O Imaginário Dos Navegantes Portugueses

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 O  imaginário  d o s navegantes  portugueses do s  séculos  15 e 16 LUÍS ADÃO DA FONSECA Q e  significa,  para  o  homem medieval,  o  maravilhoso,  o u  como  el e  dizia   os  mirabilia?  A os  olhos  do  homem contem- porâneo,  o  maravilhoso  é  visto como  um  atributo: reporta-se à s  qualidades  referenciáveis  a  alguém  ou a  alguma coisa pela  s ua  capaci- dade de  provocar  a  admiração;  e o  fantástico,  num  sentido  mais  estrita- mente  psicológico, como resultado  da  representação  imaginária  da  reali- dade ausente. No entanto,  para  o homem medieval, a p erspectiva é diferente,  porque o maravilhoso é  substantivável:  mais do que uma cate- goria  ou um atributo, ele é um universo, como acertadamente escreve Jacques  Le  Goff,  "um  universo  de  objetos, mais  um  conjunto  d e  coisas do que uma  categoria"  . E importante ter  presente este matiz quando  se  pretende consi- derar  a  dimensão  d o  fantástico e d o  maravilhoso  no  imaginário atlânti- co, no período da transição da Id ade Média par a a ép oca moderna. As- sim,  na  Idade Média,  não é o  Atlântico  em si que é  maravilhoso;  ele funciona  como  um dos  âmbitos espaciais onde  o  maravilhoso  te m  lugar. Não se  trata, portanto,  do  maravilhoso  do  oceano, como hoje  se  diria, m as  do  maravilhoso  n o  oceano. E  por que  razão importa começar  por  esta  pontualização?  Acon- tece que  aq ui resid e  o que  constitui, provavelmente,  a  car acter ística f un- damental  d o  imaginário atlântico  d e  então  e,  conseqüentemente,  a maior dificuldade  do seu  estudo:  a  indeterminação espacial  de tal  ima- ginário.  Vejamos  em que  sentido isso acontece. No período medieval  distinguem-se  perfeitamente os horizontes marítimos  e m  termos  de  conhecido  e de  desconhecido.  E, se o  Mediterrâneo  se  apresenta como  o  espaço natural  do mar  conhecido, n o  d o  as  não têm  d e forma  tão  direta, provavelmente pelo efeito distanciador  d o  desconhe- cido. Assim,  o  maravilhoso oceânico  tem um  sentido  o  especifica-

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Estudo de Luís Adão da Fonseca, sobre o imaginário dos descobridores portugueses do período áureo de Portugal.

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  • O imaginrio dosnavegantes portuguesesdos sculos 15 e 16LUS ADO DA FONSECA

    Que significa, para o homem medieval, o maravilhoso, ou como ele dizia os mirabilia? Aos olhos do homem contem-porneo, o maravilhoso visto como um atributo: reporta-ses qualidades referenciveis a algum ou a alguma coisa pela sua capaci-dade de provocar a admirao; e o fantstico, num sentido mais estrita-mente psicolgico, como resultado da representao imaginria da reali-dade ausente. No entanto, para o homem medieval, a perspectiva diferente, porque o maravilhoso substantivvel: mais do que uma cate-goria ou um atributo, ele um universo, como acertadamente escreveJacques Le Goff, "um universo de objetos, mais um conjunto de coisasdo que uma categoria" .

    E importante ter presente este matiz quando se pretende consi-derar a dimenso do fantstico e do maravilhoso no imaginrio atlnti-co, no perodo da transio da Idade Mdia para a poca moderna. As-sim, na Idade Mdia, no o Atlntico em si que maravilhoso; elefunciona como um dos mbitos espaciais onde o maravilhoso tem lugar.No se trata, portanto, do maravilhoso do oceano, como hoje se diria,mas do maravilhoso no oceano.

    E por que razo importa comear por esta pontualizao? Acon-tece que aqui reside o que constitui, provavelmente, a caracterstica fun-damental do imaginrio atlntico de ento e, conseqentemente, amaior dificuldade do seu estudo: a indeterminao espacial de tal ima-ginrio. Vejamos em que sentido isso acontece.

    No perodo medieval distinguem-se perfeitamente os horizontesmartimos em termos de espao conhecido e de espao desconhecido. E, seo Mediterrneo se apresenta como o espao natural do mar conhecido,no mbito do oceano, as concretizaes geogrficas no tm lugar deforma to direta, provavelmente pelo efeito distanciador do desconhe-cido. Assim, o maravilhoso ocenico tem um sentido no especifica-

  • mente atlntico, antes aponta, como o horizonte onde ele tem lugar,para o quadro mais geral dos espaos martimos desconhecidos.

    Desta circunstncia advm um segundo aspecto que importaigualmente considerar. Na verdade, dada a indefinio espacial do Atln-tico durante quase toda a Idade Mdia, tal nebulosidade acaba por de-terminar a relativa pobreza do imaginrio deste oceano, com a conse-qente subalternizao perante o maravilhoso de um outro oceano ondico , tradicionalmente muito mais rico. Da que muitas vezes sejadifcil determinar a especificidade do onrico atlntico, comparando-ocom o complexo mundo do imaginrio martimo oriental. Dado o de-senvolvimento da existncia do continente americano, e tendo-se admi-tido em alguns setores que a Terra fosse redonda, no teria sido difcilque se pudesse demandar as partes orientais, navegando diretamentepara ocidente; isto , o Atlntico pode ter chegado, em algum momento,a ser apresentado como princpio dos oceanos orientais. Como escreve,em incios do sculo XV, Pedro d'Ailly (numa aluso que Colombo nose esquece, mais tarde, de sublinhar), "a regio das Colunas de Hr-cules [isto , o Atlntico] e a ndia so banhadas pelo mesmo mar". Poresta razo, os grandes textos forjadores do imaginrio do ndico, muitasvezes, alimentavam, ao mesmo tempo, o imaginrio do Atlntico.

    Tem interesse recordar esta interdependncia ocenica em nveldos horizontes fantsticos, porque, em muitos ambientes, domina aidia da incomunicabilidade geogrfica entre o Atlntico e o ndico. Esteltimo ento visto como um oceano fechado, um oceano fluvial, algoassim como um rio circular, apertado pelo prolongamento para o conesul-africano oriental.

    No final da Idade Mdia, a obra de Ptolomeu, gegrafo e astr-nomo grego do sculo II, foi em grande parte responsvel pelo xitotardio desta viso do Indico. Redescoberto em 1406, vai conhecer gran-de divulgao, dado o rigor de muitas das suas informaes geogrficasde pormenor, muito superiores s dos gegrafos romanos tradicional-mente utilizadas como fonte inspiradora da geografia medieval; no en-tanto, como pano de fundo domina o enorme erro da concepo dondico como um mare clausum.

    De todas as formas, em nvel do imaginrio, como j foi dito,assiste-se situao inversa de uma interdependncia, em que a fonte sesitua no Oriente. Alis, esta circulao dos horizontes onricos ocenicos reforada pela circunstncia da geografia medieval considerar ento,no uma nica, mas trs ndias simultneas: alm da ndia Maior atual Industo e da ndia Menor que chega at as Pennsulas do

  • Sudeste asitico , existe uma terceira ndia a Etipia e a costa dasia do Sudoeste. Isto , e aqui reside um dos aspectos mais significa-tivos em ordem compreenso da referida permeabilidade onrica, estapluralidade de ndias permite integrar a Etipia e a ndia, a frica e asia, num nico universo do maravilhoso, bem visvel, por exemplo, naitinerncia (em nvel de referncias geogrficas) do mito do Preste Joo.Era como e a aluso no minha "se a rainha de Sab desse a mo,no a Salomo, mas a Alexandre".

    E esta, portanto, a primeira idia que gostaria de sublinhar: apesarda incomunicabilidade fsica que a geografia da poca de inspiraoptolomaica defendia, ao nvel do imaginrio, deu-se constante proje-o a partir do ndico para o Atlntico, em grande parte como resultadoda indeterminao de muitos dos contornos com que eram ento defi-nidos os espaos ocenicos. Assim o ndico, receptculo de todo o ima-ginrio ocenico oriental, transforma-se simultaneamente em horizontedo imaginrio ocenico ocidental. Conseqentemente, os textos inspi-radores so os mesmos. Entre os mais significativos, podem ser assina-lados: Plnio, o Antigo, e sua Naturalis Historia, Solino e suas Collec-tanea rerum memombilium, Santo Isidoro de Sevilha e suas Etimologias,Honorias Augustodunensis e seu Imago Mundi, Bartolomeu Ingls eseu De proprietatibus rerum, Bruneto Latini e seu Tesouro; Speculum deVicente Beuvais, Livro de Marco Polo, o Livro das Maravilhas de Man-deville, assim como o De Imago Mundi de Pedro d'Ailly, j referido.

    Qual ento a idia que o homem medieval tem do Atlntico?Sendo muito difcil dar uma resposta cabal, , no entanto, possvel apon-tar brevemente algumas coordenadas da imagem deste oceano tal comoela se teria ento constitudo.

    E natural que o Atlntico enquanto espao ocenico tivesseprovocado no esprito de tantos homens e mulheres, leigos e clrigos reaes e sentimentos freqentemente contraditrios. E provvel quena memria de muitos sobretudo dos letrados ressaltasse bem vivaa evocao do primeiro captulo do Gnesis:

    "Deus disse: renam-se as guas que esto debaixo dos cus numnico lugar, a fim de aparecer a terra seca. E assim aconteceu. Deus, parte slida, chamou terra, e, mar, ao conjunto das guas. E Deus viuque isto era bom."

    Tratava-se, sem dvida, de uma recordao reconfortante, a dosmares como elemento que surge, na ordem da Criao, antecedendoimediatamente a terra, mas ambos dotados de idntica vocao:

  • "Deus disse: Que as guas sejam povoadas de inmeros seresvivos, e que na terra voem aves, sob o firmamento dos cus. Deus criou,segundo as suas espcies, os monstros marinhos e todos os seres vivosque se movem nas guas, e todas as aves aladas, segundo as suas espcies.E Deus viu que isto era bom".

    No entanto, apesar desta evocao inicial auspiciadora, a memriada Bblia , sobretudo, a do mar como elemento adverso, perigoso,destruidor. a outra evocao do Gnesis, a das guas do dilvio que,embora correspondessem a um propsito profiltico da humanidade,no deixam por isso de ser aterradoras e assoladoras:

    "As guas ultrapassam quinze cvados o vrtice dos montes poreles cobertos. Todas as criaturas que se moviam na terra pereceram".

    Esta bivalncia o mar, criao divina, bom, mas tambmdestruidor aparece claramente no to conhecido episdio de Jonas:

    "Porm, o Senhor fez vir sobre o mar um vento impetuoso elevantou no mar uma to grande tempestade que a embarcao amea-ava despedaar-se. Cheios de medo, os marinheiros [...] disseram-lhe[a Jonas]: Que te havemos de fazer, para que o mar se nos acalme?Porque o mar se embravecia cada vez mais. Ele respondeu-lhes: Pegaiem mim e lanai-me ao mar e o mar se acalmar, porque sei que porminha causa que vos sobreveio esta grande tempestade [...]. Depois,pegaram em Jonas, e lanaram-no ao mar, e a fria do mar acalmou-se[...]. O Senhor fez que ali houvesse um grande peixe para engolir Jonas:e Jonas esteve trs dias e trs noites no ventre do peixe. Jonas rezou aoSenhor, seu Deus, do ventre do peixe [...]. Ento o Senhor ordenou aopeixe e este vomitou Jonas na praia".

    Em si, o oceano adverso, violento, mas pode transformar-se nooposto, por opo divina; ou seja, o mar aparece como elemento emcujo seio o milagre tem lugar. E o que ressalta do captulo 14 do xodo,onde se descreve a passagem do Mar Vermelho, ou de vrias passagensevanglicas, como a da pesca milagrosa ou a da calmaria da tempestade,ou mesmo a de textos hagiogrfcos, como o milagre de Santo Antnioque, desgostoso da pouca audincia encontrada junto dos homens, re-solve com xito pregar aos peixes.

    Alis, o prprio pensamento geogrfico e fsico do tempo contri-bui para reforar este estado de esprito. Embora gregos e romanos, emnvel da astronomia, admitissem a esfericidade da Terra, de fato, a repre-sentao mental que estes ltimos faziam do planeta era de algo seme-lhante a um disco. Como escreve Pompnio Mela, o gegrafo romano

  • do sculo I a.C., autor de um tratado intitulado De Situ Orbis, uma dasprincipais fontes do pensamento geogrfico at adiantado o sculo XVI,a terra "est rodeada pelo mar por todos os lados". No princpio daIdade Mdia, Breda, o Venervel (+ 735) dir de acordo com aopinio tradicional que a terra " um elemento colocado no meio domundo; est no meio dele como a gema est no meio do ovo; voltadesta encontra-se a gua, como volta da gema est a clara; volta dagua encontra-se o ar como volta da clara do ovo se encontra a mem-brana que o contm; e isto rodeado por fogo, do mesmo modo que acasca".

    A geografia medieval, a partir do sculo XII, muito influenciadapor interpretao de raiz aristotlica, obrigada a desenvolver sistemaexplicativo bastante complicado, cujas linhas gerais Randles assimresume: "O postulado aristotlico era que os quatro elementos se dis-punham numa srie de esferas concntricas, por ordem decrescente dedensidade, estando a terra situada no centro. Este raciocnio, no rigor dasua lgica, conduzia a um resultado manifestamente oposto experin-cia vivida. Aristteles parecia querer dizer que a terra devia estar inteira-mente coberta pelo mar. Numerosos pensadores, na Idade Mdia, toma-ram conscincia desta absurdidade, tanto mais incmoda quanto umadoutrina pseudo-aristotlica, devida aos comentadores helenos de Aris-tteles, mas atribuda ao Mestre, concedia gua um volume que era dezvezes o da terra". bvio que uma explicao deste tipo exigia outra,que esclarecesse a razo do por qu as guas no invadiam a terra. Comose v, tambm no mbito do que se pode considerar cincia, o oceanoaparece como elemento potencialmente ameaador, mesmo quandouma teoria subseqente esclarea os espritos tranquilizando-os sobre a razo pela qual a ameaa no se concretiza...

    Entre as vrias solues propostas, a de Alberto da Saxnia (+1390) tem o seu interesse: no fundo, ajusta-se viso geogrfica muitotradicional que ainda ter certa aceitao no perodo da expanso marti-ma: "A segunda opinio, aprovo-a. Ela imagina que o centro de gravi-dade e o centro do tamanho da terra no coincidem, e esta a razo porque a terra, numa das suas partes, est mais prxima do cu e no estcoberta pelas guas. para esta parte que afluem as guas, porque aesto mais prximas do meio do mundo. esta a razo por que, sendoum dado a separao das partes habitveis da terra das suas partes inabi-tveis como resultado das guas, preciso imaginar na terra uma linhaque vai do oriente ao ocidente diretamente sobre o eqinocial e paralelaa uma segunda linha imaginria sobre a terra que colocada sobre ocrculo rtico. Entre aquelas linhas, imagine-se uma terceira linha para-

  • lela a uma e a outra. Alm disso, imagine-se que tudo o que desde oeqinocial, passando pelo plo meridional e pelo plo setentrional atao crculo rtico coberto pelas guas, e que o resto, que no outracoisa seno um quarto da terra (...), no coberto pelas guas".

    E continua o autor: "Alm disso, imagine-se que a partir do meiodesta linha colocada sobre a parte da terra que no coberta pelas guas,uma linha traada perpendicularmente em direo linha que lhe eqidistante e que colocada no crculo rtico. Pelas linhas assim ima-ginadas, v-se manifestamente numa figura como esta parte da terra que

    Mapa do Brasilatribudo d LusTeixeira, 1586

    Biblioteca dAjuda, Lisboa

  • no recoberta pelas guas dividida em quatro partes, de que duasesto voltadas para Ocidente e duas para Oriente, e entre as que estovoltadas para Ocidente, a que est mais prxima do setentrio cha-mada Europa; quanto s outras, esto voltadas para Oriente, e a que estvoltada para o equinocial chamada sia Maior, mas a que est maisprxima do setentrio chamada sia Menor".

    E certo que esta formulao, apresentada por Alberto da Saxnia,destacado membro da escola fsica parisiense, para resolver de formaracional e cientfica o problema em causa no seria, dada a sutileza doraciocnio, acompanhada pela maioria dos seus contemporneos. Noentanto, nesta explicao, sobressaem alguns aspectos que se enquadramperfeitamente no conjunto de idias gerais que a poca medieval tinhadesenvolvido (e desenvolveria ainda) acerca do oceano, assim como dasrelaes deste com a terra habitada.

    Em primeiro lugar encontra-se aqui, como pano de fundo, a cren-a na disposio dos mapas chamados tipo T/O. So mapas onde, dentrode um mbito circular, os mares so representados dispostos em T; daa expresso T/O, indicadora de que a superfcie martima em T encon-trada dentro do crculo formada pela representao de um oceanoexterior, correspondendo aproximadamente ao Atlntico. Como escreveSanto Isidoro de Seviiha, "o Oceano assim chamado pelos gregos elatinos porque, como um crculo, rodeia a orbe; ou talvez porque brilhacom cor de prpura, ut caleum, como o cu".

    Em segundo lugar, esta viso quatriplicada do mundo e dos con-tinentes tem algumas implicaes. O oceano surge aqui como aquilo queest para alm do mundo; de fato, est para alm da terra, porque estfora do espao habitvel. Alberto da Saxnia, em outra passagem damesma obra, di-lo sua maneira: " um mar intransponvel, em sinaldo qual Hrcules construiu colunas neste lugar, a fim de que ningumno tente a navegar". Na verdade, o oceano o espao do desconhecidoque est para alm das fronteiras do mundo conhecido, onde se desenhao horizonte do inabitvel, porque o espao do no-humano. E o queum clssico da histria da geografia chamava, a respeito do oceanomedieval, o selvagem e o incomensurvel (Wildheir und Unermesslich-keit ). este o sentido do maravilhoso ocenico medieval, como escreveBrunetto Latini, referindo-se costa ocidental africana: "a existemnotveis maravilhas, porque o mar mais alto que a terra e mantm-senas suas margens de tal maneira que no descarrega nem se desmanchasobre a terra!".

    Tal portanto, a segunda idia que gostaria de sublinhar: no con-

  • junto do imaginrio ocenico medieval, o imaginrio atlntico comportaforte dimenso, tanto do no conhecido como do adverso, destruidor,perigoso. As razes culturais desta convico remontam, em parte, aotexto bblico e s fontes da antigidade, mas reportam-se tambm selucubraes da cincia da poca. Em certa medida, o oceano est asso-ciado idia do medo; com efeito, ele o espao aberto de onde paraalm de certo limite impossvel regressar.

    Dante j o tinha dito na Divina Comdia, colocando na boca deUlysses a descrio da forma dolorosa como este terminou a viagem,cinco dias depois de terem passado o Estreito de Gibraltar: "da novaterra formou-se um torvelinho que sacudiu o barco pela proa, f-lo girartrs vezes com a gua, e quarta levantou a popa ao alto enquanto a proase afundava, como Aquel o quis, at que o mar se fechou sobre ns".

    sua maneira, Zurara no captulo VIII da Crnica da Guin, inti-tulado Por que razo no ousavam os navios passar a alm do Cabo Bojador,descreve muito bem estes temores. O Atlntico aparece a, sobretudo,

    como o outro lado, funcionando o Cabo Bojador como a fronteira daruptura, como o termo do espao visvel para alm do qual se noregressa: "Como passaremos", diziam eles os marinheiros do Infan-te D. Henrique "os termos que puseram nossos pais, ou que proveitopode trazer ao Infante a perdio de nossas almas juntamente com oscorpos, pois conhecidamente seremos homicidas de ns mesmos?".

    E acrescenta logo a seguir o cronista portugus, depois de teraludido aos numerosos perigos do oceano situado para alm do Boja-dor: "... navio que l passe jamais poder tornar. E, por isso, os nossosantecessores nunca se entremeteram de o passar".

    Colombo viveu muito de perto o espectro deste no regresso. Porisso, o Atlntico escuro; este termo expressamente utilizado porZurara. Ser necessrio sublinhar o sentido mtico deste temor ances-tral?

    Como se comprova, o imaginrio do Atlntico bastante com-plexo. Comea, numa primeira dimenso, por se definir pela negativa: o espao do desconhecido e mar aberto, no que se ope ao Mediterrneo,espao do conhecido e mar fechado. Mas, simultaneamente, e j numasegunda dimenso, o imaginrio do Atlntico alimentava-se agora domanancial onrico desenvolvido inicialmente no Mar Interior. E que oAtlntico, espao aberto, necessita, no entanto, de horizonte para sernavegvel, ainda que seja s na imaginao. Assim, semelhana de umqualquer mediterrneo, o imaginrio do Atlntico concebe-o igual-

  • mente como um oceano horizontal povoado de ilhas. So elas que, ima-ginrias ou reais, povoam esse espao sem limites, transformando-o emespao navegvel, apetecvel. que ningum navega para parte alguma. que o espectro do no regresso, inerente a toda a viagem inicitica,como so estas viagens no imaginrio ocenico (mesmo quando acom-panhadas de uma viagem real), acaba por apontar para a procura doParaso. Como escreve Mandeville, referindo-se ndia, a, a multipli-cidade das ilhas e resultado das guas dos rios que vm do Paraso, deque resulta a diviso da Terra em vrias partes.

    De fato, o imaginrio atlntico, na permanente oscilao queacompanha a sensibilidade medieval perante a realidade ocenica, defne-se agora a rota da navegao imaginria, torna-se a via de acesso aoden. Para muitos, pode muito bem ser o ponto onde desguam algunsdos rios do Paraso. Seria como Amaro, o castelo com cinco torres, "ea cada uma destas torres saa um rio e entrava no mar cada um por si?".Cadamosto parece assim pensar da foz do Senegal, e o mesmo do Ore-noco.

    Ainda que um pouco longas, vale a pena transcrever as palavras donavegador genovs, escritas na relao da terceira viagem e enviadas aosReis Catlicos em 1498, porque mostram muito bem em que medidatodo este imaginrio funcionava ento como estmulo da atuao dosnavegadores:

    "A Sagrada Escritura mostra que Nosso Senhor fez o Paraso ter-restre, l colocou a rvore da vida e ali surge um manancial donde pro-vm neste mundo quatro rios principais: o Ganges, na ndia; o Tigre eo Eufrates (...), os quais dividem uma cadeia de montanhas, formandoa Mesopotmia, e vo at a Prsia; e o Nilo que nasce na Etipia edesgua no mar em Alexandria. No conheo nem jamais conhecereinenhum escritor latino ou grego que defina de maneira segura a posiodo Paraso Terrestre, nem jamais o vi fixado em nenhum mapa-mundo,a no ser com a autoridade do Nilo, na Etipia; mas outros percorreramtodas aquelas terras e no encontraram nem a temperatura nem a ele-vao do solo que lhes permitissem argumentar que se encontrava ver-dadeiramente ali (...). No admito que o Paraso Terrestre tenha a formade uma montanha, como foi escrito, mas considero que esta no cume deum lugar qualquer que tenha a figura da extremidade superior de umapra e que, pouco a pouco, avanando nessa direo vindo de uma gran-de distncia, se v gradualmente ascendendo-a. Creio que, como o disse,ningum possa chegar ao seu cume, e que esta gua possa vir desse lugar,ainda que seja longe, e vir a desembocar ali donde eu venho, formando-se este lago" [refere-se, como j indiquei, voz do Orenoco]. "Estes

  • so os grandes indcios do Paraso Terrestre, porque o lugar conformeao parecer dos santos e sagrados telogos, e ainda porque os traos estoem muito de acordo, j que jamais li ou ouvi que tanta quantidade degua doce se encontrasse to dentro e to misturada com a salgada.Nisto, muito ajuda o clima amenssimo. No entanto, se esta gua noprovm do Paraso, ento maior a maravilha, porque no creio que seencontre no mundo um rio to grande e to profundo."

    Assim, determinadas passagens da Crnica, da Guin de Zuraramereceriam ser lidas luz de todo este ambiente, como acontece, porexemplo, com as consideraes sobre o rio Nilo, nomeadamente noscaptulos 61 e 62. E sabido que tais captulos correspondem inspiraomuito direta da General Estria do Rei Afonso X de Castela, o que emnada altera o seu valor como indicativo das convices geogrficas docronista lusitano. Por exemplo, recorde-se o trecho final do segundocaptulo, inspirado no poeta romano Lucano: "Que te posso dizer [diri-ge-se ao Nilo] seno que s, assim, como umbigo do mundo; porqueassim como os animais que jazem nos ventres das mes se governampelos umbigos, semelhantemente se pode fazer comparao de tua gran-deza nas coisas da terra!".

    O comendador de Aljezur, da Ordem Militar de Santiago, lvarode Freitas, um portugus de meados do sculo XV, di-lo explicitamente.Em plena costa africana, num momento de dvida da marinhagem,declara estar disposto a avanar at o Paraso.

    Pois no era por essa regio que, em Portugal, se dizia ter nave-gado So Brando, a caminho da ilha paradisaca? O relato das viagensdeste abade irlands constitui, com efeito, uma das fontes que alimen-taram por mais tempo o imaginrio do Atlntico. Neste texto, contam-se as aventuras de So Brando, desejoso de encontrar o Paraso e oInferno porque escreve o autor "antes de morrer queria saber quemorada corresponder aos bons e que lugar havero de ocupar os maus,que no prmio ou castigo recebero todos". Assim, Brando parte com14 companheiros, e vai descobrindo terras novas, desconhecidas; entre-tanto, sucedem-se as aventuras. Finalmente, chega ao Paraso. interes-sante notar como, neste relato, se renem quase todos os ingredientesdo maravilhoso martimo medieval, com sua enorme carga alegrica: aviagem, a procura do Outro Mundo, o monstruoso e o fantstico, entreoutros. E bvio que cada um deles possui significado simblico prprio;no entanto, sempre o conjunto que mais ressalta. Como escreve MirceaEliade, "um smbolo revela sempre, qualquer que seja o contexto, a uni-dade fundamental de vrias zonas do real". Neste caso, tudo aponta nadireo do crescimento interior, do crescimento asctico. Por isso, So

  • Brando, no fim do relato, e antes de empreender a derradeira e defini-tiva viagem para o Paraso, conta aos seus "como por fim encontrouaquilo que tinha ido procurar". E esse encontro tem lugar no Atlntico: o encontro fsico de Brando com a ilha (do Paraso), e tambm oencontro interior que coroa a santidade de Brando.

    esta, portanto, a terceira idia que gostaria de sublinhar: oAtlntico medieval aparece aqui com outra dimenso que amplia, a an-terior completando-a. Espao do incgnito e da aventura, espao domedo, tambm o espao onde o homem se encontra com ele prprio,na superao do obstculo, no esforo, na viagem. Como se l na Viagemde So Brando, " medida que o homem santo vai resistindo aos tor-mentos fome, sede, frio, calor, angstia, tristeza e grandes temores vai crescendo a sua divina felicidade". Alis, a mesma viso da viagemcomo percurso inicitico surge tambm nas viagens de Mandeville.Neste caso, onde toda a retrica era j conhecida onde credvel, oimaginrio funciona a partir da experincia pessoal (apresentada comotal) do narrador.

    Assim, por esta via, retoma-se o fio das consideraes iniciais. OAtlntico, tal como existe no fundamento medieval, situa-se inicial-mente num quadro de referncia oriental indica ou asitica; no termodesse processo de transferncia, de assuno de sensibilidades, tal he-rana funcionar como um dos motores inspiradores do fantstico oci-dental. suficiente ter em conta o itinerrio do Milho de Marco Polo:este texto, descrevendo a viagem no oriente asitico, acaba como livrode cabeceira de Cristvo Colombo.

    E neste quadro complexo do imaginrio atlntico que o maravi-lhoso tem lugar. No tanto o maravilhoso da riqueza (que s se desen-volver num segundo momento), quanto o maravilhoso do fantstico edo monstruoso.

    Como afirma Diogo Gomes na sua Relao: "Aquela serra erapovoada de gente admirvel, como que os homens tm cabea de co egrande cauda, e so muito cabeludos, e as mulheres so lindas, etc. emuitas coisas que pareciam falsidades".

    Alis, Zurara afirma em dado passo que os navegantes henri-quinos, na ilha de Gete, vendo de longe como os negros se deslocavamem pequenas embarcaes, "pensaram que eram aves que andavamassim"; e acrescentava o significativo comentrio: "E ainda que na gran-deza fizessem alguma diferena, pensaram que podiam ser em aquelaparte, onde se contava de outras maiores maravilhas".

  • Neste sentido, h um maravilhoso monstruoso que perdura aolongo de toda a cultura europia, e cujas razes so bastante profundas.Em Portugal, na transio da Idade Mdia para o Renascimento, elesurge-nos onde menos seria de esperar. Por exemplo, e apesar de pes-soalmente ter navegado por todo o Atlntico equatorial, Duarte Pache-co Pereira escrever o seguinte acerca das serpentes monstruosas: "Enesta terra h muito grandes cobras de 20 ps em longo e mais, e muitogrossas; e alm destas h outras cobras to grandes que tm um quartode lgua de longo, e a grossura e olhos, boca e dentes respondem suagrandeza; e destas h a poucas, as quais tm tal natureza que, como sotamanhas como digo, logo se saem das lagoas onde se criam e vo buscaro mar; e por onde levam o seu caminho muito dano fazem; e as aves,como as vm ir, so tantas sobre elas, que as picam, que coisa que seno crera, porque a carne destas cobras to mole que se no pode maisdizer, e tanto que entram no mar todas se desfazem em gua; e estasraramente aparecem, porque de dez em dez anos e mais se acontece veruma destas; e isto duro de crer a quem no tem a prtica destas cousasa nos teme".

    Muitos dos monstros ocenicos apresentam a forma de serpente;a, a monstruosidade reside fundamentalmente na dimenso, comoacontece com as serpentes descritas por Duarte Pacheco Pereira.

    O relato da viagem de So Brando faz uma descrio das serpen-tes atlnticas, apresentando-as como seres temveis: "Com o fogo quelana, abrasa como a boca de um forno, com uma chama to alta e toardente que os [aos marinheiros] faz temer pela morte. O seu corpo excessivo, e solta mugidos com maior fora que quinze toiros juntos. Sperante a ameaa dos seus dentes, teriam fugido at mil e quinhentosguerreiros. As ondas que desloca so to altas que no necessita de maisnada para provocar uma tempestade".

    Outras vezes apresentam a forma de drago, de baleia (monstroenorme, como uma ilha, l-se num texto da poca), de delfim, autor deinumerveis prodgios, ou de sereia, ocasionando tantos naufrgios eperdas de vida. Na realidade, se o elenco das monstruosidades ocenicasno muito variado, isso est relacionado com as permanentes meta-morfoses a que esto sujeitos os monstros medievais; a sua monstruo-sidade est dotada, para utilizar uma expresso de Jean Card, de extre-ma plasticidade. Finalmente, nem sempre fcil determinar a localizaogeogrfica das regies onde os monstros vivem; parece que a ndia e aEtipia so os locais mais freqentemente referidos, pelo que, na prti-ca, e como conseqncia da indeterminao espacial destas regies, os

  • monstros apresentam, em ambos os lados, sensivelmente as mesmascaractersticas.

    Assim, para alm das caractersticas dos monstros, o que importa e constante refere-se crena na sua existncia. O monstro estpresente nos espritos, com independncia de que ele seja ou no pes-soalmente observado pelo viajante ou navegador. Por exemplo, no scu-

  • lo XIV, Frei Jordano de Severa afirmava categoricamente: "Em seguidadirei desta ndia terceira, que em boa verdade eu no vi, e onde no fui,mas [transmito] o que ouvi digno de crdito, de muitas maravilhas; naverdade, h a drages em grande quantidade que tm na cabea pedrasluminosas".

    O prprio Colombo que, numa carta a Luis de Santangel de 15 defevereiro de 1493, declarava no ter encontrado seres monstruosos,como muitos pensavam, chegara a admitir, pouco tempo antes, quenuma ilha do Carabe existissem gigantes com um olho na testa, assimcomo canibais (dirio da primeira viagem, de novembro de 1492).

    Na seqncia destas idias, altura de abordar a seguinte questo:

    se o monstro est presente no imaginrio ocenico, qual ento o seupapel?

    E um papel muito diferente do que a mentalidade do homem dehoje lhe pode atribuir. Para o homem moderno, o monstro participa dopatolgico, do defeituoso congnito. O monstro o que se contrape aum modelo de perfeio e de equilbrio que caracteriza precisamente ano monstruosidade. Neste sentido, o monstro o desmedido, o hor-rendo, o escandaloso, o eventualmente objeto de maldio, quase sem-pre signo de mistrio tido como expresso de anormalidade, con-trrio s leis da natureza. Assim, numa perspectiva muito prpria destepensar cientificista, a monstruosidade decomposta nas diferentes de-formaes, distinguindo-as quanto sua origem, e remetendo a expli-cao para o domnio da patologia na transmisso da mensagem gen-tica, a cincia moderna acaba em certa medida por biologizar a mons-truosidade. Falar de erros de cpia do ADN e de alteraes nas cadeiasde aminocidos representa, em suma, retirar a monstruosidade do do-mnio das descries tradicionais para encerr-la no campo fechado daqumica celular.

    E na Idade.Mdia, como visto o monstro?

    Num dos textos mais significativos da cultura medieval, as Etimo-logias de Santo Isidoro de Sevilha, encontra-se, a propsito dos seresprodigiosos, o que se pode considerar uma breve teoria da monstruo-sidade. Em resumo, so duas idias: "os monstros no acontecem con-tra a natureza, posto que sucedem por vontade divina, e a vontade doCriador a natureza de todo o criado. (...). Como conseqncia, (...)no se realiza contrariamente natureza, mas sim contrariamente na-tureza conhecida". No fundo, j Aristteles afirmava algo semelhante.Na Gerao dos Animais, escrevia o filsofo grego que "o monstro um

  • fenmeno que vai contra a generalidade dos casos, mas no contra anatureza considerada na sua totalidade".

    Por isso, luz das categorias do tempo, difcil definir o monstro; que, em ltima anlise, sendo a definio de monstro sempre relativa norma, o monstro, como tal, no tem existncia. Neste sentido, muito importante a reflexo que Santo Agostinho faz na Cidade de Deusacerca da monstruosidade, porque com as suas conseqncias inte-gradoras acaba por influenciar decisivamente o pensamento medievalacerca deste tema.

    Desse interessante texto podem ser sublinhadas as seguintesidias: porque o homem desconhece as razoes da monstruosidade, no se

    pode afirmar que o Criador se enganou; com efeito, a ignorncia resulta da circunstncia de o homem apenas

    ter uma perspectiva parcial; logo, a monstruosidade s pode ser pensada em termos de relao,

    pelo que deve ser entendida no conjunto da criao, onde nada fruto do acaso, seja a semelhana, seja a diferena;

    esta forma de encarar o problema tanto se aplica aos indivduos comoa povos inteiros.

    Quer dizer, Santo Agostinho e, com ele, todo o pensamentomedieval no chega a definir o monstro. Na verdade, embora admitaalgumas caractersticas que o podem individualizar, no essa a suapreocupao. Para o autor de A Cidade de Deus, o que importa aeconomia do conjunto, e o homem como centro de todo o conjunto; omonstro, em certa medida, mero aspecto. O monstro , como toda acriatura, manifestao da ao de Deus. Mas manifestao diferente,diferente em sua ambigidade; porque, se no fosse ambguo, seria sim-plesmente animal e, como tal, perderia muito da sua monstruosidade.

    certo que tambm tem sentido falar-se da monstruosidade ani-mal. Como diz Honrio Augustodunensis, "h monstros em que algunsso classificados na espcie humana e outros nas espcies animais". Noentanto, o monstro cuja monstruosidade verdadeiramente provocada a daquele que humano. Parece ser esta a monstruosidade tpica doalm-ocenico; que no fundo, o monstro outro, a alteridade dentroda comum condio humana. Como se l numa fonte da poca, osmonstros son tout autre que nous ne somes [so todo o outro que ns nosomos]. Ou, como escrever em 1579, Ambroise Par, "os monstrosso as coisas que aparecem para alm do curso da natureza". E bvio. Amonstruosidade s pode ser entendida num universo em que a natureza

  • surge como o principal ponto de referencia. Mas, mesmo assim, mantm-se a ambigidade, na medida que a natureza pode ser assumida emtermos de oposio (o monstro como antinatureza) ou de superao (omonstro para alm da natureza). De fato, para referir um exemplo,entre outros j citados, quando Antnio Usodimare, mercador genovs,escreve aos irmos em 1455, contando-lhes as suas viagens na costaocidental africana, e alude "a coisas muito estranhas e de homens comcauda e que comem os filhos", a primeira dimenso, a da antinaturezaque est em causa; mas, quando Marco Polo observa que as diferenas

    da fauna, em relao s nossas, "so mais variadas e melhores", j asegunda dimenso, a da qualidade para alm da natureza, que est pre-sente.

    Mandeville ter visto um aspecto do problema quando distingueentre simulacros e dolos, isto , projeta a monstruosidade para o do-mnio da imaginao: segundo ele, a monstruosidade fruto da razodesequilibrada, desordenada, desmesurada.

    De modo geral, todo o maravilhoso e assim, todo o mons-truoso diferente. Na ndia, afirma-se, a Terra christianitatis estaliena" [ diferente da cristandade]. que a comea quasi alter mundus.

    E voltamos a Santo Agostinho e impossibilidade da monstruo-sidade per se. Santo Isidoro de Sevilha dizia que o monstro revelador, manifestao de algo. Neste sentido, o que revelador no sero os

    monstros concretos, mas sim a monstruosidade; se cada monstro encer-ra na sua constituio uma desordem aparente, a monstruosidade, sinalde contingncia, testemunha a profunda ordem da Criao. Neste caso,funciona muito bem a correspondncia universal, to cara ao pensa-mento medievo. Se o microcosmo imagem (speculum) do macrocos-mo, se cada elemento reflete o seu contrrio, equilibrando-o na oposi-o, se, como afirma Plnio em sua Histria Natural, tudo o que existena terra tem o seu correspondente no mar, ento o monstro o talelemento revelador de que fala Santo Isidoro o reflexo desta homo-logia universal.

    E chegamos a um ponto fulcral: se assim , a relatividade damonstruosidade no pode ser apenas entendida em funo da naturezaenquanto norma, uma vez que tem sentido mais profundo no seio daprpria natureza. De fato, o monstro fruto do espao onde surge, ecom esse espao coerente. Como diz Rogrio Bacon, no sculo XIII,"o lugar do seu nascimento o princpio que preside gerao dascoisas". Ter acreditado nesta correspondncia provocou, em certa me-dida, o drama de Colombo!

  • E esta, portanto, a quarta e ltima idia que gostaria de sublinhar:para o esprito medieval, o monstro aparece como o indicador domundo ao contrrio. E o problema dos Antpodas tantas vezes referidona bibliografia. Como a Besta do Apocalipse, cuja vitria antecede oadvento do triunfo definitivo da Jerusalm Celeste, tambm aqui amonstruosidade condiciona o acesso ao Paraso. Neste sentido, pensoser revelador que o cronista Zurara, logo a seguir aluso (j citada) alvaro de Freitas, que manifesta a sua disponibilidade para ir at o Pa-raso, descreva pormenorizadamente as aves e os peixes estranhos en-contrados pelos portugueses na sua progresso ao longo da costa. E queo monstro, como j foi visto, dificuldade, com toda a sua lgica: defato a monstruosidade, e o medo que ela provoca, aponta para a suasuperao. Para que se possa dizer, como Colombo, que afinal osmonstros no existem; para que se possa dizer, como o escreveu Zuraraa respeito do feito de Gil Eanes, "j seja que o feito, quanto obra, fossepequeno, s pelo atrevimento foi contado por grande".

    Assim, nesta ordem de idias, o monstro, enquanto tal, o reflexoao contrrio do eu. Na realidade, a monstruosidade tende a tornar-seuma progressiva conveno, uma categoria que permite situar o des-conhecido numa relao com o conhecido. Tm razo os medievais como Santo Agostinho ou Santo Isidoro quando colocam o proble-ma da monstruosidade em termos de viso: s o homem pode organizaro sistema de relaes no qual o monstro tem lugar.

    Como se v, em toda esta geografia imaginria do espao desco-nhecido, em toda esta geografia e a expresso alheia secundummentis considerwtionem, o monstro tem uma funo no pequena: esti-mulador da imaginao. Como escreve C. Kappler, "o monstro oferece,ele tambm, uma via de acesso ao conhecimento do mundo e de si. Omonstro enigma: apela reflexo, reclama uma soluo. Todo o mons-tro de algum modo... uma esfinge: interroga e coloca-se nos lugaresde passagem de toda a vida humana".

    Ser esta, em suma, a propsito da monstruosidade, a grande lioque generalizando-a se pode acertadamente ampliar a todo o ima-ginrio ocenico: inspirao de sentimentos e apetncias contraditrias,amedronta e estimula, confunde e explica, limita e abre horizontes eperspectivas... Como tal, fator de descobrimentos...

    Lus Ado da Fonseca historiador, professor da Faculdade do Porto (Portugal)e coordenador adjunto da Comisso Nacional Para as Comemoraes dos Des-cobrimentos Portugueses (CNPCDP). Foi professor visitante da Ctedra JaimeCorteso, implantada no IEA, em abril de 1992, atravs de convnio firmadoentre a USP e a CNPCDP.