O EXPERIMENTO DE STERN-GERLACH E O SPIN DO ELÉTRON-UM EXEMPLO DE QUASI-HISTÓRIA

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XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Fsica Curitiba 2008

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O EXPERIMENTO DE STERN-GERLACH E O SPIN DO ELTRON: UM EXEMPLO DE QUASI-HISTRIA THE STERN-GERLACH EXPERIMENT AND THE ELECTRON SPIN: A QUASI HISTORY EXAMPLEGerson G. Gomes1, Maurcio Pietro cola 21UFSC/Ps-Graduao em Fsica , gerson.g.gomes@gmail .com 2USP/Faculdade de Educao, [email protected]

Resumo A proposta deste trabalho utilizar o conceito de Quasi-histria como perspectiva de anlise para a forma de apresentao didtica de contedos de fsica. Pretende-se mostrar as transformaes sofridas pelo conhecimento, desde os primeiros registros at a forma como ele aparece nos livros didticos. O contedo a ser trabalhado o experimento de Stern-Gerlach, geralmente associado descoberta do spin do eltron, e que desempenhou um importante papel no desenvo lvimento da teoria quntica no sculo XX. Analisando os trabalhos originais e utilizando alguns fatos da histria da cincia, discutiremos as modificaes sofridas por este contedo at a forma em que ele apresentado nos livros didticos utilizados nos c ursos de graduao em fsica e engenharias. Palavras-chave : Experimento de Stern-Gerlach, spin do eltron, quasihistria. Abstract The aim of this work is to use the concept of quasi history to analyze the form of didactical presentation of the physics contents. We intend to the changes made to the knowledge, since the first records by the way he appears in textbooks. The content to work is the experiment of Stern-Gerlach, usually associated with the discovery of the electron spin, and which played an important role in the development of quantum theory in the twentieth century. Analyzing the original work and using some facts of history of science, we will discuss the modifications made by this content to the form in which it is presented in textbooks used in graduate courses in physics and engineering. Keywords: Stern-Gerlach experiment, electron spin, quasi-history. 1. Introduo O conceito de spin ensinado pela primeira vez na disciplina de qumica no ensino mdio, quando do estudo da distribuio eletrnica nos tomos. Para aqueles que seguem os cursos universitrios nas reas de cincias experimentais e engenharia, este conceito reaparece ao final do ciclo bsico na chamada introduo Fsica Moderna. Para estes estudantes, e at mesmo para a maioria dos docentes desses cursos, a simples meno deste conceito faz lembrar a experincia que supostamente provou a existncia do spin do eltron, o experimento de Stern-

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Gerlach (SG): proposta pelo fsico alemo Otto Stern em 1921 e realizada em conjunto com outro fsico alemo, Walther Gerlach, entre 1921 e 1922. Um exemplo da importncia deste experimento no desenvolvimento da teoria quntica no sculo XX pode ser encontrado num consagrado livro didtico de mecnica quntica, muito popular entre os estudantes e professores (SAKURAI, 1994), utilizado tanto nos cursos graduao quanto de ps-graduao em fsica. Logo na primeira pgina o autor adverte que, ao invs de seguir uma abordagem histrica, prefere iniciar a apresentao da mecnica quntica por um exemplo que ilustra, talvez mais do que qualquer outro, "a inadequao dos conceitos clssicos ". Ele pretende, dessa forma, submeter o leitor a um "tratamento de choque", para que este perceba, desde o incio, o que significa a "maneira quntica de pensar". Este exemplo justamente o experimento de SG, que... ilustra de maneira dramtica a necessidade de abandono radical dos conceitos da mecnica clssica (SAKURAI 1994, pg. 2). ,

O experimento de SG consiste em fazer um feixe de tomos (originalmente tomos de prata) passar por um campo magntico no-homogneo produzido por um m, e analisar a deposio desses tomos em uma placa coletora na sada do m. Curiosamente, observa-se que aproximadamente metade dos tomos depositase numa extremidade da placa e a outra metade na posio simetricamente oposta, no se registrando praticamente nenhum tomo em qualquer posio intermediria. Do ponto de vista da fsica clssica, esta diviso do feixe em dois componentes bastante estranha e difcil de exp licar. poca do experimento, na dcada de 1920, a teoria quntica estava num estgio ainda incipiente, num perodo que hoje chamamos de "velha mecnica quntica", onde o que havia de mais sofisticado era o modelo atmico de Bohr, aperfeioado por Sommerfeld, mas que carecia ainda de "boas" comprovaes experimentais. justamente atrs de comprovaes que estava Otto Stern em 1921, quando props o experimento de que iremos tratar neste trabalho. 2. O experimento de Stern -Gerlach e seu contexto histrico Vamos agora apresentar um pouco da histria do experimento de SG, contextualizando os trabalhos originais para em seguida interpret-los. Salientamos que no temos a pretenso de fazer aqui um aprofundado estudo histrico do experimento, nem to pouco de esmiuar completamente os trabalhos originais. Uma boa referncia histrica MEHRA (1982). Detalhes histricos mais curiosos, como por exemplo, o episdio do charuto de m qualidade que ajudou na revelao dos tomos de prata depositados na chapa, podem ser encontrados em FRIEDRICH e HERSCHBACH (2003). O experimento de SG foi proposto originalmente para testar a quantizao espacial, i.e, se o momento angular de tomos neutros era ou no quantizado, na presena de um campo magntico externo. Para entendermos o que isto significa voltemos teoria quntica da poca, particularmente ao modelo atmico de BohrSommerfeld.

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Em 1913 Niels Bohr props o seu modelo semi-clssico para o tomo, introduzindo de forma ad hoc algumas regras de quantizao. Ele prope o modelo planetrio para o tomo, mas postula que apenas algumas rbitas (circulares e coplanares) so permitidas aos eltrons, a saber, aquelas nas quais o momento angular L do eltron um mltiplo inteiro da constante de Planck h (L = n.h/2p, n=1,2,3,...). Assim os eltrons seriam estveis nessas rbitas, emitindo radiao somente quando ocorresse a mudana de uma para outra rbita. A partir deste modelo, Bohr, entre outros cientistas, lanaram-se ao desafio de descrever corretamente o espectro discreto do tomo de hidrognio. Entretanto, medida que as medidas espectroscpicas ficaram mais refinadas, novas informaes desafiaram a interpretao de Bohr: algumas linhas espectrais, que anteriormente pareciam ser uma s, dividiram-se em vrias linhas muito prximas uma da outra, dando origem ao que chamamos de estrutura fina do espectro (DARRIGOL, 1992, pg. 102). Foi principalmente devido a este problema que Arnold Sommerfeld introduziu, em 1916, um aperfeioamento do modelo de Bohr. Ele incluiu efeitos relativsticos e considerou que os eltrons poderiam moverse em rbitas elpticas e no apenas num mesmo plano, mas em diversos planos orbitais (Sommerfeld, 1916 apud WEINERT, 1995, pg. 77 , nota 4). Assim as rbitas dos eltrons em torno do ncleo seriam quantizadas no apenas em relao ao tamanho e forma, mas tambm na sua orientao espacial, em relao, por exemplo, direo de um campo magntico externo - do alemo richtungsquantelung = quantizao da direo ou espacial (observe que isto referese a uma quantizao no espao, e no uma quantizao do espao em si). Dessa forma Sommerfeld introduziu, alm dos dois nmeros qunticos, o principal e o angular, que eram responsveis pela quantizao da magnitude do vetor momento angular L, um terceiro nmero quntico, azimutal ( ), que estava relacionado n quantizao da direo de L no espao. importante salientar que este nmero quntico azimutal no o mesmo da moderna mecnica quntica (m l ). Sommerfeld previu que deveriam existir 2n valores (n inteiro) para os planos das rbitas dos eltrons, incluindo as posies horizontal e vertical - ver (STENSON, 2005, pg. 3638) e (WEINERT, 1995, pg. 77). Com esta teoria, Sommerfeld, e independentemente Debye, conseguiam explicar certas caractersticas do comportamento de tomos em campos magnticos (e.g.,efeito Zeeman). No entanto, a teoria clssica de Lorentz-Larmor fornecia uma explicao to consistente quanto esta nova teoria quntica. E em alguns casos, como numa variante do efeito Zeeman (anmalo), ambas as teorias fracassavam (FRIEDRICH, B. e HERSCHBACH, D., 2003, pg. 54). Assim, a quantizao espacial ainda no havia sido testada diretamente. Ou seja, no havia implicaes experimentais especficas da teoria que houvessem sido medidas.1 Por conta disso,

O poder preditiv o de uma teoria considerado por muitos filsofos da cincia como evidncia forte de sua validade. Isso pois a interpretao de resultados j conhecidos pode ser feita por um processo dedutivo inverso. Alm disso, nada garante que outras teorias venham a realizar a mesma faanha. Trata-se da questo da sub-determinao experimental de uma

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vrios fsicos eminentes no acreditavam na existncia real da quantizao espacial. As declaraes de Max Born so um exemplo desse posicionamento. Eu sempre pensava que a quantizao [espacial] era um tipo de expresso simblica para alguma coisa que voc no entende. Mas tomar isto literalmente como Stern fez, isto era uma idia prpria dele... Eu tentei persuadir Stern de que isto no fazia sentido, mas ele disse- me que valia a pena tentar ( MEHRA , J., RECHENBERG, H., 1982, pg. 435, apud FRIEDRICH, B e HERSCHBACH, D., . 1998),

Peter Debye manifesta-se da mesma forma Walther Gerlach.Mas com certeza voc no acredita que a orientao [espacial] dos tomos seja algo fisicamente real; isto apenas um planejamento para os eltrons (Bachmann, 1989, apud FRIEDRICH, B. e HERSCHBACH, D., 2003, pg. 56).

Tendo isto em mente, Otto Stern props o experimento, que possua a vantagem de no envolver nenhuma medida espectroscpica. E como ele acreditava na teoria, o resultado esperado era que o feixe de tomos se dividisse em dois componentes ao atravessar um campo magntico externo. Veremos a seguir que este ponto ser transposto de maneira inversa nos livros didticos. Para a realizao do experimento, Stern utilizou um pequeno forno para evaporar tomos de prata, cujo feixe era colimado at penetrar numa regio com um campo magntico produzido por um eletrom. Ao final do percurso dentro do eletrom encontrava -se uma placa de vidro onde os tomos de prata se depositavam, tudo isto dentro de uma cmara de vcuo. A escolha do elemento qumico prata deve-se a este ser um hidrogenide, i.e, possuir apenas um eltron de valncia, e ser de mais fcil manipulao do que um feixe de tomos de hidrognio o experimento com estes tomos foi realizado mais tarde por TAYLOR (1926). O campo magntico utilizado necessitava ser fortemente no homogneo na direo perpendicular ao deslocamento do feixe. Devido a forma do im (uma cunha na parte superior e uma estreita canaleta na parte inferior), o gradiente do campo magntico no era facilmente conhecido. Como se v, o experimento de SG era aparentemente simples, mas repleto de sutilezas. Por exemplo, a suposio de que o momento magntico do tomo seria advindo do movimento orbital do eltron de valncia revelou-se, posteriormente, equivocada. Segundo Friedrich e Herschbach, ocorreu uma afortunada coincidncia (FRIEDRICH, B. e HERSCHBACH, D., 1998). Para tomos de prata, o momento angular orbital do eltron de valncia zero (e no uma unidade como presumido pelo modelo de Bohr). O momento magntico medido por Stern e Gerlach era, na verdade, o momento angular de spin do eltron. Assim eles acreditavam ter confirmado a teoria de Bohr-Sommerfeld (ver seo seguinte, o postal enviado por proposio terica. O sucesso interpretativo pois um indcio, mas no evidncia, da validade da nova proposio. Para isso, ver Bunge (1980).

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Gerlach a Bohr), mas na verdade eles trataram do nico caso em que a teoria (da poca) e os resultados experimentais coincidiam ! (WEINERT, 1995, pg. 83). Spin o momento magntico intrnseco das partculas, e parece no haver, at hoje, nenhum anlogo clssico para esta propriedade fundamental e foi proposto por Goudsmit e Uhlenbeck em 1925 (Uhlenbeck e Goudsmit, apud WEINERT, 1995, pg. 76). Um fato curioso que, mesmo aps o surgimento do conceito de spin, transcorreu algum tempo at que o experimento de SG fosse reinterpretado luz deste conceito. O primeiro trabalho a relacionar o spin ao experimento apareceu em 1927 devido a Fraser (FRIEDRICH, B. e HERSCHBACH, D., 1998, ver nota [24]), No por acaso ser este mesmo cientista o autor a mais tarde introduzir o experimento de SG em um livro didtico (FRASER, 1931). 3. Os artigos originais Os artigos originais sobre o experimento so quatro: o primeiro, de 1921, de autoria apenas de Otto Stern (STERN, 1921), onde ele prope a realizao do experimento. Os trs seguintes so em co-autoria com Walther Gerlach, e constituem-se em curtas comunicaes que visam descrever os resultados experimentais obtidos: um em 1921 (SG, 1921), e dois em 1922, (SG, 1922a,1922b). O primeiro artigo (STERN, 1921) foi recebido pela revista alem Zeitschrift fr Physik em 26 de agosto de 1921, sob o ttulo "Uma maneira de verificar experimentalmente a quantizao espacial em um campo magntico". Ele inicia pela previso da teoria quntica (de Bohr-Sommerfeld) de que o vetor momento angular de um tomo pode assumir apenas ngulos discretos em relao a um campo magntico externo, e a diferena da previso clssica, que parece suficiente na explicao do efeito Zeeman normal2. Dessa forma ele apresenta o dilema e conclui:agora, qual interpretao correta, a clssica ou a quntica, pode ser decidido por um experimento basicamente muito simples. Precisamos apenas investigar a deflexo que um feixe de tomos sofre em um campo magntico apropriadamente no homogneo ( STERN, 1921, pg. 114, traduo 'livre' nossa),

e segue a descrio da teoria deste experimento3. O segundo artigo, "A verificao experimental do momento magntico do tomo de prata " (SG, 1921), recebido pela mesma revista em 18 de novembro, tem por objetivo apenas mostrar a confirmao experimental da existncia do momento magntico do tomo de prata, sem apresentar nenhum resultado que confirme a quantizao espacial. Logo no incio os autores se justificamas pesquisas experimentais l [artigo anterior] mencionadas tiveram que ser interrompidas provisoriamente por razes externas. Seja- nos ento permitido

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Conforme mencionado, o anmalo no era explicado por nenhuma teoria da poca.

Este ponto ser detalhado na prxima seo, no comentrio feito sobre sua apresentao de um exerccio presente no livro de HALLIDAY (1991).

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comunicar rapidamente abaixo os resultados obtidos at agora, pois j nos parece haver suficiente interesse nos mesmos (SG, 1921, pg. 110) ,

e em seguida passam a descrever, sumariamente e sem apresentar nenhum esquema ou desenho, a montagem experimental.Foram feitos alternadamente nove experimentos, cinco sem campo magntico e quatro com campo magntico. Dois experimentos, um com e um sem campo, no apresentaram deposio de prata, uma vez por razes desconhecidas (obstculo no trajeto do feixe?), outra por entupimento do diafragma frontal devido a espirramento de prata derretida do forninho (SG, 1921, pg. 111).

Podemos observar aqui aspectos importantes do contexto original da pesquisa revelados. Os autores mencionam que algumas medidas no apresentaram nenhum resultado, por razes desconhecidas. Eles revelam tambm que no conheciam o grau de variao do campo magntic o, e reconhecem que necessitam aperfeioar o experimento.Dados mais precisos no so possveis no momento, por um lado pois no nos foi possvel ainda medir o valor de ?H/?z [gradiente do campo] prximo cunha e por outro lado por que no sabemos qual espessura de prata ser ainda revelada (SG, 1921, pg. 111).

A concluso do artigo "otimista", embora houvesse poucos elementos para isso.Pelo que vimos at aqui no duvidamos que, com experincias com feixes de dimetro menor e mtodos de revelao melhores, seremos capazes de poder afirmar positivamente a existncia da quantizao espacial. O resultado desse trabalho a verificao de que o tomo de prata possui um momento magntico (SG, 1921, pg. 111).

Talvez uma das razes para o fracasso desses primeiros experimentos tenha sido a fenda colimadora, que provavelmente era de perfil circular, j que eles informam que o primeiro diafragma possua 1/20 mm de dimetro (durchmesser). Para mais detalhes ver (STENSON, 2005, pg. 40-41). O terceiro artigo, "A comprovao experimental da quantizao espacial em um campo magntico" foi recebido em 1 de maro de 1922, e apresenta os resultados positivos por eles perseguidos. Eles descrevem o aparato experimental, incluindo apenas uma figura bastante rudimentar, e enfatizam as modificaes introduzidas em relao ao experimento anterior. Entre estas, o aumento da distncia entre o primeiro diafragma e o forno, e a nova fenda colimadora, de perfil retangular e desta vez mais estreita, com as dimenses 0,8 mm x 0,03-0,04 mm. Os resultados so apresentados desta vez a companhados por uma figura (foto) onde aparece a prata depositada na placa de vidro, aps uma revelao (fotogrfica), para os casos com e sem campo magntico4. Essa foto foi enviada num postal a Bohr, onde Walther Gerlach felicita-o pela confirmao de sua teoria.4

tambm

Conforme veremos, esta figura reproduzida no exerccio do livro de Halliday e no artigo de Herschbach (2003) extrada de

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Os autores revelam que a figura da foto (Fig. 3 do original) foi por eles obtida aps 8 horas de exposio, tendo sido ampliada 20 vezes, e comentam queEste foi o melhor resultado obtido. Dois outros ensaios deram essencialmente a mesma figura, s que no com a completa simetria. Deve-se dizer que o ajuste preciso do caminho tico com diafragmas to pequenos muito difcil, e que a obteno de um belo depsito simtrico como da fig.3 necessita um pouco de sorte; um desajuste do diafragma de apenas alguns poucos centsimos de milmetro basta para fazer fracassar a experincia (SG, 1922a, pg. 351).

Comentando ainda os resultados, Stern e Gerlach observam que a disperso do feixe no campo magntico fornece dois feixes discretos, e que no se observam tomos sem deflexo. E concluem o artigoNs descobrimos nesses resultados a demonstrao experimental da quantizao espacial num campo magntico. Uma apresentao mais detalhada dos testes e dos resultados das nossas at agora breves comunicaes ser publicada nos Anais da Fsica [a revista Annalen der Physik], to logo possamos determinar um valor quantitativo do magneton a partir de medies mais precisas da no homogeneidade do campo magntico (SG, 1922a, pg. 352).

O quarto e ltimo artigo desta 'srie', " momento magntico do tomo de O prata" (SG, 1922b) foi recebido um ms depois, em 1 de abril de 1922, e visava apresentar o resultado do valor do momento magntico que ainda faltava no trabalho anterior. Stern e Gerlach esclarecem que precisavam conhecer com preciso a distncia z entre o feixe de tomos e a borda do m, e tambm ?H/?z (gradiente do campo) na direo perpendicular ao feixe. Alm disso, eles utilizaram uma fenda colimadora ainda mais estreita, o que refora a importncia da colimao. Eles estimam o erro mximo de seus resultados em 10% e concluem...pode-se concluir ento que o momento magntico do tomo de prata normal no estado gasoso um magneton de Bohr (SG, 1922b, pg. 355).

http://dept.physics.upenn.edu/~pcn/Course/250/Week.of.03.14/sternGerlach.jpg - acessado em 24/02/08.

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A reao da comunidade cientfica a estes trabalhos foi bastante positiva em geral. Algumas so mencionadas em FRIEDRICH, B. e HERSCHBACH, D.,(2003, pg. 57). Com esta concluso os autores decidem (corretamente) rejeitar a teoria clssica, sem saber que tambm no confirmavam a teoria quntica, j que nem suspeitavam da existncia do spin do eltron (WEINERT, 1995, pg. 77 e 85). 4. O experimento de Stern -Gerlach nos livros didticos Num celebre artigo de 1979, Whitaker discute as formas como a histria da cincia aparece em livros didticos de Fsica (Whitaker, 1979a e b). Mostrando como relatos da histria da Fsica so transformados para servirem a propsitos didticopedaggicos, introduz a noo de quasi-histria. Diferentemente das distores at ento consideradas no campo da historiografia das cincias, como a abordagem whig proposta por Butterfield, Whitaker procura enfatizar a inteno desses textos de aumentar a clareza e veracidade na apresentao dos contedos cientficos. Nessa direo, os autores de livros didticos tomam o ingnuo mtodo das cincias experimentais como fio condutor de suas exposies didticas, buscando reforar i) o carter dedutivo das teorias, ii) o papel confirmatrio das experincias e, finalmente, conferindo iii) linearidade seqncia de episdios histricos. Buscaremos, na anlise dos principais livros didticos utilizados nos cursos universitrios bsicos de Fsica, a forma pela qual o experimento de Stern-Gerlach apresentado. Em particular, estaremos interessados em avaliar a existncia ou no de e stratgias que visam aumentar a clareza e veracidade da apresentao em termos das trs caractersticas acima. Pela apresentao acima pde-se verificar que a concepo original do experimento e sua interpretao imediata no estavam associadas ao spin do eltron, embora num momento posterior isso tenha sido feito (Fraser, 1927, apud HERSCHBACH, 1998, nota [24]). Vejamos como este contedo apresentado em alguns livros didticos universitrios. Os cursos de fsica fazem a introduo mecnica quntica, primeiramente de forma qualitativa ao final do segundo ano. Exemplos de livros didticos muito utilizados em cursos universitrios bsicos so os livros de HALLIDAY et al., (1991), TIPLER, P.A. (1992), SERWAY, R. A. , (1992) e NUSSENZVEIG (1998). Inicialmente destacamos as opes cronolgicas adotadas pelos autores na apresentao do experimento de SG. Com exceo do livro de HALLIDAY et al. (1991), o experimento de SG apresentado posteriormente ao conceito de momento magntico intrnseco, i.e, o spin do eltron. Este ltimo livro, alis, o que faz o melhor - no sentido de o mais fiel aos fatos histricos - tratamento do tema entre os livros analisados. Dividiremos a anlise separando os livros que adotam e noadotam a seqncia cronolgica entre experimento e apresentao do spin. No livro de SERWAY (1992), conceito de quantizao espacial introduzido na seo 42.5, quando da discusso sobre o momento angular orbital. O spin apresentado uma seo antes. Encontramos alguns problemas na apresentao do experimento de SG. Inicialmente, a descrio da experincia limita -se a uma frase e a figura utilizada (de nmero 42-11) ruim, pois no permite a visualizao do campo magntico no-uniforme. Alm disso, nesta figura, a marca do feixe na chapa fotogrfica, representando a "diviso real", est um pouco exagerada, como ser visto na comparao com figura original (ver figura na seo anterior), na qual a diviso

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muito menos ntida. compreensvel uma limpeza tcnica na montagem experimental visando focalizar o princpio de funcionamento do experimento. Por exemplo, o experimento de Michelson-Morley de 1887, sobre a influncia do movimento orbital da Terra sobre a propagao da luz, presente nos livros didticos em geral no apresenta a multiplicao das reflexes dos raios de luz visando aumentar as distncias e a preciso experimental. No entanto, aqui a nouniformidade do campo magntico parte essencial da montagem, pois o efeito a ser evidenciado decorre disso. Alm disso, a anterioridade na apresentao do spin sobre o experimento e a quantizao espacial induz a uma interpretao (errnea) de que o experimento de SG uma proposio decorrente da hiptese do spin eletrnico. O texto prossegue explicando a previso da fsica clssica e a da mecnica quntica, salientando que a experincia de SG comprova, pelo menos qualitativamente, a quantizao espacial. Esta concordncia apenas qualitativa um equvoco, pois a teoria quntica da poca (a de Bohr-Sommerfeld) era diferente da atual. A explicao e a concluso do experimento de SG limitam-se a um pargrafo, e o texto termina fazendo a observao de que a experincia de SG proporcionou dois resultados importantes: a verificao da quantizao do espao e a demonstrao da existncia do spin (SERWAY, 1991, pgs. 100-1). Aqui h um julgamento anacrnico do papel desempenhado pelo experimento. O experimento no se props a demonstrar a existncia do spin, como discutimos na seo acima. A verificao da hiptese referente quantizao espacial faz parte do contexto original da pesquisa, mas no a demonstrao do spin. A opo dos autores parece focar-se na apresentao do spin como contedo a ensinar, submetendo os demais trabalhos (no caso o experimento de SG) a uma lgica de validao do mesmo. No caso, a epistemologia ingnua parece entender os experimentos como etapas comprobatrias das proposies tericas. (Whitaker, 1979a, pg. 111 ). O livro de TIPLER tambm apresenta o spin do eltron antes da experincia de SG (TIPLER, 1992, pg. 253). A experincia de SG apresentada, mas de maneira totalmente descontextualizada. Assim como no texto anteriormente analisado, a descrio do experimento sumria, limitando-se a uma frase e uma figura. H ainda um erro nesta descrio, pois dito que o campo magntico "varia ligeiramente" (TIPLER, 1992, pg. 255), enquanto que, na experincia original, o campo magntico precisa variar muito , pois bastante no homogneo. A explicao final tambm bastante curta e o texto termina com a definio de quantizao do espao". Observe-se que no mencionado em lugar algum que o objetivo do experimento de SG verificar a quantizao espacial. A opo dessa obra assemelha-se muito quela do livro de SERWAY. No livro de NUSSENZVEIG (1998) a experincia de SG apenas citada, em um nico pargrafo, quando da discusso do spin do eltron. dito que, em conseqncia do spin, "um feixe de eltrons afetado por um campo magntico no homogneo, e que uma experincia foi realizada por O. Stern e W. Gerlach em 1921, fazendo um feixe atravessar um campo magntico fortemente no homogneo. Segundo o autor, esta experincia mostrou que o feixe se divide em duas componentes, associadas aos dois nicos valores possveis da projeo do spin. (NUSSENZVEIG , 1998, pg. 394). Este trecho tudo o que o texto apresenta sobre o experimento de SG. Desconsiderando o fato de que a experincia que obteve os resultados apresentados foi em 1922, e no em 1921, h aqui, ao nosso ver, dois problemas. O primeiro refere-se s expresses feixe de eltrons e depois

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um feixe: no dito que tipo de feixe utilizou-se na experincia, mas como mencionou-se um feixe de eltrons, d-se a entender que a experincia original utilizou tal feixe, o que incorreto. At aonde sabemos, o experimento de SG com um feixe de eltrons nunca foi realizado, devido s grandes dificuldades experimentais. As dvidas sobre a possibilidade de observar este efeito com eltrons surgiram no final da dcada de 1920, quando houve um acalorado debate sobre as propriedades intrnsecas do eltron livre. Bohr, entre outros, acreditava que o eltron possuiria spin somente quando ligado aos tomos (Garraway e Stenholm, 2002). O segundo problema que, assim como os outros textos, a forma como foi apresentado o experimento de SG, induz o leitor a fazer uma associao completa com o spin do eltron. A apresentao anacrnica realizada pelos trs grupos de autores e a limpeza tcnica, em maior ou menor grau, de detalhes considerados fundamentais, como a existncia de campo magntico no homogneo e feixe de tomos (e no de eltrons), permite algumas consideraes: o experimento no tem identidade didtica prpria nas obras. Embora, tenha sido um experimento fundamental no percurso epistemolgico do incio do sculo XX, interpreta do na perspectiva atual, transforma-se em mera comprovao da hiptese do spin. HALLIDAY et al. apresenta inicialmente o conceito de quantizao espacial e destaca que esta foi prevista teoricamente pelo fsico austraco Wolfgang Pauli e comprovada experimentalmente pelos fsicos alemes Otto Stern e Walther Gerlach em 1922. Segue-se a isso, uma figura e a descrio do aparelho de SG, bastante prxima montagem original. O texto prossegue fazendo uma discusso do comportamento de um dipolo num campo magntico no-uniforme, apresentando aps os resultados experimentais de SG. A figura 13 idntica figura original (HALLIDAY et al., 1991, pg. 184 ver figura na seo anterior) e mostra os resultados originais obtidos na experincia de SG, com o campo magntico desligado e ligado. Esta seo termina com um interessante exemplo do clculo da deflexo do feixe, que, embora no mencionado, bastante semelhante ao realizado por O. Stern, quando este props a experincia ( TERN, 1921). Este S clculo (clssico) surpreendentemente simples, pois utiliza basicamente a segunda lei de Newton e a frmula cinemtica para a distncia percorrida num movimento uniformemente acelerado. O experimento foi apresentado num contexto histrico muito prximo quele que podemos inferir a partir da anlise dos artigos e documentos originais. No houve alterao na ordem de apresentao do experimento, tentando coloc-lo como uma forma de comprovao de previses tericas ligadas ao conceito que se pretende ensinar, o spin. A seo seguinte trata do spin do eltron, e mostra uma dificuldade na interpretao do experimento de SG, pois, de acordo com a teoria quntica esperarse-ia um nmero mpar de marcas na placa coletora. Mas conforme salienta WEINERT, esta uma leitura do experim ento sob a tica da teoria quntica atual (WEINERT, 1995, especialmente pg. 77 e 79). Na poca, a teoria vigente era a de Bohr-Sommerfeld, que ainda no havia introduzido nmeros qunticos semi-inteiros e, portanto, previa aparecimento de um nmero par de marcas na placa. A concluso do tema apresentada em um curto pargrafo que reinterpreta o experimento de SG luz do conceito de spin. Aqui h uma mudana essencial em relao inteno original do experimento e pela maneira como ele foi

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imediatamente interpretado. Como apresentamos acima, o resultado obtido pelo experimento foi positivo em relao hiptese que o suscitou (quantizao espacial). Ou seja, a anomalia atribuda ao resultado experimental no pertence ao contexto da problemtica original. H ruptura entre a maneira como o experimento foi recebido pela comunidade e quela apresentada no livro, visando aumentar a clareza e o valor do conceito de spin. Em termos da historiografia moderna, os autores do livro produzem um anacronismo, por tomar um ponto de vista atual na organizao dos fatos passados. Dessa forma, a histria passa a se constituir num fio condutor tecido ao inverso, do presente para o passado. Consideraes finais: entre a Transposio Didtica e a Quasi-histria O uso da Histria da Cincia com fins didticos enfrenta problemas de diversas ordens. Um deles se vincula a necessidade de atender a compromissos situados em reas de interesse diversos, quais sejam, aqueles especficos do historiador e do educador. O que se pde extrair como resultado da anlise acima que na maioria dos livros analisados, os compromissos da segunda rea (educacional) suplantam aqueles da primeira (histrica). Existe uma tendncia de apresentar a cincia na perspectiva que fortalece a imagem do mtodo cientfico como uma empreitada dedutiva: uma teoria ou hiptese terica indica a direo da busca experimental que visa comprov -la. Isso parece gerar um aumento da lgica interna visando a manuteno a crena na racionalidade interna do conhecimento cientfico. sabido que no processo de produo de contedos escolares existe a descaracterizao do saber cientfico, pois este assume compromissos com as esferas da dimenso escolar (ALVES FILHO et al. 2001). Essa descaracterizao passa, entre outras coisas, pela desincretizao, descontextualizao, despersonalizao (CHEVALARD e JOHSUA, 1982). O estudo realizado acima, parece indicar que os autores de livro produzem, com fins pedaggicos, a desincretizao e a descontextualizao, preservando, no entanto, a personalizao dos fatos histricos relatados. Neste caso, a descaracterizao histrica do saber fsico vem acompanhada de uma narrativa que busca apresentar a cincia como uma empreitada racional. Cabe avaliar se existem alternativas que incorporem o uso da HC com verses da dinmica interna da cincia menos estereotipadas. Referncias ALVES FILHO, J.P., P IETROCOLA, M., PINHEIRO, T.F., (2001) A Eletrosttica como um exemplo de Transposio Didtica, pg. 77-99. In: Ensino de Fsica, Pietrocola, M. (org.), Editora da UFSC, Florianpolis. BUNGE,M.(1980) Epistemologia. So Paulo, Edusp. CHEVALLARD, Y. e JOHSUA, M-A., (1982) Un exemple d'analyse de la transposition didactique - La notion de distance, Recherches em Didactique des Mathematiques, vol. 3, n.2, pg. 157-239. DARRIGOL, O., (1992) From c -Numbers to q-Numbers: The Classical Analogy in the History of Quantum Theory, Berkeley: Univ. of California Press.

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