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    84 n 25 - dcembre 2005LATITUDES

    fico narrativa moambicana.Honwana, homem negro, foi pre s ono mesmo ano da publ icao dol i v ro, mas desf ru tava de grandeestima das elites culturais moambi-canas e alm fronteiras . Os setecontos denunciavam sem ambigui-dade as formas de dominao e deespoliao que o colonialismo assu-miu, os abusos e as humilhaes.

    Depois de referir o contedo e ascaractersticas estilsticas dos contosde Honwana, M. F. Afonso re v e l a -nos que eles se tornaram um suporteda memria afectiva e das lembran-as colectivas do povo moambi-cano, tornando-se o palimpsestode mlt iplas narra ti vas que vos u rgir depois da independncia eque continuam a e scolher o colo-nialismo como tema primord i a l . (p. 142-43) Nessa linha descen-dente, cita os contos de Anbal

    Aleluia, Al dino Muianga, C alane daSilva, Albino M agaia, Hlder Muteiae Marcelo Panguana. E acre s c e n t aque o carcter fundador de N sMatmos o Co Ti n h o s ose re v e l aainda na sua traduo em ingls,francs e alemo e na incluso dosseus contos em antolo gias e emlivros escolares.

    Pertenc endo ainda mesmafase, a autora analisa seguidamentea obra Contos e Lendasde Antnio

    S o a res Carn e i ro, publicada postu-mamente, devido morte emacidente do autor. Citando FtimaMendona, analista muito re f e re n-ciada por M. F. Afonso, apontanestes contos a inspirao existen-cialista, o desencanto e a ironia.

    A segunda e terceira partes desteestudo tratam do conto da fase ps-colonial. Na primeira destas situa-ono seu espao prprio, enquadra-oem categorias (re p resentao, contra-d i s c u r s o ) ou atravs de paratextos( p refcios, epgrafes, g lossrios),p rocurando captar as suas lin has de

    apenas no incio do sculo XX(p.122). Depois de citar a form a ode diversos agrupamentos culturaisem 1920, 1932 e 1 935, re f e re que,em 1909, um grupo de mestioscomeou a distinguir-se na impre n s ade Loureno Marques com a cria-o dos jorn ais O Africano e O Brado Africano(1918-74). nestej o rnal que o poeta R ui de N oro n h a

    publica a maior parte dos seuspoemas, entre os quais um sonetoem 1936 onde manifesta sua re s i s-tncia a um sistema espol iador.N o ronha i nspira-se e m A ntero d eQuental no desejo de despertar asconscincias. A partir dos anos 50,a contestao da poltica de Salazart o rna-se mais acrimoniosa em textos(p.125) em jornais e revistas comoMsaho, Moambique58/59, e A Vo zde Moambique (1960-1975) e arevista C a l i b a n (1971-72). Irradiando

    es tes da c apital, na Beira surg eParalelo 20(1957-1961).

    As primeiras obras de fico

    A a utora detm-se em seguidanos m e s t res da poesia, pois pro s ade fico no avulta antes da inde-pendncia, em 1975. O jorn a l i s t a

    Joo Albasine aparece como primeiroautor de uma obra em prosa, o

    L i v ro da Dorpublicado postuma-mente, em 1925. E descreve apr imeira an tolog ia de es t rias ,Godido e Outros Contos de JooDias, de incio da dcada de 50.Dias tomando conscincia da dico-tomia vivida pelo assimilado, reivin-dica para a sua escrita os modelostradicionais da cultura afr icana,denunciando a explorao dohomem negro. (pp. 135-36) Noentanto M. Fernanda Afonso precisaque a antologia de contos de LusB e rn a rdo Honwana, Ns Matmoso Co Ti n h o s o, 1964, que d incio

    Ao lugar de destaque que oconto assume nesta litera-tura nascente, soube Maria

    Fernanda Afonso revelar-lhe os seusnexos, ao descrever naturalmente asua emergncia, para referir as for-as telricas do contexto histrico ecultural donde deriva. Da queretraando-se aqui, sumariamente, opercurso empreendido nessa pene-

    trao nas formas mais vivas da ela-borao ficcional dos mais destacadosc r i a d o res literrios moambicanos,possamos ambicionar transmitir osseus momentos mais impressivos.

    Resultando duma tese de douto-ramento*, a obra de Maria Fernanda

    Afonso aborda o seu tema deestudo atravs de uma gamaconceptual extremamente r ica,p r i m e i ro em pr essupos tos deenquadramento e, seguidamente,no inter ior de categor ias que lhe

    permitem captar as marcas do contomoambicano em si. Dividida emtrs grandes partes, a primeirap e rc o r re diversos espaos geogrfi-cos onde ele se manifesta para sedeter no conto africano e emMoambique, apresentado comoum pas de poetas-contadores dehistrias. A autora contextualiza oassunto, exp ondo-nos o modocomo a l iteratura moambicana,igual que em toda a frica colonial,

    comeou por se manifestar atravsda imprensa, seguindo nisso o teste-munho de Francisco P.S. Noa.Deixando de parte algumas notass o b re a particularidade da sua eclo-so, M. F. Afonso escreve qu e assuas primeiras manifestaes tive-ram lugar na ilha de Moambique edatam do princpio do sculo XIX(p.121).

    Mas, havendo o prelo sido insta-lado na antiga colnia apenas em1854 , a fi rma que , exceptuandoalgumas escassas publicaes, ali teratura moambicana surg i u

    O Conto, Gnero Superior daLiteratura Moambicana

    na Viso Analtica de M. Fernanda Afonso

    Daniel Lacerda

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    fora e os recursos scio-lingusti-cos que utiliza. A noo de litera-tura ps-colonia l encerra umap roblemtica diversificada ao suporas modalidades duma ruptura radi-cal com a submisso ao domnioe u ropeu. O conto eleito pe losmoa mbicanos como o gnero

    privilegiado mas com u m sentidomais amplo que habi tualmente,englobando outras figuras (pasti-che, pardia, tradio oral, mitosafricanos). Na perspectiva africana,os paratextos desempenham umafuno mais destacada. A falta decondies de publicao, a i mpos-sibilidade de autentificar a obra lite-rr ia face a um pbl ico afr icano,analfabeto na sua maioria, o pesodos cnones estticos ocidentaiss o b re uma escri ta nascida numcontexto conflituoso de culturas, dep o d e res e de l nguas, f azem comque o aparelho paratextual, pro f u s o ,em geral, se encontre em fricanuma relao paradigmtica com oacto de criao artstica. (p. 174)

    Apoiando-se em exemplos doscontos de Llia Mompl ( N i n g u mMatou Suhura), M. F. Afonso intro-duz-nos, seguidamente, na aliciantetcnica do contradiscurso: a re e s-crit a de textos pela periferia de

    modo a desafiar e a subverter odiscurso dominante do c entro, doc o l o n i z a d o r. Partindo de RaulHonwana em O Algodo e o Ouro,que manifesta p aralelismos com osn e o - real istas, e de X i c a r a n d i n h ana Lenha do Mundode Calane daSilva, a ensasta revela-nos outro smeios de subverso lingustica queos estruturam, conduzindo denn-cia da brutalidade do sistema colo-nial.

    P resena da oralidade e hibridez

    na escrita

    Tratando da transposio dasm a rcas da oralidade (smbolos,estruturas textuais e lingusticas)i n t roduzidas no texto escrito, M.F e rnanda Afonso faz notar a e spe-cificidade da l iteratura africana aointegrar as estruturas mentais domito dentro da escrita, enquanto

    as ocidentais se limitam a contar omito. Esta fonte primacial da litera-

    tura dos pases af ricanos aqu ie x e m p l i ficada, primeiro, na obra deM a rcelo Panguana, As Vozes queFalam Verdade, e mais frente, nosp r i m e i ros ttulos de Mia Couto, quebanham plenamente na tradiooral: Vozes Anoitecidas(1986) eEstrias Abensoadas(1994). Estes

    revelam uma criatividade lexical elingustica prxima de GuimaresRosa, seu modelo, e de L uandino

    Vie ira. Detendo-se mais na obradesta figura preponderante, aensasta afirma com n tido arro u b o :A escrita de Mia Couto faz funcio-nar uma constante e incomparvelinveno verbal: rompe a lineari-

    dade do texto narrativo, constrium discurso l iterr io inovador einveste -se de uma competncialingustica fora do comum. (p.214)

    A seguir c omenta a inda Contos deNascer da Terra e Na Berma de

    Nenhuma Estrada, 2001; sob estel timo t tulo , Mia Couto re u n i u

    c e rca d e quarenta pequenas narra-tivas publicadas em jornais e re v i s-tas.

    O primeiro livro de M ia Couto,Vozes Anoitecidas, estudado aindano mbito do conceito de mestia-gem ou hibridez, onde o situaramos prefcios prest igiosos de LusCarlos Patraquim e de Jos

    Peinture de Shikhani, 1995

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    a firma o vigor e a riqueza do contonessa literatura emergente, emborade recente criao, em contrastecom o seu apagamento nas literatu-ras ocidentais, considerando MiaCouto, entre os seus pares no lugarde honra. Reafirma tambm a origi-nalidade de U a l a l a p i de Ba Ka

    Khosa, uma narrativa de tipo novoonde so derrubadas as fro n t e i r a se n t re os g neros (p .448). A tem-tica obsessiva de conflito que atra-

    vessa os textos reflectiri a o quedesigna por sndrome ps-colo-nial. Pelo que o conto, enquantomeio de re a f i rmao de uma novaidentidade, poder considerar- s eum quadro de expiao do trauma-tismo do domnio colonial.

    Sob o aspecto estilstico, form ahbrida, vocacionada para umaescrita polifnica, elptica, o c ontofaz emergir coordenadas de um pasque se procura, por vezes na incoe-rncia, num processo de construoidentitrio, dialctico e homogneo.(p. 449)

    Obra fecunda, que tomou porassunto um gnero literrio hbrido,mas que encerra no universopotico dos seus cultores moambi-canos um momento fulcral deruptura com o passado colonial e

    de reconstruo de nova identidadeliterria, afirma-se como um instru-mento de anlise de mltipla virtua-lidade. Quer pelo volume das obrasde autores moambicanos estuda-das, quer pela perspectiva crticade anlise e p ela capac idade deentendimento do universo mentalafricano, o p resente ensaio re v e l a -nos e m profundidade os difere n t e sc o n t o rnos, mal conhecidos noOcidente, do conto moambicano

    na sua globalidadel

    * Maria Fernanda Afonso, O ContoMoambicano, Escritas Ps-Coloniais,Lisboa, Caminho, col. Estudos africa-nos, 2004, 495 p. O doutoramentofoi apresentado, em 2002, naUniversidade Michel de Montaignede Bordus, tendo por orientadora aProf.a Maria Graciete Besse.

    ideologia colonial, o projecto liter-rio delineia-se a partir da interro g a-o sobre a identidade do africano,seguindo um percurso que pre s s u-pe a dialctica entre uma perc e p-o de si prprio e um modo deentendimento da alteridade. (p.325) E pondo em evidncia a predo-

    minncia da polmica, do burlescoe da pardia, concita as obras dumgrupo elevado de contistas: RaulHonwana, Isaac Zita, Juvenal Bucuane,Llia Mompl, Jos Craveirinha, AldinoMuianga, Suleiman Cassamo, MarceloPanguana, Ba Ka Khosa e Mia Couto,que verberam, cada um a seu modo,geralmente, as c ondies sociais eculturais com origem colonial. M a i s frente, sob a designao de re a l i s m omgico, com a man ifes tao doinvisvel o u do f antstico, pro c u r aa p reender o sentido de outras, uma

    vez que o real e o sobre n a t u r a lcoabitam de forma natural n e s t a sliteratura do eixo sul (p.349). Nessesuniversos por elas re p re s e n t a d o ,por exemplo, o s laos entre o sdefuntos e os vivos tm lugar natu-ralmente. Contos de Anbal Aleluia,Craveirinha, Aldino Muianga, Ba KaKhosa, Mia Couto supem um subs-trato cultural de crenas africanas,

    di stantes do raciona-

    lismo ocidental. M.Fernanda Afonso dedical a rgas pginas aoscontos deste ltimorenomado ficcionistapor neles subjazere mf o rmas variadas desseuniverso mgico efantstico. Isso noimpede o autor, porm,de evidenciar os aspec-tos cruis da re a l i d a d e

    colonial, mas a estesajunta o sonho que dum novo sentido

    vida, segundo ele.Este trabalho exaus-

    tivo da ensasta, sempreconvenientemente pers-pectivado pelos concei-tos mais pertinentes, sebem que pre o c u p a d aem fugir ao euro c e n-trismo, dedica tambmum captulo s configu-

    raes discursivas ps-coloniais . A conclui r,

    Craveirinha, publicados em ediessucessivas. E a cabe O R e g resso doMorto (Le retour du mort , ediofrancesa de M. Chandeigne) deSuleiman Cassamo, escritor depersonal idade complexa, ondemanifestaes da sua origem rabee banta se cruzam polifonicamente

    com outras formas de imaginrioprprias das culturas sul-america-nas, dando origem a uma prticaliterria assente no hibridismo cultu-ral e lingustico. (p.245)

    Deixamos de parte alguns cap-tulos que abordam vrias funesdos paratextos, embora exemplar-mente inseridos no conto moam-bicano, para l anarmos um olhars o b re a terceira e ltima parte destelongo trabalho, onde o manusea-mento dos instrumentos de anlise- f requentemente apoiados naspenetrantes sis tematizaes doensasta Grard Genette - a ctuams e m p re sobre as obras, re v e l a n d oos segredos da sua concepo e osmltiplos sentidos da sua expre s s i-

    vidade. Nos pre l i m i n a res destaparte, a ensas ta expe-nos umpano de fundo: No conjunto doscontos moambicanos que re p re-sentam a fr ica devast ada pela