O Paciente é... um Artista Plástico

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O Paciente é...

um Artista Plástico

Georgia Dunes

Rio de Janeiro, 2015

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Sumário

Capítulo 1 ...................................................................................... 9Medicina e Arte – por Luís Filipe da Silva Figueiredo

Capítulo 2 .................................................................................... 15Tiziano Vecellio (1488-1576) e a Senescência

Capítulo 3 .................................................................................... 27Paul Cézanne (1839-1906) e a Diabetes

Capítulo 4 .................................................................................... 39Gustav Klimt (1862-1918) e a Sífilis

Capítulo 5 .................................................................................... 51René Magritte (1898-1967) e o Câncer de Pâncreas

Capítulo 6 .................................................................................... 63Cândido Portinari (1903-1962) e o Saturnismo

Capítulo 7 .................................................................................... 75Salvador Dalí (1904-1987) e as Alterações do Comportamento

Capítulo 8 .................................................................................... 89Frida Kahlo (1907-1954) e a Infertilidade

Capítulo 9 ...................................................................................101Jean Michael Basquiat (1960 - 1984) e a Heroína

Índice de Figuras ........................................................................113

Referências Bibliográficas ......................................................... 133

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Capítulo 1Medicina e Arte

Autor convidado: Luís Filipe da Silva Figueiredo

As artes sempre caminharam junto à Medicina. No século XV, na época renascentista, Leonardo di Ser Piero da Vinci (1452-1519), ou simplesmente Leonardo da Vinci, através de seus desenhos

anatômicos, captados pelas dissecções de cadáveres, ficou conhecido como o cientista responsável pelo grande avanço do conhecimento no campo da anatomia e da patologia, quando, por exemplo, desenhou através de seus traços firmes um cadáver que apresentava uma ectopia do coração que se localizava na cavidade abdominal. Este material foi publicado no seu livro “Rede de Órgãos da Cavidade Toracoabdominal” (Figura 1). Esta alteração é conhecida atualmente como Síndrome de Tin Man, uma rara malformação congênita (Figura 2 e Figura 3).

Outro exemplo do binômio Medicina-Arte foi Vincent Willem van Gogh (1853-1890). A sua fase amarela, quando pintou belíssimos quadros (Figura 4 e Figura 5), nada mais era para alguns historiadores, xantopsia, um sinal de intoxicação digitálica. Nesta época a digitalis era usada no tratamento de depressão e epilepsia, dois males que Van Gogh sofria. Indício da veracidade desta história foi documentado no quadro onde o pintor retrata Paul-Ferdinand Gachet (1828-1909), ou simplesmente seu médico Dr. Gachet, que usava a homeopatia e a fitoterapia para tratamento da depressão e epilepsia. No quadro, ele aparece com dois ramos de digitalis postas num copo, além de brochuras amarelas dispostas sobre a mesa (Figura 6).

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Medicina e Arte

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A verdadeira razão de ser da Medicina é o cuidado da pessoa doente, uma origem histórica e a essência da profissão médica. O médico, portanto, deve estar em função do paciente, cuidando-o com ciência e dedicação. Cuidar exige compreender e compreender o paciente significa compreender a pessoa que sofre, a doença e o que esta significa para ela. Na maioria das vezes, a doença, na visão do paciente, tem uma linguagem própria e só o médico é o receptor sensível para decodificar seus verdadeiros significados.1

As humanidades são para o médico muito mais que um apêndice cultural ou um mero complemento da sua formação. Elas têm uma dimensão muito maior de quem pretende compreender e cuidar com eficácia; são um recurso de conhecimento e de possibilidades humanas por meio do qual se constrói, também, a identidade do médico.1,2

Os conhecimentos curriculares mais duros e técnicos sem dúvida são essenciais na formação médica, mas as humanidades também são fonte de conhecimento tão importante quanto estes e que igualmente auxiliam no ato de cuidar do ser humano em seu processo saúde-doença.

Gregório Marañon relata que: “o humanismo ambicioso e ao mesmo tempo humilde, serve para amadurecer, para formar e fazer prudente e eficaz o instrumento da profissão.” 3

Sem humanismo a Medicina amputa uma das suas fontes científicas do saber. O médico sem humanismo se torna simplesmente um mecânico de pessoas.4

A origem da Medicina ocidental foi forjada na ciência essencialmente humanística com foco no protagonista maior – o homem, um ser dotado de corpo e espírito. O médico conhecia as leis da natureza e da alma humana.

A Medicina vive tempos de vertiginoso progresso técnico, cuja a importância é inegável. Hoje o avanço tecnológico da medicina, a cultura da pressa e do imediatismo, a fragmentação do ser humano pelas especialidades médicas (Figura 7), a falta de troca de olhares e a deterioração da empatia desde a graduação, distanciam o estudante e o médico daquele que sofre - o paciente, pulverizando uma relação de mais de 2000 anos. Prestamos mais atenção aos processos de investigação, do conhecimento das doenças e aos recursos terapêuticos do que aos próprios pacientes. Nas enfermarias eles perdem sua personalidade e passam a ser ‘um número de leito’ ou ‘um caso

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de hepatite’. É neste contexto, que as humanidades deveriam fazer parte da formação do médico, propiciando a construção de um profissional capaz de entender seus pacientes com um cuidado mais ampliado. Nesta seara as artes são ferramentas imprescindíveis, uma vez que facilitam a compreensão do ser humano e todo seu contexto. ‘A arte imita a vida’ e oferece várias situações para que o ser humano possa internalizar características difíceis de ser ensinadas, como por exemplo, a empatia, que tem uma importância magnânima na relação médico-paciente.

Ninguém discorda que a relação médico-paciente (RMP) é a essência da prática médica em suas dimensões técnica, humanística e ética; e que o encontro clínico é a luz inesgotável desta mesma prática. A RMP é algo maior do que fazer perguntas e exames físicos, prescrever medicamentos e condutas. Ela mescla habilidades técnicas e pessoais. Quando mantemos uma boa relação com os pacientes teremos ao final: uma maior precisão na identificação dos seus problemas, com promoção do raciocínio clínico, maior adesão ao tratamento, maior entendimento pelos pacientes de seus problemas, das investigações conduzidas e das opções de tratamento, além de menor incidência de queixas de erro médico e maior satisfação para o médico e paciente.

Como dito anteriormente, um dos pilares fundamentais na RMP é a empatia, que tem um rastro de ambiguidade e dificuldades conceituais. A palavra empatia, de origem grega, empatheia, significa apreciação aos sentimentos de outra pessoa. No início do século XIX, Edward Titchener designou empatia como a capacidade de compreender outro ser humano, utilizando-se da tradução da palavra alemã Einfühlung, que descreve os sentimentos de observadores apreciando uma obra de arte. Southhard, no ano de 1918, contextualizou o conceito de empatia com a relação médico-paciente, tornando-a uma ferramenta facilitadora do diagnóstico e do tratamento5. Para Rogers empatia envolve um sentimento de sensibilização pelas mudanças sentidas e refletidas pela outra pessoa6. Já Davis diz que é um processo psicológico conduzido por mecanismos afetivos, cognitivos e comportamentais frente à observação da experiência do outro7. Para Larson, empatia é marca indelével das profissões que cuidam da saúde8.

Alguns pesquisadores dividem empatia em três componentes: um compartilhamento afetivo entre a pessoa e o outro, baseado no acoplamento percepção-ação que leva a representação compartilhada; a consciência

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self-other, mesmo quando ocorre uma identificação temporária, há uma distinção entre o eu e o outro; flexibilidade mental para aceitar a perspectiva subjetiva do outro e também processos regulatórios que mantém o controle da origem dos sentimentos self e no-self. Estes três componentes se mesclam e devem interagir um com o outro para produzir a experiência subjetiva da empatia9. Por fim, seja qual for a sua definição, a empatia promove um encontro entre a Medicina centrada no doente e a Medicina baseada em evidências, incorporando, assim, os avanços tecnológicos ao contexto de um ato de cuidar mais amplo e eficaz aos pacientes.

Na graduação médica os estudantes ingressantes, em sua maioria, estão imersos no entusiasmo do ‘Ser médico’, são mais sensíveis ao sofrimento do paciente e, portanto, expressam uma atitude mais empática10. Com o passar do tempo, este entusiasmo é perdido na poeira do esquecimento, iniciando-se, pelo estudante, o processo de desumanização do paciente (o paradoxo conceitual da Medicina), o qual passa a ter um papel secundário na prática médica. Como consequência, cria-se um distanciamento entre o doente e o estudante, evitando, assim, um envolvimento emocional compartilhado. Isto se traduz como um mecanismo de defesa do estudante para fugir do contato com o sofrimento do outro ou mesmo para não se sentir impotente perante a situação11. Indubitavelmente, esta atitude impessoal fragmenta sobremaneira a empatia.

Chen et al12 perceberam uma diminuição na empatia – medida através da escala Jefferson Scale of Physicians Empathy – entre estudantes no transcorrer do curso de medicina. Estes achados mostram que a empatia se deteriora, portanto é passível de mudança; e onde há modificações existem possibilidades de intervenções neste processo.

Dr. Phillip B. Price, professor da Universidade de Utah, cirurgião e membro do American Surgical Association, investigou por mais de vinte anos as qualidades de um bom médico. Seu estudo “Criteria for Selection of Future Physicians”, publicado no Annals of Surgery, elencou 87 características positivas que definem um bom médico, com seu respectivo nível de dificuldade de ensiná-las. No topo do ranking, tanto na importância, quanto na dificuldade de ensinar, disputavam características diretamente relacionadas à empatia, como por exemplo, compaixão, vontade de ajudar e compreensão das pessoas13.

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Portanto, como formar futuros bons médicos. Como fazer o estudante perceber que estas questões são essenciais para sua formação? Como hierarquizar o processo de ensino da empatia frente a uma quantidade enorme de informações científicas que prevalecem na distribuição do tempo educacional e que raramente deixa espaço para abordar estas questões.

Os Neurônios Espelhos

Os neurocientistas Giacomo Rizzolatti, Leonardo Fogassi e Vittorio Gallese, da Universidade de Parma, descobriram ao acaso os neurônios-espelho (NE) em pesquisas utilizando macacos Rhesus. O objetivo inicial da pesquisa era identificar a área cerebral ativada ao executar uma determinada ação motora. Fogassi, ao apanhar uma uva passa percebeu que os neurônios pré-motores do macaco dispararam da mesma forma como nos testes realizados intencionalmente. Este fato se repetiu também quando os macacos ouviam amendoins sendo quebrados pelos cientistas. Concluíram, então, que para tais neurônios o que importa é a própria ação e não o modo como ela é realizada ou percebida. O simples ato de visualizar ou de ouvir situações previamente vivenciadas é capaz de ativar áreas motoras cerebrais. A primeira evidência da existência dos NE em humanos foram os estudos eletroencefalográficos da reatividade dos ritmos cerebrais durante a observação dos movimentos, que foram realizados na década de 1950 por Gastau e confirmados recentemente por Cochin e col. e Ramachandran e col. Os NE são a base da nossa compreensão, da nossa capacidade de aprender e da empatia. Estão localizados no giro frontal inferior, córtex pré-motor, área de Broca (relacionada com o desenvolvimento da linguagem oral e compreensão dos gestos linguísticos) e na região anterior da ínsula (Figura 8). Sua ativação independe da memória, ou seja, podem ser ativados mesmo visualizando ações nunca vistas. Estudos mostram que a ação conjunta entre os NE com outros grupos neuronais são a base da manifestação da empatia, pois são capazes de simular a perspectiva do outro. Seu perfeito funcionamento surge como facilitador da empatia14, 15, 16. Isto explica o modelo inglês de ensino “Tag-along” (grudar-se e andar juntos), que permite o estudante incorporar atitudes e comportamentos de seus mestres na abordagem ao paciente real – o professor exemplo/modelo num cenário de aprendizagem.

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Outra maneira de proporcionar o ensino da empatia no curso de medicina é através da incorporação das humanidades e das artes como recursos educacionais. O processo vai além do ensino teórico. As emoções dos estudantes deflagradas através do cinema, da música, da pintura e da literatura despertam valores e atitudes muitas vezes inesperadas, facilitando a compreensão das emoções humanas e das atitudes do paciente frente à doença, possibilitando, assim, a construção de conceitos relacionados à RMP e uso destes conhecimentos aprendidos nas atividades do cotidiano.

Estas intervenções no processo de ensino da empatia devem ser consideradas no contexto curricular da educação médica e da prática clínica de uma forma mais maciça e significante, tanto para os professores quanto para os estudantes, pois a empatia desempenha um papel fundamental na qualidade do ato de cuidar prestado ao paciente, impactando consequentemente na sua saúde17.

Temos que Re-humanizar e reconquistar a Medicina, ou seja, reconquistar a postura humanística do médico. Isto é um grande desafio para todos: instituições de ensino, gestores, professores, médicos e estudantes. Devemos resgatar as origens daquela Medicina na raiz de sua essência, onde o progresso deve ser incorporado e disposto a serviço do paciente, que deverá voltar a ser o protagonista do encontro clínico18. Os conteúdos curriculares deverão ensinar não somente a ausculta e sim a Escuta; não só a palpação, mas sim o Conforto aos que sofrem; e não unicamente tratar e sim ampliar o significado do Ato de cuidar.

O autor convidado é médico especialista em Clínica Médica e Terapia Intensiva. É professor, assessor da Coordenação e membro do Núcleo Docente Estruturante do Curso de graduação em Medicina do UNIFESO que adota metodologias ativas de ensino-aprendizagem e currículo trabalhado a partir de situações simuladas contextualizadas com os aspectos políticos e psicossociais que influenciam no processo saúde-doença. Está no Quadro de Médicos Oficiais da Saúde da Polícia Militar (PMERJ), é médico emergencista e Preceptor do Programa de Residência Médica e de Estagiários na Emergência do Hospital Central da PMERJ (HCPM)

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