O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspirações
-
Upload
gus-pradell -
Category
Documents
-
view
223 -
download
3
Transcript of O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspirações
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
1/75
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
Nhe vai hegui Mba'evyky
O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
Luiz Gustavo S. Pradella
Porto Alegre2006
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
2/75
- 2 -
Luiz Gustavo Souza Pradella
Nhe vai hegui Mba'evyky
O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
Monografia apresentada no curso deCincias Socia i s , da Univers idadeFederal do Rio Grande do Sul, comorequisito parcial para a obteno dograu de Bacharel em Cincias Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Sergio Baptista da Silva
Porto Alegre, 2006
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
3/75
- 3 -
Nos tempos de antes, no mundo de antes, o mbii (a lagarta) era um
av (humano-guarani) seguidor de Nhanderu, que se tornou mal efoi transformado em mbii por Nhanderu. Depois com o mbiiNhanderu fez a alma dos Juru (dos brancos).
Jovem Mby - Caderno de campo (09/05/2005)
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
4/75
- 4 -
Lista de Ilustraes
Figura de capa: Colagem feita a partir das fotografias de folhas de yvyr vaku (plantamaligna) e yvyr raku (agulha de madeira), dispostas em forma concntrica. Fotos emontagem de autoria prpria...............................................................................................01
Figura 01: Fotografias do vixrang indaj (imagem da guia). Anexada ao caderno de
campo em (24/10/2006). Autor da pea desconhecido, fotos de autoria prpria................37
Figura 02: Desenho da tat u peku (bolsa de tatu) Anexado ao caderno de campo em(13/09/2006). Autoria de um dos meus interlocutores Mby..............................................41
Figura 03: Foto das rplicas yvyrraku (agulhas de madeira). Anexada ao caderno decampo em (24/10/2006) Autoria de um dos meus interlocutores Mby, foto de autoriaprpria................................................................................................................................. 44
Figura 04: Foto de rosto entalhado em tronco de rvore. Anexada ao caderno de campo em(07/11/2005) Autor do entalhe desconhecido, fotografias de autoria prpria.................... 52
Figura 05: Foto de folhas de yvyr vaku (planta maligna) coletada a pedido por um demeus interlocutores. Anexada ao caderno de campo em (24/10/2006) Imagem de autoriaprpria................................................................................................................................. 55
Figura 06: Desenho de folha de yvyr vaku (planta maligna) Anexado ao caderno decampo em (13/09/2006). Autoria de um dos meus interlocutores Mby............................55
Figura 07: Grande rocha. Anexada ao caderno de campo em (07/11/2005). Imagem deautoria prpria.....................................................................................................................56
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
5/75
- 5 -
Sumrio
Agradecimentos....................................................................................................................07
Resumo..................................................................................................................................08
Convenes........................................................................................................................... 09
Prlogo.................................................................................................................................. 10
Os primeiros contatos...................................................................................................... 10
Os Guarani....................................................................................................................... 11
Feitiaria em Campo: Falando sobre feiticeiros.............................................................. 12
Introduo............... ............................................................................................................. 16
Mtodo de anlise............................................................................................................ 17
Feitio............................................................................................... ............................... 19
1. Xamanismo na bibliografia.............................................................................................21
1.1 Legado Colonial.........................................................................................................21
1.2 Outros etnlogos, outros guarani............................................................................... 21
1.3 A etnologia ps-holista.............................................................. ............................... 23
2. Imbavy'ky va' hegui kara......................................................................................... 26
2.1 Denominaes do feiticeiro.................................................... .................................. 26
2.2 Os lderes religiosos e suas denominaes............................................................... 29
2.3 Os que sabem e os que fazem................................................................................... 31
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
6/75
- 6 -
3. Os caminhos do feiticeiro................................................................................................ 36
3.1 O teko a'.................................................................................................................. 36
3.2 O desafio do caminhar-viver.....................................................................................39
4. Tatu pek: Os artefatos da feitiaria........... ...................................................................41
4.1 Nhe va: Palavras ruins........................................................................................... 42
4.2 Yvyrraku.................................................................................................................44
4.3 Ka'av........................................................................................................................ 47
5. Op marang....................................................................................................................49
5.1 Os angu, os mba'e poxy e os anh.............................................................................49
5.2 Yvyranhe vaku...................................................................................................... 54
5.3 Mba'evyky hegui -J................................................................................................... 56
6. Mba' va ombojaity........................... ............................................................................. 59
6.1 Tendo nomes como alvos........................................................................................ 59
6.2 Ayvu rei.......................................................................................................................60
6.3 Limpando o mal.......................................................................................................... 60
6.4 O fim do feiticeiro....................................................................................................... 64
Consideraes finais............................................................................................................ 68
Glossrio............................................................................................................................... 71
Referncias............................................................................................................................74
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
7/75
- 7 -
Agradecimentos
Agradeo primeiramente aos Guarani pelas valiosas lies de humanidade que me
permitiram enxergar, atravs de outros olhares, as possibilidades contidas na magnificncia
do (con)viver. Especialmente aos meus interlocutores agradeo pela pacincia exemplar,
pela disposio ao dilogo graas as quais este trabalho se tornou possvel.
Agradeo a todos os professores da graduao com os quais tive a oportunidade de
dialogar, dentre eles agradeo especialmente ao Prof. Dr. Sergio Baptista da Silva sempre
presente e atuante na edificante tarefa de orientar, bem como Universidade Federal do Rio
Grande do Sul agradeo pelos suportes pedaggicos, burocrticos e materiais
indispensveis.
Aos amigos Rebeca Hennemann Vergara, Amanda Kizzy Nicolle Schimidt dos
Santos, Maria Paula Prates, Andr Sarmento, Joo Maurcio Farias, Joo Rodrigo Pereira
Saldanha, Luiz Felipe Rosado, Mrcio de Azeredo Pereira, Diego Eltz, Larusha Sanjur Krs
Borges, Airan Milititsky Aguiar e Luiz Fernando Fagundes pelo dilogo imprescindvel e
pela presena de esprito junto aos quais muito aprendi.
Agradeo a Juliana por todo amor e carinho.
Aos meus avs, ao meu irmo e ao meu pai, agradeo tanto o apoio inestimvel,como a afeio insubstituvel ao longo destes anos.
Sou grato, sobretudo minha me, cuja presena, assim como a ausncia, to
grande naquilo que sou.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
8/75
- 8 -
Resumo
Este trabalho trata dos elementos vinculados ao tema da feitiaria entre os Mby e os
Nhandeva. Estas duas extensas redes de grupos, organizadas por parentesco e afinidade,
atualmente compartilham o mesmo espao em aldeias permanentes e acampamentos
provisrios no leste, no sul e no sudeste do Brasil; o territrio ocupado por essas populaes
perpassa as fronteiras nacionais de diversos pases do cone sul. Fundamentado na
experincia de aproximadamente trs anos de campo junto a comunidades Mby e
Nhandeva-Guarani, o presente trabalho tem por objetivo tratar das prticas e percepes dos
elementos do complexo xamnico Guarani em torno da feitiaria e do feiticeiro, buscando
estabelecer linhas de dilogo entre as informaes, frutos d e minhas etnografias e das
referncias bibliogrficas.
Palavras-chave: Mby-Guarani, Nhandeva-Guarani, feitiaria, scio-cosmologia Guarani,
xamanismo.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
9/75
- 9 -
Convenes
Todas as palavras escritas em Guarani esto grafadas em negrito tal qual me foram
apresentadas por meus interlocutores, salvo as denominaes das parcialidades e a prpria
palavra Guarani. No caso das citaes, por fidelidade s fontes documentadas, optei por
preservar as formas grficas originais. Todas as palavras esto seguidas de suas tradues
colocadas entre parnteses ou aps barra (/) ou, de forma inversa, contidas entre parnteses
ou aps barra, salvo quando fazem parte do ttulo; nestes casos fiz uso de notas de rodap.
Em parte dos ttulos esto sendo utilizadas palavras em Guarani, tendo em mente a
preservao das referncias simblicas prprias desses termos. Algumas palavras foram
modificadas em sua acentuao e esta se deve s limitaes impostas pela fonte utilizada na
digitao. As vogais nasaladas esto grafadas com til ou trema. Nenhuma das palavras em
Guarani ter qualquer classe de flexo (gnero ou nmero) a no ser quando constarem nos
relatos ou em citaes bibliogrficas. Todas as citaes em outras lnguas que no o
portugus foram traduzidas.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
10/75
- 1 0 -
Prlogo
Os primeiros contatos
Durante a segunda metade do ano de 2003, tive a oportunidade de tomar parte como
bolsista-pesquisador no projeto Corpora da cultura Guarani1 coordenado pelo professor
Srgio Baptista da Silva, no Ncleo de Antropologia das Sociedades Indgenas e
Tradicionais (NIT). Foi a partir da insero nesta pesquisa que iniciei os primeiros trabalhos
de campo junto s terras indgenas guarani localizadas na grande Porto Alegre e arredores.
Tmidos, srios, distantes e desconfiados: foi assim que me pareceram os Guarani naqueles
dias.
Durante a etapa etnogrfica do projeto Corpora da cultura material Guarani,
integrei o projeto de extenso Formao de professores Guarani, no qual foram organizados
seminrios em conjunto com os professores de diferentes terras indgenas para se pensar o
ensino diferenciado e material didtico especfico para as escolas Guarani do Rio Grande do
Sul. O projeto resultou na publicao de um livro didtico2 escrito e ilustrado pelos prprios
professores, todo em Guarani, lanado na 51 Feira do Livro de Porto Alegre.
Em Janeiro de 2005, a equipe de bolsistas do NIT realizou, sob a orientao doprofessor Sergio Baptista, o registro audiovisual no Puxirum (a tenda indgena do V Frum
Social Mundial). Como resultado foram produzidos dois curtas-metragens exibidos na V
RAM (Reunio de Antropologia do Mercosul), sendo um deles sobre as manifestaes e
participaes dos Guarani no V FSM. Neste mesmo ano, como tentativa de estabelecer
relaes de reciprocidade, realizamos oficinas de vdeo semanais junto a algumas Terras
Indgenas nas proximidades de Porto Alegre. Dois anos e meio e alguns projetos depois, a
minha impresso dos Guarani outra.
O procedimento de insero em campo entre os Guarani caracteriza-se,
1 O projeto em questo consistiu na catalogao sistemtica (atravs de fotografias e desenhos) dos objetos pertencentes cultura material (Proto) Guarani (cermica arqueolgica, instrumentos musicais, armas e adornos corporais), comnfase nos objetos portadores de grafismos junto a museus e acervos de universidades. Num segundo momento, essecorpus construdo (fotografias e desenhos) foi apresentado aos Guarani das aldeias do Rio Grande do Sul. A partirdisso, foram registradas suas memrias e percepes (discursos) relacionadas aos grafismos e objetos etnicamenteidentificados.
2 Ayvu anhetengu Diversos Autores. Porto Alegre: Secret aria de Estado da Educao : UFRGS. Pr-Reitoria deExtenso. 2005, 75 p.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
11/75
- 1 1 -
evidentemente, em um processo de longa durao. Se durante o primeiro ano persistiu o
distanciamento, ultimamente, com a intensificao da convivncia, essa insero se deu de
forma completamente diversa, fato evidenciado na recusa durante quase dois anos e meio
das temticas relacionadas cosmologia que, nos ltimos meses tornaram-se freqentes.
Os Guarani
Divididos em quatro grupos sub-tnicos Kaiow, Mby, Nhandeva e Chiriguano -
Os Guarani atualmente ocupam um territrio descontnuo que vai do estado brasileiro do
Esprito Santo (ao Norte), passa por toda a costa sudeste e sul do Brasil (limite Leste),
abrange todo territrio uruguaio at as margens do Rio da Prata (ao Sul)3. Estende-se ainda
pelo territrio paraguaio, ocupando a poro norte do territrio argentino e grande parte das
terras bolivianas at o sop das montanhas andinas (limite Oeste).
Diversas comunidades compostas por grupos Mby e Nhandeva esto localizadas no
Rio Grande do Sul, compartilhando espaos nos diferentes contextos, das reas indgenas
aos acampamentos, e por vezes estabelecendo significativos laos de parentesco entre si. Em
relao constituio da pessoa de um modo geral os Guarani compreendem-se enquanto
seres essencialmente divisos, compostos por trs almas4 de caractersticas marcadamente
distintas.
A primeira e principal delas chamada nhe ou nhe por. um nome prprio,
uma palavra e, ao mesmo tempo, alma, que constitui a parcela de deidade, bem como um
potencial para a superao da condio humana em vida. Imortal e perfeita, nhe a
origem do corpo5. Este em parte seu reflexo imperfeito, um lugar onde a alma deve
assentar para assumir a condio humana. Na morte a nhe volta a habita r o yamb
(santurio o u espao sagrado6 por vezes traduzido como paraso) de sua divindade
3 Atualmente existem grupos familiares Mby Guarani habitando territrios at mesmo no estado do Par, logo suaterritorialidade fluda no nos permite uma exatido com relao aos pontos limtrofes. Desta forma os dados aquiapresentados devem ser entendidos mais como referncias do que fronteiras propriamente ditas.O nmero de almas varia significativamente de sub-etnia para sub-etnia, no caso, estou dando um tratamento genrico apartir do observado, em grande parte, junto aos Mby.
5 Tratarei, brevemente, sobre este assunto posteriormente em um dos planos formadores do cosmo guarani.6 Sagrado sempre que referido aos elementos prprios do xamanismo Guarani deve ser entendido no seu sentido mais
amplo e diverso das noes de sagrado vinculadas tradio judaico-crist.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
12/75
- 1 2 -
correspondente, e pode voltar a renascer em outro corpo se assim desejar.
Ag (tambm grafada ng) considerada uma alma telrica. Surge e se desenvolve
com o corpo e, vinculada s paixes humanas, tambm o espao da animalidade. Se a
pessoa tomada pelo mba'e poxy (substncia/estado/ente de fria) pode acabar em epot
(estado de animalidade ou lado animal) e se transformar em um animal.
A terceira alma, chamada angu (ou mbogu), o resultado da transformao da
segunda alma (ag) nos casos em que os mortos tenham pautado suas vidas num teko'axy
(modo de ser e de proceder incorreto) ou terem sido mortos atravs de feitiaria. O angu
a alma telrica transformada em apario, tornada assombrao a vagar entre o mundo da
vida e os espaos dos mortos7. Algumas leituras, dando maior nfase continuidade,
consideram angu e ag como uma mesma alma que em condies diferentes anterior ou
posterior a morte apresentam caractersticas distintas.
Por um vis sociolgico, a n o o de pessoa guarani estende-se tambm a
instrumentos rituais, msicas, adornos corporais, armas e objetos estimados. Estende-se
ainda a redes de parentesco, mais ou menos segmentadas nas diferentes sub-etnias, a partir
da proximidade ou distncia geogrficas. Em suma, a pessoa guarani compe-se a partir do
dilogo permanente entre as especificidades sociais da rede e a compreenso cosmolgica
ambas (re)atualizadas no grupo familiar e afetivo no qual esta pessoa se insere.
A feitiaria e campo: Falando sobre feiticeiros
Meus primeiros contatos com os Guarani ocorreram em decorrncia de outros
projetos de pesquisa e extenso. Em conseqncia destes, as incurses junto s teko
tomaram a forma de visitas freqentes, atravs das quais me foi apresentado de formaabreviada o modo de ser Guarani. Dois anos depois comecei a elaborar o projeto para uma
possvel monografia. Todavia, este projeto, apesar de ter como objeto de pesquisa estes
mesmos grupos, pouco tinha a ver com a temtica aqui abordada, focando o papel das
lideranas estr itament e poltic as (caciq ues) e as e strat gias de empoderamento e
7 Nimuendaju (1987, p.37-40) registra todos os nomes equivalentes prprios dos Apapocva: Ayvuce equivale a Nhepor , acyigu o mesmo que ag, angury o equivalente a angu.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
13/75
- 1 3 -
desempoderamento assumidas (ou refutadas) na relao entre lderes e liderados.
Com a intensificao do campo nos anos de 2004 e 2005, e tambm como reflexo do
contexto vivido nestas comunidades, deparei-me com informaes sobre feitiaria. Meus
interlocutores, trs jovens Mby aparentados, na ocasio habitando as terras indgenas
prximas a Porto Alegre, voluntariamente abordaram aspectos superficiais sobre este esta
temtica. Esse foi o ponto de partida para meu interesse no assunto.
Assim, por ocasio da realizao das disciplinas Antropologia da Religio8 e
Etnologia e Etnografia do Brasil9, escrevi um artigo intitulado O curto caminho do feiticeiro
que apresentei como trabalho de concluso de ambas. Sinttico e , em certa medida,
exploratrio, o artigo em questo trazia alguns elementos que me pareceram indito, ouainda pouco aprofundado, sobre a feitiaria entre os Guarani.
Diante da avaliao positiva do artigo, e tambm por sugesto do Professor Sergio
Baptista, decidi modificar meu projeto de monografia e voltar a campo com o objetivo de
dar continuidade a etnografia das particularidades relacionadas feitiaria.
No entanto, desde o princpio do campo ficaram evidentes as dificuldades
decorrentes da improbabilidade de dialogar diretamente com algum que de fato faz uso de
tcnicas de feitiaria ou assistir um ritual desta ordem: obter informaes diretamente de um
feiticeiro em certo sentido, a figura central deste trabalho se revelou algo invivel.
Conseqentemente, o mtodo em campo restringiria-se a entrevistas semi-estruturadas
buscando restabelecer (e desenvolver) dilogos sobre os assuntos anteriormente referidos,
unto aos jovens com os quais j vinha dialogando.
Inicialmente, estas estratgias e temores no permitiram a abertura de espaos para
abordar essa temtica. Este sempre foi considerado um assunto desagradvel, algo a ser
evitado. Entre os Mby-Guarani comum a crena de que falar ou mesmo escrever sobre
porova (trabalho xamnico prejudicial feito ao corpo) uma forma de invoc-lo.
Tanto Nimuendaj entre os Apapcuva (Nhandeva-Guarani) como Schaden e
Cadogan entre os Mby apontam para estratgias de ocultao intencional das prticas e
8 Ministrada pelo prof. Dr. Ari Pedro Oro.9 Ministrada pelo prof. Dr. Sergio Baptista.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
14/75
- 1 4 -
conhecimentos relativos as prticas de feitiaria.
Ningum admite ser mojary (senhor dos venenos / feiticeiro), mas
h certas pessoas, ou as houve, que todos sabem s-lo (...) O temordos ndios quanto ao mboraa (canto maligno) dos feiticeirosestrangeiros desmesurado. Mesmo entre si relutam em tocar noassunto pois sabido que no se deve pintar o diabo na parede10.
No fcil obter explicaes sobre as prticas de feitiaria e muitomenos assistir a elas, pois ningum quer que sobre ele venha cair asuspeita de lanar mo dessa ordem de recursos. Os mais retradosneste sentido so os Mb11.
difcil obter dados fidedignos, pois ningum quer ser consideradocomo conhecedor de tais coisas12.
No entanto, em ocasies fora da aldeia, longe de outros Guarani, relatos sobre
feitiaria por vezes se fizeram presentes: assunto nosso [delimitava um de meus
interlocutores], os outros no precisam saber. Mesmo o silncio com relao ao tema me
foi explicado: Trabalho ruim [feitio] no se fala, tambm no se fala dos oapva va'
(os que fazem trabalhos prejudiciais ao corpo). Se tem feiticeiro na famlia, ningum fala
nada13.
De fato, no ltimo ano minhas observaes ampliou-se em direo a outros espaos
que no os das terras indgenas. Tambm os espaos urbanos, quando visitados por meus
interlocutores, tornam-se pontos de observao. Minha prpria residncia passou a ser
freqentada como ponto de paragem. As esferas domsticas e profissionais eclipsaram-se,
tornando difcil, muitas vezes, saber quem est na posio de nativo e quem o pesquisador.
Sem esta proximidade e confiana mtua certamente teria sido impossvel tocar em
assuntos sob segredo, conversar sobre xams e feiticeiros. Mas, longe de ser instrumental, a
proximidade afetiva. O campo tambm serviu como espao de domesticao para os Mby
que po r me io de categorias de parentesco apropriadas do mundo uru (compadrio,
apadrinhamento) nos colocaram, eu e meu companheiro de campo Luis Fernando Fagundes,
a meio caminho do tratamento dispensado a um parente14. Assim sendo, apesar de ser uru
10 Nimuendaju (1987, p. 93 e 95).11 Schaden (1974, p. 126).12 Cadogan (1959, p.141).13 Trecho de fala de um jovem mby, registrado em caderno de campo (07/11/2005).14 Este meio-parentesco foi de certa forma oficializado pelo convite que nos tornasse padrinhos de filhos de nossos
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
15/75
- 1 5 -
(ocidental / no-indgena), tornamo-nos assunto pertinente no s aos nossos interlocutores
diretos como tambm de sua rede de parentesco.
Se estas pessoas nos possibilitam conhecer alguns dos aspectos sagrados to caros ao
seu modo de ser que em tantas outras ocasies so vetados para os no-Guarani, no
somente devido a uma postura de simples tolerncia com a diversidade; , principalmente,
graas ao reconhecimento do respeito e partilha aos preceitos identificados pelos Guarani
em seu modo de ser ideal: -mbojerovi A confiana que vem do interior; e mboray
entendido de muitos modos diferentes por autores distintos: Reciprocidade15, justia16,
compartilhamento pleno, solidariedade tribal profunda17, ou ainda (naturalizando tradues
mais crists) amor recproco18, amor e bondade19.
Se existiu uma preocupao por parte dos Mby ao falar sobre feitiaria, houve igual
compromisso da minha par te ao escrever sobre seus relatos. Foi necessrio proteger a
identidade daqueles com os quais dialoguei. Logo, ao longo do texto, opto por uma certa
impreciso no que se refere s informaes que poderiam identific-los: todos os nomes
citados por meus interlocutores foram trocados por pseudnimos. Tornar uma etnografia
impessoal faz com que as pessoas sobre as quais escrevemos sejam, em grande medida,
descaracterizadas. Neste processo, infelizmente, a etnografia perde muito de sua cor. Noentanto, considero este um preo a ser pago ao se tratar de um assunto considerado to
delicado e ao mesmo tempo to instigante.
interlocutores.15 H Clastres (1987 , p.94), Montardo (2002, p.58), Assis (2006, p. 21, 22, 87).16 H. Clastres (1987, 96)17 P Clastres (1990, p 29), H Clastres (1987, p.100).18 Pissolato (2006, p. 164)19 Cadogan (1959, p.19, 20 e 26), Dooley (1998, p.71), Pissolato (2006, p.175, 330 e 343).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
16/75
- 1 6 -
Introduo
O xamanismo, em to do o Novo Mundo, segue constituindo um dos traos mais
marcantes das populaes amerndias. Mediadores entre os humanos e os seres de outros
nveis de existncia, presentes em uma extensa gama de grupos tnicos diferentes, de formas
e papeis igualmente distintos, os xams so os detentores de um amplo conjunto de
habilidades, capacitados para o deslocamento ent re os d iferentes plano s do cosmos,
detentores de meios que podem ocasionar ou solucionar problemas no mbito de suas
comunidades.
De acordo com Langdon, o xamanismo pode ser definido pelas seguintes
caractersticas:
1 A idia de um universo de mltiplos nveis onde a realidadevisvel supe sempre uma outra invisvel. 2 Um princpio geral deenergia que unifica o universo (...) em que tudo relacionado aosciclos de produo e reproduo, vida e morte, crescimento edecomposio. 3 Um conceito nativo de poder (...) com o homemcomum, com o xam e com os espritos [e cuja configurao varia]de cultura para cultura (...) 4 Um princpio de transformao, deeterna possibilidade das entidades do universo de se transformaremem outras. Assim, os espritos adotam formas concretas, humanas ouanimais. Xams tornam-se animais ou assumem formas invisveis
com as dos espritos (...) O que separado pode ser unificadoatravs da metfora (...) 5 O xam como mediador que ageprincipalmente em benefcio de seu prprio povo 6 Experinciasextticas com base no poder xamnico, possibilitando seu papel demediao (...) Talvez [com] o uso do tabaco (...) , mas tambm[atravs de] sonhos, dana, canto e outras tcnicas [que] podem serempregadas em conjunto ou em separado para atingir a mediaoxamnica20.
Apesar das diversas particularidades do complexo xamnico Guarani, grande parte
das caractersticas apontadas pela autora pode ser observada entre estas populaes. Ocomplexo xamnico Guarani semelhante a uma religio na medida em que estabelece
atravs das formas, normas e rituais poderosas, penetrantes e duradouras disposies e
motivaes nos homens [atravs das quais os conceitos e concepes formulados so] de
uma ordem de existncia geral [revestidos] com a tal aura de factualidade, que as
20 Langdon (1996, p.27 e 28).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
17/75
- 1 7 -
disposies e motivaes parecem ser singularmente realistas21.
Assim sendo, no h qualquer inteno de contraposio ou estabelecimento de
gradaes resqucios das leituras evolucionistas etnocntricas entre as noes de religio
(ou religiosidade), crena, xamanismo, feitiaria e magia, apesar das diferenas existentes
entre estas categorias. Um complexo cosmolgico (religioso ou xamnico) considerado
aqui como um universo discursivo no qual disposies parciais (muitas vezes universalistas
e universalizantes) interagem, acionando elementos simblicos compartilhados a partir de
seus posicionamentos diferentes22.
Complexos xamnicos como dos Guarani distinguem-se ainda das religies (ou dos
complexos religiosos) stricto senso pela ampli tude de sua abr angn cia: Falar de
xamanismo em vrias sociedades, implica em falar de poltica, de medicina, de organizao
social e de esttica23.
O presente trabalho tem como principal objetivo compreender o ponto de vista
mico24, as perspectivas simblicas relacionadas feitiaria Guarani. Feitiaria deve ser
entendida aqui como um conjunto diverso de prticas e discursos que, integrados ao
complexo xamnico Guarani movimentam energias destrutivas e invisveis por trs do
cotidiano atravs de ataques xamnicos. Estes ataques so considerados perigosos e
negativos. Conseqentemente, tabus no mbito destas populaes.
Mtodo de anlise
Buscando evidenciar as diferentes posies no extenso quadro referencial Guarani,
faz-se necessria a contextualizao das fontes e do tratamento despendido s informaes
coletadas.Meus interlocutores so jovens mby-guarani que no presente etnogrfico habitam
aldeias prximas cidade de Porto Alegre. Em funo das polticas de confinamento
21 Langdon (1996, p.26)22 Barth (2000, p.137).23 Langdon (1996, p.27).24 Obviamente a apreenso do ponto de vista mico entendido como a compreenso total das particularidades tal qual
compreendidas pelos atores sociais um ideal de pesquisa que obviamente s pode atingido em termos.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
18/75
- 1 8 -
historicamente empreendidas pelo Estado, os Mby foram paulatinamente forados a dividir
territrios indgenas demarcados e acampamentos com grupos Xirip (Nhandeva-Guarani) e,
em casos mais raros, com os pongu (Kaingang - J Meridionais). Com ambos os grupos h
um escalonamento que vai do compartilhamento de princpios comuns (com os Xirip) ao
relativo estranhamento (com relao aos Kaingang). Esto ainda em contato permanente
com as populaes no-indgenas (Ju ru) membros da sociedade envolvente vendedores,
burocratas, filantropos, polticos, estudiosos e vizinhos que visitam suas aldeias com
freqncia.
Por vezes em meu texto acabo incorrendo numa certa generalizao em prol do
modo de ser Mby ao me referir genericamente a um modo de ser supostamentehomogneo guarani. Isto se deve certamente ao fato daqueles com os quais mais dialogo
serem membros desta parcialidade.
Apesar disto reconheo uma srie de distines (que no anulam as similaridades)
entre as parcialidades apresentadas a mim atravs da bibliografia, levando em conta tambm
o fato de que no mbito de uma nica parcialidade podem existir variaes a serem
consideradas. Uma das propostas de Barth reconsiderar o papel da variao no mbito do
mtodo comparativo.
Trabalhando com os termos de uma moderna concepo de cultura,no pode haver um mtodo comparativo para as comparaes feitasentre os objetos mais distantes e contrastivos (geralmente chamadade comparaes entre culturas ou sociedades) e outro mtodo (quepoderamos chamar de anlise detalhada) para comparaes feitasentre diferentes casos e vozes de um grupo designado (...) Sereconhecermos a natureza contnua da variao na cultura e o carterarbitrrio das nossas distines entre sociedades, as prprias idiasde dentro e entre parecem perder sua fora e utilidade25.
Atravs desta perspectiva, as variaes, longe de serem problemas, so encaradas
como elementos a serem considerados em uma configurao to complexa quanto quela
assumida pelos grupos, pelas redes e pelas parcialidades que compem o que denominamos
homogeneamente de etnia Guarani.
A diferena e a diversidade podem ser conceptualmente
25 Barth (2000, p.197).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
19/75
- 1 9 -
t ransformadas em um campo de var iabi l idade, l evandoprogressivamente construo de um conjunto de dimenses devariao para facilitar a descrio de qualquer forma observada26.
Tanto as variaes quanto as semelhanas presentes nas categorias micas
relacionadas a cada parcialidade, nos procedimentos rituais e nos elementos mitolgicos,
apresentam valiosas evidncias com relao s caractersticas distintas ou compartilhadas
destas populaes.
Feitio
A pa lav ra feiti e sua s der iva das so evidentemente exgenas ao universo
lingstico guarani. Enquanto traduo das prticas relacionadas aos ataques xamnicos
inferidos, a palavra em questo no s assumida como vlida pelos prprios Guarani,
como tambm contm em sua etimologia propriedades pertinentes para o seu emprego como
conceito etnolgico-cientfico.
No primeiro captulo de seu livro Reflexo sobre o culto moderno dos deuses
fe(i)tiches, Bruno Latour reconstitui a origem do termo feiti no contexto de contato entreos portugueses catlicos e os africanos da costa da frica Ocidental. Ocultando a certeza da
legitimidade de suas crenas em detrimento de todas as demais, os portugueses interrogaram
os africanos sobre a origem e divindade dos objetos de sua adorao:
Vocs fabricaram com suas prprias mos os dolos de pedra, deargila e de madeira que vocs reverenciam?, os guianeensesresponderam sem hesitar que sim. Intimados a responder segundaquesto: Esses dolos de pedra, de argila e de madeira soverdadeiras divindades? (...) obstinam-se a repetir que fabricaramseus dolos e que, por conseqncia, os mesmos so verdadeiras
divindades. Zombarias, escrnio, averso dos portugueses frente atanta m f (...) Para designar a aberrao dos negros da Costa daGuin e diss imul ar o m al-entendido, os portugueses (muitocatlicos, exploradores, conquistadores, at mesmo mercadores deescravos) teriam utilizado o adjetivo feitio, originrio de feito,particpio passado do verbo faze , forma figura, configurao, mastambm artificial. Fabricado, factcio, e por fim, fascinado,encantado27.
26 Barth (2000, p. 193).27 Latour (2002, p.15 e 16).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
20/75
- 2 0 -
Ao contrrio da mentalidade portuguesa moderna que concebia a divindade (apesar
de sua influncia) como exterior e separada da natureza dos homens (da provavelmente se
origina o termo sobrenatural), o vis Guarani compreende a pessoa como entidade
segmentada em diferentes domnios; composta por potencialidades inerentes a suas distintas
almas, tanto para a animalidade (sombra) como para a divindade (iluminao). Cada pessoa,
em sua partcula divinal, criao/desdobramento da prpria divindade (mbojer28). Dessa
forma, igualmente imbuda da capacidade de capacidade criadora, a partir de suas aes e
principalmente atravs de cantos/palavras que guardam em si a sabedoria das divindades
(aran d por) e possibilidade de inspirao necessrias para criar29.
Tal qual para os Guianeenses, a etimologia (do termo) feiti recusa-se a escolherentre o que toma forma atravs do trabalho (ou do falado/cantado) e o artifcio fabricado 30.
Assim como feiti , a expresso guarani Joapva, uma das denominaes dada ao ataque
xamnico, evidencia seu carter de produo atravs do trabalho. Joapva traduzido
pelos Guarani como trabalho maligno feito no corpo.
Os Guarani assim como entre os africanos da costa ocidental na poca do contato com os
portugueses no reconhecem qualquer oposio ou contradio entre a idia de se produzir
algo (atravs do trabalho ou da fala) e o fato deste algo ser dotado de poder. As duas razesda palavra indicam bem a ambigidade do objeto que fala, que fabricado ou, para reunir
em uma s expresso os dois sentidos, que faz falar31.
A palavra inspirada, pautada nas referncias scio-cosmolgicas que lhes so
particulares, investida de anima produzido e orientado na intencionalidade e na sabedoria
daquele que a profere e a executa. Fabricado e ao mesmo tempo encantado, os sentidos
etimolgicos da palavra feiti tornam possvel seu emprego no contexto da etnologia
Guarani, vinculando-o especificamente a uma das formas de xamanismo existentes.
28 Cadogan (1959, p. 17).29 Segundo um dos meus interlocutores, este criar deve ser entendido em seu sentido estritamente divino, traduzido
pelos Mby como criar a partir do nada, igual a Nhanderu, ou ainda criar a partir de si, de sua prpria sabedoria.Caderno de Campo (17/04/2006).
30 Latour (2002, p.16).31 Idem (2002, p. 17).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
21/75
- 2 1 -
1. Xamanismo na bibliografia
1.1 Legado colonial
O xamanismo amerndio vem sendo objeto de curiosidade desde o momento do
contato at a atualidade. Da aurora da invaso europia nos sculos XVI e XVII, ficaram os
inmeros relatos dos primeiros cronistas: Jesutas como Antnio Ruiz de Montoya e Pedro
Lozano, alm de viajantes como Jean de Lry, Andrea Tevet e Han Staden registraram suas
impresses, algumas vezes de forma to densamente detalhada que poderiam ser
considerados os fundadores de uma 'etnografia colonial'32. Em meio s informaes contidas
em suas crnicas, existem referncias feiticeiros poderosos e profetas caminhantes.
Seja junto aos grupos Guarani no interior do continente, seja entre os Tupinamb na costa,
as imagens evocadas nestes relatos tornaram-se constituintes no processo de formao do
estereotipo do paj, gravadas no imaginrio ocidental.
J nos sculos XVIII e XIX, alguns estudos faro uso dessas crnicas, ligados
principalmente a pesquisas etno-lingusticas de base documental. Na maioria destes estudos
no havia contato direto com os povos amerndios. Assim, seu legado para a compreenso
da cosmologia e das formas de xamanismo tupi-guarani mnimo, seno, inexistente.
1.2 Outros etnlogos, Outros guarani
Somente no sculo XX, com a extensa etnografia de Kurt Unkel Nimuendaju e a
publicao de As Lendas de Criao e Destruio do Mundo como Fundamentos da
Religio dos Apapcuva-Guarani33 surgiram outras perspectivas relacionadas temtica do
xamanismo. Alm de ser pioneiro no desenvolvimento do mtodo de investigao de campo
(observao participante)34
, Nimuendaju tambm o primeiro a descrever a mitologiaGuarani, assim como os cerimoniais dos Apapcuva (andeva-Guarani).
Outra figura de destaque foi Egon Schaden, etnlogo cuja teoria, essencialmente
32 Tambm em P.Clastres (2003, p. 95).33 Nimuendaju ([1914]1987).34 O campo de Kurt Nimuendaju iniciado em 1905 junto aos Apapocva-Guarani, antecipa o trabalho de campo de
Bronislaw Malinowski (em 1915) junto o povo Mailu e os trobianeses em dez anos. tambm um dos primeirosetnlogos a abandonar as visitas em formato de expedies, optando por conviver com os grupos estudados in solo.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
22/75
- 2 2 -
funcionalista, estava vinculada s escolas americana e britnica. Esse autor o responsvel
pelo modelo de classificao de trs dos quatro grupos sub-tnicos Guarani existentes que
vem servindo de base para estudos posteriores desde ento Mby, Nhandeva (ou Xirip no
Paraguai e Rio Grande do Sul) e Kaiow (ou Pa no Mato Grosso do Sul e no Paraguai). Em
Aspectos fundamentais da cultura guarani35, Schaden pesquisa os contextos de contato e
intercmbio cultural nos quais as diferentes sub-etnias encontram-se inseridas em sua poca.
Como defensor da teoria da aculturao, anunciava um futuro terrvel mais ou menos
semelhante para as diferentes parcialidades, dando como certo e prximo seu etnocdio.
Schaden foi, sem dvida, um antroplogo de seu tempo.
Somente em 1959, com a publicao do livro Ayv Rapyt36: Textos mticos de losMby-Guarani del Guair parte considervel dos preceitos cosmolgicos dos Guarani so
revelados atravs da etnografia de Len Cadogan. De excepcional contedo e profundidade,
n o Ayv Ra py t e nc on t ra m-s e r e g i st r a dos , pel a p r i mei r a ve z , inme r os
cantos/meditaes/ensinamentos sagrados atravs dos quais os poetas-profetas Mby
apresentam as propriedades centrais de sua cosmologia, cantando o fundamento da palavra,
o bom modo de ser, a primeira terra, o grande dilvio e a nova terra.
Um dos principais colaboradores de Cadogan na dcada de 50 e 60, BartolomeuMeli, possui uma ampla gama de trabalhos etnolgicos (etno-histricos e etno-lingusticos),
resultados de mais de quarenta anos de pesquisas de campo, principalmente junto s
parcialidades Guarani. Segundo sua interpretao, em grande parte baseada nas leituras de
Cadogan, os elementos cosmolgicos so preponderantes sobre o social, estabelecendo uma
relao de assimetria entre o cotidiano e os momentos rituais-cerimoniais constituinte do
modo de ser Guarani37.
Proporcionando novas interpretaes, as obras de Hlne e Pierre Clastres fazemreferncia aos elementos cosmolgicos com as particularidades polticas dos grupos Tupi-
Guarani. Nas obras Sociedade Contra o Estado38, Arqueologia da Violncia39 e Terra Sem
35 Schaden (1974).36 Cadogan (1959).37 Meli (1989, p.293)38 P.Clastres (2003).39 Idem (2004).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
23/75
- 2 3 -
Mal40, os autores apontam para a efetivao processual do profetismo Tupi-Guarani como
parte de um mecanismo reagente ao empoderamento das lideranas polticas, ou seja,
contrrio reordenao (diviso) da sociedade entre governantes e governados. As
migraes profticas historicamente observadas nas crnicas do perodo colonial so aqui
compreendidas como parte de um mecanismo cultural capaz de impedir o estabelecimento
de preceitos de autoridade e comando, desempoderando lideranas e condicionando seu grau
de influncia sua retrica e ao seu prestgio.
1.3 A etnologia ps-holista
A segunda metade do sculo XX est marcada pelo aumento significativo na
quantidade de pesquisas etnolgicas, seja entre os grupos Tupi-Guarani do ramo amaznico,
seja diante da emergncia tnica entre os indgenas do nordeste. Esta ampliao da prtica
antropolgica tem frutos significativos nos quadros tericos e epistemolgicos atuais.
Expoente de uma antropologia consciente das dimenses histricas das populaes
indgenas, a etnologia de Joo Pacheco de Oliveira contraps-se ao fixismo e ao
essencialismo de certas anlises, que, segundo o autor, desconsideram estes grupos enquanto
"sujeitos histricos plenos", condenando suas culturas a uma esttica que remete sempre ao
purismo primitivista de uma leitura evolucionista. Oliveira critica ainda outra implicao
deste tipo de anlise: o engessamento resultado da estrita vinculao entre os grupos
amerndios e os espaos geogrficos dentro das fronteiras historicamente registradas pelas
sociedades ocidentais envolventes em que estes grupos habitavam. Sua contribuio de
grande importncia para os estudos antropolgicos, principalmente no que se refere s
sociedades em situao de contato intenso com as sociedades nacionais41.
O perspectivismo, teoria sintetizada por Eduardo Viveiros de Castro, a partir de seu
campo entre os Arawet42, somado ao dilogo com outros autores, entre estes Bruno Latour,
Philippe Descola e Aparecida Vilaa, certamente uma das teorias de maior influncia na
etnologia nas ltimas dcadas. A abordagem perspectivista entende o pensamento amerndio
0 H.Clastres (1987).1 Oliveira (1999).2 Povo Tupi-Guarani nas margens do rio Ipixuna, afluente do mdio Xingu.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
24/75
- 2 4 -
como pautado por uma leitura multinaturalista do cosmos, no qual muitas naturezas
partilham os mesmos atributos culturais. Dessa forma, o pensamento amerndio contrape-se
cosmoviso multiculturalista, prpria do pensamento moderno, que, de forma sinttica,
pensa uma mesma natureza compartilhada por muitas culturas43.
A ob ra Xamanismo no Brasil: Novas Perspectivas, compilao feita por Jean
Langdon, formada de um conjunto de artigos abordando o fenmeno do xamanismo, tanto
entre as populaes amerndias quanto relacionadas s religies ayahuasqueiras e a estudos
neurolgicos. Com artigos assinados por diversos antroplogos, entre estes, a prpria
organizadora e Dominique Gallois, esta compilao elucidativa na medida em que um
amplia o universo do xamanismo ao mesmo tempo em que aponta para algumas de suascaractersticas elementares44.
Parte significativa dos elementos de feitiaria Guarani que busco tratar neste trabalho
est presente, ainda que de maneira breve, nas fecundas etnografias de Deisy Montardo,
Valria de Assis, Celeste Cicarone e Elisabeth Pissolato.
O impacto da leitura de outros autores na compreenso do observado em campo
estabelece-se do meu contato com as obras de Clifford Geertz45, Fredrik Barth46, Gilles
Deleuze e Flix Guattari47, quando se fazem presentes na escolha das preposies (de lugar
ou de posse), bem como na leitura das formas de parentesco e da territorialidade.
O n ma de n o tem pontos , t ra je tos , nem ter ra , emboraevidentemente ele os tenha. Se o nmade pode ser chamado de odesterritorializado por exce lncia, justamente porque areterritorializao no se faz depois, como no migrante, nem emoutra coisa, como no sedentrio (...) Para o nmade, ao contrrio, adesterritorializao que constitui sua relao com a terra, por isso elese reterritorializa na prpria desterritorializao 8.
A partir de algumas destas leituras, a identidade torna-se compreensiva de um modo
3 Viveiros de Castro (2002).4 Langdon (1996).5 GEERTZ (1989).6 Barth (2000).7 Deleuze & Guattari (1995, vol. V, p.53). Apesar dos Guarani no serem nmades stricto senso, sua relao com a
espacialidade pode ser considerada desterritorializada se levarmos em conta a importncia do caminhar em sua scio-cosmologia.
8 Deleuze & Guattari (1995).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
25/75
- 2 5 -
rizomtico e f lu ido: suas fronteiras desterritorializaram-se em redes de parentesco ,
procedimentos, objetos rituais, emaranhados de referncia que ora se contrapem, ora
convergem, por vezes se anulam e em outros casos se reforam. J no resiste mais a nfase
esttica n os conceitos dicotmicos tais como tradio/inovao, ou ent re sociedades
simples/complexas, e mesmo o monismo de categorias como sociedade e cultura, tornou-se
algo questionvel49.
9 Barth (2000, p.109).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
26/75
- 2 6 -
2. Imbavy'ky va' hegui Kara
50
Se o interesse com relao ao xam guarani plural, as leituras so as mais diversas,
sendo identificvel uma clara diviso na bibliografia no que se refere aos aspectos do
xamanismo Guarani. Enquanto parte da bibliografia aponta para o carter homogneo do
xam, outra parcela defende a existncia de uma especializao que distingue os lderes
religiosos dos feiticeiros. Esta diviso no mais das vezes pode ser evidenciada nas
denominaes assumidas (ou evitadas) pelos estudiosos51.
Qualquer tentativa de anlise da feitiaria guarani apresenta uma srie deconsideraes tericas e metodolgicas a serem levadas em con ta: quais so as
possibilidades de generalizao ou particularidade dos elementos relacionados ao complexo
xamnico se tratando das diferentes parcialidades? Quais so os pressupostos a serem
assumidos em uma comparao entre o observado em campo e os dados sobre as populaes
Guarani e Tupi antigos presentes nos relatos coloniais? Com o intuito de perceber as
semelhanas e diferenas destas formas de xamanismo busco dados comparativos tanto nas
etnografias contemporneas quanto nas crnicas coloniais, confrontando-os com os dados da
minha prpria etnografia.
Se em alguns momentos as fronteiras mesmo que fluidas apresentam distines nas
formas de xamanismo, estas parecem coexistir e dialogar no complexo socio-cosmolgico
guarani. Ainda no so to claros para mim os limites das especificidades e generalizaes
relacionadas ao estudo das diferentes parcialidades (Guarani) e grupos (Tupi e Guarani),
sej am ele s h ist r ico s o u e tn ogrficos. Evidentemente, devido caracterstica
descentralidade atravs da qual se organizam estes grupos, existem diferenas que podem
ser observadas mesmo no interior de uma parcialidade tnica. A meu ver esta diversidade
por vezes se assemelha a um c aleidoscpio de possibilidades que ora convergem, ora
divergem, numa dinmica prpria e difcil de ser acompanhada pelos mpetos do etnlogo.
50 Traduzido por o feiticeiro e o lder religioso.51 Paj, xam, feiticeiro e curandeiro so algumas das denominaes mais comuns.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
27/75
- 2 7 -
2.1 Denominaes do feiticeiro
Entre os Mby nas terras indgenas ao leste do Rio Grande do Sul, as denominaes
mais comuns referentes aos feiticeiros so oapva va' (os que fazem trabalhos no corpo),
porovaky' (os que ferem furtivamente aos prximos)52 e a mais freqente delas,
imbavy'kyva'53 (os que brincam com a vida). J os Apapcuva (Nhandeva-Guarani) da
obra de Nimuendaju54 utilizavam a palavra mojry (senhor do veneno55) ao se referirem ao
feiticeiro. Ainda outra denominao utilizada pelos Nhandeva (Xirip) para designar o
feiticeiro, opongava, foi registrada por Chase-Sardi56. H de se notar tambm alguma
semelhana entre esta palavra e a expresso Mosseu y gerre documentada em 1557 pelo
viajante francs Jean de Lri57 junto aos Tupinamb. Em seu glossrio constitudo emfrancs quinhentista a partir da fontica das palavras Tupi Lri registra:
Mosseu y g err e. Siginifica guardador de remedio; ou a quempertence o remedio; e uzam dessa expresso, quando querem xamaruma mulher feiticeira, ou que est possessa do espirito mo; poismosseu remedio; e gue rra pertenas(grifo meu)38.
Para os atuais Mby-Guarani, mojry em si no possui sentido negativo, sendo
compreendido por eles simplesmente como av dos remdios. Assim, elucidativo que
uma parte dos significados do termo registrados por Lri no sculo XVI seja semelhante
quela encontrada entre os Mby da Teko Jata' ty no incio do sculo XXI.
O termo pay (ou abape) registrado por Montoya58 no sculo XVII como sendo o
equivalente guarani a feiticeiro, possui outro sentido para os Mby atuais do Sul do Brasil.
No sendo qualquer denominao ligada ao xam, lder religioso ou feiticeiro, paj59 uma
categoria mica referentes potncia (saberes-armas), os preceitos da feitiaria, conhecidos
no s necessariamente pelos feiticeiros, mas colocados em prtica apenas por estes.
52 Meli, (1985, p. 317).53 Este o motivo pelo qual opto por empregar no mais das vezes esta denominao.54 Nimuendaju (1987, p. 63 e 93).55 Idem (1984, p. 73). Em nota, os tradutores Viveiros de Castro e Charlote Emmerich registram que Nimuendaju em seu
texto original faz clara distino entre duas classes de xams: O Medeizimnann quando se refere ao principal/curador eo zauberer remetendo-se ao feiticeiro. Infelizmente estas distines se perderam na traduo para o portugus.
56 Chase-Sardi apud Pissolato (2006, p.168 e 169).57 Em Istria de uma viagem feita terra do Brazi por Joo de Leri traduzida em linguagem verncula por Tristo de
Alencar Araripe. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro n.52 (80), 1889 p. 111 - 372.58 Montoya (1876, p. 261).59 Kracke apud Langdon (1996, p.27) utiliza o conceito de possuidor de poder como traduo para a palavra paj.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
28/75
- 2 8 -
Rejeitando o uso do termo paj, Toninho definia-o comoinominvel, afastando-o de seu universo verbal, como palavra debranco e lado ruim do curandeiro. Meu interlocutor explicou-me
que o f eiticeiro era um grande sbio, um xam, que adquirindoconhecimentos-fazeres malficos a fim de combat-los e domin-los, utilizava-os para propsitos benficos, atingindo os indivduos ea sociedade60.
Considera-se um feiticeiro todo aquele que faz uso das palavras malignas e das
magias prejudiciais. O simples conhecimento dos procedimentos da feitiaria por parte de
uma pessoa no encarado como algo essencialmente ruim, que est es so de
conhecimento mais ou menos comum dos kara e, inclusive, empregado nos procedimentos
de cura, principalmente, inclusive ao mesmo tipo de mal que podem causar61
. No entanto,quando algum faz uso desses conhecimentos torna-se agente e tambm vtima de seus atos,
deixando-se levar pelo yvy te ko axy (os caminhos/modos imperfeitos de um mundo
imperfeito).
Entre os Guarani (ao menos entre estes Mby e Nhandeva com os quais realizei meu
campo), os feiticeiros existem para alm dos sistemas de acusaes 62 instaurados nos
momentos de tenso social.
O Julio muito meu amigo, meu amigo mesmo, mas ele faz coisaruim. Todos sabem que ele faz. Ele um porovaky', apesar de sermeu amigo, eu sei. Uma vez ele quis me ensinar. Ele disse se vocquiser, voc vai aprender tudo como se faz. Eu no quis, no gostodessas coisas, no trazem coisas boas. Ele nunca pra, est sempreindo embora, ningum sabe onde ele foi parar63.
Atravs de relatos, alguns pressupostos com relao feitiaria so colocados
prova: o feiticeiro longe de ser uma pessoa anti-social, encontra-se integrado nas redes de
parentesco e afinidade. Apesar do tabu da feitiaria, algumas pessoas entre aquelas quelhes so mais prximas podem ter mais ou menos noo dos feitios lanados por este64;
60 Cicarone (2001, p. 210).61 Nesse sentido um feiticeiro s seria capaz de curar os males provenientes de ataques considerados feitiarias, no
estando apto para realizar outras formas de cura.62 As questes referentes ao sistema de acusaes entre os Guarani sero abordadas posteriormente no sub captulo 6.2
desta mesma monografia.63 Trecho do relato de um jovem Mby registrado em caderno de campo (07/11/2005). O nome original da pessoa citada
foi substitudo por um pseudnimo.64 Outro relato registrado (11/07/2005), um de meus informantes narra a ocasio em que o mesmo feiticeiro citado acima
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
29/75
- 2 9 -
longe de ser uma figura restrita a um passado remoto, quase mtico, o feiticeiro guarani pode
ser encontrado tanto nas alde ias mais afastadas, como naquelas prximas aos grandes
centros urbanos.
2.2 Os lderes religiosos e suas denominaes
As crnicas coloniais no deixam dvidas em relao influncia de alguns xams
no contexto colonial, uma vez que esto repletas de relatos nos quais xams poderosos e
profetas peregrinos, atravs do poder das palavras, atraiam multides em suas andanas.
Carahbas, caravas e caras estes homens que estavam presentes tanto entre os
Tupinamb quanto entre as populaes Guarani continente adentro possuem certo
destaque nos relatos de Yves d'Evreux, Montoya, Lozano, Nobrega, Tevet e Lri, alguns dos
quais consideraram to grande e to ameaadora sua fora que no poupavam esforos
contra estes arautos do demnio.
Ironicamente, alguns grupos Guarani e Tupi atriburam aos europeus reconhecendo
nestes ltimos, talvez, uma origem divina os mesmos nomes pelos quais chamavam seus
grandes profetas que estes europeus tanto demonizaram.
Os brasileiros [entenda-se: os tupi] chamavam carayba queles quetem virtude de fazer milagres, por isso deram esse nome aoseuropeus recm-chegados, j que viam aqueles a rtefatos, an tesdesconhecidos por eles e que lhes pareciam superar as foras danatureza. Por aqui tambm os guaran, cuja lngua muito parecidacom a brasile ira [entenda-se: tupi], aos espanhis, assim comoquaisquer europeus os chamam at hoje caray65.
Ainda ho je entre o s Aw Guaj e o s Tenetehara, grupos Tupi no estado do
Maranho, assim como entre os Pa Tavyter (Kaiow-Guarani) no Mato Grosso do Sul,
Kara compreendido como sinnimo de homem branco, ocidental. Para os falantes do
guarani paraguaio, ka ra uma forma respeitosa de tratamento significando senhor. Este
fato ltimo denota a forma como as elites coloniais se aproveitaram das categorias mais
caras aos indgenas a fim de garantir sua dominao sobre estes.
se gaba junto a amigos e parentes do modo como asfixiou at a morte um importante kara por meio de agulhas demadeiras introduzidas atravs de feitios em sua garganta.
65 Dobrizhoffer apud Meli (1981, p. 165).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
30/75
- 3 0 -
Os ndios, batizando-se ganhavam o nome de Kara, mas narealidade no entravam na sociedade dos novos kara [entenda-se osocidentais], os quais j haviam conseguido reter para si o significado
exclusivo que no desejavam compartilhar com os outros: o de sersenhor, o de merecer respeito, o de ser superior e o de ter e poder,exigir submisso e o trabalho necessrios para eles
66.
Diferentemente do s Pa Tavyter, os Mby-Guarani no Guair cujos cantos e
palavras inspiradas foram objeto de estudo para Cadogan67 , assim como os atuais Guarani
do leste do estado do Rio Grande do Sul, reconhecem a palavra kara como denominao
referente aos Opygu (os que habitam a casa de cerimnias), seus respeitados lderes
religiosos. Entre os Mby o termo parece ter mantido parte de sua semntica pr-colonial,
no possuindo qualquer vnculo com a figura do homem-branco ao qual chamam uru.
Ao se referirem s denominaes de seus lderes religiosos, os Apapocuva dividem-
nos hierarquicamente da seguinte forma: Os a nd er (nosso pai) e seu equivalente
feminino, andec (nossa me) e os pa68. Os ander e andecy so os dirigentes das
danas-cantos rituais, reconhecidos no espao ritual pela posio dianteira que tomam com
relao as suas fileiras69. Pa aquele denominado (na traduo de 1987) paj-principal, o
grande entre os ander, e o nico capaz de realizar o emongara ou Nimongara70
(longo canto solo ritual).
Em A Experiencia religiosa Guarani, Bartolomeu Meli refere-se igualmente
palavra pa', dando-lhe, no entanto, outro significado. Ele o vincula figura do lder (pai) de
uma famlia extensa, um homem de respeito, talvez ancio, com algo de xam e de profeta
(...) que rene em sua casa numerosos genros e outros parentes chegados71. Meli registra
tambm o termo Kara , s que neste contexto referindo-se ao grande lder religioso de
vrias famlias extensas, sinnimo de pa' guau72; profeta-vidente capaz de entrar em
contato com as deidades na busca pelos nomes das crianas. Dessa forma,
66 Meli (1981, p. 167).67 Cadogan (1959)68 No entanto, alguns autores entre estes Nimuendaju, traduzem-no como 'pai'.69 Idem (1987, p. 74).70 Nimuendaju (1987, p. 80).71 Meli (1989, p. 341).72 Tambm na crnica de Eve D'Evreux registra-se o termo 'pagy guau' traduzindo-o como 'grande xam' (os mesmos
que recebiam o ttulo de cara) D'Evreux Apud Clastres (1975, p . 37), da mesma forma em Bartolom (1991, p.135)entre os Av Katu Et (Nhandeva-Guarani no Paraguai).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
31/75
- 3 1 -
As duas figuras pa' e kara apesar de tudo, no se contrapemnecessariamente; juntas representam uma forma de sociedade e umideal de pessoa em que a reciprocidade econmica serial geral e
plena e cada qual possa alcanar o estado de perfeio, numa terraonde no h males nem morte73.
Pissolato identifica quatro tipos distintos vinculados funo de liderana religiosa
entre os Mby, no excludentes entre si. o kara o principal opora' i va'e (cantor-rezador)
da comunidade (no sendo necessariamente o nico); tambm o opita'i va'e (curador
atravs do cachimbo) e o nico xam capaz de realizar o batismo das crianas. Auxiliar dos
Kara, o yvyraija74 (senhor dos bastes-insgnia de madeira) o principal tocador do
popygu (bastes-insgnias) e o principal tocador do popygu (bastes-insgnias), bemcomo outros instrumentos sagrados; os que assumem esta funo, por vezes esto em estgio
de preparao para serem os prximos kara75. Existem ainda os especialistas em curas a
partir dos remdios da mata que podem ou no se r k unh kara ou kara: estes so
denominados Ipa kaaguy va'e (aqueles que curam atravs dos remdios da mata).
2.3 Os que sabem e os que fazem
Assim como o termo shaman originalmente tunguska-siberiana, paj uma palavra
de origem tupi-guarani que aps ter sido ressignificada, foi incorporada s formas ibricas (e
eurocentradas) de classificao como denominao prpria a diversas formas de
sacerdcio76, papis religiosos observados na frica, na sia, na Amrica e na Oceania.
Co m o incio dos estudos acadmicos nesse campo, tanto a palavra paj como
shaman foram assumidas como conceitos analticos pelos pesquisadores, que inicialmente
no compreenderam o carter generalizante de suas utilizaes. Deste uso decorre uma srie
de mal-entendidos permeando centenas de anos de registros escritos relacionados ao
xamanismo.
Apresentando uma heterognea do fenmeno do xamanismo j no perodo colonial,
73 Idem (1989, p. 342).74 Tambm registrado por Montardo (2002, p. 259).75 Pissolato (2006, p. 288).76 Este termo deve ser entendido no seu sentido mais amplo.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
32/75
- 3 2 -
Losano distingue os xams guarani do perodo colonial em trs categorias: os curandeiros,
os profetas e os feiticeiros.
Os curandeiros possuem a arte de chupar [fingindo] possuir o poder de curar as
doenas chupando as partes doentes [retirando o] espinho, fragmento de osso ou verme que
trazia escondido em baixo da lngua77. J os profetas, que detinham autoridade muito
maior que todas as outras (...), tentavam persuadir a populaa de que eram de origem
suprema (...) Passavam por autnticos profetas (...) Eram considerados como santos,
obedecidos e venerados como deuses78. E, por fim, os feiticeiros, de ao mais perniciosa,
pois os que a exercem so familiares do demnio (...) consultam essa apario quando
querem enfeitiar algum; para faz-lo procuram diversos objetos suscetveis de provocar omal (...) para trespassar o corpo de dores79.
Tambm Lry divide pajs e carabas entre os Tupinamb...
preciso saber que eles acolhem certos falsos profetas a quemchamam Carabas, que andam de aldeia em aldeia (...) e assim fazemcrer que, por se comunicarem com os espritos, podem no apenasdar fora a quem desejarem (...), mas ainda que so eles que fazemcrescer as grossas razes e os frutos que, como eu disse em outrolugar essa terra produz. E toma a precauo de explicar que no sedeve confundir os carabas com ... uma espcie de embusteiros que
tm entre si chamados Pajs que equivale a barbeiro ou mdico80
Na mesma obra Lry registra ainda um outro termo em seu glossrio, mossou y
gerre81, segundo ele empregado como denominao do feiticeiro, bem como referncia a
algum (uma mulher) que se encontra em estado de possesso por um esprito maligno.
Ambos os autores traam distines claras ao tratarem das prticas dos diferentes
tipos xams, diferentemente de boa parte da literatura jesutica deste perodo, na qual os
xams so genericamente tratados por feiticeiros.A etnografia de Miguel Alberto Bartolom entre os Ava Kat u Et (Nhandeva-
Guarani) do Paraguai, aponta igualmente para um carter 'homogneo' e ambguo do
77 Losano Apud H.Clastres, Excertos de H.Clastres (1975, p. 37).78 Losano Apud H.Clastres, Excertos de H.Clastres (1975, p.39).79 Idem (1975, p. 37).80 Lry Apud H.Clastres, Excertos de H.Clastres (1975, p. 38)81 Previamente citado na pgina 27.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
33/75
- 3 3 -
xam82. Segundo este autor no existem outras distines que no as de cunho hierrquico.
Assim sendo, o xam Nhandeva considerado como tipicamente ambivalente. Por outro
lado, Bartolom reconhece uma disparidade entre a forma de atuao dos xams de menor
hierarquia e as posies tomadas pelo pa' guasu. O emprego de ataques xamnicos entre
estes grandes lderes xamnicos descrito como rarssimo pelo autor, deixando clara a
improbabilidade que um pa' guasu atue desta forma83.
Outros autores como Meli, Grnberg e Grnberg84 entre os Kaiow, e Cadogan85
unto aos Mby, identificam uma relao de oposio entre os Pa'/anderu e Kara em
frente aos pay'va. Este ltimo chega ainda a situar o feiticeiro Mby como uma classe
separada, inspirada pelo mba'e poxy (ser furioso, substncia de fria), arand va (que usaa m cincia) em detrimento de seus semelhantes.
Se h mdicos que curam pela palavra com suas rezas e cantos, htambm os sabidos (mba'ekua), que usam seus conhecimentospara fazer o mal (...) Muitos deles usam elementos de magia negra(...) para surtir os preteridos efeitos daninhos fazem-se acompanhartambm de rezas de fazer mal86.
Os dados que obtive em campo referentes a este aspecto do xamanismo apontam
para uma terceira possibilidade diversa da bibliografia, contrapondo-se tanto noo de umxam homogneo, quanto quela posi o que def end e a e xis tn cia de papis
marcadamente distintos: esta terceira possibilidade pautada no princpio de transformao
caracterstico dos complexos xamnicos, a partir do qual o lder religioso e o feiticeiro,
compartilhando alguns preceitos em comum, podem ser compreendidos e distinguidos com
base na inclinao conseqente de seus atos e escolhas que toma em vida. Esta inclinao
delimita as possibilidades de converso de um kara em feiticeiro ou, na situao oposta, de
um porovaky' em um lder religioso.
As categorias de distino entre o feiticeiro e a liderana religiosa no esto dadas no
nvel dos conhecimentos que seriam particulares a cada um. No considerado um feiticeiro
82 No mesmo sentido algumas observaes de Nimendaju (1987, p. 63) sobre o feiticeiro anderyquyn.83 Bartolom (1991, p. 135).84 Meli, Grnberg e Grnberg (1976, p. 221-222, p. 249-251)85 Cadogan (1959, p.91).86 Meli (1989, 317).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
34/75
- 3 4 -
aquele que meramente conhece a cincia maligna (paj va ou arandu va). Espera-se
inclusive que os prprios kara dominem os saberes referentes feitiaria com a finalidade
de combat-la antes de se aprofundarem em outros saberes inspirados.
Nhander quer que ele aprenda, no pra fazer, mas pra cuidar.Cuidar dos parentes. Ento o kara sabe como faz com a agulha eouve o canto do paj'va. Mas no canta igual, mas no faz igual.Kara no pode ser bravo (...) Mas no usa, se usar pega outrocaminho. (...) Desde o comeo, quem no pega o caminho certo jera. (...) Se eles cometem umas 2 ou 3 vezes os erros, j era87.
considerado um feiticeiro todo aquele que para alm de conhecer, emprega a m
cincia contra as outras pessoas, atacando-as furtivamente. A distino entre a lideranareligiosa (kara) e o feiticeiro (imbavy'kyva') reside justamente na ao, no modo de
proceder. J que ambos conhecem/possuem o paj vai 88 (saber/meio maligno), so
considerados ipaj va'e89 (aqueles que dominam/sabem fazer paj) e mbaekua90 (os
sabidos, conhecedores).
Munidos desta sabedoria, ambos esto preparados para limpar os males que so
potencialmente capazes de inferir. No entanto, o conhecimento de limpeza do feiticeiro est
limitado a estes mesmos males , enq uanto o pod er de cura d o kara geralmenteconsiderado muito mais vasto, abrangendo todas as chamadas doenas de guarani ou
doenas de ndio91.
Idealmente, espera-se que um kara jamais utilize seu conhecimento para inferir o
mal. No entanto, o uso dos saberes referentes aos ataques xamnicos parece ser sempre
empregado de forma relacional. Conseqentemente, em contextos de grande discrdia, a
figura do kara torna-se motivo de grande desconfiana. Tambm lideres religiosos no
esto isentos e nem lhes parecem vetados de sentimentos de averso, dio e vingana, jque so considerados igualmente como parte da yvy rupre koax: a terra de princpios
87 Trecho da fala de um de meus interlocutores Mby, registrada em caderno de campo (09/05/2005).88 Meli (1989, p. 317), Pissolato(2006, p. 166) e grafado ainda pay va - por Meli & Grnberg (1976, p. 221-222; 249-
251). Este termo parece ter se constitudo em contraposio ao ka'av (tambm chamado mbaj e paj) uma classe defeitios considerados lcitos e relativamente inofensivos. Ver pg 41.
89 Dooley (1998, p. 138).90 Schaden (1974, p. 126), Meli, (1985, p. 317).91 Assis (2006, p. 133 e 134) e Pissolato (2006, p.170).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
35/75
- 3 5 -
enganosos, feia, doente, imperfeita, mortal.
Se todo kara um feiticeiro em potencial, o contr rio no necessariamente
verdade; o feiticeiro pode ser qualquer um (at mesmo um jovem ou uma criana) que,
conhecendo apenas os saberes primrios da constituio de um kara justamente queles
referentes aos atributos da feitiaria , passa a inferir o mal, sendo motivado pela inveja,
dio e/ou desejo de poder, inspirando-se por entidades que no as divindades do panteo
Guarani92. Logo, as preocupaes no seriam decorrentes da ambigidade da liderana
religiosa, mas das possibilidades de feitio inerente a todos os Guarani, potencializadas
pelos saberes do kara.
Desta forma, reconhecida em toda a liderana religiosa a potencialidade para se
tornar um feiticeiro. Entretanto, os kara que fazem uso desse conhecimento de forma
negativa so tidos como raros, na medida em que seus feitos acabariam por distanci-lo da
busca pelo estado de ikandire (imortalidade), aguyje (perfeio). Ou seja, do estado de
divindade.
Tm uns que querem chegar antes, querem alcanar aguyje, mas noalcanam, passam bem longe, se perdem muito cedo no caminho.(...) s vezes eles nem sabem, acham que esto no caminho certo,
mas no esto. D pra saber quando isso acontece, a pessoa vaificando brava, ficando brava por qualquer coisa93.
Apesar de improvvel, possvel tambm que um(a) imbavy'kyva' abandone a
prtica da feitiaria e aceite seguir o longo caminho do aprendizado e da inspirao junto s
divindades, vindo a se constituir enquanto kara ou kunh kara. Tambm no parece
existir qualquer tipo de veto este processo de transformao, a no ser a aquele enunciado
pelas lembranas de suas possveis vtimas e os parentes destas.
No tive contato com nenhum relato sobre as implicaes cosmolgicas destas
converses, no entanto possvel supor que exista algum tipo de conseqncia, j que
fabricar ataques mgicos contra outras pessoas considerado pelos Mby uma violao
grave dos bons preceitos de conduta. Os homens e as mulheres que fazem uso de feitios
sendo ou no lderes religiosos provavelmente sofrem restries na busca do aguyje.
92 Pretendo tratar este aspecto de forma mais aprofundada nos captulos posteriores.93 Trecho do relato de um dos meus interlocutores Mby, registrada em caderno de campo (09/05/2005).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
36/75
- 3 6 -
3 Os caminhos do feiticeiro
3.1 O teko a'
Qual mais rpido, o caminho bom ou o caminho ruim? Esta pergunta retrica foi
a resposta dada por um de meus interlocutores diante dos meus questionamentos sobre como
se constitui um feiticeiro.
Para os no familiarizados com as metforas relacionadas cosmologia Guarani, esta
pergunta necessitaria ainda de alguma contextualizao. No entanto, para um Mby, o
questionamento faz referncia direta a aspectos scio-cosmolgicos prprios do teko (modo
de ser e proceder guarani)94, estritamente vinculados ao ideal de sua religiosidade: Na busca
em vid a pelo estado de deidade (ou de semelhana aos deuses) tornar-se ikandire(imortal)95, potencialidade inerente a todos os seres humanos , o caminho a ser percorrido
no o mais reto, nem o mais curto e no deve nunca se bifurcar96 nem ceder aos obstculos
criados a fim de testar a mby'aguaxu (fortaleza espiritual) daquele que opta por trilh-lo.
No mito de criao mby, Nhander Pap (Nosso nico Pai) caminha para fora da
Yvy Tenond (a Primeira Terra) aps o conflito com Nhandexet (nossa me verdadeira).
Esta, grvida, percorre uma longa jornada buscando por Nhander Pap, guiada por seu
filho Nhamand (o Deus Sol), que ainda no nascido lhe indica os bons caminhos. Eis queNhamand, da barriga de sua me, deseja uma flor surgida na beira do caminho. Ao peg-
la, Nhandex acaba sendo picada por uma vespa, tornando-se rspida com seu filho que
desde ento se cala. Em seu caminhar, Nhandex toma o rumo errado, afasta-se das pegadas
de Nhander Pap e caminha em direo a casa da av das onas, onde acaba sendo morta.
Nhamand, nascido de Nhandexet j morta, cria seu irmo Jaxy (o Deus Lua) e com ele
caminha pela terra primeira nomeando as coisas, povoando os espaos e guaranicizando o
mundo para, ao fim de sua jornada, encontrarem o grande Pai e receberem deste as insgnias
dos kara97.
94 Nimuendaju (1914, p. 28).95 Cadogan (1959, p.18), Clastres (1987, p. 85).96 Em alguns trechos dos cantos coletados e traduzidos por Lon Cadogan, presentes em seu Ayvu Rapyt, existem
referncias a preocupao com a possibilidade da bifurcao do amor que impossibilita alcanar valor e fortaleza(Cadogan (1959, p. 92). A palavra amor tal qual empregada na traduo de Cadogan, busca dar conta do conceitoguarani de mbyaguaxu ou mboray, ambos os termos sero abordados futuramente neste texto.
97 Meli (1985, p. 326).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
37/75
- 3 7 -
Figura 1: Vixrang Indaj (imagem de madeira da guia) Em sua base trsreferncias simblicas. Do lado esquerdo a l etr a A apropriada do alfabetoocidental. No centro, um grafismo relacionado ao teko a' e, direita, o desenhode uma palmeira Pind, smbolo das divindades, da imortalidade, presente nocentro de cada um dos yambs (cidades das nhe ou 'paraso'), formando, assim,o eixo em cruz responsvel pela sustentao do mundo. Lido da esquerda para adireita (forma comum na tradio ocidental) simboliza a trajetria daqueles queaceitam trilhar o teko a' na busca pelo aguyje. Existe somente um meio de sealcanar a deidade pelo teko a': buscar entre os muitos caminhos (modos de ser ede proceder) o tek por (belo caminho sagrado revelado pelas divindades).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
38/75
- 3 8 -
Ao pedir a flor na qual se escondia a vespa, Nhamand estabelece uma espcie de
teste/obstculo no qual sua me se perde ao tornar-se rspida com o filho devido a picada.
Nhandex deixa, ento, de ouvir as palavras de Nhamand, que se cala. sua frente, o
caminho se bifurca, e ela acaba por escolher, entre as duas possibilidades, aquela que a
levar em direo a morte. Esta a descrio do surgimento do primeiro teko a' ainda na
terra primeva (yvy tenond). Desde ento todo aquele que busca se tornar uno com sua
partcula divina deve passar pelos obstculos do longo caminho tortuoso em direo
Nhander.
Apontado como central na cosmologia guarani, o termo teko a' me foi apresentado
atravs de inmeras tradues: desafio ou prova98, a sombra do modo de ser, a vida dedifcil compreenso/aceitao e ainda o caminho dos obstculos. Cada humano possui seu
prprio teko a, um t rajeto por entre as imperfeies (-eko va), riscos e provaes
distintas de todas as outras.
No existe no teko a' uma rota especfica a ser aprendida; chega-se ao fim na
medida em que aquele que trilha o caminho se esquiva da multiplicidade de obstculos. Em
contrapartida, os obstculos tornam-se mais difceis e numerosos na medida em que o fim se
aproxima. Assim, o caminho sempre construdo por seu caminhante nas escolhas que faz,nas posies que escolhe em referncia a outras humanidades, mantendo vigilncia
permanente para que o caminho no se bifurque.
Meu av Marcelino estava quase alcanando [o aguyje]. Ele cantavae danava. E na palma da sua mo caia orvalho e caia umandal[granizo na fala sagrada e secreta dos Kara] e ele sabia como equando iria chover. Minha av possua um tata'y [madeira em fogo]que nunca se apagava. Mas ento meu av se perdeu no teko a.Uma outra mulher entrou na vida dele e ele se deixou perder, ento
ele no alcanou [o aguyje]99.
Percorrer o teko a nos preceitos do teko por (sagrado/belo modo de ser) um
98 Dooley (1998, p.32) registra -eko a' v. t. direto. Por prova: jajoeko a' provamos, desafiamos uns aos outros. (De -a'.).
99 Trecho do relato de um dos meus interlocutores Mby, registrado em caderno de campo (07/11/2005). O nome originalda pessoa citada foi substitudo por um pseudnimo.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
39/75
- 3 9 -
empreendimento na busca por um maior estado de compreenso e perfeio, o aguyje. Uns
poucos aps uma vida de caminhar, poucos mesmo entre os kara, que atravs de suas
ornadas espirituais por outros nveis do cosmos na infra-humanidade100 (animal) ou na
meta-humanidade (divina)101 - conseguem seguir os passos deixados pelas divindades.
3.2 O desafio do caminhar-viver
So muitos os caminhos curtos presentes no teko a'. Ao se enveredarem por estes
outros caminhos, as pessoas se distanciam igualmente das divindades. A metfora do
caminho ilustrativa, tratando-se de um povo que tem em sua tradio o caminhar como um
meio de se distanciar/resolver os problemas. A vida caminhar, para superar a condio de
mortal necessrio se distanciar o mximo possvel da yv rupre kax na constante
busca pela Terra sem males (yvy maraey)102.
Nesta busca a qual constitui o caminhar, os humanos so constantemente ameaados
por sua parcela de imperfeio, pelas paixes da carne e do sangue que podem o levar ao
epot (animosidade) e a ak te' (avareza); pela fria que ao mesmo tempo substncia e
entidade (mba'e poxy); pela morte do corpo e suas conseqncias sobre a alma telrica
(angu). Superar esse caminho de provaes, eliminar os traos de imperfeio, tornar-se
uno com seu nhe (alma-palavra-divina), estrutura leve (esqueleto) que ergue (anima) os
corpos, alcanar em vida um estado meta-humano de concretude transcendente da yvy
marae'y seria atingir ao fim do caminho o status de deidade.
Compreende-se o lugar aparentemente paradoxal ocupado pela vidasocial no pensamento dos guaranis, ao mesmo tempo como signo desua desgraa e signo de sua eleio: define-se como a mediao
100 Opto aqui por ut iliza r os conceitos meta-humanidade (metacultural), humanidade (cultural) e infra-humanidade(infracultural) na diviso dominial do cosmos, buscando assim abarcar a idia de muitas naturezas e uma nica cultura,de humanidades existentes lcus apartados, compartilhando formas de socialidade semelhantes. Desta forma, ahumanidade (Ava-Mby) encontra-se no entre-lcus em contraposio s outras humanidades. (Viveiros de Cast ro1986 Apud, 2002).
101 Em sua cosmologia, os Mby-Guarani apontam para a existncia de sete ou mais domnios (celestiais) sobrepostos.Estes so reconhecidos como os domnios das divindades, dos anh, dos senhores guardies dos elementos daexistncia, em uma traduo cultural, Parasos. Cadogan (1959, p. 29).
102 A gua parada denominada gua morta tambm entre os Mby. Esta gua atrairia ou possuiria angu, da mesmaforma que os cemitrios. Dessa forma, considerada viva e boa toda gua que percorre um caminho, toda guacorrente. Em consonncia com o que afirma Assis (2006, p.127).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
40/75
- 4 0 -
necessria entre um aqum (a natureza, que imediatez) e um alm(o sobrenatural que ultrapassagem). Seu ser duplo situa destamaneira os homens entre duas negaes possveis de sociedade103.
Hlne Clastres compreende que a natureza (que opto por tratar como infra-
humanidade) por excelncia o espao/tempo do imediatismo, o alm (ou meta-
humanidade) o espao/tempo da deidade que se caracteriza pela transcendncia. Nesse
sentido, a humanidade (o que a autor a chama de socia l) compreendida como um
locus/processo em disputa entre o imediatismo e a transcendncia.
Afastar-se dos preceitos da transcendncia, no entanto, no transforma uma pessoa
em feiticeiro. A prevalncia do teko axy ku (...) manifestada por um comportamento
[considerado] despido de justia (mborayu), despreocupado com as regras de
reciprocidade104, mesmo se contrapondo aos princpios da religiosidade guarani, no
implica necessariamente em inferir o mal atravs de feitios.
apenas ao realizar os trabalhos ocultos, somente empregando o mal-dizer inspirado
que algum passa a ser considerado um porovaky'. O feiticeiro no somente aquele que
se distancia do teko por (belo modo de ser e de proceder); tambm um cmplice
consciente das foras consideradas responsveis por esta transgresso. As palavras ruins, os
cantos de dio inspirados/orientados pelos imba'e poxy (furiosos), pelos angu (espritos
dos mortos) e pelos anh (demnios) so as armas das quais dispe contra aqueles que
considera seus inimigos.
As relaes entre o feiticeiro e essas entidades auxiliares so sempre ocultadas.
Geralmente, quem emprega a feitiaria o faz s escondidas, dissimulando suas reais
intenes e os mba'evyky (objetos que brincam [ameaam] a vida/objetos de feitios) as
insgnias do feiticeiro, provas materiais de sua ao so escondidos e jamais exibidos de
boa vontade a outras pessoas.
103 H.Clastres (1987, p . 94).104 Idem (1987 p. 96).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
41/75
- 4 1 -
4 Tatu pek105: Os artefatos de feitiaria
Os Guarani nas aldeias do Rio Grande do Sul afirmam que o imbavy'kyva' pode
ser reconhecido ainda nos dias de hoje, na Argentina e no Paraguai, assim como nos tempos
antigos, por portarem sua tatu pek, uma bolsa confeccionada com carapaa de tatu
costurada e sustentada por tiras de couro106, na qual guardam seus mba'e 'va (objetos de
maldade) ou mba'evyky .
A opinio mais comum sobre a origem das enfermidades a de queindivduos maus, especialmente feiticeiros de tribo estranha ou atda prpria gente, abusam de suas faculdades e foras extraordinriaspara fazerem entrar, por via mgica no corpo de outrem um objetoou substncia responsvel pela molstia o quid malignum (...) Seentrou no corpo em conseqncia de magia negra, o curador nadaconsegue fazer enquanto no descubra o responsvel, a fim de atac-lo por meio de contrafeitio107.
To perigosos quanto os seus artefatos e empregados em conjunto com os mesmos,
nhe va (os cantos e palavras malignas) com as quais o feiticeiro busca atacarfurtivamente suas vitimas108 - so reveladas queles que tem paj (saber/arma mgica), que
possuem ar and va (sabedoria maligna).
105 Traduo: bolsa de carapaa de tatu.106 O Mby autor do desenho acima, afirma ter visto uma destas bolsas de carapaa de tatu, objeto particular do feiticeiro,
em fotografias coloridas trazidas do Paraguai terra indgena de Guarita, no incio da dcada de 1990.107 Schaden (1974 p. 124).108 Cadogan (1959, p.90).
Figura 2: Desenho de Bolsa confeccionada com a carapaade tatu de cemitrio, um dos smbolos do feiticeiro. Ondeeste guarda seus objetos de maldade.
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
42/75
- 4 2 -
4.1 Nhe va109
Para o guarani a palavra tudo. E tudo para ele palavra 110. No tarefa fcil
reconhecer a amplitude desta afirmao no mbito destes grupos. Se o prprio segmento
divino contido em cada homem e mulher so palavras e ao mesmo tempo almas, no seria
absurdo afirmar que outras palavras tambm podem se torna r substancialmente algo
prximo a espritos.
O mal-dizer entre os Guarani supera a esfera de uma simples ofensa comunicada. Tal
qual as divindades, as palavras proferidas pelos humanos tambm so gerativas. Todo mal-
dizer por si s uma espcie de maldio, causando um impacto considervel no cotidiano
guarani. No sendo do controle de nenhum especialista, o mal-dizer proferido por qualquer
um, mesmo sem a intencionalidade de uma agresso mgica ilcita, pode ser considerado
uma forma de ataque oculto.
Ao escutar a narrativa do filho, dona Odlia disse-lhe que j sabia,que no estava bem. Falou em fofocas e mentiras. Silvano, ento,pediu-me desculpas e esclareceu que viera ali justamente para isso,para desculpar-se por sua me , pelas coisas que ela no estavapodendo me falar. Coisas s quais era melhor eu no ter acesso (...)Falou que sua me estava sendo vtima de fofocas e de malfalares...111
Estas maldies so potencialmente menos perigosas que um outro mal-dizer, aquele
considerado inspirado e passvel de ser transformado, animado, tornado vivo e guiado pela
vontade daquele que o profere/invoca.
Bem conhecidas e consideradas so as palavras dos kara, frutos da inspirao
divina, recebidas dos pais e mes primordiais. Estas, no entanto, no so as nicas formas de
palavras inspiradas, nem so os deuses os nicos capazes de enviar aos humanos suas
palavras/cantos. Os angu112 (alma telrica que depois da morte por vezes se converte em
109 Assis (2006, p.141) traduz e' va como alma telrica. J Montardo (2006, p.54) traduz e' va fa lar mal oufalar ruim como um tipo especfico de feitio.
110 Meli (1991, p.306).111 Montardo (2006, p.54). A autora em nota explicita ainda a utilizao da expresso e' va fala r mal ou falar
ruim que entre os Guarani caracteriza um tipo de feitio, em virtude do qual a vtima dos comentrios sofremconseqncias malficas.
112 Chamado angury entre os Apopcuva. Nimuendaju (1987, p.43-45).
-
8/9/2019 O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes
43/75
- 4 3 -
assombrao), os anh (demnio) e mba'e poxy113 (objeto de fria) tambm possuem a
capacidade de inspirar