o Espectador Desinteressado Lilian Araujo
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OESPECTADOR DESINTERESSADO
emA VIDA DO ESPRITO
de HANNAH ARENDT
Lilian Maria de Campos Arajo
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Lilian Maria de Campos Arajo
OESPECTADOR DESINTERESSADO
emA VIDA DO ESPRITO
de HANNAH ARENDT
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado da
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas daUniversidade Federal de Minas Gerais comorequisito parcial obteno do ttulo de Mestre emFilosofia.
rea de concentrao: Filosofia Social e Poltica
Orientador: Prof. Dr. Francisco Javier Herrero Botin
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG
2004
[FCRA2] Comentrio:
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Arajo, Lilian Maria de CamposO espectador desinteressado em A Vida do Esprito de
Hannah Arendt [manuscrito] / Lilian Maria de Campos Arajo. 2004.117 f., enc.
Orientador: Francisco Javier Herrero Botin.
Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais,Faculdade de Filosofia.
Bibliografia: f. 114-117
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Dedico esse trabalho a meu pai, Amilton, porele ter-me ensinado, com seu exemplo de vida,o valor do esforo e da persistncia.
AGRADECIMENTOS
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Gostaria de registrar, aqui, o meu reconhecimento e gratido aos que contriburam para tornar menos
rdua a tarefa acadmica a que me propus:
O meu orientador, professor Francisco Javier Herrero Botin, que conduziu meu
trabalho com rigor intelectual, pacincia e gentileza.
Ao IFAC/ UFOPe ao departamento de Ps-graduao da FAFICH/ UFMG, onde
fui to bem recebida pelos professores e tcnico-administrativos.
Em especial, aos professores Olmpio Jos Pimenta Netoe Romero Alves Freitas,
pela ateno e interesse dispensados aos meus projetos acadmicos.
profa. Mariza Macedo Rosa, pela reviso do texto e sugestes.
Aos parentes e amigos que contriburam, cada a um a seu modo, para que esse trabalho
fosse realizado.
A Csar, Marcella e Giuliano Csar, esposo e filhos, por terem compreendido a importncia de que se
revestem os estudos, para a minha vida.
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Em The Life of de Mind, o espectador o paradigma atravs do qualArendt realiza a converso da filosofia no filosofar, do pensamento nacompreenso, visando com isso a iluminar a possibilidade de umaatividade mental livre de qualquer determinismo.
Odilio Alves Aguiar
RESUMO
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A Vida do Esprito um livro que se destaca no conjunto da obra de Hannah Arendtpela discusso filosfica das faculdades da razo: o pensar, o querer e o julgar; dapossibilidade de reconciliao do homem como um ser pensante e sensato, em relao aomundo. Qual o estatuto do conceito de espectadorem Arendt? A figura do espectadorocupauma posio crucial, porque ele que tem a chave do significado dos negcios humanos.Alm disso, em Arendt, a discusso de uma filosofia poltica s possvel porque existem
espectadores. Por se detectar nessa figura uma chave para a leitura e interpretao dos textosda autora que se desenvolveu a presente investigao, pescando (como prolas) elementospresentes na filosofia tradicional, discutida por Arendt, e formando essa figura especfica, oespectador desinteressado. Esse homem/espectador permanece com sua ateno voltadapara o mundo e consegue, ainda assim, internamente, manter sua dignidade, sabendo-selivre para agir ou no agir.
SUMRIO
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1 INTRODUO................................................................................ 10
2 CAPTULO UM: O ESPECTADOR E O PENSAR.............. 252.1 As posies de: Pitgoras, Plato, Lucrcio e Scrates ........................ 282.2 O espectador arendtiano e os hommes de lettres ............................... 44
3 CAPTULO DOIS: O ESPECTADOR E O JULGAR ......... 503.1 Conceitos-chave do juzo poltico ......................................................... 56
3.1.1 Comunicabilidade ........................................................................... 563.1.2 Imparcialidade ................................................................................ 583.1.3 Metfora ......................................................................................... 613.1.4 Sensus comunis............................................................................... 633.2 A soluo kantiana: a imaginao .......................................................... 663.3 Espectador e a Revoluo Francesa ...................................................... 693.4 Kant e o cidado do mundo; Arendt e o espectador do mundo........ 74
4 CAPTULO TRS: O ESPECTADOR E O QUERER ....... 814.1 O espectador e o espao pblico ............................................................ 88
4.1.1 Na antigidade: as posies dePlato, Aristteles e Ccero .............. 90
4.1.2 Na modernidade .............................................................................. 101
5 CONCLUSO .................................................................................. 106
6 REFERNCIAS ............................................................................... 113
LISTA DE ABREVIATURAS
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Para as citaes das obras de Hannah Arendt utilizadas neste trabalho, adotamos o
seguinte padro:
VE: A Vida do Esprito
LFPK: Lies sobre a Filosofia Poltica de Kant
CH: A Condio Humana
CR: Crises da Repblica
DP: A Dignidade da Poltica
EPF: Entre o Passado e o Futuro
HTS: Homens em Tempos Sombrios
QP: O que Poltica?
OT: Origens do Totalitarismo
SR: Sobre a Revoluo
1 INTRODUO
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Visto ser o campo da investigao filosfica muito amplo, necessrio que
procedamos a escolhas; e, se Filosofia espanto, admirao, inquietude, devemos buscar
aqueles que reproduziram, em nosso ntimo, essas sensaes. Da advm as opes que, a
nosso ver, sero as mais acertadas.
E especificamente dos textosA Vida do Esprito: o pensar, o querer, o julgare de as
Lies sobre a Filosofia Poltica de Kant, da filsofa contempornea Hannah Arendt, que
buscamos retirar os elementos fundamentais, que esto definidos com grande amplitude
tais como pensamento, vontade, juzo, senso comum, razo, intelecto e examinando as
passagens mais expressivas, para investigar uma figura muito pouco estudada na filosofia
poltica, a saber, o espectador, e delimitar sua funo e importncia nas obras acima citadas;
nos textos de Arendt, o espectador ocupa uma posio crucial, porque quem tem a chave do
significado dos negcios humanos.
Arendt, filsofa contempornea (1906-1975), tornou-se conhecida no meio acadmico
aps a publicao de As Origens do Totalitarismo, em 1951. Seus estudos expressam a sua
preocupao com tudo que atinge o espao pblico, e isso envolve basicamente a cultura, aeducao, a histria e a poltica.
Por amor ao mundo, Arendt abandonou a posio de espectador imvel, recolhido
no mundo das idias, postura adotada por tantos filsofos de sua gerao. Em entrevista
concedida a Gnter Gaus, em 1964, Arendt recusou um lugar no crculo dos filsofos,
observando: h muito tempo despedi-me definitivamente da filosofia. [..] estudei filosofia,
mas isso no significa por si mesmo que continue sendo filsofa(DP:123).
Essa preocupao com a poltica, com a histria e com o comportamento poltico
conseqncia de um quadro complexo em que Arendt esteve envolvida, qual seja, as duas
grandes guerras mundiais; a perseguio aos judeus (Arendt foi obrigada a buscar exlio, por
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ser judia); a condio de aptrida, por muitos anos e a posterior cidadania americana. Os
textos de Arendt so o resultado de um esforo empreendido pela autora para compreender
(palavra-chave nesta investigao) esse espao pblico. A autora no se deixa fixar em
conceitos; defende sempre a busca do significado, daquilo que no se deixou cristalizar. No
texto Compreenso e Poltica, publicado originalmente em Partisan Review 20/4 em julho-
agosto /1953, Arendt considera que
compreenso um processo complexo, que jamais produz resultados inequvocos.
Trata-se de uma atividade interminvel, por meio da qual, em constante mudana e
variao, aprendemos a lidar com nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto ,
tentamos nos sentir em casa no mundo(DP:39).
Se para Arendt a compreenso assume prioridade, cabe aqui, investigar como tal
compreenso esta associada figura do espectador desinteressado, ressaltando que nos
ltimos textos essa figura privilegiada pela autora. Para Odlio Aguiar, em A Vida do
Esprito, [o espectador] o paradigma atravs do qual Arendt realiza a converso da filosofia
no filosofar, do pensamento na compreenso, visando com isso a iluminar a possibilidade de
uma atividade mental livre de qualquer determinismo1.
Essa questo do espectador, em Arendt, poderia parecer elementar, ou at superficial,
quando comparada a temas de relevncia para o mundo contemporneo como, por exemplo, a
discusso sobre regimes totalitrios e a questo judaica. Tanto assim que muitos
comentadores apontam o totalitarismo como um fator que levaria incapacidade de
pensamento e, conseqentemente, incapacidade de o indivduo exercitar a faculdade do
juzo. No regime totalitrio, o terror
arruna todas as relaes entre os homens, tambm a auto-compulso do pensamento
ideolgico destri toda relao com a realidade. O preparo triunfa quando as pessoas perdemo contato com os seus semelhantes e com a realidade que as rodeia, pois, juntamente comesses contatos, os homens perdem a capacidade de sentir e de pensar (OT:526).
1AGUIAR. O espectador como metfora do filosofar em Hannah Arendt. In: CORREIA, Cludio. (Org.)Transpondo o Abismo, p.94
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Entretanto, em pequena observao registrada em carta a Mary McCarthy
(20.09.1963), aps a publicao de um texto polmico, Eichmann em Jerusalm, um relato
sobre a banalidade do mal, Arendt escreve: lendo o livro com ateno, d para ver que
Eichmann foi muito menos influenciado pela ideologia do que pressupus no livro sobre
totalitarismo. Posso ter superstimado o impacto da ideologia no indivduo2(destaque nosso).
Essa afirmao se explica porque o caso Eichmann ensinara-lhe que o indivduo pode no-
pensar, sem estar submetido a constrangimentos externos, o que tambm impossibilita o
exerccio do juzo.
Escrever a respeito do espectador, em A Vida do Esprito, implica, num primeiro
momento, em estabelecer algumas consideraes importantes, sem as quais a discusso sobre
a figura do espectador desinteressado torna-se, no mnimo, desprovida de sentido e de
mrito. A Vida do Esprito o ltimo texto de Arendt, autora de outros textos que foram, e
ainda so, bem mais discutidos e analisados, destacando-se Origens do Totalitarismo e A
Condio Humana.
Por ser um texto inconcluso, devido morte da autora, falta paraA Vida do Espritoo
aperfeioamento, o detalhamento de algumas partes. Em vista dessas deficincias, a leitura
deste exigiria uma apreciao prvia de outros textos de Arendt e, ainda assim, o leitor, ao
final deA Vida do Esprito, talvez no tenha parmetros suficientes para responder questo
primeira, qual seja, das causas que levaram Arendt a escrev-lo.
A dissertao que ora apresentada opta por trilhar, junto com Arendt, essa obra
especfica, em busca da delimitao de um termo-chave da sua filosofia, o espectador. Se se
segue o percurso desenvolvido em A Vida do Esprito, a investigao sobre o espectador
padecer de dificuldades semelhantes as que Arendt enfrentou, e o leitor deste nosso trabalho
tambm ter a impresso de que leu algo ainda inconcluso, por tambm no conseguir captar o
2ARENDT. Entre amigas, p.154
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porqu da importncia da discusso sobre o espectador, num universo to mais amplo que
apresentado emA Vida do Esprito.
Alguns pensadores podem apresentar ao pblico uma vasta obra, mas, as discusses
efetuadas giram, via de regra, em torno de pontos nevrlgicos, sugeridos ainda nos textos da
fase inicial de sua carreira acadmica. Arendt, com certeza, est entre esses pensadores.
imprescindvel, inicialmente, contextualizar filosoficamente a importncia da figura
do espectador, metfora esta que permeiaA Vida do Espritoe asLies, e a resposta a uma
investigao empreendida por Arendt, e que pde ser desenvolvida no artigo O que a
filosofia da Existenz?, publicado originalmente na Revista Partisan Review, em 1946.
Arendt se dispe, no texto acima citado, a uma anlise histrica da denominada
filosofia da Existenz (no confundindo com o Existencialismo, movimento literrio
francs), apontando os filsofos que a desenvolveram. Husserl tido como o filsofo que
conseguiu desvincular a filosofia moderna com relao ao historicismo hegeliano (no se
discute, aqui, o mrito do progresso inevitvel ou do declnio), e considerar o Homem como
novamente tema da filosofia. A especulao filosfica, o puro pensamento questionado por
filsofos interessados nas prprias coisas (Husserl), em situaes-limite (Jaspers). Diante
daquilo que experimentado, o Homem no pode permanecer na esfera do pensamento. O
pensar se daria a partir das coisas, da Realidade (mesmo com todas as dificuldades
enfrentadas pelo homem, na modernidade). Essa filosofia positiva, do Sim para a vida ou
para a realidade humana do homem como tal(DP:26), tem seu auge em Nietzsche e Jaspers,
os quais fizeram desse sim o ponto de onde desenvolveram suas filosofias.
Em Heidegger, por sua vez, existenzequivale ao Ser do Homem e essa apreenso de
sua prpria Existenz o prprio ato de filosofar, mas isso s ocorreria excepcionalmente, sob
a forma de contemplao. Arendt critica esse afastamento do mundo, desse Eu cuja
caracterstica essencial seu absoluto egosmo, sua separao radical de todos os seus pares.
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Essa concepo de Existenz, de Heidegger, modificada por Jaspers (em escritos
publicados posteriormente a Ser e Tempo), buscando dissolver a filosofia no filosofar e
encontrar caminhos nos quais os resultados filosficos possam ser comunicados de
maneira tal que percam seu carter de resultados(DP:33) (destaque nosso). A
investigao de Arendt alcana, aqui, o ponto nevrlgico para seus texts posteriores: como
converter, seguindo Jaspers, a filosofia no filosofar?
A filosofia, pela tradio ocidental, seria a theoria. A converso da filosofia no
filosofar, proposta por Jaspers, implica em ao, ou seja, filosofia da ao, postura ativa de
espectador, o qual volta sua ateno, seu interesse para questes que esto ao seu redor. Em
Arendt, espectador do mundo equipara-se ao cidado do mundo: a filosofia ( theoria),
convertida no filosofar, est voltada para o mundo. Com a postura de espectador do mundo,
o homem supera a tenso estabelecida pela filosofia ocidental em relao apolis; dito de outra
forma, o espectador pode ser considerado como a soluo para esse conflito.
Mas isto no est explcito em A Vida do Esprito. Arendt critica a filosofia
tradicional, estabelece comparaes e, por fim, aponta Scrates como algum que conseguiu
filosofar. Tudo isso amplia a dificuldade de sustentar, em nosso trabalho, a importncia da
metfora do espectador para a filosofia arendtiana.
Em O que a filosofia da Existenz?, Arendt j destacava que tanto em Jaspers como
em Scrates no existe ofilsofo, que (desde Aristteles) levou uma Existenzseparada dos
outros homens(DP:34). Jaspers aponta que a comunicabilidade fundamental para que o
homem no tenha uma vida isolada dos outros homens. Para ele, a verdade aquilo que pode
ser comunicado (no que Arendt concorda, no se levando em considerao a discusso sobre
verdades cientficas ou assertivas lgicas). Mas essa comunicao deve ocorrer de modo tal
que esses resultados no pretendam validade universal, que percam seu carter de
resultados.
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Arendt permanece, portanto, desde seus primeiros textos, com essa interrogao
quanto aos caminhos oferecidos aos resultados filosficos. Em carta de 1957, enviada a
Jaspers, Arendt comenta que est procedendo releitura da Crtica do Juzo, de Kant, com
uma fascinao crescente, e que este livro nunca repercutira para mim de um modo to
poderoso como agora, que eu li o seu captulo (JASPERS, Die grossen Philosophen) sobre
Kant3. A exigncia da comunicabilidade, em Kant, o gosto como fenmeno bsico do juzo,
o modo do pensamento alargado: esses resultados filosficos, obtidos pelo homem,
poderiam ser comunicados sob a forma de juzos, de opinies vlidas.
Em 1970, Arendt apresenta o ensaio Pensamento e consideraes morais,
reaproveitado na redao das Gifford Lectures, que viriam a constituir a base dissertativa deA
Vida do Esprito, preocupada, ainda, com os caminhos, com o liame entre filosofia e
poltica, entre pensamento e juzo. Ainda em 1970, em disciplina ministrada com o ttulo
Lies sobre a filosofia poltica de Kant, Arendt observa que no se pode falar de observador,
no singular, pois os espectadores existem apenas no plural. figura do espectador, presente
na atividade do filosofar, acrescida a exigncia da comunicabilidade desses resultados
filosficos, sob a forma de juzos (de Jaspers) e a exigncia da pluralidade (de kant).
Em A Vida do Esprito, muitos caminhos da filosofia tradicional so percorridos e
depois abandonados. Pode-se inferir, disso, que se Arendt no v caminhos, nem por isso
deixa de apresentar solues. As filosofias, enquanto doutrinas, no seriam impostas ao
homem, para que este se torne ofilsofo. Filosofar possvel a qualquer um, desde que haja
uma disposio para isto e, fundamentalmente, a postura de espectador. Alm disso, para
estabelecer a realidade daquilo sobre o qual esse homem/ espectador refletiu, imprescindvel
a presena de outros homens/ espectadores.
3ARENDT. Correspondence with Karl Jaspers, p.20, citado em DUARTE, O pensamento sombra da ruptura,p.358
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Procedendo a essa contextualizao filosfica da figura do espectador, tem-se, em A
Vida do Esprito, mesmo com todas as dificuldades encontradas pelo leitor, pistas filosficas
que levam delimitao dessa figura, numa espcie de coroamento de um traado reflexivo
que se delineou no pensamento de Arendt4.
As reflexes sobre as trs atividades bsicas do esprito pensar, querer e julgar
foram lentamente delineadas por Hannah Arendt, a partir de questionamentos surgidos sobre o
julgamento de Adolfo Eichmann, por crimes de deportao de judeus e outros povos para os
campos de extermnio e aps o trmino do livro A Condio Humana, em 1958. Uma
mudana significativa no percurso do pensamento arendtiano pode ser detectada com a morte
de Karl Jaspers, em 1969 e de Henrich Blcher, em 1970. Os ltimos textos de Arendt
discutem, com insistncia, questes filosficas fundamentais, mas com um enfoque
eminentemente poltico, que privilegia o espao pblico, o mundo.
No texto Filosofia e Filosofia Poltica em Hannah Arendt, Eduardo J. Moraes conclui
que no espectador que Hannah Arendt est interessada para considerar o tema de uma
filosofia poltica, uma vez que o agente que possibilita a reconciliao [do pensamento e da
experincia] o espectador que julga os acontecimentos polticos.5 Essa nfase dada por
Arendt na metfora do homem como espectador desinteressado, nos textos posteriores ao
caso Eichmann, poderia configurar-se como uma alternativa questo apresentada da
ausncia de pensamento no indivduo? Ter conscincia da posio de espectador importante
quando regimes totalitrios impedem a elaborao de um espao pblico?
Todo o esforo da autora convertido para a elaborao da trilogiaA Vida do Esprito:
o pensar, o querer, o julgar, sendo que o terceiro volume, do Julgar, no foi concretizado
4AGUIAR. O espectador como metfora do filosofar em Hannah Arendt, in: CORREIA (org.) Transpondo oabismo, p.945MORAES. Filosofia e Filosofia Poltica, Revista Perspectivas, p.118
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devido morte da autora, tendo permanecido sob a forma de anotaes de aulas. A primeira
parte, O Pensar, tem uma seqncia fluida, coordenada; a segunda parte, O Querer, merece
aperfeioamento em alguns pontos, embora no causam prejuzos ao texto; e a terceira parte,
O Julgar, que no foi redigida formalmente, e que importante para esta investigao, conta o
textoLies sobre a Filosofia Poltica de Kant(notas de curso ministrado por Arendt), como
uma verso provisria. Nesse texto, a autora enfatiza que o juzo objeto de estudo das
Lies uma capacidade distinta, mas no isolada das outras atividades. Apesar de o
ltimo volume no ter sido escrito, em vrias passagens dos volumes O Pensare O Querer
destacam-se trechos os quais tratam do juzo e suas possibilidades de conexo com as outras
faculdades.
Estas trs atividades espirituais so analisadas em A Vida do Esprito, segundo um
aparato conceitual forjado pela tradio filosfica ocidental6, o qual no foi abandonado
pela autora, apesar de sua recusa em aceitar o ttulo de filsofa. A influncia de Karl Jaspers
sobre Arendt pode ser exemplificada, quando Jaspers assevera que:
O filosofar uma realidade que se cumpre em uma vida individual em cada caso; o homem,pensando como possvel existncia, filsofo.(..) O indivduo, ainda que origem em cadacaso, no est no comeo, mas sim que pertence a uma tradio filosfica, a um mundo de
pensamentos, no qual a princpio se encontra com recm chegado. A existncia emprica dafilosofia , portanto, em primeiro lugar, obra de homens individuais, como algo que deve terpara eles um carter necessrio por sua situao na existncia.7
Filosofar pressupe atividade, atividade da faculdade de pensar eA Vida do Esprito,
no primeiro volume, o Pensar, percorre caminhos da filosofia ocidental, para Arendt
concluir, ao final, que pensar no leva a nenhum resultado que possa ser rotulado como
verdade universal, regras para todos os homens.
6DUARTE. A dimenso poltica da filosofia kantiana segundo Hannah Arendt, in: ARENDT.Lies sobre afilosofia poltica de Kant, p.1107JASPERS. Filosofia, p.301.
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Mas pensar implica, na sua essncia, em re-pensar, partindo da experincia e, para
isso, o homem coloca-se como espectador, aproximando-se das coisas, do mundo que lhe
apresentado, a fim de observ-lo. Num momento seguinte, o espectador afasta-se desse mundo
para refletir sobre o que captou. A postura de espectador condio para o filosofar; em
outras palavras, o homem, como espectador, est em plena atividade filosfica, refletindo
sobre o que v.
Os homens so obrigados a conviver com outros homens na esfera pblica, mas ainda
assim a autonomia dos espritos humanos (VE:163) preservada no indivduo e isso
fundamental para que o homem possa sofrear o mal. Arendt adverte, em Da Revoluo
(escrito no mesmo perodo de Eichmann em Jerusalm), que opinio e julgamento, includos
entre as faculdades da razo, (..) as mais importantes do ponto de vista poltico, haviam sido
quase totalmente negligenciadas pelas tradies do pensamento poltico e filosfico(SR:183);
E justamente em A Vida do Esprito que Arendt tenta delimitar essas faculdades,
fundamentando-as filosoficamente, sendo pertinente utilizar trechos de outros de seus textos,
principalmente de Da Revoluo8, os quais podem esclarecer pontos importantes e at
incompletos deAVida do Esprito.
Arendt procurou, sistematicamente, compreender as faculdades da razo, destacando a
autonomia das mesmas, sem hierarquiz-las. As trs atividades espirituais pensar, querer e
julgar so independentes, mas h uma conexo entre as mesmas. Como exemplo, pode-se
citar: quando os homens agem sem pensar, baseando-se apenas em hbitos, obedincia s
regras de conduta, ou seja, como indivduos normais, eles cometem crimes acreditando que
a obedincia, nesse caso, seria uma virtude. Por sua vez, o exerccio do pensamento, por si
mesmo, no leva ao. Mas a pura contemplao incompatvel com a natureza humana; os
8Arendt intitula o ltimo captulo de O Querer(Vida do Esprito) como O abismo da liberdade e a novus ordoseclorum, o qual corresponde, na essncia, ao captulo cinco Novus ordo seclorum, emDa revoluo
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homens que optam por viver no isolamento no desenvolvem a sua humanidade, porque
esta s obtida no convvio com os outros homens, atravs de atos e palavras.
O universo arendtiano composto por alguns temas recorrentes, tais como a ruptura
com a tradio filosfica; a distino entre razo e intelecto, verdade e significado; as falcias
metafsicas. A autora analisa a oposio entre o mundo supra-sensvel e o mundo das
aparncias, buscando a superao da falcia metafsica da dicotomia entre estes mundos e
conclui que, se os homens esto no mundo e so do mundo, se Ser e aparecercoincidem,
essas atividades espirituais sero exercidas no mundo das aparncias, onde as coisas vivas
aparecem em cenacomo atores em um palco montado para elas (VE:18). , sendo que toda
aparncia, independentemente de sua identidade, percebida por uma pluralidade de
espectadores (VE:19).
Os homens usam seus cinco sentidos e captam o mesmo objeto; cada objeto singular
captado em determinado contexto e dotado de um significado especfico; os homens, embora
vendo o objeto de perspectivas diferentes, concordam acerca da identidade deste objeto
singular (VE:40). So os homens que, como espectadores, captam as aparncias, concordam
sobre o que vem, o que leva a um sexto sentido, sentido interno, o senso comum que
garante a realidade daquilo que foi captado.
A definio de mundo, em Arendt, refere-se ao pblico, sendo que
o termo pblico significa o prprio mundo, na medida em que comum a todosns e diferente do lugar que nos cabe dentro dele.. Este mundo, contudo, no idntico terra ou natureza como espao limitado para o movimento dos homens econdio geral da vida orgnica. (..) Conviver no mundo significa essencialmente terum mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum (..) (CH:62).
Em Arendt, o espao foi demarcado o mundo das aparncias, esfera da apario,
mundo comum, esfera pblica: todos estes termos se intercruzam e apresentam, como
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condio de possibilidade, o posicionamento do homem como espectador. Mais do que isso,
de uma pluralidade de espectadores.
Esse espao das aparncias, espao pblico por excelncia, criado pelos espectadores,
destinado aos atores, para homens que podiam, ento, mostrar quem realmente e
inconfundivelmente eram (CH:51). Nesse sentido, o termo espao pblico condizente
com a proposta da autora em investir na reflexo e na ao imprevista, na possibilidade do
novo. 9
A exemplo do pensamento de Jaspers, o qual afirma que todo homem entra no trato
poltico, que no a forma das aes estatais, mas sim tambm situao para toda existncia
emprica humana10
, para Arendt o indivduo s consegue realizar-se plenamente em contato
com um mundo j dado, condio de toda a existncia humana. O ponto essencial, aqui,
perceber que Arendt no quis discutir o indivduo qua indivduo, o que a levaria a uma
discusso da razo prtica. Para Arendt, ningum pode ser chamado livre ou feliz sem
participar e ter uma parte no poder pblico, sendo que os termos expresso, discusso e
deciso so, num sentido positivo, as atividades da liberdade. Mesmo se no possvel
definir com preciso qual seria sua ltima palavra sobre o assunto, possvel argumentar no
sentido de que o textoA Vida do Espritopoderia ser lido comoA Vida do Esprito Pblico.
Mais do que isso, como bem detectou Elizabeth Yong-Bruehl, cujas palavras resumem
este trabalho, filosoficamente, Arendt lutava por uma compreenso de como o esprito pode
se recolher do mundo sem ignor-lo ou avilt-lo11. Confirma-se, assim, a opo deste
trabalho pela investigao da posio do espectador desinteressado, metfora apropriada
9
Arendt critica o fato de que o uso do conceito de sociedade implica na excluso da ao. Ao invs da ao, asociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inmeras e variadasregras, todas elas tendentes a normalizar os seus membros, a faz-los comportarem-se(CH:50). Arendtconclui que o pblico absorvido pelo social, numa sociedade submetida pela economia. Essa posio temrecebido crticas, sendo considerada uma posio utpica adotada por Arendt, quando esta tenta recuperar umasituao j vivida na antigidade, mas que, na modernidade, j no uma alternativa vivel.10JASPERS. Filosofia, p.507
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para o homem que chega a um mundo j dado e s pode viver no sentido de existir,
plenamente, junto a outros homens, mas que deve manter sua capacidade de filosofar, refletir
sobre o que v. Vale dizer: se a Filosofia para poucos, filosofar, em Arendt, tarefa
possvel a cada um que chega ao mundo.
XXXXXXXXXXXXX
O trabalho compe-se de trs captulos, ao longo dos quais so investigadas as trsatividades espirituais, O Pensar, O Querer e O Julgar, que constituem o livro A Vida do
Esprito.
No primeiro captulo,O Espectador e o Pensar, discute-se o papel do espectador na
filosofia tradicional, acompanhando Hannah Arendt em seu levantamento histrico no mbito
filosfico. Mesmo em Arendt, a figura do espectador sofre uma reviravolta, afastando-se do
conceito tradicional, meramente contemplativo, aproximando-se de um pensamento
desinteressado.
O espectador desinteressado que permeia AVida do Espritono busca conceitos,
verdades, mas a compreenso deste mundo. A tarefa que se impe a seguinte: extrair, desse
percurso, as caractersticas que Arendt considera como relevantes para formao da figura do
espectador. um processo semelhante tcnica de desmontagem descrita por Arendt, tcnica
essa que deve ser cuidadosa o suficiente para no destruir o rico e estranho, o coral e as
prolas que provavelmente s podero ser salvos como fragmentos (VE:160).
11YONG-BRUEHL. Por Amor ao Mundo, p.384
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Cabe, ainda, nesse captulo, uma discusso relacionada figura do espectador, e que
est conectada com o Juzo. Arendt, emDa Revoluo, enfatiza o papel dos hommes de lettres
e o papel dos cidados comuns no mbito poltico, e a responsabilidade dos mesmos pela
manuteno desse espao pblico. Seguindo a metodologia adotada por Arendt em seus
textos, interessante, nesta investigao, a discusso de possveis exemplos, os quais
fornecem subsdios para uma argumentao consistente, o que oferece a vantagem de no se
acatar, obrigatoriamente, a associao usualmente efetuada pelos comentadores a respeito de
um espectadorhistoriador, a qual afastaria, em princpio, a atuao do homem comum.
No segundo captulo, O Espectador e o Julgar, investiga-se a relao entre o
espectador e a faculdade do juzo, utilizando como referncia principal o texto As Lies.
Arendt, ao analisar o conflito entre Filosofia e Poltica (ator e espectador; poder e autoridade),
encontra no juzo reflexionante kantiano uma soluo que supere essa tenso. Discute-se,
ainda, alguns conceitos-chave que compem o juzo poltico (reflexionante) e contribuem para
a delimitao do espectador judicante.
preciso, tambm, buscar alternativas para as dificuldades relativas a um juzo que
cuida do singular, que parte da experincia e que pretende, ainda assim, ter validade. Nessa
possibilidade de se alcanar um ponto de vista que desconsidera os interesses prprios, de ter
como referncia os outros espectadores, que se tem a consolidao do espectador
desinteressado.
Em Arendt, filosofia deve estar voltada para o mundo e os atores exigem espectadores
que avalizem suas aes. Questiona-se: qual a importncia do espectador em um mundo que
perdeu o contato com a tradio?
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No terceiro captulo, O Espectador e o Querer, discute-se o papel do espectador na
filosofia tradicional, acompanhando Hannah Arendt em seu levantamento histrico da
Vontade, mas a investigao aqui efetuada concentra-se na relao entre o espectador e a
autoridade, delimitando ou construindo o espao pblico, espao esse privilegiado para
que os homens possam agir. E, ainda, como Arendt esperou solucionar o conflito entre poder
e autoridade, devido inverso ocorrida, na modernidade, entre contemplao e ao?
No incio de O Querer, Arendt alerta e reafirma que esta discusso prejudicada pelo
fato de que toda filosofia da Vontade concebida e articulada no por homens de ao, mas
por filsofos, pensadores profissionais de Kant(VE:332). A prpria autora admite que os
homens de ao estariam talvez em melhor posio para aprender a lidar com os problemas
da Vontade do que os pensadores(VE:191).
A investigao encaminha-se para a seguinte questo: qual a relao entre a Vontade e
o espectador arendtiano? Posto que esse espectador no penetra no mbito da ao e se nesse
espao que se d a manifestao da Vontade, qual a inteno de Arendt quando se dedica a
este tema o Querer?
Em sntese, o espectador desinteressado, figura arendtiana comum no
pensamento e no juzo, e com ligaes profundas com a vontade, constitui um ponto-chave
da conexo entre Filosofia e Poltica. , pois, a figura do espectador desinteressado em A
Vida do Esprito, o objetivo principal desta investigao.
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CAPTULO UM: O ESPECTADOR E O PENSAR
Essa falta de clareza e de preciso conceitual no que respeitas realidades e experincias existentes tem sido a maldio dafilosofia ocidental desde que, aps a morte de Pricles (*), oshomens de ao e os homens de pensamento tomaram rumosdiferentes, e o pensamento iniciou a sua total emancipao darealidade, especialmente dos fatos e das experinciaspolticas.
(ARENDT.Da Revoluo, p.177)12
12Traduo modificada em DUARTE (2000) nas notas (p.247), isto , desde a morte de Scrates
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2 O ESPECTADOR E O PENSAR
Neste captulo, investigado o primeiro volume da trilogia A Vida do Esprito, O
Pensar, em que Arendt formula vrios questionamentos: o que nos faz pensar?; onde
estamos quando pensamos?; e, mais importante, ainda: e quando pensa, o homem est s?.
Essas indagaes so o ponto de partida para um levantamento sobre O Pensarna tradio
filosfica ocidental. Nesse captulo sobre o espectador, nos moldes arendtianos, era
imprescindvel que se destacasse o contexto no qual o espectador aparece, em diversos
filsofos, mas, sobretudo, salvar os fragmentos, sob a forma de caractersticas que possam
delimitar o conceito filosfico de espectador desinteressado. Nesse esforo, a autora elege a
figura de Scrates, como exemplo de pensador no-profissional, preocupado apenas em
despertar os cidados para o pensamento e a investigao, uma atividade sem a qual, a seu
ver, a vida no valia a pena e nem sequer era totalmente vivida. (VE:130).
A questo subjacente ao texto O Pensar: aonde Arendt quer chegar? A discusso
sobre o exerccio da faculdade do pensamento e o acesso verdade perpassa todo O Pensar(como se Arendt tivesse sob seus olhos o julgamento de Eichmann13). O que importa destacar
na atividade do pensamento a exigncia do recuo em relao ao mundo, em que o homem
interrompe suas atividades rotineiras e move-se para fora do mundo das aparncias, como
espectador (theatai).
A contemplao, na tradio filosfica, implica em afastamento, mas associa-o
beatitude, ao homem livre das preocupaes mundanas, revelao da verdade. Arendt
assume uma postura que contradiz a filosofia dos pensadores profissionais. Para a autora,
13Na introduo deA Vida do Esprito, Arendt pondera que s aps o julgamento de Eichmann (verABanalidade do Mal), tenha comeado a refletir sobre a questo do pensamento e do juzo.
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pensar, implica em afastamento, afastamento esse necessrio atividade do pensamento e que
condiz com a frase de Cato, utilizada por Arendt: nunca ele [o homem] est mais ativo do
que quando nada faz, nunca est menos s que quando a ss consigo mesmo (CH:338),
indicando que o afastamento condio necessria atividade do pensamento. De acordo com
Julia Kristeva, em seu estudo sobre Arendt, se [Arendt] ambiciona preservar o cu da
filosofia, no para deix-lo obscurecer-se em um solipsismo inominvel, precioso, se no
potencialmente tirnico; mas para insuflar o dilogo do pensamento no prprio espao
poltico, onde o pensamento se desenrola em capacidade de discernir o bem do mal14. A
atividade do pensar, mesmo no apresentando resultados certos e verificveis e no impelindo
o homem ao, possibilita ao homem julgar o mundo ao seu redor.
Ao abordar a faculdade do pensamento, Arendt afirma, na pgina inicial de O Pensar,
que nada e ningum existe neste mundo cujo prprio ser no pressuponha um espectador
(VE:17). Para Odlio Aguiar, a posio do espectador fundamental par Arendt porque as
aparncias no falam por si mesmas, no h em Arendt uma positividade das aparncias. O
espectador justamente a figura e a condio para que elas manifestem o sentido latente de
que so portadoras15. O fato de haver (sempre) a necessidade de espectadores que garantam
a realidade objetiva do sujeito que aparece, espectadores que fazem parte do mundo que j
est constitudo quando o homem aqui chega, aponta para plos opostos, o mundo das idias e
o mundo das aparncias, onde se tem, respectivamente, num extremo, a figura do espectador
tradicional, aquele que se afasta do mundo o suficiente para contempl-lo, e chegar s
verdadesauto-evidentes; no outro extremo, a figura do espectador arendtiano, como aquela
testemunha, to desprezada pela tradio filosfica, e que est relacionada com as verdades
factuais, com a relatividade dos negcios humanos, enfim, com a opinio, a doxa.
14KRISTEVA. O gnio feminino, p.14315AGUIAR. O espectador como metfora do filosofar em Hannah Arendt. In: CORREIA, Cladio. (Org.)Transpondo o abismo, p.98
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significativo que Arendt discuta com profundidade a origem do que rotula de
falcias metafsicas, como, por exemplo, a teoria dos dois mundos, e defenda, em seguir,
que ser e aparecerso coincidentes, mas, por outro lado, no rotule a figura do espectador
como tambm uma falcia. Pelo contrrio, a autora insiste na importncia do espectador, mas
observa a perda de statusque esse sofreu, at tornar-se figura descartvel. Essas afirmaes a
respeito da figura do espectador s podem ser justificadas, acompanhando-se a autora, em seu
levantamento histrico sobre O Pensar.
Compreender essa figura em Arendt , tambm, tentar romper como a autora o fez,
em outros textos, a respeito da ao, do trabalho, da liberdade , com aquilo que est
sedimentado pela tradio, fazendo dessa investigao uma anlise renovada, que possa
iluminar velhas questes.
2.1 As posies de: Pitgoras, Plato, Lucrcio e Scrates
Ao tratar especificamente da figura do espectador, Arendt considera que
historicamente esse tipo de retirada do agir a mais antiga condio postulada para a vida do
esprito. Em sua forma original, funda-se na descoberta de que, somente o espectador, nunca o
ator, pode conhecer e compreender o que quer que seja se oferea como espetculo (VE:72).
importante observar que, em termos de status, o espectador apresentar uma superioridade
em relao ao ator, e, alm disso, a filosofia grega tem o espectador como uma figura
imprescindvel, por estar este intrinsecamente ligado ao modo de vida contemplativo, mais
valorizado pelos gregos.
Neste fragmento de parbola atribuda a Pitgoras, tem-se a definio bsica do
espectador, com sua localizao e funo:
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A vida ... como um festival, assim como alguns vm ao festival para competir, e algunspara exercer os seus negcios, mas os melhores vm como espectadores [theatai], assimtambm na vida os homens servis saem caa da fama [doxa] ou do lucro, e os filsofos caa da verdade (VE:72).16
Destacam-se, no texto, os seguintes pontos:
O espectador pitagrico, tido como o melhor, aquele que se posiciona fora da
competio e observa o espetculo que apresentado, podendo, assim, captar todo o jogo e
compreender seu significado, o que no possibilitado ao ator. Esse afastamento do jogo do
mundo tambm a condio necessria para o juzo, visto que o espectador pitagrico no se
interessa pela fama ou pelo lucro. Nesse sentido, h um prazer desinteressado e imparcial, mas
que depende dos outros espectadores, que tambm comparecem ao festival.
A relao vida/festival indica que o espectador aprecia o espetculo e permanece
ligado ao mundo das aparncias. Na parbola pitagrica, se os atores buscam fama ou lucro,
os filsofos buscam a verdade. A analogia entre espectador e filsofo e a conseqente relao
com a verdade tem desdobramentos que distorcem o propsito original da parbola citada.17
Observando a afirmao: os filsofos [saem] caa da verdade, detecta-se uma
distoro da finalidade do espectador/filsofo, porque o espectador pitagrico no almeja a
verdade, mas sim a compreenso do todo, o significado do espetculo. Ao captar o
16Citado por Arendt, VIII 8, segue traduo de Kirk e Raven, frag.27817 Arendt discutiu, baseando-se em Leibniz, a diferenciao entre verdades factuais everdades racionais, sendo que verdades racionais ou matemticas so auto-evidentes,necessrias e com uma fora de coero universal, enquanto que verdades de fatoapresentam-se como contingentes, dispondo de uma fora coercitiva limitada queles quetestemunham o evento, no alcanando aqueles que no tendo sido testemunhas, tm queconfiar no testemunho de outros em que se pode ou no acreditar (VE:46). A oposio entrenecessidade e contingncia, para Arendt, no procedente, e ela defende que o oposto danecessidade no a contingncia ou acidente, mas liberdade (VE:47). Essa liberdade estestritamente vinculada ao conceito de espao pblico enquanto espao em que o homem aparece, no discursoou na ao. Por sua vez, a distino entre verdades racionais e verdades factuais tambm no temfundamento, considerando que o intelecto, o rgo do conhecimento e da cognio, ainda pertence a essemundo (VE:47), mundo das aparncias, da aplicao dos sentidos. Por sua vez, se no pensamento arendtiano, averdade tudo aquilo que somos compelidos a admitir pela natureza dos nossos sentidos ou do nosso crebro(VE:48), porque o conceito de verdade, nessa autora, implica em que as verdades cientficas so verdadesfactuais.
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significado, pode o espectador expressar sua posio, ajuizar, aprovando ou desaprovando o
espetculo. Da a observao de Arendt a respeito do juzo, o qual no se presta a analisar o
Bem ou o Mal, mas o certo e o errado, o belo e o feio.
A distino entre verdade e significado indica que, se os filsofos se posicionam como
espectadores, conforme analogia efetuada pela parbola, no deveriam esperar, como
decorrncia disso, a aquisio da verdade, do Bem, mas a apreenso do significado, do todo.
Essa distoro explicada por Arendt, quando se leva em conta que a razo uma condio
a priorido intelecto e da cognio; e porque razo e significado esto assim conectados
apesar da completa diferena de disposio e propsito que os filsofos sentiram-se
sempre tentados a aceitar o critrio da verdade to vlido para a cincia e para vida
cotidianacomo igualmente aplicvel ao mbito bastante extraordinrio em que se movem.
(VE:48). E esse mbito extraordinrio nada mais que o afastamento requerido pela
atividade do pensamento, mas sempre levando em conta que o homem continua pertencendo
ao mundo, havendo uma estreita conexo entre verdade e significado, conhecimento e
pensamento.18Arendt defende que a razo deve ser ampliada sob a forma de narrativa, alm
dos limites da razo raciocinante; ultrapassar esse limite no pode implicar, entretanto, em
rotular esse esforo como irracionalismo.
As implicaes dessa analogia entre o espectador e o filsofo e a aproximao entre
verdade e significado podem ser confirmadas nos textos de Plato. Antes disso, importante
18Arendt dedica, em A Vida do Esprito, um tpico denominado Cincia e senso comum; a distino de Kantentre intelecto e razo, verdade e conhecimento, para discutir as diferenas entre razo (Vernunft) e intelecto(Verstand); a autora reconhece que uma linha clara de demarcao entre essas duas modalidades inteiramentedistintas no pode ser encontrada na histria da filosofia(VE:45), salientando, ainda, que Kant no insiste em
que as idias da razo pura realizam apenas ensaios, no provam nem exibem nada, temendo ele que suasidias possam se transformar em coisas-pensamento vazias ( leere Gedankendinge)(VE:50). Mesmo assim,para Arendt, caberia ao intelecto a apreenso de percepes, daquilo que dado aos sentidos, tendo a verdadecomo critrio e a conseqente acumulao de conhecimentos. A razo (pensar), por sua vez, buscariacompreender o significado daquilo que foi apreendido pelos sentidos: essa faculdade no pergunta o que umacoisa ou se ela simplesmente existe sua existncia sempre tomada como certamas o que significa paraela, ser (VE:45)
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ressaltar que Arendt utilizou a parbola pitagrica para discutir o papel do espectador em
termos de juzo. A autora observa que, historicamente falando, sua interpretao foi bastante
inadequada (VE:99) (esse um exemplo do processo de desmontagem do passado, com
recuperao de fragmentos, defendido por Arendt). O que prevalece na parbola a
supremacia do theorein(do contemplar) sobre o fazer. Isso porque
o participante absorvido em coisas especficas e pressionado por afazeres urgentes no podever como todas as coisas particulares do mundo e como todos os feitos particulares ajustam-seuns aos outros e produzem uma harmonia que no , ela mesma, dada percepo sensorial.Esse invisvel no visvel permaneceria para sempre oculto se no houvesse um espectadorpara cuidar dele, admira-lo, endireitar as histrias e p-las em palavras (VE:101-2).
O invisvel no visvel (Arendt segue Merleau-Pointy) refere-se busca do sentido
nas aparncias, daquilo que visto pelo espectador desinteressado, imparcial, mas o qual s
poder ser encontrado no mundo. Endireitar as histrias e p-las em palavras corresponde
ao exposto anteriormente, da razo ampliada sob a forma de narrativa: contemplar condio
para contar a histria e essa busca de uma imortalidade que esteja vinculada posteridade,
lembrana dos feitos dos homens, uma caracterstica da Grcia pr-filosfica. O cidado luta
pela imortalidade, no espao pblico, na bios politikos.
Essa busca pela imortalidade foi substituda, em Plato, pela aproximao das coisas
eternas, a qual poderia ser efetuada pelo esprito (nous)19. O termo nouscorresponde ao Ser
(pensar) e usando o nous, e retirando-se espiritualmente de todas as coisas perecveis, o
homem assimila-se ao divino (VE:104). Do fato de o filsofo colocar-se fora da esfera dos
negcios humanos e fora da pluralidade dos homens (CH:29), ou seja, da contemplao no
sentido tradicional, que resultou a idia de que o filsofo estava numa posio superior
daqueles que disputavam a imortalidade no espao pblico. Conseqncia disso foi a idia de
que vita contemplativaera superior vita activa.
19Arendt chama a ateno para as ms tradues de nous e theoriapor conhecimento, ou seja, o que semprealcana um fim e o que sempre produz um resultado final. (VE:94)
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O espectador pitagrico posicionava-se de forma a ter a viso completa do jogo; em
Plato, observa-se o distanciamento dos assuntos mundanos, devido sua contingncia, isso
porque o conhecimento puro diz respeito s coisas que so sempre as mesmas, sem mudana
nem mistura, ou, pelo menos, as que mais se aproximam delas20. Essa contemplao do
eterno, efetuada pelo filsofo platnico, no era discursiva, e o segundo movimento
consistiria, justamente, na tentativa de traduzir o que foi visto, sob a forma de palavras
traduo da viso do filsofo em palavras, aletheuein, no sentido estrito do filsofo (VE:105).
A linguagem utilizada por ser o nico meio pelo qual possvel tornar manifestas as
atividades espirituais no s para o mundo exterior como tambm para o prprio eu espiritual
(VE:79).
O esprito (nous), que tambm o Ser (pensar), busca o significado, atravs da
contemplao (viso). Mas essa traduo daquilo que foi contemplado, em forma de
palavras (aletheuein) causa confuso, porque, enquanto o critrio da viso (contemplao)
consiste na qualidade da eternidade do objeto visto, o critrio da fala a verdade (VE:105).
Arendt sustenta que o critrio para a faculdade da viso no a verdade, como sugere o
verbo aletheuein, derivado do termo homrico alethes (verdico) (VE:105). Para tanto, a
autora se dispe a analisar conceitos que ficaram desgastados, confundidos, prejudicados por
ms tradues, desvirtuados, ao longo do tempo (exemplos disso foram expostos
anteriormente: verdades racionais e verdades factuais; necessidade e contingncia;
significado e verdade; imortalidade e necessidade). Arendt defende a narrativa, a possibilidade
de contar estrias, captando o significado de um evento e para tal o espectador figura
fundamental, como mecanismo de recuperao do mundo, da humanidade.
Na concepo arendtiana, o espectador/filsofo no tem como finalidade a busca da
imortalidade atravs da contemplao e relacionada athanatizein atividade imortalizante
20Philebus, 59b,c citado em VE:106
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, citada por Aristteles, sob influncia platnica (VE:108). A autora insiste que, em Plato,
a verdadeira marca do filsofo o espanto. No Teeteto, do autor citado, h a seguinte
passagem:
Pois essa a principal paixo (pathos) do filsofo: espantar-se (thaumazein). No h
outro comeo ou princpio (arche) da filosofia seno esse. Penso que no era mau
genealogista aquele [ou seja, Hesodo] que fez de ris [o arco-ris, um mensageiro dos deuses]
filha de Thaumas[aquele que espanta]21. A palavra thaumazein, usada para designar espanto,
aparece regularmente em Homero e derivada de um dos muitos verbos gregos que
designamver no sentido de olhar para: theastai (VE:108). A autora ressalta que a mesma
raiz, theatai, encontrada na parbola pitagrica sobre os espectadores. Apesar de Plato no
especificar a que se dirige o espanto admirativo, este leva o filsofo a pensar em palavras;
a experincia do espanto diante do invisvel manifesto nas aparncias foi apropriada pela fala
[ris derivado do verbo dizer (eirein)] que, ao mesmo tempo, forte o suficiente para
dissipar os erros e as iluses a que os nossos rgos para o visvelolhos e ouvidosesto
sujeitos quando o pensamento no vem em seu socorro (VE:109). A partir dessas reflexes,
possvel salientar a funo bsica do espectador: espantar-se, concentrar a ateno em
determinado ponto, em uma situao e extrair-lhe o significado, o qual no corresponde,
necessariamente, a uma verdade universal (dita auto-evidente), mas a uma verdade,
enquanto juzo, julgamento.
Se a linguagem componente essencial do homem, como se estabeleceu a diferena
hierrquica entre os filsofos e os homens comuns (a multido)? No seria apenas pelo fato de
que os filsofos espantam-se, enquanto que a multido vive como o gado, que somente aos
filsofos caberia a apreenso da verdade. Essa questo est concatenada ao ponto principal,
21Teeteto, 155d, citado em VE:108
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dificuldade em definir o espectador platnico semelhana do espectador pitagrico, apesar
de espantar-se e olhar para tenham a mesma raiz da palavra espectador.
Arendt afirma, baseada em textos de Plato, que o espectador platnico , por
definio, um estrangeiro (a bios xenikos, a vida de um estrangeiro descrita por
Aristteles22). E o , no por medo da perseguio da multido, como est expresso no final
da parbola da Caverna, em que Plato conclui, talvez inspirado no julgamento de Scrates,
que tivesse a multido uma nica chance, poria suas mos sobre os poucos [os filsofos] e os
mataria (VE:63). O filsofo, por medo do riso da multido, afasta-se em busca de uma
posio privilegiada, supostamente superior, sem contato com os assuntos mundanos. A
multido escarnece das preocupaes do filsofo e da aparente inutilidade daquilo de que ele
se ocupa (VE:64).
Quais as implicaes decorrentes do posicionamento do espectador platnico como
um estrangeiro, que privilegia a vita contemplativa, em detrimento da vida activa? A
contemplao filosfica empreendida pelo espectador platnico permite-lhe afastar-se do
mundo das aparncias, onde tudo contingente, e dedicar-se quilo que possui eternidade, em
que a verdade apresenta carter imperioso, coercivo e necessrio. Mas, tal como foi descrito
na parbola da Caverna, quando o espectador/filsofo retorna caverna, a verdade obtida pela
contemplao das idias eternas torna-se mais uma opinio no meio da multido. Plato teme
o riso da multido, porque est consciente de que o filsofo perde o sentido de realidade
quando est absorto em seus pensamentos, uma vez que todo ato espiritual repousa na
faculdade do esprito ter presente para si o que se encontra ausente dos sentidos (VE:60).
Plato se dedica, pois, a analisar o espao pblico e concebe a figura do filsofo-rei, com
capacidade para governar a polis, devido aos seus conhecimentos. Como conseqncia, a
isonomia (igualdade) da polis grega substituda por uma concepo hierrquica que
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distingue entre os que sabem (e por isso governam) e os que no sabem (por isso so
governados).
At aqui, podem se destacar as seguintes alteraes a respeito do conceito de
espectador, nesse levantamento histrico focado no pensar:
- a pluralidade pitagrica foi convertida no isolamento platnico;
- a busca do significado do jogo do mundo transformou-se em apreenso da verdade,
seguida de acumulao de conhecimentos, como conseqncia da expresso dessa verdade
atravs das palavras;
- os juzos do espectador pitagrico, movidos por um prazer desinteressado (e tendo como
premissa a pluralidade), no so mais aceitos pela tradio filosfica. A doxa (opinio)
associada multido. O que prevalece, para a tradio, so as verdades dita imutveis, que
orientam a conduta humana.
Configura-se, aqui, o que Arendt descreve como os rumos diferentes tomados pelos
homens de pensamento e os homens de ao. O filsofo, como figura paradigmtica do
conhecimento da verdade, hierarquicamente superior ao homem poltico, ou seja, o
pensamento passou a dominar a ao, prescrevendo-lhe princpios e regras da ao derivados
das experincias do pensamento.23
Arendt discute em O Pensar os pressupostos pr-filosficos da filosofia grega, a
influncia do pensamento de Plato (A resposta de Plato e seus ecos), as modificaes
efetuadas pelos filsofos romanos (A resposta romana). De forma similar, a investigao
volta-se para a filosofia romana, em busca de informaes que estejam relacionadas ao
conceito de espectador e que possam alterar o que a tradio filosfica grega legou, ou seja, o
privilgio que o espectador confere vita contemplativae o desinteresse pela Poltica.
22Poltica, 1324 a16, citado em VE:4223DUARTE. Pensamento sombra da ruptura, p.200
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Para os romanos, o modo de vita contemplativaainda o mais indicado ao filsofo,
mas no mais como decorrncia daquele espanto admirativo diante do espetculo em meio a
que o homem nasceu e o qual almeja a verdade, mas, agora, como forma de escapar de um
mundo cuja hostilidade arrasadora, onde o medo predomina (VE:122). A filosofia, em
Ccero, invocada para compensar as frustraes da poltica e, de uma maneira geral, da
prpria vida (VE:121); e ainda era uma ocupao prpria de homens bem educados que se
haviam retirado da vida pblica e no tinham nada de mais importante com que se preocupar
(VE:120). Arendt chama a ateno para essa profunda distino entre as filosofias grega e
romana, distino esta que foi desconsiderada pelos manuais de histria da filosofia (VE:123).
Lucrcio (I a.C) assim descreve a posio do espectador/filsofo: que prazer, quando,
sobre o mar aberto, os ventos revolvem as guas, contemplar da costa o penoso trabalho de
outrem! No porque as aflies de algum sejam em si mesmas fontes de prazer; mas
considerar que ests livres de tais males sem dvida um prazer !!24.
Nesse contexto, desaparece a posio hierarquicamente privilegiada do espectador
grego, como aquele que tem acesso s verdades imutveis. O espectador romano, assolado
pelo medo e pela misria dos assuntos mundanos e de suas mudanas imutveis (VE:106),
descrito por Lucrcio, se apresenta como algum que observa por curiosidade, a partir de um
porto seguro. No precisaria nem ter visto o naufrgio, pois o mais importante a segurana
advinda desse isolamento em relao ao mundo. Em vez do thaumazein(espanto platnico), o
espectador/filsofo romano adotar a atitude contrria, o nil admirari, no surpreender-se
com nada, nada admirar25. A filosofia romana desfere, pois, o ltimo golpe no conceito de
espectador (originariamente pitagrico). De acordo com Arendt,
o que se perdeu no foi apenas o privilgio que o espectador tinha de julgar (comoencontramos em Kant) nem o contraste fundamental entre pensar e fazer, mas a percepoainda mais fundamental de que tudo aquilo que aparece est l para ser visto , a percepo de
24Lucrcio,De Rerum Natura, livro II, citado em VE:10725Ccero, Tusculanae Disputationes, III, xiv 30, citado em VE:115
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que o conceito mesmo de aparncia exige um espectador, o que tornava a viso e acontemplao atividades de o estatuto mais elevado (VE:107, grifo nosso).
O espectador/filsofo romano, na medida em que seu objetivo principal colocar-se
em segurana, acaba por promover uma suspenso da realidade, esse desvencilhar-se da
realidade, tratando-a como nada mais do que uma impresso (VE:119). Se no espectador
platnico no h mais a concepo de juzo, devido ao isolamento e busca de verdades
imutveis , no espectador romano no h mais a necessidade de preocupar-se em olhar
para, colocando-se como espectador, porque o esprito carregou para dentro de si as
aparncias. E sua conscincia tornou-se um substituto completo para o mundo exterior,
apresentado como impresso ou imagem (VE:118).Mas esse afastamento adotado pelo filsofo romano sofreu alteraes, com o decorrer
do tempo. Refugiar-se em si mesmo, porto seguro, contra os males, transformou-se, na
modernidade, em desconfiana em relao ao mundo: o homem evita os outros, evita o
espao pblico. A questo : de que forma obter a humanidade se, para tal, necessrio o
contato com os outros homens? Mais do que isso, a desconfiana do homem volta-se para ele
prprio, para os seus sentidos que no seriam aptos a captar a realidade (lembrando que a
realidade deve ser compartilhada com os outros homens, o sexto sentido) e que a razo no
consegue apropriar-se da verdade (lembrando que a verdade, quando expressa sob a forma
de palavras, adquire estatuto de doxa, de opinio, e, portanto, torna-se relativizada).
Isto leva a uma concluso preliminar, simplista, de que, de acordo com o que foi
transmitido pela tradio filosfica, no seria mais possvel precisar o conceito de espectador.
O espectador arendtiano resultado do esforo da autora em no permanecer na
contemplao, mas, ao mesmo tempo, situar-se de tal modo a ainda manter a viso do todo,
de captar o significado dos eventos.Arendt, para tentar responder pergunta o que nos faz
pensar?, recua em seu percurso filosfico e contrape sua anlise sobre O Pensar uma
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discusso sobre Scrates, no o Scrates histrico, porta-voz de teorias e doutrinas platnicas
(VE:127), mas o que aparece em textos como o dilogo Hpias Maior, considerados pela
autora como inteiramente socrticos. (Na tradio filosfica, o que prevalece a afirmao
contida no Timeu. O dilogo Hpias Maior contestado como obra de Plato, mas Arendt
insiste em que esse texto pode, ainda assim, oferecer um testemunho autntico sobre
Scrates, mesmo que no tenha sido escrito por Plato (VE:141)).
Scrates tido pela autora como exemplo de pensador no profissional, por ter
conseguido ficar vontade nas duas esferas [do pensar e do agir] e ser capaz de passar de
uma outra aparentemente com a maior facilidade, do mesmo modo como ns avanamos e
recuamos constantemente entre o mundo das aparncias e a necessidade de refletir sobre ele
(VE:126), ou seja, h sempre o recomeo da tarefa, uma reflexo, um ir-e-voltar que se
permite modificar, impedindo a cristalizao em uma posio definida (tanto assim que
Arendt observa que o amor o nico assunto sobre o qual Scrates se diz conhecedor)
(VE:134). Isso implica que, ao contrrio do que a tradio filosfica quer reafirmar, a
apreenso da verdade no se faz em um mundo em repouso. H um esforo socrtico em
compreender o mundo em que se vive, mundo este marcado pelo movimento, ao mesmo
tempo em que o eu torna-se vigilante quanto aos prprios pensamentos.
Scrates seria o representante mximo da fuso entre filosofia e poltica, porque
manifestava seu pensamento no dilogo pblico. O fracasso dele em fazer valer a sua
inocncia, atravs do discurso e que repercutiu nos textos de Plato e Aristteles baluartes
da tradio filosfica ocidental teria sido o ponto nevrlgico da ruptura entre Filosofia e
Poltica. As conseqncias disso esto expressas nos textos filosficos: enfatizam a
subordinao dadoxa(opinio) verdade; subordinao da poltica filosofia; poltica como
meio para atingir o bem comum; enfim, a perda da dignidade da poltica. Para Plato, o
desprezo pela doxaestende-se figura do espectador pitagrico, porque este no abandona as
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opinies incertas. Plato no aceita, talvez influenciado pelo fracasso socrtico, que o homem
esteja exposto opinio alheia, e que o que interessa essencialmente ao ator adoxa, uma
palavra que significa tanto fama quanto opinio (VE:73).
Entretanto, Scrates afirmava preferir entrar em desacordo com a multido que ele,
sendo um, viesse a entrar em desacordo consigo mesmo e a contradizer-se26. Essa
possibilidade de interao com os outros, presente em Pitgoras, admitida por Scrates, mas
este d prioridade pluralidade interna em caso de conflito com o mbito externo. No dilogo
o Hpias Maior, Scrates diz a Hpias que era este ditosamente afortunado, enquanto que
Scrates era
aguardado em casa por um sujeito muito irritante que vive a interrog-lo. (...) Quando Hpiasvolta para casa ele permanece um, pois embora viva s, no busca fazer-se companhia. No certamente, que ele perca a conscincia, s que ele no costuma exercit-la. Quando Scratesvai para casa, ele no est solitrio, estjuntoa si mesmo (VE:141).
Assim, para Arendt, a figura do espectador, aquele que se afasta do espetculo para
poder contempl-lo em todos os detalhes, descobrindo, a, o seu significado, implica em uma
retirada do agir, mas no implica em uma quietude prpria atividade do pensamento. A
quietude exigida do espectador platnico, virtude filosfica dos clssicos antigos, e que est
vinculada auto-suficincia, naquele que eternamente [..] solitrio, em razo de sua
excelncia, sempre capaz de estar junto a si mesmo, no precisando de mais ningum, amigo
ou conhecido, e bastando a si mesmo27, no est em desacordo com o espectador socrtico.
Scrates tambm reconhece que o fundamental ocorre no mbito interno e, nesse sentido, o
filsofo basta-se a si mesmo. Plato, por sua vez, nega a pluralidade externa. Na anlise de
Arendt, o nico critrio de pensamento socrtico a conformidade, o ser consistente consigo
mesmo(VE:139). Esse critrio no foi mantido por Plato que, de acordo com o que j foi
visto neste trabalho, temia o riso da multido (e talvez temesse tambm as conseqncias de
26Grgias, 482c, citado em VE:13627PLATO, Timeu,citado em VE:73
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um confronto) e elegeu a verdade como critrio para o pensamento. Mas Plato, ao afirmar
que no precisa de amigo ou conhecido, se ope ao que Scrates teria dito sobre o sujeito
irritante que o espera em casa.
Arendt considera que o sujeito irritante com o qual Scrates convive, no seria o que
se entendeu, posteriormente, como conscincia moral (conscience) outrora a voz de Deus e
convertida no tu deves kantiano, sempre presente. Pelo contrrio, a conscincia socrtica
est ausente, no lhe diz o que fazer e s aparece quando ele volta para casa, ou seja, re-
pensa, reflete, torna-se dois-em-um, encontra o outro indivduo.
Para Arendt, faz-se necessrio a recuperao da dignidade da poltica, inserindo-a
numa dimenso socrtica28
; em vista disso, pode-se argumentar que a reabilitao da figura do
espectador est estreitamente ligada ao reerguimento da Poltica.
Na tentativa de delimitar o conceito de espectador no volume O Pensar, esta pesquisa
deveria ser interrompida logo aps a discusso da figura de Scrates, que poderia ser
considerado um ideal arendtiano e, acompanhando o percurso efetuado por Arendt, passar
para uma abordagem no mbito temporal, no captulo onde estamos quando pensamos,
extraindo, da, a localizao desse espectador. Entretanto, identifica-se uma lacuna nesta
investigao como se, aps Lucrcio, Arendt perdesse, de forma implcita, o interesse pelas
mudanas ocorridas no conceito do espectador, na tradio filosfica, voltando toda sua
ateno para Scrates.
Foi preciso, para concluir esse percurso histrico at modernidade, recorrer a outro
ponto de A Vida do Esprito, no volume O Querer, quando Arendt analisa a soluo de
28Grard Lebrun, no artigo Hannah Arendt: um testamento socrtico discute o volume O Pensar, e questiona:para que serviria o exerccio do pensamento e especificamente, em Scrates? Lebrun conclui que estareabilitao do socratismo constitui o centro do livro. em funo dela que a autora delimita o conceito depensamento de que necessita para a sua demonstrao, e que tambm nos prope um circuito inslito atravs da
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Hegel: a filosofia da Histria, relacionando a Revoluo Francesa com o surgimento de uma
filosofia que se ocupa dos assuntos humanos: a Revoluo Francesa provara que a verdade
em sua forma viva podia mostrar-se nos assuntos do mundo29. Esse trecho d margem a uma
possvel reabilitao da figura do espectador pitagrico, interessado no jogo do mundo.
Arendt, discutindo esse mesmo ponto (Revoluo Francesa e Hegel) no texto Da Revoluo,
destaca que o Absoluto dos filsofos revelara-se no domnio dos assuntos humanos, isto ,
precisamente naquele domnio (..) que os filsofos haviam unanimemente excludo como
fonte ou origem de padres absolutos(SR:41).
O espectador hegeliano, interessado no processo histrico, busca neste uma verdade
vlida para todos os homens. A Histria significa um meio de revelao da verdade, verdade
essa que se revela a si mesma, em decorrncia do movimento histrico dialtico e, ao mesmo
tempo, necessrio. Mas Hegel, como filsofo, para proceder a esse deslocamento da
Metafsica para uma Filosofia da Histria, postou-se ele mesmo no exterior de todos os
sistemas e crenas do passado com reclamos de autoridade(EPF:55), ou seja, ainda uma
filosofia essencialmente contemplativa. Hegel foi o predecessor de Kierkegaard, Marx e
Nietzsche, os quais se situam no fim da tradio filosfica.
A partir dessa ruptura da tradio, a ao substitui a contemplao, e a verdade no
pode mais ser sustentada teoricamente quando a Cincia se tornou ativa e fez para
conhecer(EPF:67). O historiador moderno, analisando o processo histrico, interessa-se pelo
significado objetivo, independente dos alvos e da conscincia dos atores, e propenso a
menosprezar o que efetivamente aconteceu (EPF:124). , pois, diante dessa crise filosfica,
agravada na contemporaneidade, que justificadamente Arendt volta sua ateno para Scrates,
um homem que discutia, criticava e que no era considerado um contemplativo, mas um
histria da filosofia. (LEBRUN. Passeios ao Lu, p.62). No se pode concordar com Grard Lebrun, quandoeste resume O Pensar, de uma forma simplista, como uma reabilitao do socratismo.29HEGEL.Filosofia da Histria, citado em VE:221
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homem que exercia um tipo de racionalidade semelhante ao, que poderia ser definida
como uma racionalidade prtica.30
E a questo temporal, a saber: onde se localiza o espectador arendtiano, se, quando
pensamos, no estamos em lugar nenhum?
No ltimo tpico de O Pensar, a lacuna entre o passado e futuro: o nunc stans,
Arendt narra uma parbola de Kafka, intitulada Ele, que descreve a sensao temporal do
ego pensante (VE:153), em que o tempo (passado e futuro) o maior inimigo do ego
pensante, porque o tempo (..) regular e implacavelmente interrompe a quietude imvel na qual
o esprito est ativo, sem nada fazer (VE:156). Na parbola, Ele sonha com um momento
de desateno dos dois antagonistas para que ele pulasse para fora da linha de batalha e,
graas a sua experincia em lutar, fosse promovido posio de rbitro da luta de seus
adversrios entre si31.
Na investigao ora efetuada a respeito do espectador, este se afasta do jogo do
mundo, em busca do significado. Isso coincide com a parbola de Kafka. Tambm ele
sonha com um momento de desateno(VE:156), para tornar-se um espectador/ rbitro
tipicamente pitagrico.
Na tradio filosfica, o ponto de vista do espectador tal que, para aquele que
observa, o tempo passa da maneira como habitualmente o pensamos, como uma sucesso de
agoras, em que uma coisa sempre sucede a outra (VE:154). Arendt defende que ele deve
permanecer posicionado entre o passado e o futuro. Mas ele, na parbola de Kafka, ento
ator? o homem que luta contra foras contrrias?
30BERTI. Aristteles no sculo XX, p.24531Gesammelte Schriften, v.5, citado em VE:153
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A explicao da autora que sem ele no haveria nenhuma diferena entre passado
e futuro, mas apenas uma eterna mudana. Ou ento essas foras bateriam de frente e se
aniquilariam mutuamente (VE:156). A presena do homem produz um desvio nessas foras
(passado e futuro), formando um ngulo e, da ao das duas foras produz uma terceira
fora, a diagonal resultante cuja origem seria o ponto em que as duas foras se encontram e
sobre o qual elas agem (VE:157). Essa regio de calmaria, esse intervalo entre o passado e o
futuro justamente o presente, onde se localizaria o ego pensante (a autora alerta que usa
metforas, sem validade quando aplicadas ao tempo histrico e biogrfico). Por isso, o
homem no tem que pular para fora da linha de batalha, como descrito por Kafka. E Arendt
conclui: nessa lacuna entre o passado e o futuro, encontramos nosso lugar no tempo quando
pensamos, isto , quando estamos distantes o suficiente do passado e do futuro.
pergunta anterior, se ele ator, a resposta negativa. Ele, tal qual Arendt
props, o homem que consegue situar-se na posio de observador, de espectador
desinteressado; apenas porque ele pensa e, portanto, deixa de ser levado pela
continuidade da vida cotidiana em um mundo de aparncias (VE:155), e porque alcana uma
regio onde podemos refletir e numa posio de descobrir o significado e assumir o lugar do
rbitro(VE:158). O homem, enquanto indivduo, uma fora combativa, capaz de alterar o
fluxo temporal, ou seja, no um sujeito passivo. Mas s quando ele se torna consciente de
estar inserido entre um passado infinito e um futuro infinito (VE:158), quando recua em
relao ao cotidiano, isto , se posiciona naquela regio de calmaria, assumindo a posio
de espectador em relao ao mundo, s aparncias, que exerce a faculdade do pensar, o que
implica no estabelecimento de um dilogo de eu e eu mesmo, um dilogo com um
espectador interno.
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2.2 O espectador arendtiano e oshommes de lettres
Uma das dificuldades na interpretao deA Vida do Esprito , justamente, ao longo
da discusso efetuada pela autora a respeito das faculdades humanas, principalmente em O
Pensar, delimitar a figura do espectador e estabelecer a sua importncia real, no mundo, na
existncia emprica. Tem-se, ao final da investigao, a sensao de se estar lidando com uma
figura que carece de realidade (talvez, como conseqncia de sensaes semelhantes a
respeito de outras investigaes efetuadas, alguns crticos, como Stuart Hampshire, tenham
rotulado A Vida do Esprito como brumas metafsicas). Contudo, Arendt no escreve A
Vida do Esprito apenas para demonstrar sua capacidade filosfica, como outros tambm
insinuaram.
Em vista disso que os exemplos oferecem subsdios para uma argumentao
consistente e, alm disso, apresentam a vantagem de no encaminhar a investigao,
obrigatoriamente, para a associao usualmente efetuada pelos comentadores, a respeito de
um espectadorhistoriador. Arendt, em Da Revoluo, enfatiza o papel dos hommes de
lettrese o papel dos cidados comunsno mbito poltico. A autora assim descreve os hommes
de lettres, considerados tericos pr-revolucionrios e predecessores dos filsofos do
Iluminismo e dos revolucionrios profissionais:
Eles se educaram e cultivaram suas mentes numa recluso pela qual optaram livremente,colocando-se, portanto, a uma distncia calculada, tanto do social como do poltico dosquais de qualquer sorte, haviam sido excludos , a fim de observ-los numa perspectivaapropriada. (..) Eles se voltaram para o estudo de autores gregos e romanos (..). Foi essapesquisa sobre a liberdade poltica, e no a busca da verdade, que os levou de volta Antigidade. (SR:98-99)
Os hommes de lettres se ressentiam da obscuridade, uma conseqncia do regime
tirnico, absolutista. Um conceito que se destaca que esses homens possuam esprito
pblico, e que sua felicidade s poderia constituir-se numa felicidade pblica, e no em bem-
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estar pessoal. H uma preocupao da autora em delimitar as faculdades da razo presentes
nesses homens os hommes de lettres e os cidados dos conselhos os quais so
responsveis pela manuteno desse espao pblico.
Os exemplos recorrentes em Da Revoluo so Montaigne e Montesquieu. Nesse
sentido, pertinente uma rpida explanao sobre a figura de Montaigne (1533-1592) e de seu
texto Os Ensaios, escrito ao longo de 20 anos (1572-1592), o qual revela um Montaigne que
se auto-intitula filsofo por acaso, buscando a compreenso de um mundo tumultuado por
descobertas cientficas, pela descrena nas questes religiosas e a mudana de paradigmas.
Um Montaigne que se entrega reflexo, em um ir-e-voltar, permitindo-se uma no-
cristalizao em uma posio definida, porque o eu torna-se vigilante quanto aos prprios
pensamentos.
Ao final de sua vida, Montaigne adquire uma compreenso de que o mundo em que
vive, ao contrrio do que na filosofia antiga transparece, no repouso, mas ,
intrinsecamente, movimento. E se os Ensaios so compostos por temas diversos, com
centenas de exemplos, e se esses no tm validade universal, nem por isso Montaigne os
desconsidera. Pode-se dizer, usando um termo de Arendt, que h validade exemplar: os
exemplos apresentam-se como fragmentos, num mundo heterogneo, contingente, sendo que
o exemplo, na sua prpria particularidade, revela a generalidade que, de outra forma, no
poderia ser definida (VE:381). No se trata de ir do particular para o geral, de buscar o
sentido da histria, mas de refletir sobre aquele particular, captando-lhe o sentido, sendo que:
um evento pertence ao passado, marca um fim, na medida em que elementos com suaorigem no passado so agrupados em sua sbita cristalizao; mas um evento pertence aofuturo, marca um comeo, na medida em que esta cristalizao nunca pode ser deduzida de
seus prprios elementos, mas causada invariavelmente por algum fator que jaz no mbito daliberdade humana.32
32ARENDT. Essays in Understanding, p.326, cit. por DUARTE, O pensamento sombra da ruptura,p.37
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Para Montaigne, a verdade absolutapertence a Deus, sendo que apenas as coisas
que nos vm do cu tm direito e autoridade de convico, apenas elas tm a marca da
verdade33. Nessa busca rigorosa da verdade, algumas afirmaes obtidas em pontos
diferentes dos Ensaios podem causar confuso, como, por exemplo, , pois, no momento
mesmo que o contemplo [o objeto] que devo terminar a descrio. (..) Da acontecer-me, no
raro, cair em contradio, embora (..) no deixe de ser autntico34. Aqui, o ponto de vista
do espectador situado, sujeito s dificuldades advindas da observao do objeto. Onde,
portanto, a verdade?
Mais importante, em Montaigne, a exigncia de veracidade entre aquilo que lhe
povoa o ntimo e o que comunica aos leitores, ou seja, a coincidncia entre o privado e o
pblico. Montaigne pondera que essa liberdade [do privado e do pblico] suscetvel de se
apresentar com duas caras, uma nas palavras e outra nos fatos, ser talvez permitido a quem
fale de certos assuntos, no a quem trate de si mesmo como o fao.35Dessa forma, pode-se
concluir que no h busca da verdade absoluta, mas h uma busca de uma verdade em que se
pode confiar, qual seja, a que respeita o princpio da no-contradio, proveniente do
homem que consegue alcanar a concordncia entre o privado e o pblico, entre aquilo que
pensa e o que expressa em aes e palavras. (em Scrates, isso corresponde consistncia
consigo mesmo).
Parece configurada, em Montaigne, uma tica consciente, em que a busca da
igualdade consigo mesmo (interna ou a identidade do dois-em-um socrtica) est vinculada
busca de iguais, de homens de bem, que possuam bom senso, que no permitem que a
conscincia pare de funcionar, que conservam a independncia interna, que constroem uma
identidade mas no se isolam do mundo.
33MONTAIGNE. Ensaios, II, I, p. 34634Idem, Ensaios, III, II, p.15335Ibidem, Ensaios, III, IX, p.283
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Para evitar mal-entendidos, importa reafirmar que esta investigao estendeu-se at a
figura de Montaigne, por ver nele um paradigma arendtiano. Em vrias passagens, em Da
Revoluo, Arendt faz referncia a Montaigne como um homem que se colocava numa
situao privilegiada, com vasta cultura, adquirida, principalmente, junto aos textos antigos, e
ainda, liberto da necessidade material, uma condio essencial para aqueles que ansiavam pela
liberdade pblica36.
As reflexes efetuadas por Arendt sobre a atividade do pensamento so, conforme ela
o afirma, historicamente representativas e oferecidas por filsofos profissionais (VE:125),
com exceo de Slon, sendo que este antecede o pensamento de Scrates. Com relao
modernidade, a anlise de Hegel sobre um movimento histrico dialtico (revoluo e contra-
revoluo) e, ao mesmo tempo, necessrio, e que resultar na liberdade, uma tese defendida
por outros filsofos/ historiadores. Arendt conclui que o historiador, contemplando
retrospectivamente o processo histrico, habituou-se tanto a descobrir um significado
objetivo, independente dos alvos e da conscincia dos atores, que ele propenso a
menosprezar o que efetivamente ocorre, em sua busca para discernir alguma tendncia
objetiva(EPF:124).
Talvez, por isso, a nfase de Arendt na recuperao da figura do homme de lettres,
incorporado no historiador contemporneo, o storyteller, o qual no se deixaria enganar pela
necessidade histrica e encontra a liberdade onde ela realmente est: no espao pblico, na
ao humana, a qual capaz de romper com uma seqncia de causas anteriores, escapando
do determinismo absoluto.
36 Esses hommes de lettres foram os predecessores dos intelectuais do Iluminismo e dos revolucionriosprofissionais. Mas importante frisar que, no final do sculo XVIII, outras questes estavam em jogo: amisria do povo francs inspirou a piedade dos intelectuais, que se desviaram da busca da liberdade pblica e seconcentraram, numa etapa anterior, na libertao da necessidade. A felicidade pblica passou a ser a garantia
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O conceito de espectador arendtiano pode ser preliminarmente delimitado, tendo em
vista aquilo que j foi destacado neste estudo. Esse espectador rene as seguintes qualidades,
presentes no espectador pitagrico, qual seja, est junto com outros espectadores, na praa
pblica; no busca respostas, mas o significado das opinies alheias, daquilo que est no
mundo das aparncias.
O espectador arendtiano apresenta, tambm, qualidades especificamente socrticas,
como a constatao de uma pluralidade mais do que uma caracterstica do mundo das
aparncias, onde tudo que aparece presume a presena do espectador interna, oriunda da
ciso autocontemplativa que ocorre quando o homem est em atividade do pensamento,
quando o homem est a ss consigo mesmo e estabelece uma dualidade do eu comigo
mesmo que faz do pensamento uma verdadeira atividade na qual sou ao mesmo tempo quem
pergunta e quem responde (VE:139). Em Pitgoras no h meno a essa pluralidade interna;
em Plato a nfase no filsofo que se retira para o mundo das idias, e se afasta da multido;em Lucrcio as qualidades do espectador nem so mencionadas, porque o que est em questo
a segurana do filsofo. a partir da constatao de uma pluralidade socrtica, interna, que
se recupera o conceito e a funo do espectador, dentro da Filosofia Poltica, discutida por
Arendt.
O espectador arendtiano possui caractersticas que o distinguem da figura estabelecida
pelos filsofos profissionais, o que lhe confere dignidade (que havia sido usurpada em
Lucrcio). Alm disso, estabelece-se a funo intrnseca do espectador, qual seja, a de
do bem-estar pessoal e a proteo individual em relao ao poder do Estado. As revolues que se seguiram Revoluo Francesa mostram revolucionrios interessados em chegar ao poder, alavancados pela misria social.
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observar, de captar o significado (que havia sido substituda pela busca da verdade, em
Plato).
At esse ponto da investigao, o espectador foi discutido apenas com relao
atividade do pensamento. Entretanto, Arendt se props a discutir trs faculdades, distintas,
mas inter-relacionadas. Isso implica que a figura do espectador carece de caractersticas que
esto presentes nas faculdades do Juzo e da Vontade.
Cabe, assim, no segundo captulo deste trabalho, a discusso sobre a faculdade do
juzo e das qualidades exigidas para que o espectador arendtiano possa exercer tal juzo de
forma desinteressada, o que equivale a dizer, com Arendt, o espectador possa pensar de
maneira poltica, isto julgar.
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CAPTULO DOIS: O ESPECTADOR E O JULGAR
[..] os espectadores de Kant existem no plural, e esta a razo pela qual ele pde chegar a umafilosofia poltica. (VE:74-74)
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3 O ESPECTADOR E O JULGAR
Os resultados do pensamento no tm como fim apontar as mximas para a ao. O
pensar, para Arendt, no leva a lugar nenhum; o pensamento ocupa-se com generalidades,
sendo que o resultado dessas reflexes pode levar destruio de valores e teorias; busca o
esvaziamento de pr-conceitos, e uma etapa que antecede o exerccio do Juzo. O filsofo
por exceln