O Homem do Teto - Frank Pires
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Frank Pires
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O HOMEM DO TETO
Frank Pires
2013
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Agradecimentos
Quem escreve um livro tem sempre uma dívida de
gratidão com um grande número de pessoas. Por isso,
expresso meus sinceros agradecimentos a todos que, de
alguma forma, colaboraram para a realização deste
livro, em especial ao grande amigo, Jornalista Walrimar
Santos, Assessor de Comunicação da Polícia Civil do
Estado do Pará, pela gentileza, pelo apoio e incentivo a
todas as minhas aventuras como escritor.
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“A liberdade é um cachorro vira-lata.” (Millôr Fernandes)
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“E se o dia acordar cinzento, a gente pinta o céu de
azul-felicidade e pinta um arco-íris no cantinho de cada
página.” (Karla Thayse Mendes)
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À minha linda esposa Elziane Pires,
grande lutadora, eu dedico meus
livros e meu sincero amor.
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Capítulo I
__Alberto! Alberto! Acorda por favor. Acorda
meu amor. Não faz isso. Alberto! Alberto!
Não sei dizer como isso aconteceu comigo. Era
uma madrugada chuvosa e lembro-me de ter ouvido o
barulho gostoso de chuva caindo próximo a janela do
meu quarto até umas duas da madrugada.
Acordei minha mulher só para reclamar de dor de
cabeça. Coisa de marido carente, mas a dor realmente
estava muito forte. Depois, lembro-me de ter tomado
dois comprimidos de um analgésico e deitei de novo.
Olhei para minha Silvana, mas ela voltara a
dormir toda encolhida, alisei sua fronte, beijei-a na testa
e adormeci. Há muito tempo não me sentia tão tranquilo
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ao dormir. Era um sono profundo e arrebatador. Foi
quando acordei assustado com os gritos de Silvana.
__ Alberto! Alberto! Acorda por favor. Acorda
meu amor. Não faz isso. Alberto! Alberto!
Não dava para eu entender quase nada do que ela
falava e o quarto estava ainda escuro. Porém havia
algo estranho naquilo tudo. As palavras proferidas por
ela começavam a se decifrar na minha mente sonolenta e
senti como se não estivesse na cama.
__ Alberto! Alberto! Acorda por favor.
__ O que foi Silvana? __ Perguntei, tentando
entender tudo aquilo.
__ Silvana! Silvana! __ respondi pra ela.
A luz do quarto acendeu e foi aí que tudo
começou a fazer sentido ou ficar confuso. Sei lá.
Um clarão de luz me cegou por alguns instantes.
Eu podia ouvir mais vozes no quarto, eram meus filhos,
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Amanda e Paulo, aquele clima de desespero, de gente
chorando, telefonando pedindo socorro.
Quando abri os olhos, minha primeira visão foi
uma cena que só podia ser sonho. Não tinha outra
explicação para o que eu estava vendo naquele momento.
Era algo estarrecedor, além da imaginação: eu podia ver
minha cama, e nela, minha mulher chorando e gritando,
agarrada ao meu corpo, imóvel, estático e pálido.
Era como se o “eu” que estava no teto, estivesse
suspenso no ar, flutuando por sobre a nossa cama. E lá
do alto eu podia me ver. Só podia ser um sonho, ou
melhor, um terrível e inimaginável pesadelo.
Fechei os olhos novamente, abri e nada. A visão
era a mesma, Amanda não se continha e se abraçou com
Silvana. Vi quando Paulinho alisou meus cabelos.
Meu filho andava de um lado para o outro do
quarto com o telefone na mão.
__ Paulo! Paulinho meu filho, eu to aqui em
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cima. Olha pra cá. Aqui em cima. Filhão, to aqui!
Nada disso era suficiente e eu sabia que algo
estava muito errado naquilo que eu estava presenciando.
Eu simplesmente estava no teto do meu quarto, olhando
pra baixo e vendo minha linda família em desespero pelo
que parecia ser a minha morte. Mas eu sabia que não
estava morto, estava acordado e vivo. Pelo menos eu
achava que sim.
Fechei os olhos mais uma vez, e dessa vez com
mais força e disse a mim mesmo: “agora eu vou acordar
desse pesadelo”.
“Acorda Alberto! Acorda Alberto! Acorda!”.
Eu dizia para mim mesmo em pensamentos,
insistia, insistia e me concentrava para acordar. Porém,
de nada adiantou essas tentativas de despertar.
Acho que eu abri e fechei os olhos umas trinta
vezes, sem sucesso. Olhei de novo pra baixo e vi o
desespero de minha esposa, o que me fez tentar confortá-
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la. Seu desespero também me fez desesperar e eu
comecei a repetir:
__ Silvana meu amor. Olha pra cá! To aqui em
cima. Tá tudo bem. __ Eu gritava forte.
Minha filha se ajoelhou ao lado do meu corpo e
nessa hora minha garganta ficou seca. Fiz um
tremendo esforço tentando fazer com que ela me ouvisse.
Tentei sair do lugar onde estava, mas não conseguia me
mexer, eu me sentia paralisado.
Eu podia ouvir o pranto das pessoas que eu mais
amava e isso estava me torturando, me enlouquecendo.
Como eu podia estar no teto do quarto? Como fui
parar lá? E se era um sonho, por que não conseguia
acordar? Eu pensava.
Fui tomado por uma angústia horrível, vendo
minha família em prantos por mim.
Nesse momento concentrei meus esforços
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mentais para me convencer que tudo era um sonho,
fechei os olhos mais uma vez e fiquei assim por horas.
Acho que de alguma forma adormeci.
Não sei ao certo quanto tempo fiquei nesse
estado, mas quando despertei pude ver que minha
realidade era sombria: eu continuava no teto.
Acordei no exato instante em que os paramédicos
ainda faziam um último esforço para me fazer voltar e
em seguida puseram meu corpo em uma maca e o
levaram.
Minha mente era um turbilhão de imagens,
emoções e sentimentos. Uma grande confusão estava em
minha mente estava me levando a um estado de loucura.
Foi quando me desliguei um pouco dos meus
familiares e comecei a pensar no que poderia ter
acontecido comigo. Alguma coisa deve ter dado
errado.__pensei.
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A gente ouve falar de céu, de inferno, de
purgatório, de limbo e até de alma penada, mas nunca
ouvi dizer que alguém morreu e ficou grudado no teto do
quarto.
Aparentemente, a impressão que eu tinha, era que
justamente isso tinha acontecido comigo.
Eu estava literalmente e inacreditavelmente
grudado com as costas no teto do quarto, com o olhar
fixo para baixo. Pensei em rastejar de costas até outro
cômodo da casa, mas não conseguia sequer me mover.
__Deus! Cadê você? Tem alguém aí em cima? Eu
morri? Ninguém vem me buscar? Isso é horrível! Não
quero ver isso! Alguém! Me tira daqui! __ Eu gritei e
repeti várias vezes essas frases, algumas até desconexas e
cada vez eu gritava mais alto, porém não era ouvido por
ninguém.
Minha mente confusa imaginava o que podia ter
dado errado na minha viagem ao mundo espiritual, se é
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que havia um “mundo espiritual” me esperando, porque
naquele momento eu só tinha sido apresentado ao
“mundo do teto”.
Talvez eu estivesse diante de um erro de
percurso, um atalho errado, uma parada pra reabastecer.
Só sei que nem o paraíso e muito menos o inferno
era ali.
Conclusão óbvia: Eu não chegara ao meu destino.
Não concluíra a minha jornada.
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Capítulo II
Quando minha mulher entrou no quarto,
sozinha, roubou toda a minha atenção. Cabisbaixa, com
os olhos vermelhos de tanto chorar, inconsolável. Abriu o
lado do guarda roupa onde meus pertences pessoais
estavam, pegou uma de minhas camisas e levou ao rosto.
Eu podia ouvir o soluçar da minha amada esposa.
A vontade de abraçá-la era tanta que não me controlei e
comecei a chorar de novo. Dessa vez, não era mais um
choro contido, e sim um choro de dor, como criança
mesmo.
Silvana, minha mulher, era uma pessoa
extraordinária, estávamos casados há dezenove anos e foi
muito difícil ter de vê-la nesse estado, sofrendo tanto.
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Eu não parava de pensar nas coisas que ela teria
que fazer sozinha, sem mim.
Como empresário, eu sempre fiz tudo do meu
jeito, controlando todas as ações e decisões, poupando-a
de maiores preocupações e aborrecimentos, de se
envolver nos negócios e agora... eu estava...morto.
Nunca pensei na morte como algo real, que
estivesse por perto, muito menos que morreria jovem. Na
verdade, eu vivia pensando em realizar coisas nos anos
futuros, como viajar somente nós dois para uma segunda
lua de mel. Não havia em mim preocupação com o tema
“morte”.
É claro que eu tomava precauções com relação a
segurança pessoal e até ia regularmente a consultas
médicas, realizava exames com frequência, mas nada
além do normal.
Acho que eu sempre fora da seguinte linha de
pensamento: “quando chega a sua hora, o avião cai em
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cima da sua casa e só morre você”.
Por isso, talvez, não esperasse morrer. Não assim:
dormindo.
Eu era até certo ponto despreocupado, não
pensava de forma negativa. Eu sempre tivera saúde. Já
tinha feito “eletro”, “eco”, “esteira”, “ultrassom” e até a
tal da “endoscopia”, todo tipo de exames, até com certa
regularidade.
Quando eu completei 40 anos, lá estava eu
fazendo exame de próstata. Nunca me descuidei.
É claro que às vezes eu cometia certos abusos,
uma picanha gorda aqui ou um pernil ali, mas eu achava
que estava bem. Pelo menos eu morri de morte
“morrida” e não de morte “matada”. Pensei.
O fato é que eu estava morto na flor dos meus 45
anos. Como diria o meu amigo de “bola”, o Tobias: “o
homem trabalha, trabalha e trabalha e na hora de gastar
o dinheiro, morre”.
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Grande Tobias! Um gênio! Pensei.
Tobias devia estar lá no meu enterro. Aliás, deve
ter dado muita gente no meu enterro, afinal de contas,
sou muito querido, não tenho inimigos.
O fato de eu ter morrido dormindo deve ter
despertado a curiosidade de todo mundo, ainda mais os
vizinhos e conhecidos ou mesmo os funcionários e os
parentes mais distantes. Eu até posso imaginar o que eles
devem estar comentando sobre o que teria acontecido:
“Será que foi infarto?”. “Não. Acho que foi
AVC”. “Dizem que foi morte súbita”. “Parece que ele
jantou e foi dormir de barriga cheia e, morreu”.
Eu particularmente acreditava na hipótese de ter
tido um AVC, que é o famoso “derrame”, justamente por
me lembrar da dor de cabeça infernal que eu tivera de
madrugada, mas não tinha como eu saber, era só uma
suspeita.
Ainda no teto e sem noção de tempo, eu tinha
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emoções mescladas e confusas. Lapsos de memória,
lembranças diversas dos fatos que marcaram minha vida.
Lembranças dos meus pais, que, diga-se de
passagem, ainda estão vivos e muito bem de saúde.
Apesar de que, a gente faz um monte de exame, gasta
uma fortuna em plano de saúde, toma remédios
caríssimos e morre dormindo. “Pra morrer basta estar
vivo”, já diz o ditado popular.
Enquanto eu me embrenhava nessas lembranças,
minha filha tentava confortar Silvana.
__ Mãe. Não fica assim. Nós temos que ser
fortes. O papai não ia querer que a gente ficasse
chorando o tempo todo. __disse Amanda.
__É verdade minha filha. Mas eu não consigo.
Quando penso que conversamos a noite e lembro que
fizemos planos pra viajar. Lembro-me dele colocando
minha cabeça do seu braço e me beijando a testa. Me dá
uma angustia tão grande minha filha. Por quê? Porque
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meu Deus? Logo ele, tão cheio de vida, tão bom, tão
trabalhador. Porque isso?
__ Deus sabe de todas as coisas mãe. Ele quis
assim e quem somos nós para questionar? Temos sim é
que rezar muito por ele.__respondeu minha filha, cheia
de fé, aos questionamentos da mãe.
Nesse momento, Amanda e Silvana se abraçaram
e choraram juntas. E então eu percebi que eu já
conseguia ouvir bem o que elas falavam. O que antes
eram apenas sussurros, gritos e palavras desconexas, já
se transformara em diálogos nítidos.
O problema é que ao ouvi-las, me dava um
tremendo desespero e eu tentava gritar e dizer que eu
estava lá. Lá em cima: no teto do quarto. Sim, no teto,
sem poder fazer nada mais, não virei anjo e nem
demônio, não podia proteger e nem prejudicar ninguém.
Não podia fazer mais nada, mas estava lá, pensando,
sentido e sofrendo.
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“Penso, logo existo”. Como? Como isso pode
ser possível? Não sei! Pensei.
Depois de morrer e acordar no teto, a verdade é
que eu não sabia de mais nada.
O mais intrigante é que eu não estava revoltado
ou com raiva de alguém, como de Deus ou algo assim.
Eu estava “na minha”. Eu estava quieto. Bom,
nem tão quieto assim.
Eu só tinha que me acostumar a ouvir as
conversas sem me intrometer, mesmo porque ninguém
me ouviria mesmo. Isso sim era angustiante.
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Capítulo III
Eu tinha a estranha sensação que as horas não
passavam, ou pelo menos eu não sentia da mesma forma
que antes.
Aparentemente eu não percebia o tempo
passando, dentro desse conceito terreno de segundos,
minutos, horas. Não sei como explicar isso. Ou talvez eu
não me lembrasse das coisas que eu julgava menos
importantes.
Eu até me lembrava de quando entravam pessoas
no quarto, e tinha a clara consciência que na maior parte
do dia o quarto fica vazio.
Não sabia há quanto tempo eu tinha ido parar no
teto; eu precisava ouvir as conversas para ter alguma
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noção exata das coisas. Mas ouvir também era difícil.
Quando falaram sobre uma missa que haviam
celebrado, imaginei que já tinham se passado sete dias da
minha morte. O tempo passava rápido no teto.
Depois de, acho que um mês, lembro que alguns
parentes se reuniram no quarto e cada um começou a
lembrar de fatos, histórias e episódios vivenciados
comigo. Coisas engraçadas. Minha irmã Laura era a que
mais contava coisas de nossa infância. Falava das
traquinagens, das brigas e confusões que eu aprontava.
Silvana ficou séria, com um semblante triste.
__O que foi minha cunhada? Não fique assim.
Sei que estamos todos muito abalados e tristes. Mas sei
também que não é isso que o Alberto ia querer. Vamos ter
forças! __disse minha irmãzinha querida à minha esposa,
no intuito de tentar consolá-la, sem ter a mínima noção
que eu estava lá em cima, não no céu, e sim no teto.
__ Me desculpem. É que amanhã é domingo e eu
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lembrei que o Alberto sempre gosta de cozinhar no
domingo. E naquela noite tínhamos conversado sobre
esse domingo e ele disse que iria cozinhar camarão. Ele
sabia que é a comida que eu mais gosto. __ Silvana
falava e soluçava ao mesmo tempo, num choro
incontido.__pobre Silvana, minha linda esposa.
__pensei.
__ Então vamos fazer o seguinte: amanhã vamos
fazer um delicioso camarão em homenagem ao Alberto e
a Silvana. __ respondeu Laura, conseguindo arrancar de
minha amada esposa um sorriso tímido e contido.
Nesse instante Bilu entrou no quarto abanando o
rabo como se tudo estivesse dentro da normalidade. Bilu
era o cãozinho da família. Um “poodle toy” que estava
conosco há mais de dois anos, comprei ele filhotinho e
dei de presente pra Amanda.
Eu nunca consegui entrar em casa de surpresa,
por causa do escândalo que o Bilu sempre fazia quando
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eu chegava do trabalho.
Enquanto elas comentavam sobre como o tempo
passava rápido, Sílvia, minha cunhada, começou a
lembrar de fatos engraçados de bem pouco tempo atrás.
Sempre fomos muito amigos e eu sempre tinha uma
piada nova para lhe contar ou brincar com ela sobre
algum pretendente a namorado.
Bilu entrou nesse exato instante. Ele estava
estranho. Minha esposa então comentou:
__O Bilu está estranho desde aquela noite.
__Deve ser saudade. Ele é muito apegado ao
Alberto. Os animais sentem as coisas. Até as coisas
espirituais. Dizem até que podem pressentir coisas ruins
ou até a morte dos donos. __disse Laura.
__ Credo! Acende uma vela mana. __ Sílvia era
dessas supersticiosas ao extremo.
__Vela? Acender vela pra quê? __minha mulher
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perguntou em tom de espanto e descrença, nunca fora
devota ou supersticiosa.
__ Dizem que clareia os caminhos e trás bons
fluídos. E um pouco de fé não faz mal a ninguém. Mal
não vai fazer. __continuou minha cunhada com seu
argumento.
“Clarear?” pensei. A luz do quarto estava quase
me cegando quando ficava acesa. Eu ficava o tempo todo
do lado da lâmpada. Acender vela pra quê? Até que a
pergunta de Silvana fazia sentido pra mim.
Eu queria era descer dali e andar pela casa,
mesmo que fosse no escuro mesmo.
Bilu entrou, parou perto da cama e olhou pra
cima em minha direção. Pensei que o danado estava
olhando para a lâmpada, pois como eu disse antes, era
uma luz forte. Mas ele me fitou e de repente começou a
latir. Latiu a primeira vez, a segunda, sem tirar os olhos
de mim.
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__Bilu! Bilu! Você tá me vendo?__perguntei ao
poodle como que esperasse uma resposta.
Como eu tinha absoluta certeza que ele não podia
me ver, afinal, ninguém podia me ver, resolvi relembrar
uma brincadeira que eu fazia com ele. Era só repetir três
vezes o nome dele, para que o cachorro ficasse
“elétrico”, ele rodopiava e ficava de pé, apoiado nas
patas traseiras.
E foi o que eu fiz:
__ Bilu, Bilu, Bilu!
Nem precisei falar alto. Bilu ficou doidinho
olhando pra mim. Deu uma rodadinha e ficou de pé.
Nessa hora, Silvana levantou da cama num tremendo
susto.
__Que foi Silvana? __ Laura assustou-se também
com o jeito da minha esposa.
__ O Bilu. Meu Deus! Vocês viram isso? Viram o
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que ele fez?
__ Viram o quê Silvana? Você está assustando a
gente.
__Toda vez que o Alberto chama o nome dele, ele
faz isso.
__ Calma Silvana. Isso é coisa de bicho. O
Alberto não está aqui, ninguém chamou o Bilu. Então vai
ver, o cachorrinho está lembrando-se do Alberto e
resolveu ficar brincando com você.
__ Eu disse pra ela acender uma vela, isso não
deve ser coisa boa.__Insistiu Sílvia na história da vela.
__ Que vela que nada. Isso não é nada de mais. O
que você precisa é de descanso, minha cunhada. Nós
vamos embora e te deixar a vontade pra você descansar.
E tira esse cachorro daqui pra você não ficar
impressionada. __ E foi o que Laura fez, tirou o Bilu do
quarto e ajeitou tudo pra Silvana descansar.
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Capítulo IV
Agora eu sabia que o cachorrinho podia me ver
e me ouvir. Mas depois do que aconteceu, não deixaram
mais o pobre animalzinho entrar no quarto. Achavam que
ele sentia o meu cheiro nas roupas que ainda estavam no
armário. E para que ele não assustasse mais ninguém
latindo para o teto.
Mal sabiam eles que lá no teto, grudado,
totalmente perdido e anônimo, estava eu. Sem saber o
que eu era e porque estava ali?
Talvez eu tivesse me transformado numa mistura
de aranha com lagartixa e estivesse condenado a vagar
pelo teto do quarto por toda a eternidade. Mas não havia
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nada em mim que confirmasse essa suspeita, como pelos
enormes ou novos braços e pernas.
Aliás, “vagar” eu ainda não conseguia, apesar
dos esforços para me locomover aos outros cômodos da
casa.
Depois de algum tempo e muita paciência e
esforço, eu já conseguia me movimentar um pouco ao
redor do meu eixo, o que não era nada de significante.
Porém era o máximo que eu podia fazer.
O quarto ficava cada dia menos frequentado pois
minha mulher passava a maior parte do tempo fora.
Aliás, a casa era de um silêncio enlouquecedor.
Inúmeras vezes Silvana tentou agir normalmente
dentro do quarto, mas acredito que era atormentada
pelas lembranças e se acabava em lágrimas, sem
conseguir dormir.
Jamais imaginaria que ela fosse sentir tanto a
minha ausência. Por diversas vezes fiquei emocionado ao
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vê-la em suas orações silenciosas.
Acendeu uma vela numa espécie de altar
improvisado numa cômoda e pôs uma foto minha. Em
seguida orou em voz alta:
__Oh Deus! Não quero questionar a tua vontade.
Tu sabes de todas as coisas. Mas estou tão triste, tão
desmotivada e preciso da Tua ajuda pra continuar
lutando. Preciso de Ti Senhor, preciso muito de Ti, da
Tua mão me sustentando. Ajude-me a vencer.
Depois ela rezou um “Pai nosso” e deitou em
nossa cama. Porém não conseguiu dormir. Rolava de
um lado para o outro numa insônia angustiante me
fazendo ficar no mesmo estado. De repente, ela levantou-
se e saiu.
Tudo aquilo também era angustiante pra mim e
eu pedia a Deus, aos santos, aos anjos, para que alguém
resolvesse minha situação.
Eu não podia e nem queria ficar no teto do quarto
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pra sempre. Isso ia de encontro a todas as teorias,
crenças, lendas e mitos que já ouvira falar em vida.
Acredito que na literatura existente no mundo, nunca se
ouviu falar de “morrer e ir para o teto”.
Talvez eu não tenha sido tão bom assim, e a
qualquer hora o “coisa ruim” fosse aparecer e me levar.
Talvez um lindo anjo de Deus me levasse pela mão em
direção às mansões celestiais. Talvez, talvez, talvez. Eu
queria certezas.
Várias ideias povoavam meus pensamentos,
inclusive a de que nenhuma das duas opções iria
acontecer.
Talvez nada disso realmente existisse, era uma
alucinação, ou eu fosse uma alma penada, sem rumo,
sem destino e fadado a assombrar o teto da casa de
alguém. Talvez eu fosse uma cobaia de Deus, num
experimento de um novo tipo de sala de espera pós-
morte. Vez por outra olhava para minhas costas, para ver
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se asas de anjo estavam nascendo.
Que fim triste o meu, seria até cômico se não
fosse trágico.
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Capítulo V
A cada dia eu me sentia mais só. Nem o Bilu
entrava mais no quarto e isso estava me angustiando. O
pobrezinho fora proibido de entrar, pois tinham medo do
poodle ficar traumatizado.
O único que podia me ver e ouvir, não tinha mais
acesso ao quarto por causa de seu comportamento no
mínimo estranho.
O pior é que o cachorrinho arranhava a porta
querendo entrar e até chorava.
__ Bilu pare com isso! __ ouvi a voz de minha
filha brigando com ele.
Amanda abriu a porta do quarto e entrou, sendo
automaticamente seguida por Bilu.
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Acendeu a luz e parou perto da cama. No
instante em que entrou, Bilu olhou pra cima e latiu. O
danado estava me vendo. Não tinha outra explicação para
aquilo.
Minha filha não estranhou nada. Foi até uma
gaveta da cômoda e pegou um álbum de fotografias.
Visivelmente triste, ela sentou na cama e começou a
folhear o álbum. A cada paginada, lágrimas molhavam
seu lindo rosto adolescente. Por um instante pensei que
ela iria logo embora, mas eu estava enganado, ela ficou
lá por horas. Abraçou o álbum de nossas fotos e deitou-se
pensativa. Não demorou muito e minha princesinha
adormeceu.
Bilu ficou algum tempo me olhando, mas depois
o danadinho deu um salto pra cima da cama, como
sempre fazia e deitou-se ao lado de Amanda, como que
compartilhando do mesmo sofrimento.
As lembranças povoavam minha mente,
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remetendo-me a época da infância de meus filhos. Eu
fora um bom pai. Um pai presente, amigo, carinhoso e
atencioso. Momentos que guardarei pra sempre dentro da
minha essência, do meu “eu” verdadeiro e esse “eu” não
morreu, está vivo e consciente de tudo.
Ali no teto, vendo minha filhinha sofrendo e sem
poder abraçá-la e consolá-la, a angústia me consumia a
alma.
Pensei na importância de realizarmos as coisas
enquanto estamos perto de quem amamos. De falarmos o
que é realmente importante, principalmente no que diz
respeito a sentimentos, enquanto estamos em vida.
Eu não podia mais dizer a minha princesinha que
eu a amava e nem podia prometer que estaria sempre
com ela, para protegê-la e orientá-la.
Não estaria perto para vê-la vencendo mais um
degrau importante da vida, a faculdade. Amanda estava
prestes a se formar e eu não estaria lá. Tudo isso me veio
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a mente como um turbilhão de reflexões e minha cabeça
parecia que ia explodir. Fechei os olhos com força, muita
força e apaguei.
Durante certo tempo eu não tinha vontade de ter
consciência das coisas, desejava que a morte não fosse
dessa forma que eu estava vivenciando.
Eu queria que a morte, a temida morte, realmente
apagasse tudo. Mas não era assim, pelo menos comigo.
Eu era o homem que morava lá em cima, no teto. E lá eu
estava só, completamente só. Eu falava e ninguém ouvia,
eu gritava em vão, eu tinha ideias que não serviam pra
nada e sentimentos que eu não conseguia expressar. Eu
era o retrato da solidão.
Naquele instante eu queria ter dito tanta coisa pra
Amanda, para que ela se sentisse segura, motivada,
amparada. Mas minha filha jamais saberia de minha
estada no teto do quarto a observá-la em sua dor.
Como eu podia me sentir culpado por ter
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morrido?
Não tive culpa. Eu simplesmente morri. E eu
estava aborrecido comigo mesmo por isso.
Não conseguia controlar a raiva de mim mesmo.
Amanda e Paulo eram minha vida e motivação.
Quem tem a alegria de ter um casal de filhos sabe do que
eu estou falando. E eu sempre fui um bem-aventurado,
um homem de sorte.
Meus filhos eram unidos, amáveis, estudiosos,
atenciosos e respeitadores. Sei que muitos pais não tem
essa benção de ter filhos assim, mas eu tinha.
Paulo sempre foi um rapaz honesto e de caráter.
Cuidava da irmã e tinha um afeto com a mãe que
emocionava qualquer um. Um “gentleman”. O
verdadeiro e quase extinto cavalheiro. Por isso sempre
digo que sou um abençoado: tive na terra, em vida, uma
família que só me trouxe alegrias.
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Tínhamos tudo para usufruir dessas dádivas,
colher os frutos de tanto trabalho. Mas eu não estaria
mais entre eles, e não participaria das próximas alegrias.
Como eu poderia não estar tão triste? É claro que
eu estava arrasado com tudo isso.
Meu maior desejo naquele momento era
entender, não a razão da minha morte, isso eu até
aceitava bem, afinal de contas já tinha acontecido
mesmo, portanto, não tinha direito a “recurso”, mas eu
adoraria que alguém me explicasse porque eu estava ali,
no teto, sem rumo.
Por alguns instantes eu me sentia um turista,
chegando a um hotel que está lotado, que tem que
aguardar vaga para se hospedar. Sendo que, no meu
caso, nem sei se existe um quarto pra mim, lá na terra
dos mortos.
Eu já tinha lido vários relatos, visto
documentários e já tinha até conhecido pessoas que
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passaram pela chamada experiência de “quase morte”, as
chamadas “EQM”.
Acho que todo mundo tem curiosidade de saber o
ocorre na antessala da morte, por isso procuramos
conhecer esses relatos feitos por pessoas "ressuscitadas".
Mas no meu caso foi diferente. E isso é que me
deixava intrigado. Eu não tive massagem cardíaca e
estimulador elétrico para restaurar a minha consciência, e
se tive, não funcionou. Eu fui direto pro outro lado e nem
senti. Eu estava dormindo.
Nem posso usar a expressão “do outro lado”,
como disse antes, porque isso não aconteceu, eu fui para
o lado de cima do quarto.
Deixando de lado tantas lamúrias e voltando a
falar dos documentários e livros que tinha lido sobre
“quase morte”, lembro-me bem que os cientistas estavam
imbuídos nessa pesquisa e analisavam os relatos de quem
passou pela experiência, com o intuito de comparar as
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semelhanças entre eles.
E pensando nisso, nada se compara a esse fim
melancólico que eu tivera. Comparando os relatos com
a minha experiência, fora o fato de a grande maioria ter a
sensação de “projeção do corpo”, não há nenhuma
semelhança.
A projeção do corpo é a experiência mais comum
a todos os que “quase morreram”. É a famosa sensação
de flutuação e na maioria das vezes a pessoa diz que
deixou o corpo e pairou em cima dele.
Algumas pessoas também relatam a sensação de
caminhar em um túnel. Isso mesmo: se locomover em
um túnel escuro.
Essa experiência então é que eu não tinha tido
mesmo. Bem que seria bom dar uma caminhada, mesmo
que fosse a um túnel escuro e assustador. Olha que eu
adoraria ter tido essa sensação.
Outros relatos dizem respeito a famosa “visão da
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luz”. A luz que brilha e nos chama em direção a ela.
Também não vi essa famosa luz.
Tirando a luminária do quarto que ficava do meu
lado, às vezes quase me cegando, nenhuma outra luz,
clarão, “ser iluminado” ou uma espécie de áurea,
realmente nada aparecera para mim, nem para dizer um
“oi”.
Há ainda aquelas pessoas que dizem que tiveram
um encontro com pessoas já mortas, que podem ser
pessoas muito queridas que já morreram, reconhecidas
ou não, “seres sagrados”, “entidades” não identificadas
ou “seres de luz”, muitas vezes símbolos da própria
religião, como um santo ou uma santa, ou até mesmo o
próprio Deus.
Bem, eu não vi ninguém, apenas meus familiares
vivos. Ah! E o Bilu, é claro, aliás, foi o único que me viu
e se comunicou comigo, digo, latiu pra mim.
Analisando friamente todos os indícios, todos os
44
fatos, eu chegara à conclusão que aquilo não era uma
experiência de “quase morte”, principalmente pelo
seguinte motivo: o retorno à vida.
A decisão de voltar a viver é voluntária e
normalmente associada a alguma tarefa que ficou
inacabada, pendente ou à existência de filhos. Algo que
realmente nos prenda, pelo menos por mais algum tempo
na terra.
Porém, até aquele momento, ninguém tinha me
dado a opção de voltar a viver. Não tinha aparecido
ninguém, sequer para me oficializar da minha morte. Isso
é uma falta de respeito. Pensei. Sabe aqueles filmes, tipo:
“Alguém lá em cima gosta de mim”. Pois é! Aparece
“um cara” lá em cima, um anjo e autoriza o morto a
voltar e consertar as coisas. Comigo não foi assim.
Ninguém apareceu. Então, sendo assim, eu tinha que
admitir que eu estivesse morto mesmo.
45
Capítulo VI
Eu tinha chegado a seguinte conclusão: a morte
não era mais a mesma!
Não dá pra ter medo da morte assim. Pensei.
Pelo menos essa tal “dona morte” que me fora
apresentada não assustava ninguém. Ela era suave,
calma, tranquila e totalmente sem grandes e magníficas
surpresas.
Lembro que quando eu assisti aos tais relatos de
“quase morte”, eu ouvira expressões do tipo
“indescritível”, “inenarrável” ou “inefável”, “impossível
de ser reproduzida com fidelidade em palavras”. Para
mim era tudo uma grande besteira.
46
Eu não tinha como usar qualquer desses adjetivos
para definir o que eu estava passando no teto, como um
recluso.
Se as experiências de milhares de pessoas que
“quase morreram” não se encaixam na descrição do
além, feita por nenhuma doutrina em particular, ficava
difícil, portanto, tentar explicá-las a partir da religião.
Muito menos a minha experiência. Acho que nem a
ciência conseguiria desvendar esse enigma.
É claro que os neurocientistas têm explicação pra
todo esse processo de “quase morte”, como, falta de
oxigenação no cérebro, alucinações, estresse, entre
outros. Nem quero entrar nesse debate, pois isso não
aconteceu comigo. Nada aconteceu comigo, nada.
Eu tinha aceitado que para o meu caso, não
existia uma realidade objetiva, uma resposta coerente.
Apenas suposições.
Dizem também que quem passa pela experiência
47
de “quase morte”, aprende a valorizar a vida, a encarar a
vida de outra forma. Mas eu sempre valorizei a vida,
amo viver, amo estar perto dos meus filhos, da minha
esposa, dos meus amigos. Amo a vida mais que tudo.
Lembrei-me de Amanda. Voltei meu olhar para a
cama e ela não mais estava lá. Tinha ido embora e eu
nem percebi. Estava envolto em meus pensamentos e
lamentações.
Fiquei muito triste e resolvi rezar:
“O que está acontecendo aqui? Por favor, Deus,
mostra para mim o que você é. Eu quero muito conhecer
a realidade da minha situação”.
E mais uma vez, não houve resposta.
48
Capítulo VII
Quando eu senti a terceira lambida no rosto,
uma alegria incontrolável invadiu meu coração: eu estava
vivo! Tudo não passava de um sonho e finalmente eu
estava acordando, ou melhor, sendo acordado pelas
lambidas no rosto que o Bilu dava para nos acordar pela
manhã. E ele só parava de lamber quando a gente
acordava mesmo, levantava da cama e ia cuidar da vida.
Eu abri os olhos lentamente e vi os olhos do
poodle me olhando. Com a língua pra fora da boca, ele
latiu pra mim, como se dissesse: acorda Alberto!
Espreguicei-me como um urso que esteve
hibernando por seis meses.
Procurei Silvana ao meu lado, porém não achei.
49
Assim como não achei a cama. Olhei para baixo e lá
estava a cama. Eu continuava no teto. Então como o Bilu
subiu no teto?
__ Bilu. Como você veio parar aqui em cima? __
perguntei ao cachorro enquanto lhe fazia um agrado. Ele
me olhou e latiu abanando o rabo.
“Bilu morreu”. Pensei naquele momento. “Meu
Deus! O Bilu morreu e veio pro teto comigo. Como isso
foi acontecer?”
Isso estava começando a ficar mais e mais
interessante e minha esperança de que tudo fosse um
sonho, ou melhor, um pesadelo horrível, tinha terminado.
Não era sonho, era muito real. Eu e meu cachorrinho
agora estávamos juntos no teto e mortos, é claro. A não
ser que Bilu estivesse tendo uma experiência de “quase
morte”, o que eu achava impossível de um cachorro
passar. Mas do jeito que as coisas estavam acontecendo,
eu já não duvidava de mais nada.
50
__ Mamãe, poxa. O Bilu não podia ter morrido. A
gente passando por tudo isso e agora acontece mais uma
tragédia. A culpa foi minha. Eu não o segurei direito e ele
se soltou, ele correu pra rua eu não consegui segurá-lo.
Foi minha culpa. __ Amanda estava inconsolável.
__ Minha filha. Tenha calma. O Bilu sempre foi
assim. A culpa não foi sua. Ele, que por ser irracional não
tinha a noção do perigo. Ninguém tem culpa, Amanda.
Nem você, nem o Bilu e muito menos o pobre do homem
que atropelou ele.
51
Bilu fora atropelado. Fiquei muito triste ao ouvir
isso. “Que morte terrivelmente dolorosa”.
Enquanto eu pensava no sofrimento do cachorro,
ele me lambeu de novo. Queria brincar comigo.
__ Bilu, seu danado. Nem parece que foi
atropelado rapaz. __ falei pra ele, soltando uma
gargalhada em seguida.
Bilu só queria brincar o tempo todo. Depois
deitava ao meu lado e dormíamos juntos. Acordávamos,
brincávamos e ficávamos esperando alguém entrar no
quarto.
Eu me sentia cada vez mais sonolento, não tinha
mais ânimo pra nada, só queria dormir. Dormir pra
sempre. Às vezes, quando alguém entrava no quarto e eu
por algum motivo não percebia, Bilu me avisava, ora me
lambendo, ora latindo, mas sempre dava um jeito de me
acordar.
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Já tinha visto Silvana chorando, Paulo chorando,
Amanda chorando. Já tinha visto sofrimento demais.
De que adiantava eu estar ali se não podia fazer
nada por eles. Não podia aliviar a dor de nenhum deles.
E por amá-los tanto, não suportava mais vê-los passar
por aquilo tudo.
Muitos poetas tentam definir o amor. Alguns
chegam perto, mas a maioria só conhece a teoria do
verdadeiro amor.
Feliz é aquele que ama! Não existem barreiras
que possam conter a chama do amor. Dádiva divina com
que nos presenteou o Criador, bálsamo sublime para o
espírito.
Por isso, mesmo morto, eu estava vivo, por causa
dessa chama, desse bálsamo, dessa força, desse tudo
chamado “amor”.
Agora sim, eu sabia o verdadeiro e inconfundível
sentido do amor.
53
Eu não seria mais um teórico do amor dizendo “te
amo muito”, como se pudéssemos mensurar esse sublime
sentimento, ou pesá-lo numa balança de farmácia.
Eu era todo amor e o amor era eu em pessoa, a
personificação do amor.
A lógica é, sem dúvida alguma, a ciência do
pensamento. Alisei o queixo, pensativo, tentando
encontrar uma lógica para o meu estado.
Enquanto eu pensava, Bilu veio em minha
direção e passou o focinho próximo ao meu rosto, como
se quisesse me dizer alguma coisa. Ele começou a emitir
um som como um gemido, um choro.
__ Que foi Bilu? Hein rapaz? Fala para o papai.
Fala!
Nessa hora a porta do quarto se abriu.
Eram homens uniformizados com roupas de uma
empresa de transporte e mudança. Dois deles começaram
54
a desmontar os móveis do quarto, enquanto os outros
dois embalavam roupas e miudezas. Minha família
estava indo embora da casa.
55
Capítulo VIII
Os funcionários da empresa eram ágeis e
rapidamente deixaram o quarto vazio. Eu e Bilu
olhávamos aquela movimentação pasmos. Eu não havia
pensado nessa possibilidade.
Porque vocês estão se mudando? Para onde vão?
Pensei.
Eu não sabia responder nem há quanto tempo eu
estava morto, imagina ter respostas para essas coisas.
Meu mundo, minha vida, limitava-se ao quarto e
naquele momento eu estava mais perdido que cachorro
de pobre em dia de mudança.
Por falar em cachorro, Bilu deitou, entrelaçou as
patas dianteiras e relaxou a cabeça em cima. Ficava
56
olhando para as paredes, sem expressar nenhuma reação.
Ninguém entrou no quarto depois que a mudança
foi embora. Eu fiquei na expectativa de alguém adentrar
e dizer alguma coisa, mas isso não aconteceu.
Eu tinha perdido todo o acesso às informações. E
não sabia de mais nada.
Agora eu estou totalmente fora da família e
estava fadado ao esquecimento. Pensei.
Tentei me locomover em direção ao corredor que
me levaria à sala de estar e consequentemente a varanda,
onde teria uma visão da rua. Missão impossível! Nem
consegui dar uma volta ao redor do meu corpo.
E nem adiantava ter crise de nervosismo ou gritar,
ninguém escutaria. Era o fim. Só me restava pensar,
horas e horas, dias, semanas, meses, anos, séculos pra
pensar e esperar.
__ Bom menino! __ falei enquanto fazia um
57
afago no cãozinho, que também devia estar se sentindo
abandonado.
Às vezes não nos damos conta de como esses
seres são iluminados e parecem enviados por Deus para
alegrar nossas vidas, modificar nossos hábitos e até
nossas relações.
Eles chegam às vezes filhotes, e aos poucos
conquistam nosso amor. Primeiro nos aborrecem, nos
estressam, nos irritam, mas no final somos vencidos pela
doçura canina ou felina.
Passamos por isso na infância e quando adultos,
os filhos nos convencem que temos que tê-los em casa.
Bilu, quando filhote, já era dengoso, fazia uma
gritaria quando era deixado sozinho e Amanda corria e
lhe cobria de carinho.
Como disse antes, ele é um “Toy”, uma raça
muito especial, são delicados, inteligentes, dóceis, gentis
e extremamente apegados aos donos, estes cãezinhos são
58
perfeitos para ficar no colo, dormir no pé da cama ou
tirar uma soneca no sofá.
Sua função primordial é dar e receber carinho e
isso o Bilu fazia muito bem. Era o carinho em pessoa,
um doce, cheio de dengo.
Quando eu era criança, tínhamos um cãozinho
“vira-lata” que batizamos de “Pirata”, isso devido a uma
mancha ao redor de um dos olhos, que não me recordo se
era o direito ou o esquerdo.
Ele era todo branquinho e tinha essa mancha
pretinha de nascença em um dos olhos. Acho que ao
longo de sua vida, Pirata abanou o rabo cerca de um
trilhão de vezes ou mais. Às vezes segurávamos o rabo
pra ele parar de balançá-lo, mas era impossível.
Vivíamos em uma casa com um quintal enorme, o
que nos permitia fazer diversos tipos de brincadeiras e o
Pirata fazia questão de participar de todas. Aquele
cachorro sim vivia a vida. Era um fanfarrão, comia de
59
tudo, enterrava ossos pelo quintal, se sujava todo depois
que tomava banho.
Era um indisciplinado e incorrigível. Hoje em dia
temos todos os cuidados, seguimos todas as regras que a
indústria de produtos “pet” nos impõe, vacinas em dia,
idas ao veterinário se o cão emitiu um som diferente ou
se está “deprimido”. O bom e velho osso, nem pensar e
mesmo assim o cãozinho adoece.
Pirata era livre, comia comida de gente, corria o
tempo todo.
Millôr Fernandes disse sabiamente: “A liberdade
é um cachorro vira-lata”.
Pirata não tinha medo de encarar ninguém, era
um “puxa briga” inato, se fosse um estranho e tentasse
chegar perto do portão, lá estava ele fazendo a maior
zoada do planeta. Era, sem dúvida, o nosso supercão.
Ele era rápido, corria como um velocista, quando
fugia pra rua era um desespero, todos corriamos atrás
60
dele. Driblava os carros, não tinha medo de nada, era
doido pra entrar numa briga com um cão maior que ele,
desafiava mesmo.
Na rua ele não obedecia ninguém, só o meu pai.
Aliás, todo mundo obedecia meu pai. Ele só falava uma
vez e tanto o Pirata quanto nós, entrávamos com o rabo
entre as pernas.
Sinceramente, eu achava que o Pirata ia viver pra
sempre, e quase que ele consegue essa façanha. Morreu
de velhice, o danado, e foi enterrado com honras no
quintal de casa.
Falar sobre o Pirata me faz reafirmar a ideia de
que quanto mais eu conheço as pessoas, mais eu gosto do
meu cachorro.
Fernando Sabino disse que o valor das coisas não
está no tempo que elas duram, mas na intensidade com
que acontecem. Por isso existem momentos
inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas
61
incomparáveis.
Pirata, meu cãozinho vira-lata conseguiu ser
inesquecível, inexplicável e incomparável.
62
Capítulo IX
Estávamos sós, habitando o teto de um quarto,
de uma casa desabitada e solitária. O que eu sou? Pensei.
Um espírito, um fantasma, uma alma, um ser, um “sei-
lá-o-quê”.
Eu e meu cachorro no teto. Esperando um
“alguém” aparecer.
E finalmente um dia, o tal “alguém” apareceu.
Ele entrou pela porta do quarto vazio, deu alguns
passos e olhou pra cima. Vestia terno branco e não me
era nem um pouco familiar. Tinha um aspecto sério e os
olhos puxados, como de origem asiática. Lembrava-me o
“Sr. Miyagi” da primeira versão do filme “Karatê Kid”,
porém tinha cabelos pretos e era mais alto, pelo menos
63
eu acho que era mais alto.
A princípio pensei ser um corretor, mas quando
ele sorriu pra mim, seu rosto se iluminou, então pensei: é
agora!
Pensei que o fato de todas as crenças situarem na
Ásia o berço da humanidade, tivesse alguma coisa a ver
com suas feições asiáticas.
__ Você veio me buscar? __ foi inevitável a
pergunta. Ele não respondeu, apenas sorriu um sorriso
irritante.
Quando Bilu o viu, levantou-se automaticamente,
ficou todo “elétrico” e latiu.
O tal homem que vestia o terno branco, num
movimento rápido estendeu os braços em direção ao teto
e Bilu pulou, caindo em suas mãos.
Não sei como ele fez aquilo. Fiquei estático, aliás
como sempre. Ele se virou e foi embora levando minha
64
única companhia.
Claro que eu fiz um estardalhaço que deve ter
acordado até Deus.
__Volta aqui! Volta! Devolve meu cachorro. __
eu gritava o mais alto que podia.
Ninja ladrão de cachorro! Pensei.
Chorei copiosamente. E balbuciava palavras
desconexas, tamanho era o desespero de ficar sozinho.
Fiquei indignado com aquilo. Se o cara não
queria me levar, pelo menos deixasse o cachorro.
“Pelo menos, Bilu foi para o céu dos cães. Não.
Acho que foi para o céu dos “toys”. Não pode haver um
céu coletivo para todos os cães. Eles não suportariam as
travessuras do Pirata lá”.
Meus insanos pensamentos povoavam minha
mente confusa.
E eu? Eu aceitaria ir para o céu dos “toys”, dos
65
cães, dos “vira-latas”. Eu aceitaria ir pra qualquer lugar.
Mas eu não fui. Fiquei lá. E acho que o Bilu já
deveria ter ido muito antes.
Acho que essa transição deve ser automática para
os cães, mas ele optou por ficar comigo lá no teto. Me
“dar uma força”, fazer companhia pra que eu não me
sentisse tão só.
Grande amigo esse Bilu. Por isso vou amar
sempre esse cachorro. Meus cães amores: Pirata e Bilu.
Ali no teto eu era uma ilha cercada de mim por
todos os lados e não me suportava mais. E depois de
enjoar de minha insuportável companhia, eu mesmo
tinha me abandonado.
Isolado de tudo e de todos, só o amor me fazia
companhia e entendo agora que pela primeira vez eu
estava amando mais a todos do que a mim mesmo.
O amor por Silvana, por meus filhos, por meus
66
familiares e amigos. Esse amor tinha dominado meu
coração.
No teto, eu desaprendi a amar, para aprender a
amar de novo. Fiquei tempo suficiente comigo mesmo
para desapegar-se de mim.
A verdade é que, por vezes, somos uma soma
incompleta. Tornamos-nos numa coletânea de incertezas,
angústias, manias, lamentos, vícios e defeitos. Até o
magnífico e transformador amor chegar.
O físico e cosmólogo britânico Stephen Hawking
em seu livro “O universo numa casca de noz”, citou
Shakespeare:
"Eu poderia viver recluso numa casca de noz e
me considerar rei do espaço infinito".
A verdade nisso é que não devemos ficar reclusos
em nosso próprio universo, seja ele do tamanho que for,
e sim expandir nossos pensamentos em direção ao
infinito.
67
Até então, eu era o rei do quarto. Um espaço
ínfimo, solitário e triste.
Era difícil manter a serenidade e principalmente a
sobriedade na minha situação, que mais parecia um
exílio. Cercado pela solidão, eu não tinha alternativa a
não ser tentar manter vivas as lembranças maravilhosas
que eu tinha daquele quarto.
Olhando para o espaço onde antes ficava nossa
cama, tentava por vezes, em vão visualizá-la, para
relembrar os momentos íntimos que tivemos durante
todos esses anos.
Essas lembranças me alimentavam a alma e me
faziam encarar a minha nova realidade.
Eu sofria por não ter mais a possibilidade de
acompanhar o dia a dia da minha família. Não vê-los e
não saber como e onde estavam.
Eu não sabia se todo mundo que morre vai para o
teto do quarto, ou para o piso do banheiro. Não sabia que
68
tipo de experiência era aquela a que fui submetido e não
entendia o motivo.
Lembrei-me de Cora Coralina:
“Se a gente cresce com os golpes duros da vida,
também podemos crescer com os toques suaves da
alma". Eu quem o diga! Pensei.
É bem certo que eu sempre gostei de Cora
Coralina, era uma grande inspiração, me fazia pensar: Se
ela publicou seu primeiro livro com 76 anos, um dia
também vou escrever.
Cora Coralina é tão perfeita que eu poderia citá-la
para cada problema da vida. Ela é como medicina
alternativa. Prescrevo, sem sombra de dúvida, a qualquer
pessoa, “doses” diárias do remédio milagroso “Cora
Coralina” para curar qualquer mal.
Diria a minha filha Amanda:
“Nada do que vivemos tem sentido, se não
69
tocarmos o coração das pessoas”...
Diria a meu filho Paulo:
“O que vale na vida não é o ponto de partida e
sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás
o que colher”...
Diria a minha amada esposa Silvana:
“Recria tua vida, sempre, sempre. Remove
pedras, planta roseiras e faz doces. Recomeça!”.
E finalmente, para mim. Acho que diria a mim
mesmo:
“Todos estamos matriculados na escola da vida,
onde o mestre é o tempo.”
Resistência: era a síntese do que eu estava
vivendo naquele estado inesperado. Eu resistia o máximo
que podia, para não enlouquecer.
A verdade é que o homem mostra seu valor acima
de tudo, pela sua resistência!
70
Se eu tinha lições importantes e fundamentais a
aprender com aquela experiência, acho que eu estava no
caminho certo.
Já não estava mais tão ansioso quanto ao futuro e
nem me fazia as mesmas perguntas perturbadoras, do
tipo “o que acontecerá comigo?”; “quando vão me tirar
daqui?”.
Apenas ficava em silêncio.
71
Capítulo X
Novos moradores chegaram à casa que antes
era o abrigo de minha amada família. A movimentação
era intensa e logo o quarto estava habitado novamente.
Eu não queria saber dos detalhes, não me prendia
mais a eles e não me importava mais se a casa tinha sido
alugada ou vendida.
Os novos moradores eram muito organizados e
um jovem de nome Carlos ficou com o quarto.
Eu sempre achei meu quarto, ou meu antigo
quarto, grande demais, mas com a quantidade de coisas
que aquele rapaz tinha, ficou um “ovo”.
O computador dele ficou no exato lugar onde
antes ficava o meu, assim não precisaria usar extensão
elétrica, pois a tomada ficava próxima.
72
Surpreendeu-me quando arrumou algumas telas
para pintura e diversos materiais para esse tipo de arte
magnífica.
A arte é a expressão do belo. O artista não busca
a unanimidade, não é um copista, é um desbravador.
Eu estava diante de um grande e talentoso artista,
com telas lindas. Algumas delas ele pôs nas paredes e ao
olhá-las atentamente, uma imagem em especial me
chamou a atenção: um homem deitado com as mãos
apoiando a nuca e com as pernas cruzadas. Seria uma
pintura normal se não fosse um detalhe: o homem estava
no teto de um quarto.
Imediatamente me vi retratado naquele quadro. A
tela refletia a minha realidade.
Não saberia dizer que estilo o jovem Carlos
usava, sou leigo no assunto, mas eu já era um grande
admirador de sua arte.
Ter a casa ocupada novamente me deu certa paz.
73
Apesar de falar pouco e raramente receber visitas, Carlos
era absorvido pela sua arte, me levando junto com ele,
numa viagem insólita e revigorante. Eu era sua plateia.
Admirava os detalhes da preparação da tela, dos
materiais, a seleção das cores, o rascunhar.
Pintores e poetas pintam muitos dos sonhos que
lhes vão à alma. O poeta não escreve poesia para si
mesmo, escreve para quem precisa dela.
Quem nunca sonhou ser um poeta? Quem nunca
sonhou ser pintor? Escrever telas e pintar poemas. Os
poetas e os pintores são anjos. São seres divinos,
celestiais e eternos, pois sua arte não morre jamais.
Por isso devem ser reverenciados.
“O homem do teto”: Título dado por mim à sua
tela (sem sua permissão é claro) ocupava lugar de
destaque entre as dezenas outras. Vez por outra ele ficava
a observá-la, como que esperando que ela lhe dissesse
alguma coisa. Coçava o queixo, punha as mãos na
74
cintura, ia e voltava, para depois voltar a fixar os olhos
no quadro. Carlos parecia buscar algo em sua arte, talvez
enxergar o que ainda não fora visto.
Enquanto Carlos mergulhava seus pensamentos
indecifráveis na tela, eu pensava na minha história. Essa
história toda daria um livro. E que livro!
Se eu estivesse vivo, até tentaria escrevê-la: A
história de um homem que morreu e foi parar no teto.
Por um instante percebi uma mudança no
semblante de Carlos.
Foi aí que, numa atitude impensada, eu resolvi
enviar minha mensagem a ele da forma mais grotesca
possível:
__Ei Carlos, escreve um livro cara! __gritei em
sua direção, esperando que talvez ele recebesse as
vibrações do berro tremendo que eu dera lá de cima.
Quase que de imediato, ele concordou comigo,
75
como se tivesse tido uma brilhante ideia.
__Vou escrever um livro! __disse ele,
levantando-se rapidamente.
Carlos correu ao computador, abriu o editor de
textos e digitou: “O teto”. Depois de algum tempo
mudou para: “Vivendo no teto” e depois, “O homem que
vivia no teto”. E assim ele ficou horas testando títulos,
sem, no entanto decidir por qualquer um.
Um escritor e grande amigo certa vez me
confidenciou que sempre deixava os títulos dos seus
livros por último, era a última etapa depois da obra
pronta. Mas eu também conhecera outros escritores que
não conseguiam desenvolver uma história se não tiver o
título. Acho que Carlos era um desses.
Durante uns três dias ele não conseguira escrever
uma palavra sequer. Simplesmente não conseguia
ultrapassar a barreira do título. Mas ele queria escrever.
Chegava a bater levemente a cabeça no monitor
76
do computador, talvez querendo que as ideias se
organizassem em sua mente.
E mais uma noite Carlos foi dormir sem escrever
uma única frase. Depois de dias pensando, não saíra do
título.
Por mais boa vontade que o jovem Carlos tivesse,
ele não era um escritor, não tinha o dom. E para o livro,
apesar da ideia martelar seu cérebro dia e noite, faltava-
lhe a inspiração. Aquilo que faz com que as páginas
fluam como águas torrenciais vindas de um manancial
escondido e secreto, a fagulha que gera a combustão da
pólvora e finda com o estampido, a explosão de palavras
que arrebatam o escritor.
77
Capítulo XI
Naquela manhã, o jovem Carlos acordou
indisposto e não saiu do quarto.
A impossibilidade de organizar as ideias no papel
e fazer algo que aparentemente ele considerava simples,
o estava consumindo. Pintava com tanta facilidade,
porém não conseguia iniciar uma narrativa simples, de
uma ideia que tivera.
Preocupada, sua mãe entrou no quarto levando
seu desjejum. Ela era uma senhora de uns 70 anos, muito
simpática e de cabelos branquinhos. Por ser o “caçula”
dos filhos homens, ainda usufruía de certos mimos, como
uma preocupação exacerbada de sua genitora.
__ O que você tem meu filho? Não me parece
78
bem. Você nem foi tomar café. Parece estar preocupado
com alguma coisa. O que aconteceu? Foi alguma
namorada? __ perguntou-lhe Dona Constância, enquanto
colocava a bandeja de café no colo do rapaz.
__ Não é nada mãe. Nada que a senhora deva se
preocupar. Coisa minha mesmo. __ respondeu-lhe
afetuosamente.
__ Vamos lá meu filho. Pode me contar. Desabafa
com a mamãe. Às vezes a gente precisa compartilhar os
problemas, as coisas que nos afligem.__ falou-lhe
sabiamente.
__ É besteira minha. Eu estou com umas ideias e
não consigo escrevê-las. É só isso. __ falou ele,
esfregando os olhos com força.
__ Escrever? Eu nem sabia que você escrevia
menino. Pra mim isso é novidade. E se você não
consegue escrever suas ideias meu filho, então as pinte.
__ disse isso, beijou-lhe a testa e saiu. Fazendo com que
79
um sorriso nascesse no rosto desmotivado do rapaz.
Foi o estalo que Carlos estava buscando. Sua mãe
lhe dera a solução.
__ Vou rabiscar vários rascunhos da história que
eu tenho na cabeça e depois as escrevo. __disse o pintor
e quase um futuro escritor, em voz alta no quarto.
E assim o fez. E eu, lá de cima, apenas observava
e, é claro, também compartilhava da mesma empolgação,
vibrava a cada instante, a cada tomada de decisões.
Conforme Carlos pensava na história, ele fazia o
rascunho. Como um filme quadro a quadro, destacando
as cenas mais importantes e que serviriam de base para a
narrativa. Às vezes errava e começava de novo.
Era um dom sensacional, ele rabiscava com
maestria, sem tremer um músculo sequer.
Aquilo tudo me empolgava muito, mas algo me
surpreendeu ainda mais. Quando Carlos terminou o
80
primeiro esboço, parece que num passo de mágica a
inspiração apareceu.
Carlos foi de novo ao computador e começou a
escrever o que rascunhara.
As palavras até surgiram com mais facilidade e
ele escrevia a realidade de um homem que ao morrer foi
habitar o teto de seu quarto.
Seu objetivo era limitar a narrativa da história de
um homem comum que, por algum motivo, ao morrer
não seguiu o caminho que todos seguem, ou seja, o curso
natural das coisas.
Por uma “falha” no sistema, por uma questão de
aprendizado, por vontade própria, nada disso importava
na narrativa de Carlos. O que importava é que um
homem morreu e passou a morar no teto da casa.
Como ele lia o que escrevia em voz alta, percebi
que o personagem de Carlos tinha mais locomoção do
que eu. Assombrava a casa toda, enquanto eu nunca tinha
81
conseguido sair do quarto. Não ia a lugar algum.
Enquanto ele tentava escrever ou pintava, as
vezes soltava risos que contagiavam o quarto. A história
era engraçada e por isso, ele tinha a preocupação de não
torná-la “porta-voz” ou “bandeira” de nenhuma religião
ou coisas do gênero. Não era esse o objetivo.
Enquanto lia em voz alta os textos que escrevia,
me proporcionava certo conforto de ouvir a narrativa
deitado na posição clássica “Alberto no teto”: mão
embaixo da nuca e pernas cruzadas.
E também me fez ver que sua narrativa era
desordenada, sua história era vazia e até desconexa.
Ele era um fracasso como escritor e entendi que
eu e Carlos não tínhamos desenvolvido nenhum tipo de
comunicação telepática ou mediúnica.
Talvez uma tremenda coincidência, pelos menos
para mim, pois sei que ele jamais acreditaria que isso
fosse possível.
82
O fato é que estar no teto de um quarto, que já
pertencia a outra pessoa, um jovem que dificilmente saía
do quarto, foi uma experiência muito importante.
A solidão diminuíra bastante, no entanto, ali não
era mais o meu lugar. Eu era um intruso e não tinha o
direito de ser espectador da vida de outras pessoas que
não tinham nada a ver comigo ou com minha família.
Senti uma enorme repulsa a minha presença
naquele quarto e um grande conflito moral se alojou em
meu peito.
A verdade é que já estava na hora do homem do
teto partir. Faltava apenas descobrir como.
83
Capítulo XII
__Carlos! O que você está escrevendo, meu
filho? __ perguntou dona Constância, toda desconfiada,
enquanto Carlos fechava a página do editor de textos
rapidamente.
__Nada de mais, mãe. __ respondeu ele, tentando
despistar o faro investigativo de Dona Constância.
__Você ainda é pintor, não é? __ Insistiu ela,
talvez com medo que o filho abandonasse a pintura.
Dona Constância era uma mãe orgulhosa de ter um filho
pintor e por vezes se gabava junto às amigas.
__ Sou sim mãe. É que senti vontade de escrever
e estou fazendo um teste. Inclusive quero sua opinião. __
respondeu o rapaz, compartilhando com outra pessoa
84
pela primeira vez, o enredo do futuro livro.
__ Minha opinião sobre o quê?
__ Mãe, é o seguinte: eu estou escrevendo a
história de um homem que morreu e seu espírito foi
morar no teto do quarto. O que a senhora acha disso?
__Acho ridículo! Que coisa absurda! Meu filho
ninguém vai gostar dessa história. Ninguém morre e vai
para o teto. As almas vão para o céu, para o inferno ou
para o purgatório.__ e sem deixá-lo argumentar, ela
continuou: ___Quem decide isso é São Pedro. Então é
melhor você continuar sendo pintor mesmo. Você é um
grande pintor, pinta coisas lindas. Esquece isso de ser
escritor. __ finalizou a mãe, não economizando em
sinceridade.
__ Tá bom mãe. Deixa pra lá. Eu já estava
batendo cabeça mesmo. Escrever é muito difícil.__falou
ele enquanto sua mãe deixava o quarto Ela abriu a porta
e antes de sair do quarto, olhou para o filho e disse:
85
__Meu filho, lembre-se de uma coisa: Cada um
com seu talento, cada um com seu dom.
Sábia, essa Dona Constância. Pensei.
Nitidamente decepcionado, pois a opinião da mãe
era sempre muito importante, ele fechou o arquivo do
livro do computador e depois apagou.
Lá se foi pra lixeira o que seria a história do
único homem que morreu e foi morar no teto do quarto.
Um conto absurdo, mas real.
Com o passar dos dias, eu me desligava das
coisas que se passavam no quarto de Carlos e já não me
interessava mais tentar qualquer tipo de comunicação
paranormal ou coisa do tipo.
A desistência de Carlos em escrever, tinha me
deixado profundamente triste, mas por outro lado, ele
parecia uma “topeira” e não saberia escrever como eu
86
realmente desejava que a história fosse narrada.
A verdade é que eu queria a minha história,
contada com riqueza de detalhes, com paixão, com a
emoção que só quem viveu a história consegue passar ao
leitor. E isso, com toda a certeza, ele não conseguiria
fazer. E muito menos eu. Nunca vi um morto, preso no
teto, escrever uma linha sequer.
E talvez, se eu tivesse a oportunidade de escrever
tudo o que vivera e o que sentira; tudo aquilo que refleti
enquanto estava no teto do quarto, seriam milhares de
páginas, recheadas de emoções e sentimentos, sorrisos e
lágrimas.
Desde criança eu sempre tive o hábito da leitura,
era um leitor inveterado, ávido por alimentar minha alma
de conhecimento e absorver emoções dos bons livros.
Adorava citá-los para meus filhos e vez por outra ouvia
deles comentários do tipo:
“Lá vem o papai com suas citações”.
87
Eu sempre tinha uma frase como exemplo, ou
mesmo um ditado popular que se encaixava
perfeitamente às mais diversas situações.
Quando Dona Constância entrou no quarto àquela
manhã, tinha um único objetivo: tirar Carlos do quarto.
__Vamos! Levanta! Vai dar uma caminhada por
aí. Acorda Carlinhos! __ disse-lhe a mãe, esforçando-se
para parecer autoritária, com sua voz suave e doce.
__Mãe, me deixa dormir. __respondeu Carlos de
maneira preguiçosa, sem deixar de obedecer a “ordem”
da mãe, levantando-se ainda que lentamente.
__ Meu filho, você precisa se exercitar. Respirar
ar puro, ver a vida. Fica só aqui dentro pintando,
inventando estórias mirabolantes e engordando. __
Enquanto ela falava me arrancava sorrisos.
Não adianta! As mães são assim mesmo. Estão
sempre preocupadas. Deixam se consumir pelo amor que
sentem por nós.
88
__ Poxa mãe. Tá muito cedo. Porque isso de
caminhar agora? __Carlos ainda tentava argumentar.
__Chega de vida sedentária. Sabe aquele homem
que é o dono dessa casa que a gente mora? __ Perguntou
ao filho, se referindo a mim. Já estou sendo citado como
exemplo negativo. Agora ela vai dizer a ele que se não se
exercitar, vai morrer igual a mim. Pensei.
__ Sei sim mãe. O que tem ele?
__ Pois é, parece que é Alberto o nome dele. Ele
ainda está em coma no hospital. Sabe por quê? Tal de
“AVC”. “Derrame”. Então, se você não quiser ter um
“derrame cerebral”, levanta daí e mais fazer exercícios.
__ respondeu-lhe Dona Constância, me deixando pasmo
ao ouvir aquilo que dissera.
Eu não morri. Estou em coma! Pensei
rapidamente.
Eu estava em coma? Como assim? Onde? Então,
eu não estava morto? Eu… Eu estou vivo. Vivo!
89
Enquanto pensava, minha alegria era tanta que eu
chorava e sorria ao mesmo tempo.
Parei um pouco de soluçar, para tentar ouvir mais
informações da simpática senhora, mas ela já tinha saído
do quarto, levando consigo o jovem Carlos, que seria
obrigado a se transformar num esportista.
Mas o principal eu já sabia, eu estava “Vivinho
da Silva”. Bom. Nem tão vivo assim, afinal de contas
“em coma”, é quase morto; mas também é “quase vivo”.
Mas, como eu pude achar que estava morto?
Pensei que tinha realmente morrido, porque vi meu
corpo, vi os paramédicos, vi meu corpo sendo levado e
minha família chorando. Preciso admitir que nenhum
deles jamais usou a palavra “morto”. Creio que fora uma
conclusão minha pra lá de precipitada, e todo esse tempo
eu me considerava um defunto. Mas a partir daquele
momento eu começaria a ver minha realidade de outra
perspectiva.
90
“Eu quero descer daqui. Eu quero descer daqui.
Eu quero descer daqui.”
Concentrei toda a força do meu pensamento nessa
frase: Eu quero descer daqui.
Foi quando ouvi uma voz que me disse:
__Então desce!
91
Capítulo XIII
Olhei ao meu lado e lá estava ele. O cara que
levou o Bilu. Ele estava bem ali, ao meu lado deitado no
teto do quarto.
__Como assim desce? Eu não consigo. Estou
preso aqui, não está vendo? __retruquei veementemente.
__ Você se prendeu aqui. Agora você precisa se
soltar pra podermos seguir em frente.
__ Como assim “seguir em frente”? Eu vou
morrer de verdade agora?
__Está vendo só? Você tem tanto medo de
morrer, que se amarrou aqui no teto pra não seguir em
frente.
__Medo?
92
__Isso mesmo. Medo. É a única razão de você
ainda estar aqui. Quero que venha comigo, precisamos
ter uma conversa, pois o tempo está passando e você não
vai poder esconder-se aqui pra sempre.
__Eu não estou me escondendo.
__ Está sim. Você vem comigo?
__Vou sim. É seguro? Não vai acontecer nada
comigo?
__Não. Fique tranquilo e deixa-me guiar você.
__Mas, eu não ando com estranhos. Preciso saber
o seu nome e quem ou “o quê” você é?
__Meu nome é Aluízio. E eu sou um amigo, estou
aqui para ajudar.
__Tudo bem Aluízio. Vamos!
Foi uma decisão que eu jurava que não era
minha, mas era. Ao tomar a decisão de acompanhar
Aluízio, minha cintura desprendeu-se do teto e enfim eu
93
tive a sensação de flutuação.
Quando segurei sua mão, minha mente foi
tomada por imagens luminosas e pude ver uma luz forte,
vinda em minha direção.
O que houve em seguida foi algo inenarrável,
indescritível e inefável. Eu jamais conseguiria descrever
tal visão.
Num lapso de tempo, enquanto viajávamos
através do túnel, dentro da luz, Aluízio me explicava
tudo o que acontecera comigo. A dor de cabeça; o
remédio que tomei; o Acidente Vascular Cerebral; o
resgate; o estado de coma. Falou ainda dos esforços de
meus familiares para me manter vivo; a transferência
para um hospital de maior porte; a mudança da família
para mais perto do hospital.
Após todo o esclarecimento, pude compreender
minha situação afinal. Mas ainda faltava entender uma
coisa. Então perguntei para Aluízio:
94
__Porque fiquei preso no teto?
__Não sabemos exatamente como você se
prendeu lá. Ao contrário do que se pensa, não temos
todas as respostas. Mas por alguma razão, você
conseguiu ficar lá. E não conseguíamos tirá-lo. Só
mesmo você poderia fazer isso. Deixamos até seu
cachorrinho tentar convencê-lo a sair. Mas você não quis
ir atrás dele.
__E agora? O que eu faço? __Enquanto
terminava de “bombardear” Aluízio com várias
perguntas, paramos.
Estávamos em um corredor com várias portas.
Era nitidamente um corredor de um hospital. Era lá que
eu estava.
__É aqui que eu estou? Digo, é aqui que meu
corpo está? É esse o hospital?__perguntei-lhe, ávido por
respostas.
__Sim. É aqui que você está internado.__
95
respondeu-me.
__Há quanto tempo estou em estado de coma?
__São 76 dias dormindo profundamente.
__É muito tempo! Será que vou conseguir
acordar? Estou assim a mais de um mês. Será que eu
ficarei com sequelas? Desculpe-me tantas perguntas,
você não é médico, não pode saber dessas coisas.
__Sou sim.
__ O quê?
__Médico. Eu sou médico. E vou te esclarecer
tudo antes de você decidir.
__Decidir o que? Eu pensei que já estava
decidido. Eu vim até aqui pra voltar, certo?
__Isso é você quem vai decidir Alberto. Se você
vai ficar ou vai voltar para sua família, é você quem vai
escolher. Ninguém vai poder decidir isso pra você__
Completou Aluízio, que agora eu sabia, era Dr. Aluízio.
96
Ele tinha sido médico na terra.
Aluízio passou a me explicar meu estado de
saúde.
__Uma das principais causas de coma no mundo
é o que chamamos "Acidente Vascular Cerebral" ou
AVC.
O AVC ocorre devido à interrupção súbita do
fluxo sanguíneo para o cérebro. Foi o que aconteceu com
você. __explicou-me pacientemente Aluízio.
__Que tipo de consequências eu terei de
enfrentar? Vou voltar a viver normalmente? __ perguntei-
lhe.
__ Se você conseguir voltar do estado de coma...
__ “Conseguir”? Como assim se eu “conseguir”?
__ interrompi Aluízio antes mesmo que terminasse a fala.
__ Quer dizer que, eu não voltarei agora, ou no memento
em que decidir voltar?
97
__Não é bem assim Alberto. Isso vai depender de
vários fatores. O coma é uma grande agressão ao sistema
nervoso central e quanto mais tempo a pessoa ficar nesse
estado, maior poderá ser essa lesão cerebral e mais difícil
vai ser o retorno dela ao estado de consciência.
__E qual é a minha realidade agora? Que chances
eu tenho?
__ Alberto, você teve imediata paralisia do lado
esquerdo, inchaço cerebral, que evoluiu muito rápido,
entrou em coma e pode a qualquer momento ter morte
cerebral. Essa é a sua realidade.
__Meu Deus! __exclamei sem ter mais o que
dizer, tamanho era o meu estado de estupefação.
__Você está travando uma luta pela vida. Durante
esses 76 dias você já passou por algumas cirurgias. A
equipe médica fez de tudo para controlar a pressão
intracraniana e você passou por dois procedimentos
cirúrgicos no total, no espaço de três dias. Há alguns dias
98
você foi submetido a uma cirurgia para fazer a
reconstrução da calota craniana. Seu estado ainda é uma
incerteza, pois você ainda não respondeu a estímulos,
então só resta esperar.
__E se eu quiser voltar? O que eu devo fazer?
__Você só vai saber se tentar. Você ficou muito
tempo no teto do quarto, com medo.
Por um instante, pensei em como seria minha
vida pós-AVC. Nem certeza eu tinha se iria acordar e
nem quando isso aconteceria. De acordo com as
explicações de Aluízio, eu poderia ter sequelas graves,
como perda de algum sentido, comprometimento dos
movimentos e de locomoção e até perda da memória.
Mas mesmo com todas essas incertezas, eu estava
totalmente convicto que queria tentar.
Eu tinha certeza de uma coisa: minha amada
família estaria me esperando para cuidar de mim e me
ajudar no que fosse preciso.
99
Nada nesse mundo poderia se comparar a alegria
que meus familiares e amigos teriam com meu retorno.
__Você vem comigo ou vai ficar? __Perguntou-
me Aluízio.
__Você até agora me falou do que pode acontecer
se eu escolher ficar. Porém nada me disse sobre a
segunda opção.
__O que você quer saber?
__O que tem do outro lado?
__Não sei. __ disse ele.
__Como assim, não sabe? Você veio de lá certo?
Tem que saber!
__Não é bem assim Alberto. O que tem do outro
lado pra mim, não significa que vai ser o mesmo para
você. Assim como o que tem para você, não
necessariamente terá para outra pessoa. __continuou sua
explanação. __Para que você saiba o que há lá, terá que
100
desistir de voltar e vir comigo. E na hora certa nos
separamos, minha missão é deixá-lo na porta, de
qualquer uma das opções. O resto é com você.
__Só assim eu saberei?
__Isso. Só assim você saberá. E então, o que você
decide? Não temos mais tempo.
__Eu vou ficar! __Respondi-lhe convicto que a
minha decisão era sem dúvida a mais certa. Eu queria
mesmo voltar, ainda que isso significasse recomeçar do
zero, como uma criança de colo.
__Tudo bem. Então preciso ir. Espero que tudo
fique bem. __Falou Aluízio num tom de despedida, mas
sempre com um semblante sério.
__E como vai ser agora? Digo, quando eu
precisar me comunicar com você, o que eu faço? É só eu
chamar e você aparece?
__Não. Não nos falaremos mais. Minha missão
101
com você já está cumprida. Eu lhe expliquei o que
aconteceu e quais as suas alternativas. Você fez a sua
escolha e agora é com você. __Fiquei triste com a
resposta, o Aluízio parecia ser um “cara legal”.
__Tudo bem. Eu entendo, mas ainda tenho
perguntas. O que eu faço agora? Entro dentro do meu
corpo e acordo?
__Você vai descobrir sozinho. __respondeu-me
Aluízio. E desapareceu, deixando um rastro de luz,
brilhante como o sol. Não vá. E desculpa por ter te
chamado de “ninja ladrão de cachorro”. Pensei.
Um pena mesmo ele ter partido.
Aluízio era, com toda a certeza, um ser
iluminado, ele sabia das coisas que a maioria de nós não
sabe. Adoraria aprender mais com ele sobre o caminho
da sabedoria. Imagino que ele não me apareceu por acaso
e quem sabe um dia nos veremos novamente.
102
Capítulo XIV
Essa minha jornada estava longe de acabar e
disso eu tinha certeza.
Com a ida de Aluízio, quase que de imediato fui
trasladado para o CTI e a visão que tive foi chocante.
Quando se tem um AVC hemorrágico como o que
eu tive, e sobrevive, você não pode pensar no que
perdeu, como os movimentos, a independência, a
capacidade de locomoção, essas coisas, deve-se refletir
sobre o que se ganha: uma nova chance.
Eu encontrei um lugar pra me instalar no CTI: o
teto.
Até que a visão de lá era privilegiada pra mim. Lá
de cima, eu conseguia me ver entubado, desfigurado,
103
deformado e desacordado. Era algo assustador. Não era
tão simples como eu pensava, pois não tinha nenhum
controle sobre nada e nem sabia quanto teria.
Estava em um hospital particular, com todos os
recursos, incluindo uma excelente equipe médica. O que
precisava ser feito, foi feito.
Eu recebia atenção total da equipe de
enfermagem e havia uma grande expectativa com o meu
retorno.
Agradeci a Deus por ter me dado condições de ter
acesso a tudo isso, pois sabia que a grande maioria das
pessoas que dependem da saúde pública não teria
resistido, ou talvez nem tivesse conseguindo leito para
internação.
__Vamos, Seu Alberto. Tá na hora do banho.
__Falou-me a jovem da equipe de enfermagem, como se
eu estivesse consciente.
Emocionei-me com os cuidados que recebia da
104
profissional. E com certeza, assim como ela, outros
profissionais estavam cuidando de mim nesses dias de
internação.
Eu parecia estável, já respirava sem ajuda de
aparelhos e tinha uma expressão serena. Minha
atividade cerebral era monitorada o tempo todo. E
mesmo assim, a qualquer momento, eu ainda podia ter
morte cerebral, o que significava em outros termos,
morte baseada na ausência de todas as funções
neurológicas.
Sigmund Freud disse certa vez que “é possível
que a morte em si não seja uma necessidade biológica.
Talvez morramos porque desejamos morrer. Assim como
amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao
mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o
desejo de manter-se e o desejo da própria destruição. Do
mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a
assumir a forma original, assim também toda a matéria
105
viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir
a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica.
O impulso de vida e os impulsos de morte habitam lado a
lado dentro de nós. A morte é a companheira do Amor.
Juntos eles regem o mundo”.
Não sei se concordo com ele em tudo, mas
realmente a vida e morte habitam lado a lado dentro de
nós. E mesmo depois da barreira do físico, nesse estado
espiritual ou emocional, as sensações de vida e de morte
continuavam a povoar minha consciência. Não como
uma luta de sentimentos, mas como uma dança
coordenada onde cada um tem a sua apresentação
independente, e você acaba aplaudindo àquela que mais
lhe atraiu.
De acordo com a “teoria” de Aluízio, eu saberia o
que fazer para voltar. Mas eram teorias complexas
demais para o meu pequeno conhecimento humano. Eu
não sabia de nada. Já estava no CTI há dias esperando e
106
nada.
Se voltar ao meu corpo dependia de vontade
minha, porque ainda não tinha voltado, será que pelo
mesmo motivo que ficara no teto do quarto todo aquele
tempo? Ou não era isso que eu desejava realmente?
Confesso que era como se algo me atraísse para o
“outro lado”, por um instante até pensei em fugir dali e
vagar pelo universo procurando outro caminho. Talvez
ainda desse tempo de alcançar Aluízio e encarar o que
havia por trás da outra porta.
Será que Freud estava certo, quando disse que
“biologicamente, todo ser vivo, não importa quão
intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo
Nirvana, pela cessação da "febre chamada viver", anseia
pelo seio de Abraão”. Pensei nisso com um ar de
ansiedade e curiosidade.
As coisas estavam mais confusas ainda para mim;
novamente estava dominado pelo maldito medo. Fora ele
107
que me prendera no teto do quarto e agora estava me
prendendo no teto do CTI.
Preciso perder o medo. Preciso voltar. Pensei.
A força do pensamento positivo, a fé. Eu tinha
que voltar. Eu tinha que enfrentar os obstáculos futuros,
não importando quão grandes eles fossem. Eu era um
milagre! E isso bastava.
Foi quando percebi que minha capacidade de
“flutuação” estava desaparecendo e já não conseguia
ficar grudado no teto. Não tive medo.
Aos poucos eu ia descendo, não por vontade
própria, foi algo involuntário e até inesperado.
Minha esposa estava dormindo sentada numa
poltrona ao lado da cama. Olhei-a enquanto descia
lentamente.
Que mulher extraordinária! Pensei. Ela estava lá.
Apesar do medo. Ela não saiu de lá. Preciso voltar para
108
ficar com ela. Os filhos um dia seguirão seu caminho.
Mas ela estaria lá comigo no nosso caminho. Não podia
deixá-la. Eu pensava nisso tudo enquanto continuava
descendo do teto lentamente.
Vou acordar mais forte, mais experiente, mais
cheio de vida e fé. Pensava e dizia a mim mesmo.
A fé é uma conquista difícil, podemos perdê-la a
qualquer momento. Por isso é preciso exercitá-la sempre,
todos os dias.
A força magnética que me atraía era mais forte do
que eu. Uma força que me puxava para baixo, em
direção ao meu corpo. Não reagi, era algo natural, como
o curso de um rio.
Deixei-me levar por ela, entreguei-me totalmente,
sem medo, àquele mistério.
Minha linda esposa levantou-se, afagou meu
rosto com carinho e beijou-me a testa. Como eu amava
aquela mulher. Ela caminhou até o banheiro.
109
Olhei para minhas mãos e eu estava
desaparecendo. Mãos, braços, aquela imagem do que
seria meu espírito ou minha alma ia esvaindo-se diante
de mim.
Quando Silvana voltou, caminhou lentamente em
direção ao meu leito.
Tinha uma aparência cansada. Estava exausta.
Ela não desistiu de mim. Porque eu desistiria dela?
Pensei.
Senti uma pontada no coração. Algo muito
estranho estava acontecendo e percebi que aquele era um
momento muito importante para o futuro da minha
existência. E enquanto me aproximava do leito onde meu
corpo repousava, perdi completamente a consciência.
Senti o processo transitório me afetando e um
mal estar horrível tomou conta de mim. A cabeça toda
doía bastante.
A sensação de secura na boca era muito forte e
110
era como se todos os músculos do meu corpo tremessem,
num processo convulsivo e incontrolável. Mas meu
corpo terreno estava imóvel no leito.
Não sei quanto tempo durou isso, mas a vontade
de abrir os olhos e ver onde eu estava era inevitável.
Um redemoinho de imagens dominou minha
mente. E embarquei numa viagem extraordinária ao som
de cachoeiras e ventanias, que eu só posso descrever
como uma experiência indescritível, inenarrável e
inefável, simplesmente impossível de ser reproduzida
com fidelidade em palavras. Era mágico!
Então tive a mais linda visão que nenhum ser
humano pode imaginar: vi uma espécie de mandala com
tons esverdeados. Eram centenas de tonalidades de
verde. Era a coisa mais incrível e mais linda que meus
olhos já viram!
Mergulhei nela como se fosse um portal da vida.
A vida é verde, de todos os tons possíveis. E ao ver a
111
mandala, eu vi o amor, a esperança, a gratidão, a força.
Ela girava e eu girava com ela, ia penetrando em
suas camadas de várias dimensões.
Não tenho como narrar os sentimentos e
pensamentos que me acompanhavam naquele momento.
Seria mentira dizer que pensei “nisso” ou “naquilo”. Não
sei no que pensei. Eu segui viagem até o fim da mandala.
E quando cheguei ao fim só pensei em acordar. Então
acordei.
112
Capítulo XV
Senti a luz rasgando meus olhos. Uma sensação
de ardor, somada a profunda emoção me fizeram
lacrimejar e meus olhos finalmente puderam ver, mesmo
que um tanto embaçado, o movimentar de minha linda
Silvana.
Ela agia com naturalidade, andava de um lado
para o outro, como que pensando em mais um dia de luta
que teria pela frente.
Eu só podia olhar e nada mais. E nem tentava
fazer mais que isso. Para mim, era o que bastava: Ver.
Que sensação maravilhosa! Que prazer para
minha alma! Eu estava vivo! Pensei com alegria.
Eu não tinha a mínima ideia do amanhã e não me
113
importava. O mais importante é que eu estava vivo.
Silvana foi até sua bolsa e voltou com um terço
na mão, junto com um pequeno livro de orações diárias.
Aproximou-se da cama, sentou-se na cadeira,
apoiou sua cabeça na cama, próximo a minha perna e
pôs-se a rezar em pensamentos.
Ela não percebera em meu rosto, senão teria visto
meu olhar fitando-a com admiração e amor.
Ela rezava segurando o terço e eu queria alisar
seus cabelos, mas ainda não podia mexer-me. Minha
boca e minha garganta estavam secas demais e não
conseguia falar, nem emitir som algum. Como vou
chamá-la? Pensei.
Mas naquele momento mágico e único, me
contentava e me saciava apenas olhá-la. Todas as minhas
emoções, todo o meu corpo debilitado e frágil, todas as
minhas células, tudo em mim celebrava a vida.
114
Como era bom estar de volta! Uma nova chance
me fora dada e eu não a desperdiçaria. Abraçaria a vida
com todas as forças.
Muitas pessoas acordam do coma, abrem os olhos
e não tem ninguém por perto. Eu me sentia mais ainda
abençoado, pois minha primeira visão fora o rosto de
minha amada esposa.
Senti meus olhos cansados e os fechei novamente
enquanto Silvana clamava a Deus por um milagre.
Abri novamente os olhos e aos poucos e
lentamente minha visão foi se estabilizando com o
ambiente do CTI.
Não dava para saber se era dia ou noite, é um
ambiente isolado de tudo. Mas ela estava lá, isso era o
mais importante.
Coisa linda é a gente poder se comunicar por
meio da alma, sem que palavra alguma necessariamente
aconteça. E foi isso que aconteceu. Não precisei chamá-
115
la, ou mesmo tocá-la. Apenas olhava para ela. E penso
que ela sentiu.
Ela me disse depois, quando conversávamos
sobre tudo o que acontecera, que no momento em que
orava, teve a estranha sensação de estar sendo observada.
E estava.
Silvana interrompeu suas preces para me olhar e
viu meus olhos abertos. Olhei no fundo dos seus olhos e
ela nos meus. Era minha cara-metade. Meu amor. Ficou
pálida e começou a chorar. Alguém da equipe médica
correu pensando que eu tinha morrido. Mas quando
chegou viu justamente o contrário. Era vida e não morte.
Depois de 82 dias, eu acordara do coma. Eu era o seu
milagre.
__O que aconteceu? __a enfermeira perguntou-
lhe.
__Deus está mostrando a Sua Glória! __ ela
respondeu.
116
Capítulo XVI
É possível alguém em coma interagir com o
meio através de sua energia vital, seu espírito, sua alma,
ou qualquer outro nome que queiramos dar ao “eu”
verdadeiro?
Alguém pode afirmar categoricamente que não,
mas eu sei o que vivi nesses 82 dias em que estive “fora
de mim”.
Sei onde fui e com quem me comuniquei,
podendo até dar detalhes de coisas e pessoas.
Talvez eu não possa explicar, e nem o Aluízio, o
motivo pelo qual eu tenha permanecido no teto do meu
quarto por tanto tempo, estando meu corpo em outro
lugar.
117
Para os médicos e cientistas, essa ainda é uma
área nebulosa, são opiniões e teorias divergentes.
Sabemos que existem inúmeros relatos de
pacientes que dizem interagir, sentem, ouvem, pensam e
se emocionam, embora o corpo não possa demonstrar.
Cada escolha que fazemos na vida é uma
revolução e uma grande revolução estava acontecendo
em mim.
Eu escolhera viver e todas as minhas células,
todas as moléculas, todos os músculos estavam em uma
revolução. Era a vitória da vida.
Minha esposa chorava compulsivamente e me
olhava nos olhos.
__Eu te amo! __ ela falou-me.
Não pude responder. Eu ouvia, compreendia, mas
não interagia.
Até tentei responder, mas não consegui. Teria que
118
ser com a voz da alma.
Nem todos acordam do coma da mesma forma,
eu tinha a compreensão das coisas perfeitamente, mas
nem sempre é assim.
A notícia do meu retorno espalhou-se
rapidamente e logo o hospital estava cheio de parentes,
amigos e até curiosos.
Durante algum tempo eu só podia mexer os olhos
e era com eles que eu me comunicava, piscando.
Era bom saber que eles se esforçavam para
estabelecer um diálogo comigo através de sinais. Isso era
bom para mim.
Minha recuperação a partir daí foi gradual. Eu era
acompanhado por médicos de diversas especialidades,
além de uma equipe de fisioterapeutas, massagistas,
acupunturistas, nutricionistas, entre outros.
Além dos olhos, depois passei a movimentar
119
primeiro os dedos, as mãos e fui evoluindo a cada dia.
Um dia de cada vez, sem pressa, sem medo.
Apesar de ainda não falar, podia ouvir bem meus
pais, meus filhos e minha esposa. Eram muitas histórias
tristes e engraçadas e compartilhávamos todos os dias
esses momentos de atualização.
Num momento em que estávamos a sós, Silvana
me disse que nunca desistira de mim. Que acreditava
com todas as forças que eu voltaria e que a qualquer
momento eu iria abrir os olhos e dizer: voltei amor!
Também me disse que uma coisa estranha
aconteceu no hospital. Disse que numa noite, um médico
apareceu no CTI e falou com ela. Disse-lhe para ter
calma e fé que tudo iria se resolver, que logo eu iria
acordar do coma. Depois, o médico alisou minha cabeça
e foi embora, não mais voltando ou sendo visto pelo
ambiente hospitalar. Tudo isso seria até normal e ela
ficaria uns dias sem pensar nisso, se não fosse um
120
detalhe que ocorreria dias depois: Ao passar pelos
corredores da administração do hospital, vira na parede
um quadro com a foto do médico que falara com ela. Ao
perguntar a uma secretária sobre como falar com aquele
médico, esta lhe respondeu que seria impossível, pois
este era um dos fundadores do hospital e já havia
morrido há mais de vinte anos.
Ouvi atentamente a história contada por Silvana e
fiquei impressionado com ela. Mas minha esposa falou
com naturalidade. Ela não tinha medo. E disse-me que
não contara a ninguém o que ocorrera, pois poderiam
pensar que ela estava louca.
Posteriormente, quando já falava e me
locomovia, pedi a Silvana que me levasse até o quadro
do médico. Ao chegar tive a grata confirmação de minha
suspeita. Era ele, o Dr. Aluízio.
Silvana foi a única pessoa para quem contei sobre
o que eu vivera nos dias de coma. Nunca contei a mais
121
ninguém sobre minha experiência, guardei-a comigo
durante muito tempo, compartilhando esse segredo
apenas com ela. Contei-lhe sobre o teto, sobre Bilu,
sobre o Dr. Aluízio e sobre tudo o que senti e aprendi.
Ela ouviu-me atentamente, depois me abraçou com
ternura e disse-me:
__ Você é um abençoado. Viu tudo isso e está
aqui para contar. Não tenha medo de algum dia alguém
disser que isso não aconteceu. O importante é o seu
coração. __ falou, me fazendo chorar.
Sei o que eu vi, o que senti e o que passei, mas
confesso que por vezes me pego pensando em outras
hipóteses para tudo isso.
Sempre me pergunto se não foi tudo um sonho,
uma grande ilusão. O que eu posso dizer é que não se
deve perder nunca a esperança, é possível sim superar
esses momentos críticos e muitas vezes desesperadores.
E mesmo que os maiores especialistas digam o contrário,
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não desista, não perca a fé e a esperança, pois a palavra
final é de Deus. Se você tem esperança, logo, você tem
tudo.
Por mais que essas experiências de “quase morte”
não possam ser materializadas em provas concretas, eu
vivi isso.
Não posso dizer que passei a levar uma vida
normal, porque tive algumas sequelas e
consequentemente, alterações significativas no meu
modo de vida, tendo a minha família que se adaptar as
mudanças que vieram.
Mas agradeço imensamente a nova chance que
me fora dada e tenho procurado aproveitar o máximo a
vida em toda a sua plenitude, em especial com minha
família.
Não voltamos a morar na casa antiga, que
acabamos vendendo para Dona Constância, porém fiz
questão de pedir permissão aos novos proprietários do
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imóvel, para, pela última vez, visitar o quarto que antes
fora meu e de Silvana, e agora pertencia a Carlos.
Olhei para o teto, em direção ao local onde eu
tinha ficado por mais quase três meses e recordei alguns
dos momentos de dor e aprendizado que passei do “outro
lado”.
Nunca saberei como e porque fui parar lá, bem
como, porque fiquei tanto tempo naquele estado de
transição, mas aprendi muito e tive uma oportunidade
única de acompanhar o amor e dedicação de minha
família para me manter vivo.
Ainda tinha uma coisa a fazer e fiz: comprei a
tela “O Homem do Teto”, do jovem artista Carlos e dei a
ela um lugar de destaque na sala de estar de minha nova
casa.
Paguei um bom preço pela tela e ele ficou muito
feliz, servindo até como um incentivo ao seu trabalho
talentoso.
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Casa nova, vida nova, tudo novo, inclusive o
cãozinho de estimação.
Para tentar compensar a ausência de Bilu, dei de
presente à Amanda uma “York Shire” linda e fofinha,
batizada como “Lilica”.
Ela é muito esperta e já aprendeu alguns truques.
O problema é que as vezes Lilica entra correndo no
quarto e me dá um basta susto: fica latindo sem parar,
olhando para o teto.
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FIM