: crítica literária – estruturalismo – Gérard Genette. Abstract: The purpose of this article is to evince the role of literary critique in Structuralism, starting with the commentary of the ideas contained in the text “Structuralism and literary critique”, by the french critic Gérard Genette. Key-words: literary critique – structuralism – Gérard Genette.

Toda crítica viva ─ isto é, que empenha a personalidade do crítico e intervém na sensibilidade do leitor ─ parte de uma impressão para chegar a um juízo, [...].

Antonio Candido

INTRODUÇÃO

“Criticar a crítica é a coisa mais difícil que conheço. O mesmo que saltar por

cima da própria sombra.” (ARARIPE JÚNIOR apud CAIRO, 1996, p. 18). Essa

afirmação de Tristão de Alencar Araripe Júnior constitui uma belíssima metáfora do

trabalho de todos aqueles que pretendem estudar e compreender textos e obras de crítica

literária. É necessário para tal tarefa um grande esforço e também um pouco de ousadia.

Afinal, para todos os estudiosos de literatura, as obras críticas são um desafio do qual

não se pode fugir.

Sendo assim, o objetivo de nosso artigo é uma tentativa de captar e entender o

papel da crítica literária no estruturalismo, a partir de um artigo de Gérard Genette

(COELHO, s/d, p. 367-392), intitulado “Estruturalismo e crítica literária”. Nossa

preocupação básica é “traduzir” as idéias sobre a crítica literária contidas nesse artigo.

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Há um provérbio italiano que associa a idéia de tradutor à de traidor.

Procuraremos não ser traidores das idéias expostas por Genette e tentaremos

compreender os pontos principais relativos à critica que norteiam seu texto.

O artigo divide-se em duas partes. Na primeira, teceremos algumas

considerações sobre o estruturalismo e também sobre o crítico francês Gérard Genette e

sua obra. Na segunda, deter-nos-emos no artigo mencionado. Ele está dividido em

quatro partes e seguiremos esta mesma divisão no intuito de expor seus conteúdos: 1) o

trabalho do crítico como “bricolage”, 2) crítica formalista x crítica estruturalista, 3)

crítica estruturalista x crítica hermenêutica, 4) a crítica e o método estrutural.

Principiaremos, comentando e discutindo algumas observações sobre o

estruturalismo até chegar a um de seus críticos mais renomados ─ Gérard Genette ─ e

cujas obras teóricas têm sido adotadas e utilizadas largamente no Brasil, principalmente

nos cursos de Letras.

I. GENETTE: O CRÍTICO E SUA OBRA

Nascido em Paris, no ano de 1930, Gérard Genette, juntamente com Roland

Barthes, A. J. Greimas, Claude Bremond e Tzvetan Todorov são os críticos mais

conhecidos de uma das mais importantes vertentes de reflexão teórica literária

contemporânea: o estruturalismo, “a maior revolução metodológica nas ciências

humanas nos últimos cinquenta anos”, segundo Ivan Teixeira (1998, p. 34).

O principal objetivo da crítica estruturalista era a descoberta de uma gramática

“segundo a qual se articulam as narrativas do homem, que não são aleatórias nem

imprevisíveis, mas que obedecem a uma estrutura entendida como o conjunto de

propriedades essenciais do discurso literário”. Em suma, os críticos estruturalistas

empenharam-se em construir “uma teoria da estrutura e do funcionamento do discurso

literário” (TEIXEIRA, 1998, p. 35).

Os críticos, que mencionamos anteriormente, fizeram parte de uma equipe que,

“desde o número 8 da revista Communications, se propôs estudar em termos de

descrição estrutural a organização da narrativa, literária ou não” (SEIXO, 1979, p. 10) e

o modelo fundador da análise estrutural da narrativa baseou-se na linguística, mais

precisamente nos pressupostos teóricos de Ferdinand de Saussure (2000), contidos no

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Curso de lingüística geral, cuja primeira publicação ocorreu em 1916 e que “é com

razão considerado a fonte teórica do estruturalismo moderno” (MERQUIOR, 1991, p.

23).

Roland Barthes (1972a, p. 24) sintetiza as contribuições e relações da lingüística

com a análise estrutural nos seguintes termos:

A língua geral da narrativa não é evidentemente mais que um dos idiomas oferecidos à lingüística do discurso, e ela se submete em consequência à hipótese homológica: estruturalmente, a narrativa participa da frase, sem jamais ser reduzida a uma soma de frases: a narrativa é uma grande frase, como toda frase constatativa, é de uma certa maneira, o esboço de uma pequena narrativa. Se bem que elas disponham aí de significantes originais (frequentemente muito complexos), encontram-se com efeito na narrativa, aumentados e transformados à sua medida, as principais categorias do verbo: os tempos, os aspectos, os modos, as pessoas; além disso, os próprios ‘sujeitos’ opostos aos predicados verbais não deixam de se submeter ao modelo frásico: a tipologia actancial proposta por A. J. Greimas reencontra na multiplicidade dos personagens da narrativa as funções elementares da análise gramatical. A homologia que se sugere aqui não tem apenas um valor heurístico: implica numa identidade entre a linguagem e a literatura (enquanto esta for uma espécie de veículo privilegiado da narrativa): não é mais possível conceber a literatura como uma arte que se desinteressa de toda relação com a linguagem, já que a usa como um instrumento para exprimir a idéia, a paixão ou a beleza: a linguagem não cessa de acompanhar o discurso estendendo-lhe o espelho de sua própria estrutura.

Os estruturalistas apropriaram-se de conceitos da linguística para estabelecer

suas bases teóricas. A narrativa passou a ser uma grande frase na qual se encontram as

categorias verbais de tempo, modo e voz. A. J. Greimas propôs-se a analisar os

personagens narrativos (actantes) pelo seu modo de agir no relato (sujeito/objeto,

objeto/destinatário, adjuvante/oponente). Finalmente, vale lembrar que a literatura usa a

linguagem para se exprimir e esta é o objeto de estudo da linguística. Portanto, a

linguística forneceu conceitos e princípios básicos para a sustentação da crítica

estruturalista.

Gérard Genette (1972a, p. 255), um dos grandes teóricos estruturalistas, define a

narrativa como “a representação de um acontecimento ou de uma série de

acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem”, e dedica-se, em seus

estudos, à exploração das diversas possibilidades do discurso narrativo. Suas obras

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principais são: Figures (1966), Figures II (1969), Figures III (1972), Mimologyques,

Voyage en Cratylie (1976), Introduction à l’architexte (1979), Palimpsestes (1982),

Nouveau discours du récit (1983) e Fiction et diction (1991), além de inúmeros artigos

publicados em revistas como Poétique, Littérature etc.

A tarefa que se propôs Genette (POIANA, 1994, p. 23) diz respeito às

transformações que se operam somente no nível do discurso. Na sua teoria do discurso,

dois são os conceitos fundamentais: figura e estilo, os quais percorrem um caminho

único e “terminam um e outro por reintegrar a ordem geral do discurso literário”

(POIANA, 1994, p. 34), permitindo verificar a produção, a apreensão e a avaliação da

obra literária. Assim, para Genette (1972b, p. 17), a obra “sem dúvida [...] deve,

enquanto tal, permanecer como o objeto da crítica”. O que interessa é a obra em

particular (o seu discurso) e não a sua gênese, suas fontes ou a biografia do seu autor.

Em linhas gerais, procuramos dar uma visão do que é o estruturalismo para a

literatura e procuramos comentar as idéias e obras de Gérard Genette, um dos seus

críticos mais representativos. Na segunda parte deste artigo, buscaremos detectar o

papel da crítica e do crítico literário no seu artigo “Estruturalismo e crítica literária”

(GENETTE, s/d, p. 367-392).

II. A CRÍTICA ESTRUTURALISTA

1. DO “BRICOLAGE” AO CRÍTICO LITERÁRIO

Na primeira parte de seu texto, Genette, partindo de uma consideração sobre o

“bricoleur”, que se encontra no livro La pensée sauvage, de Claude Lévi-Strauss, faz

uma comparação entre o “bricolage” e a crítica literária. A regra principal do

“bricolage” é investir numa estrutura nova, resíduos de estruturas antigas (GENETTE,

s/d, p. 367). A crítica literária, por sua vez, utiliza “o mesmo material (escrita) que as

obras de que se ocupa” e “fala a língua de seu objeto” (GENETTE, s/d, p. 368). É uma

metalinguagem, como afirma Roland Barthes (1970, p. 160):

Todo romancista, todo poeta, quaisquer que sejam os rodeios que possa fazer à teoria literária, deve falar de objetos e fenômenos mesmo que imaginários, anteriores à linguagem: o mundo existe e o escritor fala, eis a literatura. O objeto da crítica é muito diferente; não é o

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não fica mais preso em ''acervos bibliográficos''
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‘mundo’, é um discurso, o discurso de um outro: a crítica é discurso sobre um discurso; é uma linguagem ‘segunda’ ou ‘metalinguagem’ [...] que se exerce sobre uma linguagem primeira (ou linguagem-objeto). Daí decorre que a atividade crítica deve contar com duas espécies de relações: a relação da linguagem crítica com a linguagem do autor observado e a relação dessa linguagem objeto com o mundo. É o ‘atrito’ dessas duas linguagens que define a crítica [...].

O romancista e o poeta falam do mundo, mas a crítica fala sempre do discurso

de um outro. No discurso crítico transparecem dois tipos de relação: 1) relação da

metalinguagem com a linguagem-objeto e, 2) relação da linguagem com o mundo.

Numa obra crítica, geralmente encontramos também “o diálogo de duas histórias e de

duas subjetividades, as do autor e as do crítico” (BARTHES, 1970, p.163). Além disso,

não podemos nunca esquecer que o material de trabalho do crítico são as obras

literárias. É por meio delas que ele elabora seus textos, os quais são novas estruturas.

O crítico literário realiza um trabalho semelhante ao do “bricoleur”, pois o seu

material de estudo é a obra enquanto estrutura, a qual é reduzida a temas, motivos,

palavras-chaves, metáforas, citações, referências.

Em seguida, o crítico produz uma nova estrutura “combinando resíduos”, ao

utilizar as teorias de outros críticos e fragmentos da obra que analisa. Essa nova

estrutura é o seu texto, a sua análise e, em suma, uma nova obra.

Assim, o trabalho do crítico tem uma dupla função: 1) produzir sentido com a

obra dos outros e, 2) fazer a sua obra com esse sentido.

Dessa forma, a crítica pode ser considerada como uma atividade estruturalista,

mas tal atividade é implícita e não refletida. A intenção de Genette, no artigo, é indicar

as vias pelas quais o estruturalismo tem acesso ao objeto da crítica: a obra literária e,

num sentido mais amplo, a literatura.

2. O FORMALISMO RUSSO E O ESTRUTURALISMO

O formalismo puro reduziu as formas literárias a um material sonoro informe,

porque não significante. Na crítica formalista observa-se “uma negação do conteúdo da

arte” ou mais precisamente, “uma preocupação com a forma, independente do

conteúdo” (MERQUIOR, 1991, p. 39). A análise estrutural, portanto, deve ultrapassar

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essa redução formalista e determinar a ligação que existe entre o sistema de formas e o

sistema de sentido, substituindo a procura de analogias termo a termo, pela das

homologias globais.

O primeiro formalismo desprezava as imagens e desvalorizava os tropos como

marcas da linguagem poética. Levando em conta esses fatos, o estudo estrutural da

linguagem poética e das formas de expressão literária deve atentar para as relações entre

código e mensagem. Não pode limitar-se a contar pés ou assinalar repetições de

fonemas como os formalistas. Deve estudar as grandes unidades do discurso, muito

além do âmbito intransponível para a linguística que é a frase.

Embora existam muitas diferenças entre o formalismo russo e o estruturalismo, é

preciso destacar que “graças a uma percepção tardia, tende-se a reconhecer que as

críticas formalistas e estruturalistas têm muito em comum” (MERQUIOR, 1991, p. 36).

O crítico formalista Vladimir Propp, por exemplo, na sua obra Morfologia do

conto maravilhoso (1928), foi o primeiro a tratar de textos compostos de um grande

número de frases e passíveis de distinguir “elementos variáveis e funções constantes”,

além de reencontrar o sistema duplo das “relações sintagmáticas (encadeamentos reais

de funções na continuidade de um texto) e das relações paradigmáticas (relações virtuais

entre funções análogas ou opostas, de um texto ao outro, no conjunto do corpus

considerado)”. Sua obra deu origem ao que se considera como uma linguística do

discurso e ela já iniciava “o estudo estrutural das grandes unidades do discurso”

(GENETTE, s/d, p. 376) ao estabelecer as constantes fundamentais (as unidades

narrativas recorrentes) do conto popular russo.

A obra de Propp foi retomada e suas pesquisas foram desenvolvidas e ampliadas

por Roland Barthes (1972a, p. 19-60) no artigo “Introdução à análise estrutural da

narrativa” (1966). Dessa forma, podemos constatar que, apesar das diferenças existentes

entre os formalistas e os estruturalistas, estes continuaram as pesquisas iniciadas por

aqueles. Houve, até certo ponto, uma relação de contribuição e complementação entre

as críticas formalista e estruturalista.

3. ESTRUTURALISMO E HERMENÊUTICA

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A noção de análise estrutural está intimamente relacionada com o estudo

imanente das obras, ou seja, o estudo que se encerra numa obra, sem considerar fontes

ou motivos.

O estruturalismo seria o meio de reconstituir a unidade de uma obra, o seu

princípio de coerência, o seu “etymon” espiritual, segundo as considerações do

estudioso (principalmente no campo da estilística) Leo Spitzer. Assim, uma crítica

imanente pode adotar duas atitudes perante uma obra, conforme a considere como

objeto ou como sujeito.

A crítica intersubjetiva (aquela que privilegia a obra como sujeito) é conhecida

como hermenêutica. O sentido de uma obra é revivido, retomado como uma mensagem

a um tempo antiga e renovada. Inversamente, o estruturalismo dá ênfase ao objetivismo,

pois as estruturas não são vividas pela consciência criadora, nem pela consciência

crítica. Elas estão no interior da obra, como uma “armadura latente”, acessível apenas

por meio da análise e de comutações.

Caberia à crítica hermenêutica o estudo da literatura “viva”, suscetível de ser

vivida pela consciência crítica e ao estruturalismo, o estudo de uma literatura não

“morta”, mas longínqua e difícil de decifrar, cujo sentido só seria possível mediante

operações estruturais.

Genette propõe uma solução para o impasse entre estruturalismo e hermenêutica:

ambos deveriam complementar-se. A crítica hermenêutica voltar-se-ia para a linguagem

da retomada de sentido e da recriação interior, enquanto a crítica estrutural falaria da

palavra distante e da reconstrução intelegível. As duas críticas trariam à luz

significações que se tornariam complementares e se estabeleceria um diálogo fecundo

entre elas.

4. A CRÍTICA, A LITERATURA E O MÉTODO ESTRUTURAL

A crítica estruturalista deve seguir a literatura na sua evolução global, praticando

cortes sincrônicos em diversas etapas e comparando os quadros entre si. O estudo

sincrônico permite mostrar a função de uma forma ou de um tema literário no sistema,

pois cada obra está orientada em relação ao meio literário e cada elemento em relação à

obra inteira.

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A literatura é um conjunto coerente, um espaço homogêneo no interior do qual

as obras se tocam e se penetram umas as outras, ligando-se à cultura e o seu valor é

dado em função do conjunto. Ela é uma totalidade que se resolve em si mesma.

Dessa forma, a história literária torna-se a história de um sistema e, nesse

sistema é a evolução das funções que é significativa. Nela convivem o passado e o

presente, pois uma época manifesta-se tanto por aquilo que lê como por aquilo que

escreve e estes aspectos determinam-se mutuamente.

A escolha que uma nova corrente faz entre os clássicos e a sua reinterpretação

são problemas essenciais para os estudos literários sincrônicos e, por conseqüência, para

a história estrutural da literatura. Assim, para a crítica, a validade do método estrutural

está em levantar questões e contribuir para que os leitores e críticos possam

compreender os mecanismos que comandam a evolução literária.

PALAVRAS FINAIS

Araripe Júnior (apud CAIRO, 1996, p. 20), na Revista da Academia Brasileira

de Letras, de 10 de agosto de 1911, tece algumas considerações bem humoradas e muito

pertinentes, ao comparar o ato de descascar cebolas com o trabalho efetuado pelos

críticos literários:

Descascar cebolas fazem todos aqueles críticos que sobre três ou quatro conceitos literários, resumíveis em meia dúzia de páginas, escrevem livros. No centro do fruto, cebola ou qualquer outro, pode existir uma amêndoa de valor; mas para que o leitor atinja esse objeto tem de percorrer capítulos extensíssimos aos quais o escritor se alarga à vontade, dando-se ao prazer pouco lisonjeiro de flanar através de assuntos completamente estranhos à obra criticada. É uma cilada, já se vê, armada à boa fé dos inexperientes. Talvez um modo de descartar-se da obra, que o crítico não pretende analisar.

Em geral, é muito comum depararmo-nos com críticos que transformam suas

análises em paráfrases ou abismos impenetráveis para os leitores. Muitas vezes é difícil,

senão impossível encontrar algo de valor em tais análises. Entretanto, esse não é o caso

de Gérard Genette. Sua obra crítica é clara e composta, na sua maioria, de artigos sobre

diversos autores e obras da literatura francesa. Sobre ele é correto afirmar que produziu

“uma teoria construída fundamentalmente a partir da prática textual” (SEIXO, 1979, p.

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11-12), procurando sempre detectar os mecanismos discursivos que compõem a obra

literária. O texto “Estruturalismo e crítica literária” comprova, sem sombra de dúvida,

tudo o que dissemos a respeito de Genette.

Na primeira parte, seu artigo permite concluir que a crítica realiza um trabalho

semelhante ao do “bricoleur”, pois ela constrói o sentido de uma obra a partir da

combinação de “resíduos”, isto é, de textos teóricos e de obras literárias. O crítico

elabora uma estrutura, uma obra nova, baseado em textos e obras já existentes.

Na segunda, o crítico deixou claro que a crítica estruturalista iria superar a

crítica formalista russa (como de fato o fez), ao atentar para as relações entre código e

mensagem e ao estudar o discurso em sua totalidade e não só a frase, como procedia o

formalismo russo no seu início.

Na terceira, Genette sugere que a relação entre estruturalismo e hermenêutica

deve ser uma relação de complementaridade. A hermenêutica privilegia a obra como

sujeito (é uma crítica intersubjetiva) e o estruturalismo considera a obra enquanto

objeto, “estrutura”. Ainda que haja um antagonismo nos propósitos dessas duas

correntes críticas, as significações que cada uma obtivesse poderiam estabelecer um

diálogo fecundo e uma colaboração efetiva entre ambas.

Na última parte, o autor do artigo defende que a história literária é a história de

um sistema e como tal, o crítico estruturalista pode seguir esse sistema, realizando nele

cortes sincrônicos para apreender as funções de uma forma ou de um tema literário.

Dessa forma, o método estrutural tem a sua validade ao levantar questionamentos e ao

contribuir efetivamente para a compreensão da evolução literária.

Genette deixa patente que a crítica deve aprofundar, desenvolver e utilizar o que

foi descoberto e discutido por outras correntes críticas (formalismo, hermenêutica) e

centrar-se sempre em seu objeto de estudo que é a obra literária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAIRO, Luiz Roberto Velloso. O salto por cima da própria sombra: o discurso crítico de Araripe Júnior: uma leitura. São Paulo: Annablume, 1996. BARTHES, Roland. O que é a crítica. In: _______. Crítica e verdade. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1970.

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_______ et al. Análise estrutural da narrativa. Tradução de Maria Zélia Barbosa Pinto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972. GENETTE, Gérard. Estruturalismo e crítica literária. In: COELHO, Eduardo Prado (seleção e introdução). Estruturalismo : antologia de textos literários. São Paulo: Martins Fontes, s/d, p. 367-392. _______. Fronteiras da narração. In: BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa . 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972a. _______. Poétique et histoire. In: _______. Figures III . Paris: Seuil, 1972b. MERQUIOR, José Guilherme. De Praga a Paris. Tradução de Ana Maria de Castro Gibson. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. POIANA, Peter. Figure et style: concepts esthétiques dans la théorie du discours de Gérard Genette. In.:Littérature . Paris: Larousse, 95: 23-36, 1994. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Tradução de Antonio Chelini et al. 24. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. SEIXO, Maria Alzira. A narrativa e o seu discurso. In: GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa . Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Arcádia, 1979. TEIXEIRA, Ivan. Estruturalismo. Cult : Revista Brasileira de Literatura. São Paulo: Lemos Editorial, 15: 34-37, 1998.

1 Doutor em Letras pela UNESP/ASSIS – área de Teoria Literária e Literatura Comparada. Professor de literatura espanhola e hispano-americana da Universidade de Marília-SP (UNIMAR).

Artigo Recebido em 07 de maio de 2009.

Aprovado em 05 de junho de 2009.