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63 VOLUME VII Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2005 Leituras / Readings Duas cidades, Saint-Moritz e Nice, conhecidos desti- nos de férias para a aristocracia europeia da dourada Belle Époque, foram testemunhas da morte e da doença (autêntica morte psíquica, neste caso) de dois grandes bailarinos do século XX: Isadora e Nijinsky. Na cidade suíça de Saint-Moritz, famosa estação alpina de esqui, procurou refúgio entre os anos 1918 e 1919, fugindo da Grande Guerra que assolava a Europa, quem continua a ser considerado por muitos o maior bailarino do século passado:Vaslav Nijinsky. O bailarino adoeceu gravemente, nesse ambiente g é l i d o, ap resentando os primeiros sintomas da doença mental que provocaria o seu afastamento definitivo dos cenários até a sua morte nos anos 50. A mitologia escandinava imaginava o inferno como um espaço de gelos perpétuos e esses meses de retiro alpino transformaram-se num inferno para Nijinsky, que registou as vivências interiores dessa invernal saison en enfer num caderno diário que recentemente foi traduzido em português pela edito- ra Assírio & Alvim (Nijinsky: Cadernos). O Promenade des Anglais ,em Nice, é um cumprido pas- seio que perc o rre a orla marítima da outrora glamou- rosa capital da Côte D´Azur. Nesse cenário elegante,no dia 14 de setembro de 1927, encontrou a morte (morte espectacular e cinematográfica, como tinha sido a sua vida) a bailarina norte-americana Isadora Duncan: a echarpe que levava ao pescoço enrolou-se numa roda do carro descapotável que guiava, provocando-lhe a m o rte por enforcamento e secção medular. O relato autobiográfico da bailarina, intenso e apaixonado, apare- ceu nas montras das livrarias espanholas este ano, traduzido pela primeira vez nessa língua (Isadora Duncan: Au t o b i ografia. Bailando en la oscuri - dad.Tradução do original inglês My life). Falar de Nijinsky implica desvendar os segredos do mito. O bailarino russo foi um dos poucos “mitos em vida” que já fazem parte incontornável da mitologia popular contemporânea e da história do ballet. Vaslav Nijinsky (1890–1950) nasceu em Kiev, filho “Os três bailarinos verdadeiramente grandes que conheci foram a Argentina, Isadora Duncan e Nijinsky” Gertrude Stein Autobiografia de Alice B.Toklas O Crepúsculo dos Deuses: Nijinsky e Isadora Gods crepuscule: Nijinsky and Isadora Adrián Gramary Médico Psiquiatra Centro Hospitalar Conde de Ferreira, Porto Direcção: Adrian Gramary Centro Hospitalar Conde de Ferreira, Rua Costa Cabral, 1211 4200-227 Porto e-mail: [email protected] Vaslav Nijinsky (1890–1950).

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VOLUME VII Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2005

Leituras / Readings

Duas cidades, Saint-Moritz e Nice, conhecidos desti-

nos de férias para a aristocracia europeia da dourada

Belle Époque, foram testemunhas da morte e da

doença (autêntica morte psíquica, neste caso) de dois

grandes bailarinos do século XX: Isadora e Nijinsky.

Na cidade suíça de Saint-Moritz, famosa estação

alpina de esqui, procurou refúgio entre os anos 1918

e 1919, fugindo da Grande Guerra que assolava a

Europa, quem continua a ser considerado por muitos

o maior bailarino do século passado:Vaslav Nijinsky.

O bailarino adoeceu gravemente, nesse ambiente

g é l i d o, ap resentando os primeiros sintomas da

doença mental que provocaria o seu afastamento

definitivo dos cenários até a sua morte nos anos 50.

A mitologia escandinava imaginava o inferno como

um espaço de gelos perpétuos e esses meses de

retiro alpino transformaram-se num inferno para

Nijinsky, que registou as vivências interiores dessa

invernal saison en enfer num caderno diário que

recentemente foi traduzido em português pela edito-

ra Assírio & Alvim (Nijinsky: Cadernos).O P romenade des A n g l a i s,em Nice, é um cumprido pas-

seio que perc o rre a orla marítima da outrora glamou-

rosa capital da Côte D´Azur.Nesse cenário elegante,n o

dia 14 de setembro de 1927,e n c o n t rou a morte (mort e

espectacular e cinematográfica, como tinha sido a sua

vida) a bailarina norte-americana Isadora Duncan: a

echarpe que lev ava ao pescoço enrolou-se numa ro d a

do carro descap o t á vel que guiav a , p rovocando-lhe a

m o rte por enfo rcamento e secção medular. O re l a t o

autobiográfico da bailarina, intenso e ap a i x o n a d o, ap a re-

ceu nas montras das livrarias espanholas este ano,

traduzido pela primeira vez nessa língua (I s a d o raDuncan: Au t o b i ografia. Bailando en la oscuri -

d a d.Tradução do original inglês My life) .

Falar de Nijinsky implica desvendar os segredos do

mito. O bailarino russo foi um dos poucos “mitos em

vida” que já fazem parte incontornável da mitologia

popular contemporânea e da história do ballet.

Vaslav Nijinsky (1890–1950) nasceu em Kiev, filho

“Os três bailarinos verdadeiramente grandes que conheci foram a Argentina, Isadora Duncan e Nijinsky”

Gertrude Stein

Autobiografia de Alice B.Toklas

O Crep ú s c u lo dos Deuses: Nijinsky e IsadoraGods crepuscule: Nijinsky and Isadora

Adrián Gramary

Médico Psiquiatra

Centro Hospitalar

Conde de Ferreira,

Porto

Direcção:

Adrian Gramary

Centro Hospitalar

Conde de Ferreira,

Rua Costa Cabral, 1211

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a d r i a n _ g r a m a ry @ y a h o o. e s Vaslav Nijinsky (1890–1950).

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de pais polacos. Revelou com precocidade, como costuma acon-

tecer nestes casos, os seus prodigiosos dotes para o ballet,

entrando na Escola Imperial de Ballet da cidade dos czares em

1898. Foi lá que conheceu quem havia de ser o seu mentor e, em

p a rt e, o criador da sua lenda: o aristócrata, mecenas e

empresário teatral Sergei Pavlovitch Diaghilev. Com ele manteve

um relacionamento afectivo, que, anos depois, tentou justificar

como motivado pela necessidade económica da família. Com

Diaghilev entrou no mítico Ballets Russes, companhia lendária de

bailado – que congregou a participação impossível de inúmeras

genialidades: Stravinsky, Cocteau, Picasso - com a qual percorreu

toda Europa, num faustoso desfile triunfal.As suas interpretações

deixaram, nos contemporâneos afortunados que tiveram a opor-

tunidade de presencia-las, uma recordação indelével: Le Spectre de

la Rose, L´Après Midi d´un Faune, Petrushka, Sherezade, A Sagração

da Primavera constituem passos consecutivos no seu caminho de

glória.Até aquele momento, as bailarinas assumiam o protagonis-

mo absoluto dos ballets, ficando os homens num discreto segun-

do plano, e o fenómeno Nijinsky introduziu uma mudança signi-

ficativa nesta tradição, provocando, pela primeira vez, que a

atenção do público se desloca-se para os bailarinos. Louvou-se a

sua sensibilidade artística, as inovações coreográficas por ele

introduzidas e a sua capacidade física como ginasta. Sirva como

exemplo o que escreveu o crítico Henri Gautier-Villars, marido

da escritora Colette: “Ontem, quando Nijinsky saltou tão elegante e

lentamente, traçando uma trajectória de quatro metros e meio e ater -

rou, sem fazer ruído, com os braços levantados, um incrédulo ah!

surgiu entre as senhoras”.

As trevas que pre nunciaram o seu crepúsculo surgiram no inve r-

no de 1918-1919, em Saint-Moritz, para onde Nijinsky tinha ido,

acompanhado pela sua mulher Romola e a sua filha Ky r a . O seu

estranho comportamento começou a chamar a atenção da mu -

l h e r: o bailarino ia sozinho para a vila, vestido de branco, com um

grande crucifixo pendurado no pescoço, tentando pregar aos

v i z i n h o s . P ro c u r ava o isolamento, ap re s e n t ava crises de agre s s i v i-

dade e o seu discurso tornava-se com frequência incoere n t e. N o

caderno do bailarino podemos encontrar algumas chaves para

c o m p reender os seus fantasmas interiore s , durante aquele

p e r í o d o :

“Durante os saraus, senti Deus. Deus amava-me. Eu amava-o.

Tínhamos casado um com o outro. No carro, disse à minha mulher que

aquele dia era o dia do meu casamento com Deus.”

“Deus disse-me: «Volta para casa e diz à tua mulher que estás louco.»

Compreendi que Deus gostava de mim, por isso fui para casa com a

intenção de lhe dar essa notícia.”

“Deus disse-me em voz alta que era melhor escrever com o lápis

pequeno porque não perco tempo”.

“Eu não como carne, mas, hoje, Deus queria que comesse. Não sei

porquê, mas queria. Cumpri as suas ordens e comi carne.Tive vontade

de chorar, por isso comi depressa, engolindo grandes pedaços. Não

sabia ao certo o que significavam as suas ordens, mas cumpri as suas

ordens”.

D e s e s p e r a d a , Romola Nijinsky pro c u rou ajuda, c o n s u l t a n d o

Eugen Bleuler, um dos grandes psiquiatras suíços do momento,

criador de uma nova visão fenomenológica da esquizofrenia. No

seu consultório de Zurique, o professor Bleuler não duvidou do

diagnóstico: “confusão mental de natureza esquizofrénica, acompa-

nhada de uma leve excitação maníaca” e recomendou a Romola

que internasse o seu marido e avançasse para o divórcio, pois,

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Vaslav Nijinsky (1890–1950).

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segundo o seu ponto de vista, a ciência psiquiátrica nada mais

tinha a oferecer, nesse momento, para resolver a situação clínica

do bailarino.A partir dessa altura, a vida de Romola Nijinsky foi

uma via-sacra à procura da solução para a doença do marido. É

surpreendente a lista de famosos psiquiatras que observaram e

deram o seu parecer sobre o doente: Freud (que terá explicado

que a psicoterapia não era uma solução para o caso), Sackel (cria-

dor do choque insulínico, terapêutica que também foi aplicada

sem sucesso ao bailarino), Jung,Wagner von Jauregg, Binswanger,

Ferenzi, Kraepelin, Forel, etc.

Partindo das teorias de Bleuler, não se torna difícil encontrar nos

textos do bailarino, os famosos três As que, segundo o psiquiatra

suíço, constituíam as chaves diagnósticas da esquizofrenia: a perda

de associações, o embotamento afectivo e a ambivalência.

A perda de associações:

“O macaco é natureza. O homem é natureza. O homem é natureza.

O macaco não é a natureza do homem. Eu não sou um macaco num

homem. O macaco é deus na natureza porque sente os movimentos.

Eu sinto os movimentos. Os meus movimentos são simples. Os movi -

mentos do macaco são complicados. O macaco é estúpido. Eu sou

estúpido, mas sou dotado de razão. Sou um ser dotado de razão, mas

o macaco não é dotado de razão. Acho que os macacos descendem

das árvores e o homem descende de Deus. Deus não é o macaco. O

homem é Deus”.

O embotamento afectivo:

“Estou aborrecido porque está tudo vazio à minha volta. Fiquei vazio.”

E a ambivalência:

“Quero escrever a verdade, por isso minto”

“Não gosto da publicidade, porque a publicidade mente. Gosto da

publicidade porque a publicidade é verdade”

“Sei que Deus queria essa guerra. Sei que Deus não quer guerras, e

foi por isso que enviou horrores aos homens”.

Nijinsky morreu em Inglaterra, durante a primavera de 1950,

antes do aparecimento do primeiro neuroléptico eficaz (a clor-

promazina), em consequência de uma insuficiência renal. Os seus

diários, encontrados de forma casual, foram publicados em vida,

expurgados pela mulher dos conteúdos mais escabrosos. A

tradução de Assírio & Alvim é a primeira feita a partir do texto

íntegro do Caderno.

O editor do livro, Christian Dumais-Lvowsky, reconhece no fim

da introdução que “Nijinsky não era certamente um escritor, um

poeta ou um epistológrafo” e é evidente que o texto do bailarino

está desprovido de valor literário intrínseco, mas tem o valor de

um testemunho em primeira-mão do eclodir da doença

esquizofrénica. Resulta, portanto, irrisório que o editor deixe a

porta aberta para a explicação do texto como uma eventual

experiência de vanguarda:“Além disso, será bom lembrar que a revo-

lução dadaísta (1916) é quase contemporânea dos escritos de

Nijinsky, e é impossível saber-se até que ponto o influenciou” (sic).

Aqueles que a conhecem e a sofrem sabem que a esquizofrenia

é uma doença que provoca, infelizmente, um esvaziamento

incompatível, na maioria dos casos, com qualquer tipo de criativi-

dade artística. As incongruências do texto de Nijinsky nada têm

a ver com as experimentações de Hugo Ball e Tristan Tzara, e

qualquer tentativa de comparação resulta, no mínimo, ridícula.

I s a d o ra Duncan ( 1 9 7 8 - 1 9 2 7 ) , n o rte-americana da costa

oeste, nascida em São Francisco, viveu precocemente a separação

dos pais e o abandono por parte da figura paterna. Decidida a li-

bertar a expressão do corpo e recuperar o espírito da dança

clássica, procurou na cultura grega a inspiração necessária para

sustentar esta renascença. “Descobri a dança. Descobri uma arte

que esteve perdida durante dois mil anos” refere na sua autobio-

grafia. Para Isadora, o corpo era um instrumento harmónico e os

seus movimentos não expressavam apenas, como na ginástica,

movimentos corporais, mas também “sentimentos e pensamentos

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Isadora Duncan (1978-1927).

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da alma”.Tentava encontrar uma dança que simbolizasse a alma

da nova América democrática, qualquer coisa semelhante ao que

o poeta Walt Whitman tinha feito em poesia; no entanto, deixou

a sua terra e emigrou para a Europa, pois intuiu que este era o

local adequado para aprofundar os seus estudos e fazer conhecer

a sua descoberta:“Tinha vindo à Europa para trazer um renascimen -

to da religião através da dança, para elevar o público até o conheci -

mento da Beleza e da Santidade do corpo humano através da

expressão dos seus movimentos.” O seu périplo inclui uma peregri-

nação espiritual pela Grécia, encontrando em Atenas tudo o que

satisfazia o seu sentido estético. Como uma iluminação, foi-lhe

revelado que “era preciso voltar às túnicas dos antigos gregos”, trans-

formando esta prenda, que sempre vestiu - dentro e fora dos

cenários - no símbolo da sua paixão pela antiguidade pagã.

Feminista, vegetariana, pagã, anticlerical, próxima da intelectuali-

dade de esquerda, criou, em França,Alemanha e Rússia, com fun-

dos próprios e com a ajuda de conhecidos milionários, escolas de

dança que visavam a formação de bailarinos procedentes das

classes sociais pobres. Causou escândalo, no pacato início do

século, ao dançar livre de qualquer entrave: descalça e com túni-

cas semi-transparentes, que deixavam entrever a silhueta do seu

corpo. Durante a Primeira Guerra Mundial, despedia-se, nos seus

e s p e c t á c u l o s , enfiada na bandeira francesa, dançando “ A

Marselhesa”, como manifestação de apoio aos aliados.A sua bis-

sexualidade (não sabemos se real ou parte integrante da sua

lenda de personagem maldita) foi também objecto de comen-

tários na sua época.

Declarava-se inimiga do ballet, género que considerava “falso e

a b s u rd o” , pelo que ele tinha de clausura da liberdade de

expressão do corpo, explicando: “Os meus ideais não me permi-

tiam a menor colaboração com os ballets, cujos movimentos chocavam

com o meu sentido da beleza e cujas expressões me pareciam

mecânicas e vulgares”. Neste sentido, as suas reflexões após a sua

visita, acompanhada pela famosa bailarina Pavlova, à Escola

Imperial Russa de Ballet, são suficientemente reveladoras:“Vi em

fila todas as pequenas alunas realizando os seus exercícios dolorosos.

Seguravam-se na ponta dos pés durante horas inteiras, como vítimas

de uma cruel e desnecessária Inquisição. Os quartos de ballet, grandes

e nus, desprovidos de qualquer beleza e inspiração, com um grande

retrato do czar como único adorno, era quartos de tortura. Fiquei con -

vencida mais do que nunca que a Escola Imperial de Ballets era uma

inimiga da Natureza e da Arte”. Transformou a sua própria vida

também em bandeira dessa mesma liberdade que procurava para

a dança, defendendo “o direito da mulher a amar livremente e de ter

os filhos que quisesse e como quisesse”, e, fiel aos seus princípios,

teve dois filhos de homens diferentes, com os quais não chegou

a casar. Na sua autobiografia explica: “Opunha-me ao matrimónio

com toda a força inteligente do meu ser. Acreditava, e continuo a

acreditar, que é uma absurda instituição de escravidão que conduzia

sem remédio – particularmente no caso dos artistas – ao processo de

divórcio e a uma vulgar situação legal”. Excêntrica e transgressora,

a bailarina transformou-se num dos ícones mais famosos da Belle

Époque e dos loucos anos 20, até ser visitada pela tragédia.

Em 1913, os dois filhos faleceram num terrível acidente de viação,

em companhia da ama, após o carro ter caído num rio. Mortos

por afogamento, os seus corpos só foram encontrados no dia

seguinte.A vida da bailarina entrou num processo de luto,do qual

nunca mais se terá recuperado: “Este peito encerra uma dor

incurável, estas mãos, que aqui tenho à minha frente, estão marcadas

pela tristeza e, quando estou sozinha, estes olhos têm uma rara secu -

ra. As lágrimas têm brotado durante doze anos, desde o dia em que,

estendida no meu leito, fui repentinamente acordada por um grande

alarido e, ao levantar-me, vi o L. que gritava como um homem ferido:

«as crianças morreram» (…) Recordo que o grito me provocou um

estranho mal-estar, e que senti na minha garganta um fogo como se

tivesse engolido carvões acessos (…) Duas vezes lança a mãe esse

grito que parece alheio a ela própria: ao parir e ao perder o filho.

Quando senti o roçar daquelas duas mãos frias que já nunca mais

voltariam a abraçar-me, ouvi o meu grito, o mesmo grito que quando

nasceram. Porquê o mesmo, sendo um o grito de suprema alegria e o

outro de suprema tristeza? Não sei porquê, mas sei que era o mesmo.

Não será que em todo o Universo não há mais do que um único

Grande Grito que expressa a Angústia, a Alegria, o Extase e a Dor: o

Grito da Criação da Mãe?”. Mas a tragédia, tinha vindo para se

instalar definitivamente na vida da bailarina. Tentando recons-

truir, pelo menos parcialmente, o seu infindável vazio, teve um

outro filho, que faleceu com poucos meses, de doença descon-

hecida.A sua dor transformou-se então em desolação. Podemos

ler na sua autobiografia a sua arrepiante confissão: “Creio que,

embora pareça que continuamos a viver, há dores que matam. O

corpo pode arrastar-se ao longo dos caminhos dolorosos da terra, mas

o espírito fica aniquilado. E aniquilado para sempre. Ouvi muitas pes -

soas a falar na influência enobrecedora da tristeza. Unicamente posso

dizer que aqueles últimos dias da minha vida, aqueles dias que pre -

cederam a tragédia, foram, na realidade os últimos dias da minha vida

espiritual. Desde que apareceu a tragédia, eu não tive mais do que um

desejo: fugir, fugir, fugir. Fugir do horror, e a minha vida não foi senão

uma série de fugas de tudo, semelhante ao judeu erra n t e, toda a minha

vida depois foi como um navio fantasma sobre um oceano fa n t a s m a.”

De nada serviram as tentativas de consolo de amigas como a actriz

Eleanora Duse, de quem ouviu estas palavras terr í ve i s : “Assim é a

vida do art i s t a : e s c u ra e sombri a , t r á g i c a , mas pro d u t o ra da mármore

b ranca de onde nascem as aspirações do homem” .

Em 1922, conheceu, durante a sua estada na Rússia, Sergei Esenin.

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Do poeta russo, conhecido bissexual, conseguiu apaixonar-se até

ao ponto de abandonar os seus preconceitos relativamente ao

casamento e decidir casar com ele. O matrimónio naufragou em

1923 e, após o regresso ao seu país, o poeta enfrentou um sério

problema de alcoolismo, que motivou o seu internamento num

hospital psiquiátrico.Após a alta, sumido novamente numa grave

depressão - motivada, em parte, pelas dificuldades para sobrevi-

ver ao estalinismo - acabou por se suicidar.

Abalada com a sucessão de perdas afectivas que sempre se

seguiam aos ganhos materiais e artísticos, Isadora começou a

beber descontroladamente. Nas últimas páginas da sua autobio-

grafia deparamo-nos, com a dor surda da bailarina, levantando-se

contra aqueles que interpretaram o seu destino trágico como

uma merecida punição pela sua vida dissipada: “Comecei a impos -

sível tarefa de vos relatar a minha vida num papel. Chegaremos até o

fim, embora oiça as vozes de todas as boas mulheres do mundo que

me dizem: «Uma história sem qualquer graça». «Todos os seus

infortúnios são a consequência dos seus pecados». Mas não tenho

consciência de ter pecado”.

Desde a altura da morte dos filhos, apenas guiava descapotáveis,

recusando-se a guiar carros fechados, pois provocava-lhe uma

angústia insuportável. Este mesmo medo foi, paradoxalmente, a

causa indirecta do seu fim trágico, no Promenade des Anglais, em

1927. A sua morte, nas vésperas do fatídico ano 29, representa

também simbolicamente o adeus aos alegres anos 20.A sua auto-

biografia é um texto de rara autenticidade, apaixonado teste-

munho de alguém que se transcendeu através da arte.A sua vida

talvez fosse – tal como tinha adivinhado a sua amiga Eleanora

Duse que era a vida do autêntico artista - uma vida “escura e som -

bria, trágica, mas produtora da mármore branca de onde nascem as

aspirações do homem”.

NB:As traduções do texto de Isadora Duncan foram feitas pelo

autor do artigo.

Bleuler, E (1967): Tratado de Psiquiatria. Espasa Calpe. 2ª ed. Madrid.

Duncan, Isadora (2005): Autobiografía. Bailando en la oscuridad. EdicionesJC. Memorias Clementine. Madrid.

Nijinsky V (1993): Diario. Parsifal Ediciones. Barcelona.

Nijinsky V (2004): Cadernos.Assírio & Alvim. Lisboa.

Stein G (2000): Autobiografia de Alice B.Toklas. Lúmen. Barcelona

Vallejo-Nágera, JA (1996): Locos egregios. Planeta De Agostini. Barcelona.

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Bibliografia