O ensino de História e Cultura Indígena nas escolas ... · Como a pesquisa ainda se apresenta em...

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O ensino de História e Cultura Indígena nas escolas municipais de São Paulo 2008 a 2015 Fernanda Borsatto Cardoso PUCSP 1 Este artigo é parte da minha pesquisa de doutoramento que tem como objetivo investigar como o Ensino de História e Cultura Indígena, proposto pela Lei Federal nº 11.645/08, que alterou o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, tem sido implementado nas escolas de Educação Básica da Rede Municipal de Ensino de São Paulo a partir de sua promulgação. Nesta perspectiva a pesquisa se insere nas investigações sobre a história das disciplinas, currículos e sobre educação e diversidade. A pesquisa parte de dois pontos centrais de análise. O primeiro se refere a investigação das políticas desencadeadas pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo a partir da promulgação da Lei 11.645/08, identificando as ações de implantação, os cursos de formação os materiais de apoio e a orientações didáticas produzidas, bem como o debate sobre currículo e diversidade. O segundo ponto de análise refere-se à implementação que acontece independente das ações realizadas pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, que se relaciona com a iniciativa pessoal dos professores. Neste sentido, a hipótese apresentada é que a iniciativa de implementação da Lei parte de um engajamento pessoal dos professores, algo que está ligado a um projeto de vida dentro do seu contexto social, que Ivor F. Goodson (2007) chama de aprendizagem narrativa: Um tipo de aprendizagem que se desenvolve na elaboração e na manutenção continuada de uma narrativa de vida ou identidade. Entre os motivos que emergem na aprendizagem narrativa estão o trajeto, a busca e o sonho. (...). Esse tipo de aprendizagem passou a ser visto como central para o entendimento como as pessoas aprendem ao longo da vida, e ele requer uma maneira diferente de pesquisa e elaboração para se compreenda esse tipo de aprendizagem formal ou informal. (GOODSON, 2007: 248) Investigar o currículo a partir da promulgação da Lei 11.645 de 2008, nestas perspectivas, permite, a meu ver, o entendimento dos processos de pensamento, de * Doutoranda do programa de Educação: História, Política e Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Agência financiadora: CAPES

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O ensino de História e Cultura Indígena nas escolas municipais de São Paulo –

2008 a 2015

Fernanda Borsatto Cardoso – PUCSP1

Este artigo é parte da minha pesquisa de doutoramento que tem como objetivo

investigar como o Ensino de História e Cultura Indígena, proposto pela Lei Federal nº

11.645/08, que alterou o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de

1996, tem sido implementado nas escolas de Educação Básica da Rede Municipal de

Ensino de São Paulo a partir de sua promulgação. Nesta perspectiva a pesquisa se insere

nas investigações sobre a história das disciplinas, currículos e sobre educação e

diversidade.

A pesquisa parte de dois pontos centrais de análise. O primeiro se refere a

investigação das políticas desencadeadas pela Secretaria Municipal de Educação de São

Paulo a partir da promulgação da Lei 11.645/08, identificando as ações de implantação,

os cursos de formação os materiais de apoio e a orientações didáticas produzidas, bem

como o debate sobre currículo e diversidade.

O segundo ponto de análise refere-se à implementação que acontece

independente das ações realizadas pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo,

que se relaciona com a iniciativa pessoal dos professores.

Neste sentido, a hipótese apresentada é que a iniciativa de implementação da Lei

parte de um engajamento pessoal dos professores, algo que está ligado a um projeto de

vida dentro do seu contexto social, que Ivor F. Goodson (2007) chama de aprendizagem

narrativa:

Um tipo de aprendizagem que se desenvolve na elaboração e na manutenção

continuada de uma narrativa de vida ou identidade. Entre os motivos que

emergem na aprendizagem narrativa estão o trajeto, a busca e o sonho. (...).

Esse tipo de aprendizagem passou a ser visto como central para o

entendimento como as pessoas aprendem ao longo da vida, e ele requer uma

maneira diferente de pesquisa e elaboração para se compreenda esse tipo de

aprendizagem formal ou informal. (GOODSON, 2007: 248)

Investigar o currículo a partir da promulgação da Lei 11.645 de 2008, nestas

perspectivas, permite, a meu ver, o entendimento dos processos de pensamento, de

*Doutoranda do programa de Educação: História, Política e Sociedade da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo. Agência financiadora: CAPES

conflitos, de organização e de ação de que tem se constituído através das práticas

curriculares.

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Como a pesquisa ainda se apresenta em estágio inicial de análise de dados, o que

será apresentado a seguir será um debate histórico sobre o ensino de História e a seleção

curricular como pedra angular na construção da identidade nacional.

A seleção curricular e o Ensino de História de Cultura Indígena: questionando a

identidade nacional.

Em uma reunião de formação continuada para professores indígenas na aldeia

Tenondé Porã, na região de Parelheiros, extremo sul da cidade de São Paulo, Giselda

Pires Lima, conhecida como Jerá, uma importante liderança indígena Guarani Mbyá,

contou sua experiência de viagem ao Paraguai:

Acho que todos os parentes Guarani deveriam ir para o Paraguai. Lá todos

são Guarani, todos falam guarani, todos se parecem com a gente, me senti em

casa. É como se o centro do mundo Guarani tivesse começado ali. (Grifos

meus)

Podemos analisar a partir da fala dela o sentimento de pertencimento e

identificação que a ela sentiu ao chegar no Paraguai, um lugar onde ela conseguia

encontrar um ponto de intersecção entre a cultura paraguaia e a sua cultura. Todavia,

implicitamente, podemos apreender o sentimento de não-pertencimento à sociedade

brasileira, onde o seu modo de pensar e viver e agir são tidos como inadequados,

atrasados e, consequentemente, marginalizado.

Este sentimento de “não pertencimento” me levou ao seguinte questionamento:

Por que os brasileiros não-indígenas não se identificam como indígenas?

Não é raro ouvirmos histórias de pessoas que manifestam algum parentesco indígena:

“Minha bisavó era índia e foi pega no laço”, “meu avô era indígena e saiu da aldeia para

trabalhar na cidade”, “Eu tenho uma avó indígena”. No entanto, apensar desta

identificação, dificilmente constatamos o auto reconhecimento dos brasileiros com

alguma etnia indígena, ou seja, esta relação torna-se algo que ficou no passado e foi

apagado da história destas famílias.

Certamente isto está ligado à construção imaginária da identidade nacional e ao

“mito da democracia racial”. A historiografia evidencia que no Brasil, a partir da

independência, se impôs o desafio da formação do Estado Nacional, que até então não

existia. Havia a necessidade de instituir no país uma unidade territorial, política e

ideológica, criando uma memória coletiva que unificasse as populações em torno de

uma única identidade histórica e cultural. Os valores relacionados a este novo Estado

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baseavam-se nos europeus, de modernização, progresso e superioridade do homem

branco. Aos políticos e intelectuais colocava-se um novo desafio. Como construir uma

nação e uma história de brancos a partir de uma realidade repleta de índio e negro?

Predominava a ideia de que uma nação deverias ser constituída de um

território, um povo, uma língua, uma cultura e uma história. Aos políticos e

intelectuais no Brasil cabia homogeneizar populações extremamente

diversas do ponto de vista étnico e cultural, unificando-as em torno de

identidades e histórias comuns. (ALMEIDA, 2010: 135)

Especialmente no que se refere as questões indígenas, conforme destaca

Almeida (2010), o desafio era unificar uma enorme diversidade de populações indígenas

do território brasileiro, fato que na realidade mostrava-se difícil, uma vez que os

indígenas ocupavam terras, ameaçavam colonos e lutavam para conservar suas aldeias.

A solução foi construir uma imagem idealizada do índio. As publicações

científicas, artísticas e literárias deste período caracterizam-se pela idealização dos

índios relacionados ao passado, enquanto a política assimilacionistas continuavam

sendo operadas com os indígenas que ocupavam o território.

O Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838, se ocupou

da missão de produzir uma história do Brasil que unificasse a população do novo estado

em torno de uma memória comum, reservando aos indígenas um lugar no passado.

Discursos e obras políticas, literárias, histórica, científicas e artísticas desse

período caracterizaram-se pela idealização dos índios do passado, enquanto

tornavam invisíveis ou demonizavam os grupos ou indivíduos indígenas

ainda muito presente no território brasileiro. (...) eram presença constante

nos artigos das revistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

(IHGB), nos Relatórios dos Presidentes de Províncias, na correspondência

entre autoridades diversas e nas discussões da Assembleia Legislativa e das

Câmaras Municipais. Discutia-se intensamente o que fazer com ele.

(ALMEIDA, 2010:137)

A partir das publicações do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, começa-se

a ter pistas dos processos de seleção e institucionalização dos conteúdos tidos como

concernentes de serem ensinados na disciplina de História, contudo, o desafio imposto é

entender como persistências dos sistemas hegemônicos se configuraram no interior do

currículo ao longo da história da educação.

Para Testa (2010) pensar em povos indígenas na atualidade nos remete

automaticamente a um deslocamento de espaço e de tempo: um povo que faz parte do

passado ou que está restrito a Floresta Amazônica. Para esta autora, não é por acaso que

existe tanto desconhecimento sobre os povos indígenas.

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Os meios de comunicação costumam virar suas lentes para os povos mais

distantes geograficamente, onde eles acreditam encontrar um exotismo que

resulte em maiores índices de audiência. (TESTA, 2010:03)

Nos materiais didáticos, apesar de já encontrarmos adequações, ainda nos

deparamos com um índio sem etnia, ignorando assim a diversidade étnica, que está

preso ao passado, restritos ao período colonial, que nos leva a crer que esses povos

foram eliminados pela colonização.

O autor Frantz Fanon, em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas, questiona

como se desenvolvem as autoridades, individual e social, no discurso da soberania

social. Ele como psicanalista, negro, martiniquenho, interessa-se em compreender como

a virtude cívica se constrói na violência, política e psíquica, da constituição da

identidade do indivíduo, ou seja, como se dá a alienação dentro da identidade. Para

tanto, o autor descreve a cisão do espaço da consciência das sociedades coloniais, como

marcadas por um “delírio maniqueísta”:

A visibilidade da mumificação cultural na ambição declarada do colonizador

de civilizar ou modernizar o nativo, que resulta em “instituições arcaicas

inertes [que funcionam] sob a supervisão do opressor como uma caricatura de

instituições anteriormente férteis (apud BHABHA, 2013: 82)

Para este autor, a chave da discussão está na representatividade desta perversão,

a imagem do homem pós-iluminista, amarrado a sombra do homem colonizado, não

confrontado, com uma presença fissurada, que divide o próprio tempo de seu ser.

Esta imagem distorcida da identidade a partir da confrontação com o outro

[colonizador], segundo Bhabha (2013), se constituí como:

A identificação ambivalente do mundo racista – movendo-se em dois planos

sem ser de modo algum incomodada por ele, como diz Sartre sobre a

consciência antissemítica – gira em torno da ideia do homem como sua

imagem alienada; não o EU e o Outro, mas a alteridade do EU inscrita no

palimpsesto perverso da identidade colonial. (BHABHA, 2013: 83)

Assim torna-se inevitável entender o que significa alteridade e como esta tem a

ver com a formação da identidade. De acordo com Testa (2010), corresponde ao que

pensamos e a maneira como nos relacionamos com os outros nos ajuda a definir

também quem somos. A alteridade compreende tantos os processos individuais de

desenvolvimento como também as formas com as diferentes sociedades pensam e lidam

com a alteridade. Se, por um lado, a alteridade é fundamental para o desenvolvimento

de todo ser humano, por outro lado, este não é um processo natural, mas uma

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construção, que depende largamente de como o grupo em que você vive lida com a

alteridade.

A história das relações interétnicas no Brasil, principalmente no tocante à questão

indígena, nos traz um indício importante de como nossa sociedade trabalha com a

alteridade.

No texto Raça e História Levi-Strauss (2000) conta que pouco depois da

chegada dos primeiros europeus às Américas, eles enviaram comissões de inquérito para

investigar se os indígenas tinham ou não alma, enquanto isso, os indígenas se

dedicavam a afogar os brancos que aprisionavam para verificar se seus cadáveres eram

ou não sujeitos à putrefação. Ambos estavam preocupados com o problema da

alteridade e os limites do pode ser considerado humano. Se para os europeus, o

problema era verificar se os índios eram animais ou humanos, centrando a concepção de

humanidade numa noção católica de alma, o problema para os índios era saber se estes

desconhecidos eram humanos ou divinos, tendo o corpo como foco. (TESTA, 2010)

A centralidade da alma como critério para a definição da condição humana,

segundo a autora, já era colocada pelos gregos e, no caso dos europeus em contato com

as populações indígenas desde o século XVI, a conclusão de que os índios tinham alma

e, portanto, participavam da humanidade ajudou a definir os rumos das relações

interétnica nos próximos séculos.

Esta relação, torna-se então a primeira diferença e a inferiorização entre dos

povos indígenas:

Entram neste contexto, as ideias de que os índios se situam nos primórdios do

desenvolvimento humano, como se estivessem presos “ na infância da

humanidade”, como “bons selvagens”, que deveriam ser conduzidos pelo

caminho “iluminado” da razão e da civilização ocidental, como se esta fosse

única e o auge da evolução humana. (TESTA, 2010: 5)

Como consequência deste processo, surgem as práticas de extermínio,

genocídios e etnocídios contra os povos indígenas, com o objetivo de neutralizar a

alteridade. Assim, dissemina-se a ideia de transformar o outro em si mesmo e, quando

isso não é possível, simplesmente resta exterminá-lo.

Passados séculos da colonização, ainda nos deparamos com abordagens, ações e

políticas que deram uma perspectiva mais moderna a este discurso, mas não deixaram

de reproduzir a negação da alteridade indígena. No caso da educação, constatamos isto

com a quase ausência da história indígena nos conteúdos de história, bem como em

todas as outras disciplinas. Contudo, a realidade dos povos indígenas nos mostra que

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apesar das constantes ameaças, estes não são vítimas frágeis que seriam exterminadas

ou assimiladas ao longo história, incapazes de lidar com a alteridade, mesmo nos seus

aspectos mais violentos. Observamos isso não só pela expansão demográfica das

populações indígenas como também por suas estratégias de pensar e lidar com a

alteridade, abrindo novos caminhos na legislação e nos espaços cotidianos para

conhecer e conviver com as diferenças.

Stuart Hall (2003), utiliza o termo différance, de Derrida (1972), para demostrar

a complexidade da produção das diferenças: um eixo “vertical” do poder cultural,

econômico e tecnológico entrecruzado por conexões laterais que produz uma visão de

mundo composta por muitas diferenças “locais”, as quais o “global-vertical” é obrigado

a considerar.

Não se trata da forma binária de diferença entre o que é absolutamente o

mesmo e que é absolutamente o “Outro”. É uma “onda” de similaridades e

diferenças, que recusa a divisão em oposição binária fixa. Différance

caracteriza um sistema quem que cada conceito [ou significado] está inscrito

em uma cadeia ou em um sistema, dentro do qual ele se refere ao outro e, aos

outros conceitos [significados], através de um jogo sistemáticos de diferenças.

(apud Hall, 2003: 61)

Assim, as estratégias de différance não funcionam segundo a noção de uma

superação da dialética totalizante, sendo capaz de inaugurar formas totalmente distintas

de vida. Surgem nos vazios e dúvidas que constituem terrenos potenciais de

resistências, intervenção e tradução, num espaço de tempo-histórico determinado, onde

existe a possibilidade de um conjunto disseminado de modernidades vernáculas.

Constituem o fundamento para um novo tipo de “localismo” que não é auto

suficientemente particular, mas que surge dentro do global, sem ser apenas uma cópia

deste.

Esse “localismo” não é um mero resíduo do passado. É algo novo - a sombra

que acompanha a globalização: o que é deixado de lado pelo fluxo

panorâmico da globalização, mas retorna para perturbar e transtornar seus

estabelecimentos culturais. Encontra-se aqui o retorno do particular e do

específico – do especificamente diferente – no centro da aspiração

universalista panóptica da globalização ao fechamento. (HALL, 2003: 61)

O “local” não possui um caráter estável ou descolado da história, mas resiste ao

fluxo homogeneizante do universalismo com temporalidades distintas e conjunturais,

seu impulso político não é determinado por um conteúdo essencial, mas por uma

articulação com outras forças.

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Neste jogo de alteridade, a prova desta articulação para os povos indígenas

reflete-se na aprovação da Lei 11.645/08 que tornou obrigatório o Ensino de História e

Cultura Indígena no currículo das escolas em âmbito nacional.

Art. 1º O Art. 26 – A da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar

com a seguinte redação:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,

público e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-

brasileira e indígena.

§ 1º o conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos

aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população

brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história

da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a

cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da

sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,

econômica e polícia pertinentes à História do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à história afro-brasileira e dos povos indígenas

brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em

especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileira.

(BRASIL, 2008: 1)

Desta forma, a alteridade torna-se uma grande temática para começarmos a

responder ao questionamento inicial: sobre o porquê da sociedade brasileira não se

considerar indígena? A própria a pergunta nos propicia a reflexão sobre a constituição

da identidade nacional e também se torna instrumento para aplicação da referida Lei, ao

propiciar uma revisão dos conteúdos, nos remete a discussão sobre as relações entre a

sociedade não indígena, os povos indígenas e o estado brasileiro, articulando temas de

política, história, cultura, geografia, entre outros. Também abre espaço para que

possamos refletir como pensamos e vivemos as diferenças no cotidiano, pois a

alteridade não se pretende às diferenças étnicas, mas abrange um esforço constante de

conhecer e conviver com o outro.

O currículo de História em revisão: desafios da inserção da história e cultura

indígena.

Embora os estudos sobre o currículo se rejam por certos modelos acerca do que

significa fazer ciência, há importantes diferenças nas formas como se constroem estes

saberes e no impacto destes conhecimentos sobre as sociedades nas quais se implantam.

Os estudos realizados no campo do currículo iniciados a partir das décadas de 1960 e

1970 nos Estados Unidos e no Reino Unido, tinham a perspectiva de reconceituar o

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campo, enfatizavam a compreensão da cultura como mediatizadora da natureza,

opondo-se assim, a visão behaviorista e empirista desta ciência social.

Neste sentido, a Teoria Curricular começava a evidenciar que o conhecimento

corporificado como currículo educacional não podia ser mais analisado fora da sua

constituição social e histórica, deveria a ser visto como uma área de contestação, uma

arena política:

A Teoria Curricular não pode mais, depois disso, se preocupar apenas com a

organização do conhecimento escolar, nem pode encarar de modo ingênuo e

não problemático o conhecimento recebido. O currículo existe, isto é, o

conhecimento organizado para ser transmitido nas instituições educacionais,

passa a ser visto não apenas implicado na produção de relações assimétricas

de poder no interior da escola e da sociedade, mas também como histórica e

socialmente contingente. (BARBOSA E TADEU, 2011: 28)

No Brasil, o debate sobre currículo e disciplina escolares se adensou a partir da

década de 1980 por intermédio da introdução das reflexões de sociólogos e historiadores

da educação, especialmente ingleses e norte-americanos. As análises de Michael Apple

(1989, 1995), David Hamilton (1992), dentre outros, superavam as teorias

reprodutivistas e permitiam situar as formas de resistências e as contradições das

imposições oficiais dos currículos no interior das instituições escolares. André Chervel

(1988) aprofundou os conceitos sobre disciplinas escolares e currículos, situando-os nas

problemática relativas ao conhecimento escolar e em perspectiva histórica. As

abordagens sobre o saber histórico escolar tornaram-se mais complexas nos anos

iniciais da década de 1990 ao se estabelecerem as relações entre saber histórico

acadêmico e saberes pedagógicos. (Bittencourt, 2011)

Michael Apple em seu livro Ideologia e Currículo, publicado no Brasil pela

primeira vez em 1982, demonstrou que o currículo não se tratava apenas de uma

questão educacional, mas sim de uma questão ideológica e política. A preocupação

deste autor era evidenciar como as questões de poder e classe social, penetravam na

escola controlando professores e alunos bem como interferia na organização do

currículo. Este livro representou uma das primeiras grandes sínteses sobre as questões

políticas relacionadas à escola.

Para Michael Apple, a problemática do conhecimento veiculado pelas

escolas é a pedra angular para o estudo da escolarização como veículo de

seletividade. A manutenção [errônea e perigosa] da ideia de conhecimento

como um artefato relativamente neutro tornando-o apenas num objeto

psicológico ou num processo psicológico tem permitido uma falaciosa e letal

despolitização [quase integral] da cultura que as escolas distribuem. Para

Michael Apple era fundamental o questionamento das formas de

conhecimento difundido – de quem é esta cultura? A que grupo social

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pertence este conhecimento? E de acordo com o interesse de quem é que se

transmite determinado conhecimento (factos, destrezas, propensões e

disposições) em instituições culturais como as escolas? (PARASKEVA, 2002:

113)

Para ele, mais importante do que analisar qual é o conhecimento socialmente

mais valioso era problematizar de quem é o conhecimento mais valioso.

O crescimento desta nova historiografia proporcionou novos caminhos para o

ensino, ampliando os paradigmas que deveriam fundamentar as novas propostas

curriculares, incluindo nas discussões a possibilidade de inclusão das experiências das

práticas profissionais nas escolas como forma de subsídio para as reformulações da

História escolar.

No cenário nacional, a democratização do ensino se constituiu como pauta

fundamental, notadamente a partir da década de 1970, quando um novo público

começou a acessar a escola, composto por alunos provenientes de classes trabalhadoras,

então denominadas de 1º grau. Os critérios para a seleção de conteúdos e de métodos

tornaram-se fundamentais para a elaboração de currículos condizentes às

transformações que estavam em trânsito.

De acordo com Nadai (1988):

O fracasso escolar era um tema que colocava em cheque os discursos sobre a

escola para todos, e os debates travados por educadores, dentre eles Paulo

Freire e Darcy Ribeiro, situavam a necessidade de mudança mais radicais

quanto ao que se deveria ensinar e de como ensinar, dentre outros aspectos

relativos à gestão escolar. Para a História escolar os aspectos prioritários

eram redefinir os objetivos da disciplina e os critérios para a seleção de

conteúdos históricos, visando atender a um público escolar diversificado.

(apud BITTENCOURT, 2011: 88)

Até aquele momento, segundo Nadai (1988), os historiadores quase sempre

confundiam memória oficial com memória política, foi só com a chegada os estudos da

Teoria Curricular que se deram conta que para garantir a incorporação de amplos

seguimentos sociais na escola era necessário revisitar as abordagens metodológicas e

incorporar novas linguagens para o estudo mais dinâmico dos problemas sociais.

Os conteúdos da disciplina de História passaram a ser objeto de estudo de

pesquisadores, que questionavam o sentido dogmático da História Tradicional

reveladamente permeada de estereótipos e mitos sobre a nação, com o objetivo de

fornecer uma determinada identidade nacional para alunos provenientes de segmentos

privilegiados da sociedade.

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Assim como no Brasil, em outros países como Estados Unidos, França e

Inglaterra, ocorriam disputas em torno da História escolar, além dos conteúdos,

evidenciavam-se as disciplinas exatas como importantes para a constituição de um

currículo científico voltado para o desenvolvimento tecnológico, em detrimento das

disciplinas de humanas.

E, dentro das problemáticas sobre a permanência das disciplinas das ciências

humanas ou sociais nos currículos, indagava-se sobre o significado da história

como ampliação do conhecimento humanísticos ou como instrumento

ideológico de formação política, conforme determinações do poder instituído.

(BITTENCOURT, 2011: 89)

No Brasil, os historiadores ingleses como Eric Hobsbawn e Ranger Tenere

(1984), assim como o francês Marc Ferro (1983) despontavam como referências nos

estudos sobre da disciplina de História ao evidencia-la como importante instrumento na

constituição de uma memória sobre a nação, assim como na construção (ou invenção)

das tradições.

Como resultado desta nova abordagem da pesquisa sobre ensino de História, a

proposta de prática da disciplina tomou novos contornos, procurava-se apresentar os

sujeitos em seus conflitos e contradições ao estabelecer e legitimar determinados

saberes.

Nessa dimensão, era necessário delimitar os períodos cruciais em que se criou

e se disseminou a denominada história tradicional. Na busca de respostas

sobre a natureza do poder político na história de ensino e das diferentes

disciplinas, pesquisadores optaram por recortes determinados pelas reformas

educacionais consideradas significativas pela história da educação.

(BITTENCOURT, 2011: 90)

A partir da década de 1990 houve a expansão da historiografia sociocultural e a

reconfiguração dos cursos de pós-graduação, foi também um período de redefinições

das políticas públicas educacionais, que culminou com a promulgação da Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN, em 1996. Esta Lei, diferente de

outras legislações, apresentava uma estrutura legislativa com base na pluralidade

cultural da sociedade brasileira, proporcionando assim uma reconfiguração do

conhecimento curricular. No caso da disciplina História começava-se a questionar as

ausências dos grupos sociais e de gênero nos conteúdos históricos curriculares.

A LDBN promulgada em 1996 estava alinhada com as novas tendências

estrangeiras dos estudos curriculares como o de Michael Apple, que em 1995 propôs

uma revisão do texto Ideologia e Currículo ao escrever Repensando Ideologia e

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Currículo, publicado no Brasil no livro Currículo Cultura e Sociedade, organizado por

Antônio Flávio Moreira e Tomaz Tadeu, nele o autor demonstrou sua preocupação

recente em evidenciar como as relações de gênero e raça estavam intimamente

relacionadas com as de classe, e, como estas operavam em toda sua complexidade nas

instituições escolares.

A dinâmica das classes é de enorme importância e não pode ser ignorada,

entretanto, fui convencendo-me de que as relações de gênero - e as que

envolvem raça, que são de fundamental importância nos Estados Unidos e em

muitos outros países – são de igual relevância na compreensão dos efeitos

sociais da educação e de como e por que o currículo e o ensino são

organizados. (APPLE, 2011: 59)

As análises sobre Currículo e a disciplina de História no Brasil, alinhadas com as

preocupações dos pesquisadores de outros países, apontavam que a memória social

problematizada a luz dos movimentos sociais, exigiam estudos sobre os novos sujeitos

relegados e omitidos pela história acadêmica e escolar.

A emergência destas demandas favoreceu análises sobre a produção histórica

escolar no que se refere à história das populações indígenas e afrodescendentes nos

diferentes momentos da história brasileira.

Como destaca Bittencourt (2011), a partir das Diretrizes Curriculares para o

Ensino de História e Cultura a Afro-brasileira e Africana, em 2003, foram colocados no

centro do debate conceitos de raça, etnia, identidade racial, racismo e pluralidade

cultural. Tais conceitos possibilitaram novas investigações da memória dos diferentes

grupos sociais, dentre eles as populações indígenas e afrodescendente, construída a

partir do ensino de História pautado na cultura histórica e cultura política. Isto motivou

pensar historicamente o significado de identidade indígena e negra ao longo do tempo,

desvelando o problema em torno da construção das identidades: mestiça, indígena,

regional, racial ou étnica, bem como a latino-americana.

Considerações Finais

A partir do questionamento sobre a constituição da identidade nacional, este

artigo buscou articular algumas questões centrais no que tange a temática indígena no

currículo da disciplina de História.

Ao aproximar os estudos de Frantz Fanon (2008), Homi Bhabha (2013), Stuart

Hall (2003) e Adriana Testa (2010) dos autores da Teoria do Currículo, buscou-se

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entender como a formação da identidade e a educação estão intimamente conectadas e

fornecem elementos importantes para teorizações sobre a representação da realidade.

Nesta perspectiva, os estudos sobre o currículo a partir da década de 1990, estão

em busca de evidenciar a história e as identidades de inúmeros sujeitos relegados e

omitidos da “história oficial”. A teorização crítica sobre o currículo, da qual a história e

sociologia do currículo são elementos importantes, estão nos ajudando a entender os

processos de reprodução dos sistemas hegemônicos de poder e, nos conduzindo a uma

perspectiva de protagonismo destes atores no currículo de História.

No que se refere a temática indígena, reconhecer a alteridade das diferentes

etnias constitui um elemento imprescindível para a o avanço do conhecimento sobre os

povos indígenas no nosso país. Embora reconheçamos que a Lei 11.645/08 seja uma

importante conquista destes povos em direção a uma educação que respeite a

diversidade cultural, sua aplicação demanda maiores esforços e investimentos. Neste

sentido, embora evidencie-se o crescente interesse de pesquisas acadêmicas sobre os

povos indígenas, torna-se eminente a inserção desta temática nos currículos do ensino

superior, principalmente nas licenciaturas, para que os professores consigam, em sala de

aula, implementar a legislação em vigor com a possibilidade de colocarem cheque

história oficial e a noção de razão e racionalidade.

Referências Bibliográficas

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APPLE, Michael W. Ideologia e Currículo. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.

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