O LUGAR DA CULTURA POPULAR NA VIDA DO MESTRE … · Nesse trabalho apresentamos o resultado parcial...
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O LUGAR DA CULTURA POPULAR NA VIDA DO MESTRE BENEDITO DO
COCO DE CABEDELO NA PARAÍBA
VANUSA DINIZ TARGINO*
Resumo: Propomos nesse trabalho apresentar o resultado parcial da pesquisa feita com base na
metodologia da História Oral, através das concepções de MEIHY & HOLANDA com História
Oral: Como fazer, como pensar (2015) e de ALBERTI em Fontes orais: Histórias dentro
da História (2005). Este estudo tem por objetivo analisar a trajetória de vida do Mestre
Benedito do Coco do Bairro de Monte Castelo em Cabedelo na Paraíba, percebendo o lugar da
cultura popular na vida desse homem negro, pobre, que nasceu em 1915 e faleceu 1999, e que
teve uma intensa participação na vida cultural do município, especialmente estando à frente do
grupo de Coco de Roda de Monte Castelo. Escolhemos essa temática por acreditarmos ser
fundamental destacar as histórias de vida dos afro-brasileiros no pós abolição, suas lutas,
conquistas, dificuldades, formas de resistência e expressões culturais. Para atingir nosso
proposito realizamos entrevistas com pessoas que conviveram com o Mestre Benedito do Coco,
e que foram fundamentais na construção do conhecimento sobre nosso objeto de pesquisa.
PALAVRAS CHAVE: Mestre Benedito, Coco de Roda, Cultura Popular.
INTRODUÇÃO
Nesse trabalho apresentamos o resultado parcial da pesquisa feita com base na
metodologia da História Oral, através das concepções de MEIHY & HOLANDA com “História
Oral: Como fazer, como pensar” e de ALBERTI em “Fontes orais: Histórias dentro da
História”. Como também por meio do entendimento de teóricos que abordam os conceitos de
Memória e Identidade, a exemplo de HALL com “A identidade cultural na pós-modernidade”,
LE GOFF em “História e memória” e BOSI com “Memória e sociedade: Lembranças dos
velhos”.
Este estudo tem por objetivo analisar a trajetória de vida do Mestre Benedito do Coco
do Bairro de Monte Castelo em Cabedelo na Paraíba, percebendo o lugar da cultura popular na
*UFPB, Mestranda do Programa de Pós Graduação em História.
vida desse homem simples, afrodescendente, que nasceu em 1915 e faleceu 1999, e que teve
uma intensa participação na vida cultural do município, especialmente estando à frente do grupo
de Coco de Roda do Monte Castelo.
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Escolhemos essa temática por acreditarmos ser fundamental destacar as histórias de vida
dos afro-brasileiros no pós abolição, suas lutas, conquistas, dificuldades, formas de resistência
e expressões culturais. O desafio a partir desse ponto estava em escrever sobre esse homem do
povo, um indivíduo comum que desde sua juventude gostava dessa proximidade com a cultura,
e essa atração esteve presente durante toda sua trajetória de vida, acabando por influenciar seus
filhos e netos.
O passo seguinte foi pensar em como poderia me aproximar desse objeto? Por qual viés
historiográfico deveria seguir? Que perguntas faria à ele? Antes de tudo, era essencial
estabelecer um recorte temporal. Sendo assim, percebi que seria importante estudar o período
que tem início em 1915, com o nascimento do Mestre Benedito, entender quem foi nosso
personagem desde a infância. Este estudo se estende até 1999 ano de seu falecimento,
encerrando um período de intensa participação na vida cultural de Cabedelo. Para atingir nosso
proposito realizamos entrevistas com pessoas que conviveram com o Mestre Benedito do Coco,
e que foram fundamentais na construção do conhecimento sobre nosso objeto de pesquisa. Para
isso selecionamos colaboradores que tiveram contato com o Mestre Benedito, seja nos grupos
culturais que ele fez parte, ou no cotidiano com familiares e amigos. Todos os participantes tem
idade superior a 18 anos e contribuíram de maneira substancial para a construção desse trabalho
de pesquisa. De modo que, sem os relatos dos entrevistados, dificilmente conseguiríamos
alcançar o resultado almejado.
Temos plena consciência de que não será possível conhecer e analisar todas as nuances
da trajetória de vida do Mestre Benedito, deste modo, apresentarei da melhor forma possível os
conhecimentos adquiridos com a pesquisa.
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MESTRE BENEDITO DO COCO: UM PASSEIO PELA CULTURA POPULAR
Para entender um povo não basta conhecer seus feitos,
é preciso penetrar-lhe a alma.
E esta, se encontra em suas criações espontâneas,
tradicionais, anônimas, mais do que no trabalho do erudito.
Altimar de A. Pimentel
O personagem central de nosso estudo, José Benedito da Silva nasceu em 17 de maio
de 1915 em Ferreiros2 distrito de Itambé no Estado de Pernambuco, e faleceu no município de
Cabedelo3 em 10 de junho de 1999, aos 84 anos. Desde criança teve que aprender a lidar com
as dificuldades de ser negro e pobre no Brasil do início do século XX. Segundo Guillen (2014:
73), “A luta pela cidadania empreendida por negros e negras que batalharam para ser e foram
sujeitos de sua própria história indica que a reflexão sobre a conquista da plena cidadania
permanece sendo uma questão fundamental no Brasil”.
De acordo com Guillen (2014: 75), o período pós abolição foi marcado pela dificuldade
de inserção do negro na sociedade brasileira, grande parte dessas dificuldades, advinham das
teorias raciais que tratavam a população negra como um obstáculo para a modernização do país,
e em meio a todos esses impedimentos, homens e mulheres negras procuravam desenvolver
táticas para sobreviver às estratégias das elites, que pretendiam excluir e apagar o negro da
sociedade brasileira.
A realidade do povo negro no Brasil do pós abolição não era fácil, e essa condição não
mudou muito em todos esses anos, no caso de José Benedito e sua esposa Domerina, as
dificuldades se agravaram ainda mais pela situação de orfandade que vivenciaram. Para
Benedito, essa realidade cruel esteve presente desde a infância, ficou órfão ainda criança e teve
2 A origem do município se deu no século XIX, nas fronteiras de três propriedades rurais: o Sítio Ferreiros,
o Engenho Bonfim e o Engenho Olho D’Água, onde existia um povoado conhecido por Carrapateiras. Esse
nome se refere a uma mamona nativa que nascia nas terras desse povoado. Nesse lugar, residiam alguns
ferreiros que concertavam e restauravam os equipamentos dos engenhos de açúcar da região. Em 1889, com
a construção da capela de Nossa Senhora da Conceição o povoado foi crescendo lentamente. Essa vila
compreendia apenas a rua que, hoje, se chama Rua Imaculada Conceição.
No início do século XX, o povoado passou a ter um crescimento mais rápido com a chegada da construção
do trecho da ferrovia que ligaria Timbaúba (PE) a Itabaiana (PB). Nesse período houve um crescimento na
urbanização, pois acreditava-se que a estrada de ferro passaria pelo local. Dessa forma, muitos senhores de
engenho da redondeza passaram a construir suas casas secundárias no povoado.
O distrito chamado de “Ferreiros” pertencia ao Município de Itambé e foi criado por uma lei de 16 de março
de 1949. A emancipação do distrito só aconteceu em 20 de dezembro de 1963. Seu primeiro prefeito foi o
pedreiro José Honório da Silva. Para maiores informações consultar:
http://www.ferreiros.pe.gov.br/index.php/cidade/historia 3 A origem do município remete aos tempos da colonização do território brasileiro. Para mais informações
consultar: PIMENTEL, A. A. Cabedelo, Vol. 1. 2ª edição Revisada, Prefeitura Municipal de Cabedelo, Secretaria
de Educação, 2015.
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que morar com seus tios em Cruz do Espirito Santo na Paraíba, enfrentando inúmeras
dificuldade para sobreviver.4
Após muitos percalços José Benedito e Domerina que ainda não haviam se encontrado,
vieram trabalhar em João Pessoa, ele em uma refinaria de açúcar e ela em uma casa de família
como doméstica. Os dois se conheceram e começaram um namoro que algum tempo depois
terminou em casamento. Agora com família constituída José Benedito precisava de uma maior
segurança para mantê-la, por isso preferiu levar Domerina e filhos para morar em Cruz do
Espirito Santo, lugar onde havia residido com seus familiares desde a infância. Ali! Vivendo
em um ambiente rural com uma casa aqui e outra acolá, nosso personagem cuidava da família
e ampliava seu círculo de amizades, nem mesmo o distanciamento entre as moradias impedia o
fortalecimento dos laços sociais construídos através dos casamentos e batizados entre amigos e
parentes, tornando as festas e comemorações na roça momentos repletos de alegrias e
entusiasmos, com música, danças e comidas típicas. Em épocas festivas, em especial no São
João, José Benedito se reunia com os compadres, familiares e amigos para prepararem juntos o
ambiente onde iria acontecer a festança, construíam um arraial com os pés de milho mais
bonitos do roçado, cantavam e dançavam o coco de roda durante toda a noite.5
Benedito sabia ler e escrever muito pouco, reflexo das dificuldades de acesso dos negros
ao sistema de ensino no pós emancipação. Entretanto, ensinava o pouco que sabia aos que não
tinham tido acesso nenhum à educação formal. Em Cruz do Espirito Santo nessa época não
existia luz elétrica, era luz de candeeiro, mesmo assim José Benedito juntava o povo e ensinava
a tabuada cantada. Assim José Benedito ficou conhecido em Cruz do Espirito Santo onde
morava como “Zé Pequeno”, primeiramente em função de que na família de seu tio onde foi
criado já tinha um Zé, e então nesse caso ele ficou sendo o Zé Pequeno, depois por ser divertido
e gostar de reunir as pessoas da localidade para ensinar a ler e cantar Cordéis.
José Benedito, o Zé Pequeno, gostava de ler Literatura de Cordel e cantar as histórias
dos cordéis para a vizinhança. A cultura chega até ele através dos cordéis e dos cocos, e esse
conhecimento é transmitido para seus familiares, amigos e vizinhos, dessa forma todos tinham
acesso a um universo cultural disponível especialmente para os pessoas que sabiam ler.
Percebemos que, o que era uma forma de lazer, pode ser pensado também como uma estratégia
de resistência à uma condição imposta pela sociedade da época, que limitava a população negra
4 CARNEIRO, Terezinha da Silva. Terezinha da Silva Carneiro. Entrevista I [Jun. 2016]. Pesquisadora: Vanusa
Diniz Targino. Cabedelo, Paraíba, 2016. 1º arquivo. mp3 (00:13:08), 05 págs. Transcritas. Entrevista concedida à
pesquisa do mestrado em História da UFPB. 5 Idem
5
no pós abolição a um determinado espaço social, com pouco ou nenhum acesso à educação
escolar.
Nessa época José Benedito que era conhecido como Zé pequeno, via na cultura uma
forma de reunir o povo, se divertindo e partilhando o pouco que ele sabia, transmitindo o
conhecimento que chegava até ele por meio dos cordéis e dos cocos, mantendo as relações
sociais e tornando menos árdua a vida na agricultura.
Com a pretensão de nos aproximar do cotidiano de José Benedito da Silva, buscamos
conhecer um pouco de seu mundo por meio de sua relação com a cultura da época, percebemos
que essa relação ocorre de maneira espontânea e sempre em contato com o meio social.
Mais importante do que o caráter geral da sociedade estudada (...) é a teia social
concreta onde os atores se movem, exercendo múltiplos papéis sociais e individuais.
Assim, na micro história prevalece, no tocante à delimitação do campo social
estudado, procedimentos de delimitação dos atores e da caracterização de perfis
individuais no interior de determinado grupo ou classe, mais do que a definição geral
da classe ou do grupo ao qual pertence. (VAINFAS, 2002, pp. 116-117)
José Benedito tinha decidido morar em Cruz do Espirito Santo com sua família e assim
construir sua vida junto aos seus familiares. Segundo Rios & Mattos (2004: 182), no período
pós abolição os negros migravam de suas localidades de origem para a cidade em busca de
melhores condições de vida: geralmente o local era escolhido por meio do convite de parentes
que já residiam naquela cidade. Dentro dessas constatação, analisamos José Benedito e sua
esposa, que migraram para o convívio de familiares, na tentativa de encontrar um lugar que lhe
fornecesse as condições de vida necessárias à sobrevivência da família.
Quando já estavam morando há algum tempo em Cruz do Espirito Santo, Domerina que
não via seus irmãos desde a infância e sonhava em reencontrar seus parentes, teve notícias de
que eles estavam morando em Santos no Estado de São Paulo. A partir desse momento, ela não
mediu esforços para encontra-los, vendeu tudo que tinha construído em Cruz do Espírito Santo
e foi com Benedito e filhos em busca de seus irmãos. Ao chegar em Santos, logo perceberam
que não tinha nenhuma condição de residirem naquele espaço, a casa de seu irmão José ficava
na zona portuária, era um cortiço com péssimas condições de higiene e acomodações precárias.
A grande quantidade de indivíduos ocupando o mesmo espaço gerou muitos conflitos, tornando
a convivência insuportável para Benedito e família. Para piorar ainda mais a situação, Benedito
não conseguia trabalho e Domerina que estava grávida foi ficando aflita com todas essas
preocupações. Sem dinheiro para comprar passagens de volta para a Paraíba, Domerina decidiu
6
procurar ajuda na Legião Brasileira, lá conseguiram passes para embarcar no navio Guaíba,
encerrando a aventura em Santos, que durou apenas três meses.6
Fernandes (2008: 41), destaca as condições de trabalho dos negros e mulatos em São
Paulo após a emancipação, “o negro e o mulato foram eliminados das posições que ocupavam
no artesanato urbano pré-capitalista ou no comércio de miudezas e serviços, fortalecendo de
modo severo a tendência de confiná-los a tarefas ou ocupações brutas, mal retribuídas e
degradantes.”
Diante do negro e do mulato se abrem duas escolhas irremediáveis, sem alternativas.
Vedado o caminho da classificação econômica e social pela proletarização, restava
lhe aceitar a incorporação gradual à escória do operariado urbano ou se abater
penosamente, procurando no ócio dissimulado, na vagabundagem sistemática ou na
criminalidade fortuita meios para salvar as aparências e a dignidade de “homem
livre”. (FERNANDES, 2008: 44)
Fernandes acredita que as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, o preconceito
latente da sociedade que não mudará mesmo com o fim da escravidão e a concorrência com os
estrangeiros, colocaram os brasileiros de cor, frente a dois caminhos, sendo que nenhuma das
opções apresentadas eram capazes de fornecer os brasileiros de cor uma vida digna.
Após todas as dificuldades enfrentadas em Santos-SP, enfim, Benedito e família
estavam a bordo do navio Guaíba em direção ao porto de Cabedelo, lugar escolhido em função
de ali se encontrar um parente da família.
A cidade de Cabedelo é conhecida por suas belas praias de águas mansas e mornas, e
por sua gente cordial e hospitaleira. Segundo Pimentel (2015: 13), “Cabedelo é a continuidade
da orla de João Pessoa e estreita-se no encontro entre o Rio Paraíba e o mar”. Seu principal
patrimônio histórico é o Forte de Santa Catarina de Alexandria, nome dado em homenagem à
Dona Catarina Duquesa de Bragança,7 construído no período da colonização da Paraíba.
Chegando ao Porto de Cabedelo em 1952, já com seus 30 e poucos anos, José Benedito
foi morar com sua esposa e sus filhos na casa de parentes. Recém chegado à cidade e sem ter
muito conhecimento com os moradores do lugar, teve que enfrentar muitas dificuldades para
conseguir trabalho, até que sua esposa Domerina foi pedir ajuda ao pároco da igreja do Sagrado
Coração de Jesus que fica localizada no centro de Cabedelo. Domerina já tinha ouvido falar que
6 CARNEIRO, Terezinha da Silva.Terezinha da Silva Carneiro. Entrevista II [Dez. 2016]. Pesquisadora: Vanusa
Diniz Targino. Cabedelo, Paraíba, 2016. 2º arquivo .mp3 (00:48:07), 10 págs. Transcritas. Entrevista concedida à
pesquisa do mestrado em História da UFPB. 7 Em 1574 foi criada a Capitania real da Paraíba agora separada de Itamaracá, restava nesse momento, conquistar
o território e defende-lo dos invasores, para isso era necessária a construção de um forte em um ponto estratégico
para facilitar a defesa da Capitania. Para mais informações consultar: PIMENTEL, A. A. Cabedelo, Vol. 1. 2ª
edição Revisada, Prefeitura Municipal de Cabedelo, Secretaria de Educação, 2015.
7
o religioso tinha grande influência, e que ele poderia tentar arrumar um trabalho para seu
esposo. O religioso escreveu um bilhete pedindo uma vaga para José Benedito trabalhar no
porto. Domerina entregou o bilhete ao encarregado do porto e logo José Benedito estava
trabalhando na estiva, no embarque e desembarque de mercadorias, este emprego facilitou para
que a família fixasse moradia definitivamente nessa cidade.
Alguns tempo depois José Benedito conseguiu comprar uma pequena casa no Bairro de
Monte Castelo no mesmo município, onde foi morar com sua família. Na década de 1950, o
Bairro de Monte Castelo não tinha muitas residências, eram poucas casas, a grande maioria
delas eram feitas de palhas de coqueiro, um local ainda pouco habitado onde todos se
conheciam. Foi nesse bairro que nosso personagem novamente pode entrar em contato com as
manifestações culturais, “não tinha nada, tudo era aberto. Aí pronto, o povo dançava, aí tinha a
Barca e o Coco”.8 Os moradores se reunião em um caramanchão mantado em frente a uma
vendinha e faziam a festa nas noite de sábado.
Os grupos folclóricos sempre foram característica marcante no município. No entanto,
alguns folguedos ganharam destaque, a exemplo do Coco de Roda, da Lapinha9 e da Nau
Catarineta.10 Em alguns momentos da história da cidade, essas festanças com danças e cantorias
representavam a principal forma de lazer e divertimento da população.
Os que chegaram a Cabedelo integram-se no mundo lúdico da comunidade praieira.
O bairro de Monte Castelo transformou-se, passou a ser um local onde se dançava o
coco de roda nos dias e noites de festa e também sem que houvesse motivação, senão
o indisfarçável espirito lúdico de seus habitantes. (PIMENTEL, 2004: 29)
Na primeira metade do século XX, a cidade de Cabedelo era palco de muitos grupos
culturais, com destaque para o coco de roda, nas noites de festa, os brincantes dançavam e
8 CARNEIRO, Terezinha da Silva. Terezinha da Silva Carneiro. Entrevista I [Jun. 2016]. Pesquisadora: Vanusa
Diniz Targino. Cabedelo, Paraíba, 2016. 1º arquivo .mp3 (00:13:08), 05 págs. Transcritas. Entrevista concedida à
pesquisa do mestrado em História da UFPB. 9 A lapinha é uma manifestação da cultura popular alusiva ao Dia de Reis, comemorado em 06 de Janeiro. O canto
e a dança são bem caracterizados no festejo e as cores das vestimentas (vermelho e azul), cada membro do grupo
representa uma personagem, conhecida como Diana, a figura central dos cordões e que, geralmente, veste as cores
dos dois cordões, seguida de mestra, contramestra, ciganas, borboletas e pastorinhas. O cordão azul e vermelho,
ou “encarnado”, disputam as ofertas em dinheiro do público. As pastoras dispostas em duas fileiras, cantam
canções cujas letras lembram e louvam o evento do nascimento do menino Jesus e exaltam suas qualidades na
disputa. Informações sobre a lapinha de Cabedelo disponível em:
<http://www.cabedelo.pb.gov.br/turismo/manifestacoes_populares.asp>. 10 A Nau Catarineta é uma dança dramática inspirada nas viagens marítimas portuguesas, atualmente é considerada
Patrimônio Cultural e Imaterial do Município de Cabedelo a partir promulgação da Lei nº 1.662, de 23 de setembro
de 2013. A dança surgiu em Portugal, no século XVI, baseado no romance Nau Catarineta, do poeta português
Almeida Garret. Existem três versões sobre o surgimento da Nau Catarineta em Cabedelo, não havendo
unanimidade em relação à verdadeira. O espetáculo traz em sua apresentação uma barca para encenar uma história
trágica de naufrágios, com elementos religiosos e cômicos. Informações sobre a lapinha de Cabedelo disponível
em: <http://www.cabedelo.pb.gov.br/turismo/manifestacoes_populares.asp>.
8
cantavam os cocos convidando a população local para a brincadeira que não tinha hora para
terminar. Os sons dos zabumbas e dos ganzás ecoavam por todos os cantos do município.
A partir do memento em que José Benedito foi trabalhar no porto e morar no bairro de
Monte Castelo, sua relação com a cultura foi se transformando a tal ponto que em um
determinado momento, José Benedito deixou de ser simplesmente um brincante para ser o
responsável por organizar os grupos de tradições culturais. O primeiro grupo cultural
organizado que Benedito participou foi o Tupi Tamoios11, depois de ingressar nesse grupo, José
Benedito começou a fazer amizades com as pessoas que participavam de outras manifestações
populares como o grupo de Coco de Roda e os homens da Barca “Nau Catarineta”. Seu círculo
de amizade, misturava o mundo do trabalho e o mundo da cultura, “pescador, gente que
trabalhava nas docas com ele, estivador do porto, trabalhava tudo no porto e brincava tudo aqui.
Quando era dia de brincadeira, estava todo mundo aqui”.12
Convidado a participar do coco de roda, Benedito foi aos poucos se entrosando até que
recebeu a proposta para ser o responsável por organizar as apresentações do grupo. Segundo
Pimentel (2004: 30), “o elemento aglutinador de danças e folguedos era José Benedito que neles
envolvera a esposa e os filhos. Estes, desde cedo participaram dos folguedos do pai e da mãe,
integraram as rodas de coco, ciranda de adultos, índios, lapinha e barca”. A família de Benedito
também participava dos folguedos, Domerina era responsável pela confecção das roupas, já os
filhos e filhas tocavam os instrumentos e dançavam. O Mestre gostava de ver todos na
brincadeira, cantando e dançando.
Perceber o lugar das tradições culturais no cotidiano dos indivíduos não é tarefa fácil,
entender qual a lógica de pensamento de uma pessoa comum, que se dispõe a cuidar da cultura.
No caso de José Benedito, as práticas culturais que antes eram espontâneas, transformou-se ao
chegar em Cabedelo, em algo a mais, deixando de ser uma simples brincadeira, para se tornar
um compromisso com a preservação da cultura popular.
Enquanto o historiador das ideias esboça a filiação do pensamento formal, de um
filosofo para outro, o historiador etnográfico estuda a maneira como as pessoas
comuns entendiam o mundo. Tenta descobrir sua cosmologia, mostrar como
organizavam a realidade em suas mentes e a expressavam em seu comportamento.
Não tenta transformar em filosofo o homem comum, mas ver como a vida comum
exigia uma estratégia. Operando ao nível do corriqueiro, as pessoas comuns
aprendem a “se virar” – e podem ser tão inteligentes, à sua maneira, quanto os
filósofos. (DARNTON, 1986: XIV)
11 Grupo de tradições culturais indígenas, em que os participantes vestem trajes tradicionais, dançam e cantam
músicas da cultura indígena. 12 CARNEIRO, Terezinha da Silva. Terezinha da Silva Carneiro. Entrevista III [Jan. 2017]. Pesquisadora:
Vanusa Diniz Targino. Cabedelo, Paraíba, 2017. 3º arquivo .mp3 (00:47:58), 09 págs. Transcritas. Entrevista
concedida à pesquisa do mestrado em História da UFPB.
9
Mestre Benedito passou a organizar reuniões, e pedir a contribuição de amigos e
parentes para conseguir suprir as necessidades de vestimentas e instrumentos dos grupos
folclóricos em que ele participava, criando estratégias para que o grupo continua-se suas
apresentações. Loriga (1998: 244), coloca que “Hoje a aposta não é mais no grande homem
(...), e sim no homem comum. Este último é o objetivo principal dos estudos sobre cultura
popular, dos trabalhos de história oral ou de história das mulheres”. Esse homem comum, afro-
brasileiro, foi capaz de criar formas para sobreviver e enfrentar todas as adversidade de sua
época, e ainda manter suas tradições culturais.
Os relatos sobre a trajetória de José Benedito foram realizados com base na metodologia
da História Oral, através de entrevistas com amigos e familiares, que ajudaram a construir um
pouco do universo social e cultural do nosso personagem.
Por meio da história Oral, por exemplo, movimentos de minorias culturais e
discriminadas – principalmente de mulheres, homossexuais, negros, desempregados,
pessoas com necessidades especiais, além de migrantes, imigrantes e exilados – têm
encontrado espaço para validar suas experiências, dando sentido social aos lances
vividos sob diferentes circunstâncias. (MEIHY; HOLANDA, 2015: 26)
Durante a realização das entrevistas percebemos que nossos entrevistados mostraram-
se agradecidos pela oportunidade de poder falar sobre seu Benedito, de mostrar como é
importante fazer o registro de sua trajetória vida. De acordo com Meihy e Holanda (2015: 18),
“esses registros podem também ser analisados a fim de favorecer estudos de identidade e
memória coletivas”. Com base nesse conceito, acreditamos que a memória da história de vida
de José Benedito auxilia os participantes dos folguedos e seus familiares na construção de uma
identidade de grupo cultural.
Segundo Meihy e Holanda (2000: 85), “cabe considerar que chamamos história oral os
processos decorrentes de entrevistas gravadas, transcritas e colocadas a público segundo
critérios predeterminados pela existência de um projeto estabelecido”. A história oral não pode
ser compreendida como uma mera narrativa dos fatos, é preciso ter o conhecimento de que o
trato com a história oral necessidade de uma metodologia própria.
Para Meihy e Holanda (2015: 131), são necessárias algumas orientações na utilização
da entrevista para a construção de sentido na história oral. Segundo o autor, “Quando se pensa
na análise das entrevistas em si, em sentido de história oral pura, o que deve ser possível de
consideração é a análise dos “fatos observáveis”, das narrativas concretas”. Deste modo, só
poderemos alcançar o conhecimento parcial dos fatos e acontecimento da vida do mestre
10
Benedito, e esse conhecimento vem à tona através dos relatos dos que conviveram com esse
personagem.
De acordo com Alberti (2008: 167), “o trabalho com a História oral pode mostrar como
a constituição da memória é objeto de contínua negociação. A memória é essencial a um grupo
porque está atrelada à construção de sua identidade”. Em determinados momento percebemos
que as narrativas sobre algumas passagens da vida do nosso personagem são misturadas à
memória da história do grupo.
Mas em que medida a experiência individual pode ser representativa? Até que ponto
uma história de vida fornece informações sobre a história da sociedade? Alguns
autores que defendem o uso da biografia no estudo da história consideram que as
biografias de indivíduos comuns concentram todas as características do grupo. Elas
mostram o que é estrutural e estatisticamente próprio ao grupo e ilustram formas
típicas de comportamento. Mesmo uma biografia excepcional é capaz de lançar luz
sobre contextos e possibilidades latentes da cultura (ALBERT, 2008: 170)
Em se tratando de memória, existe uma infinidade de lembranças que encontram-se
escondidas no labirinto do passado, guardadas no inconsciente do nosso eu interior, mas que
podem surgir em nossa mente em qualquer lugar e a qualquer momento, desde que algo, ou
alguma situação do presente, desperte essas memórias adormecidas conduzindo-as à luz
novamente.
A memória é um cabedal infinito do qual registramos um fragmento. Frequentemente,
as mais vivas recordações afloram depois da entrevista, na hora do cafezinho, na
escada, no jardim, ou na despedida no portão. Muitas passagens não foram
registradas, foram contadas em confiança, como confidências. Continuando a escutar
ouviríamos outro tanto e ainda mais. Lembranças puxa lembrança e seria preciso um
escutador infinito. (BOSI, 1994: 39)
A memória é a chave para um mundo rico e diversificado que podemos encontrar na
memória dos velhos. “Um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não
conhecemos pode chegar-nos pela memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido
podem ser compreendidos por quem não os viveu e até humanizar o presente” (BOSI, 1994:
82).
Conhecemos o passado através da memória dos que vivenciaram fatos tão especiais que
lhe marcaram, e através dessa memória podemos perceber a história de nossa sociedade. Bosi
(1994: 89), acredita que a função da memória, “é o conhecimento do passado que se organiza,
ordena o tempo, localiza cronologicamente. (...). O passado revelado desse modo não é o
antecedente do presente, é sua fonte”.
Para Le Goff (1990: 410), “a memória é um elemento essencial do que se costuma
chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
11
indivíduos e das sociedades de hoje”. O papel da memória é fundamental para o processo de
construção das identidades, no caso de Benedito, a memória de sua vida que aparece nos relatos,
deixa transparecer a importância da cultura popular na construção de sua identidade individual
e coletiva.
De acordo com Hall (2006: 11), todo indivíduo tem um “eu” interior, uma essência real,
que sofre modificação por meio do contato com as diversas culturas do mundo exterior,
formando sua identidade, a partir das várias identidades que compõe esse universo. Portanto,
na concepção do autor o sujeito constrói sua identidade através do diálogo, preenchendo os
espaços entre o mundo pessoal e o público.
Para Hall (2006: 13), a identidade tornou-se uma “celebração móvel”, modificada,
transformada, a partir do instante em que somos representados de formas distintas nos diversos
sistemas culturais que nos rodeiam. Em nossa sociedade, somos abordados e confrontados
constantemente, por uma multiplicidade enorme de possíveis identidades, que poderíamos
adotar mesmo por um determinado momento de nossa vida.
Hall (2006: 39) acredita que a identidade é construída por meio de um longo processor
de conhecimento, que ocorre de forma consciente e inconsciente, a identidade não nasce com o
indivíduo, ao contrário, ela está sempre incompleta. Desta maneira, José Benedito ao longo de
sua vida passou pelo processo de construção de uma identidade individual de homem comum
que gostava de cantar Cocos e Cordéis em dias de festa no interior, para se transformar
inconscientemente no Mestre Benedito do Coco, responsável pela organização de grupos
culturais como o Tupy Tamoios, a Nau Catarineta e o Coco de roda.
CONCLUSÃO
A opção em conhecer dentro da história de vida do Mestre Benedito seu envolvimento
com as diversas manifestações culturais, é buscar perceber no homem comum aquele detalhe
especial, que diferencia esse indivíduo dos demais. Que faz com que ele ganhe destaque em sua
comunidade, e seja lembrado mesmo após 18 anos de sua morte.
Analisamos a trajetória de vida de José Benedito através das relações de interação com
o meio cultural e social. Deste modo, cientes de que a pesquisa histórica não se fundamenta em
um análise superficial de fatos e acontecimentos do passado, interrogamos as fontes, buscando
descobrir além do que se pode visualizar o que foi excluído dos documentos, e por que foi
excluído.
12
Podemos perceber que conforme o tempo passava, José Benedito da Silva, o Zé Pequeno
de Cruz do Espírito Santo, se transformava em Mestre Benedito do Coco de Cabedelo, esse
personagem vai se transformando ao longo do tempo, a partir de suas experiências de vida tanto
no meio social, quanto no meio cultural, construindo sua identidade ao longo de amplo
processo, revivendo suas memórias, circulando por diversas tradições culturais e ampliando as
relações sociais.
Por tanto, não há como separar o indivíduo de sua relação com a cultura, as amizades
do ambiente de trabalho estavam ligadas ao universo cultural de tal modo que, nosso
personagem trabalhava e durante o trabalho cantava os cocos com seus companheiros. Os
amigos de trabalho e familiares também faziam parte dos movimentos culturais, alguns
participavam do grupo Tupy Tamoios, outros da Nau Catarineta e outros ainda participavam do
Coco de Roda, transformando esses momentos de interação social em uma rica vivencia
cultural.
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