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Jacques Aumont

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Título original: Le Cinéma est la mise en scène

Autor: Jacques Aumont

Tradução: Pedro Elói Duarte

Grafismo: Cristina Leal

Imagem da capa: Couple of Masks © Hans F. Meier

© Armand Colin, 2006

Edições Texto & Grafia, Lda.

Avenida Óscar Monteiro Torres, n.º 55, 2.º Esq.

1000-217 Lisboa

Telefone: 21 797 70 66

Fax: 21 797 81 30

E-mail: [email protected]

Impressão e acabamento:

Papelmunde, SMG, Lda.

1.ª edição

Lisboa, Fevereiro de 2008

ISBN 978-989-95689-3-8

Depósito legal n.º 271899/08

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida,

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sem a autorização do Editor.

Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor

será passível de procedimento judicial.

Ouvrage publié avec le soutien du Centre National du Livre– Ministère Français Chargé de la Culture –

Obra publicada com o patrocínio do Centro Nacional do Livro– Ministério Francês da Cultura –

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A organização contemporânea da sociedade coabita, de forma nem sempre harmoniosa, com a fruição do espectáculo nas suas mais variadas expressões.

Uma colecção de livros sobre as artes do espectáculo que delas preconizem uma vivência madura justifica-se pela necessidade de reordenar o nosso espaço de participação e adesão críticas; na realidade, o fenómeno do espectáculo encerra dimensões recônditas, a que razão e emoção devem ter igual acesso.

Em “Mi.mé.sis” terão presença obras de natureza estética, técnica, informativa, ou simplesmente lúdica; e, como não poderia deixar de ser, o cinema, o teatro, a dança, a música, entre outros, serão os protagonistas desta colecção.

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VOCÊ DISSE «ENCENAÇÃO»?

Introdução

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Foi em Maio de 1981 que, em França, se deu um acontecimento estra-nho e cómico, mas cujo valor de sintoma a ninguém passou despercebido. O presidente da República, Valéry Giscard d’Estaing, que se candidatara à reeleição e fora derrotado por François Mitterrand, ia despedir-se publicamente dos Fran-ceses. Para isso, muito naturalmente, decidiu dirigir-se a eles pela televisão. O dispositivo adoptado era simples. Sentado de frente para a câmara, o presidente pronunciava, olhos nos olhos, o seu discurso, baixando por vezes o olhar ape-nas para consultar as suas notas. Inicialmente enquadrado à altura do peito, a imagem passou, a pouco e pouco, para um grande plano, com o rosto do pre-sidente a ocupar todo o quadro – até que, no momento em que na parte final do discurso apelava à Providência, o quadro se abriu, recuando rapidamente, e viu-se o presidente sentado numa poltrona muito modesta, atrás de uma mesa sobre a qual se viam microfones, folhas manuscritas e um pequeno ramo de flores de várias cores, tudo numa sala decorada com lambris cinzentos claros.

Em plano aberto, Giscard d’Estaing calou-se momentaneamente, com o olhar fixo na câmara e no telespectador, e depois articulou, com um ar com-penetrado: «Adeus». Em seguida, levantou-se e saiu do campo pela esquerda, em direcção ao fundo. Esta saída, em si mesma, era já um tanto invulgar, uma vez que obrigava o presidente a voltar as costas ao seu público, ou seja, ao povo francês. Mas aquilo que se seguiu foi visto como totalmente inconce-bível: após a saída do Presidente, a câmara continuou a enquadrar a mesa, a cadeira, o ramo de flores, o texto do discurso e os microfones, enquanto se ouvia o hino nacional, durante quase meio minuto – duração muito breve, mas, naquelas circunstâncias, interminável, espantosa e escandalosa. Esta saída foi muito comentada na comunicação social e todos se perguntavam se aquele campo e aquela cadeira, vazios, seriam intencionais ou se seriam para ler sim-bolicamente, ou se se deveria ver naquilo o gesto de sabotagem de um técnico decidido a ridicularizar o presidente em fim de mandato, ou simplesmente um acidente devido à má preparação da emissão.

Para um homem público, esta forma de utilizar o ecrã da televisão para se dirigir a um grupo de contornos indistintos («os Franceses») nada tem de

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extraordinário enquanto ele fala. O jogo com o enquadramento, o seu estreita-mento ligeiro e progressivo, que corresponde a um suposto aumento da aten-ção à medida que o discurso avança, é banal e determinado pela retórica deste género de exercício. O olhar frontal, os olhos que não se desviam dos nossos, são o pequeno truque habitual do homem que é televisionado, a sua maneira de nos convencer que nos vê e que nada nos tem a esconder. Mas tudo muda quando a câmara recua. Primeira surpresa: este homem que nos falou de gran-deza está sentado em condições desprovidas de decoro. A saída inesperada, sem qualquer majestade e quase ridícula, choca, a ponto de fazer esquecer quase imediatamente aquilo que o discurso tinha de majestoso. Sobretudo o vazio, a cadeira que se mantém à nossa frente, quando já nenhum olhar a habita, o ramo de flores que, subitamente, parece minúsculo, os papéis em cima da mesa a exibirem indiscretamente a preparação do discurso presidencial – tudo isto é mostrado com tempo suficiente para fazer sentido, para deixar, mesmo nos espectadores mais obtusos, que as conotações se tornem ainda mais pesadas.

Encenação? Com certeza, e duplamente (é este o interesse do exem-plo). Em primeiro lugar, a encenação vulgar da comunicação presidencial: de ele a nós, da «grande cabeça» (como se dizia dos primeiros grandes planos do cinema, por volta de 1905) a todos os seus ouvintes; encenação simplifi-cada, vincada pela frontalidade da filmagem, pelo carácter de caixa cénica do cenário, pelo encerramento do lado direito com um tabique e a abertura, pelo contrário, do fora-de-campo à esquerda, como uma espécie de bastidores por onde pode desaparecer a silhueta elegante do presidente francês – e à qual se junta e se opõe a encenação invulgar do operador de imagem sindicalista ou distraído, a permanência, contra qualquer expectativa, do quadro, do campo e do cenário, mesmo quando o actor já terminou a sua representação. A moral da história, o seu interesse teórico (e, na época, político), está evidentemente na vitória da segunda encenação sobre a primeira: da prestação do antigo pre-sidente, ninguém reteve as suas expressões carregadas de sinceridade, as suas frases de fervor trabalhado, nem sequer a sua presença de dignidade ostensiva – mas apenas a incongruência da saída, o burlesco deste vazio, que parece fazer pouco do vencido.

Moral política simples, demasiado simples. A encenação está em toda a parte, nada se pode imaginar sem ela. A vida urbana é totalmente regida por gestos de encenador, conscientes ou forçados, pessoais ou colectivos. Toda a gente sabe isso, e desde os grandes regimes ditatoriais da Europa dos anos 20 e 30, os poderes, sobretudo se pretendem ser absolutos, só existem à custa de uma boa dose de encenação. Hitler, Mussolini, Franco, Péron, Kim (pai e filho), sem os seus cenógrafos, os seus gestores de imagem e até os seus coreógrafos, nunca teriam tido o prestígio necessário aos seus reinados. A encenação existe em toda a parte e, neste sentido, a invenção da televisão universal e obrigatória

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foi apenas a forma de as democracias encontrarem também a sua encenação, ao mesmo tempo que toda a sociedade, ao «politizar-se», se transformava em espectáculo1. A encenação de Giscard d’Estaing, tão simplória quanto pom-posa era a dos ditadores, é apenas um momento minúsculo desta história. Mas adaptou-se, por um lado, à democracia (em que o detentor do poder se deve apresentar como um homem comum) e, por outro, à televisão, ou seja, a outro reino, simbolicamente concorrente – o reino das imagens. O erro de Giscard d’Estaing (que se considerou ridicularizado e se queixou) foi não ter trabalhado suficientemente a sua encenação. Cenografia pobre, encenação ele-mentar (imobilidade, monotonia): qualquer debutante na arte do teatro (ou na prática do grande plano) sabe que, nestas condições, o mais pequeno efeito, por contraste, é amplificado. A pior encenação é aquela que menos perdoa a improvisação, o acidente, o erro de apreciação.

Vingança do cinema (e do teatro) sobre a televisão, da encenação como arte sobre a escrita e o jornalismo? Em certo sentido, sem dúvida: a ingenui-dade na utilização daquilo que constitui, quer queiramos quer não, uma arte, é sempre arriscada. Este incidente tem já um quarto de século. Se o teatro nada mudou deste então, o mesmo não se pode dizer do cinema e, ainda menos, da televisão. O discurso «olhos nos olhos» tornou-se um exercício raro; os políticos desconfiam dele; o publico vê nele uma forma arcaica; os jornalis-tas tudo fazem para desacreditarem este dispositivo, que lhes reduz o papel. Actualmente, a intervenção política televisionada é quase obrigatoriamente organizada numa forma agonística, quer ponha frente-a-frente dois campos moderados pelos jornalistas, que distribuem a palavra e as avaliações, quer oponha o político ao entrevistador. Isto não produz necessariamente melhores encenações, e a monotonia, o aborrecimento, o ridículo são tão frequentes como dantes. Mas, decididamente, uma coisa mudou: existe, na imagem e no local de filmagem, um representante visível do dispositivo, um intermediário, um encenador – pelo menos por delegação simbólica.

Na época da saída de Giscard d’Estaing, o cinema já tinha sofrido ou passado por várias grandes revoluções técnicas, industriais, estéticas e estilísti-cas. Ganhara som e cor, fizera a prova do relevo e do grande ecrã, a supremacia passara da Europa para a América após a guerra de 1914-1918 e, depois da Segunda Guerra Mundial, uma série de «novas vagas» tentou abalar a forta-leza hollywoodiana – mas o cinema, contra ventos e marés, sobreviveu, e os prognósticos pessimistas que o tinham visto «devorado» pela televisão foram desmentidos.

1 Guy Debord, La Société du Spectacle, Paris, Buchet-Chastel, 1967 (reed. Gallimard, 1992); Commen-taires sur la société du spectacule, Paris, Éd. Gérard Lebovici, 1988.

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Como a expressão indica, e até duplamente, a encenação2 tem a ver com o teatro e a teatralidade. Como encenar sem ter definido primeiro, pelo menos implicitamente, uma cena? Inversamente, em caso de algo semelhante a uma cena, que podemos nela colocar? Estas questões elementares, tal como todas as da mesma ordem, são necessariamente formuladas tendo o teatro no horizonte. É porque a arte do teatro, que é antiga, mas não tem a univer-salidade das artes verdadeiramente primeiras – a música, a poesia (sobretudo cantada), a pintura/escultura, que são praticadas em toda a parte onde haja grupos humanos –, desde cedo definiu formas, práticas e noções que mode-laram a nossa vida social e o seu imaginário. Entre estas noções, e no centro delas, está a cena; desde a skéné da antiguidade grega, a cena foi para o teatro aquilo que o quadro foi para a pintura: o artefacto que permite criar, isolar, designar um espaço específico, que escapa às leis do espaço quotidiano, para pôr em seu lugar outras leis, talvez artísticas, mas seguramente artificiais e convencionais.

É sem dúvida por isso que, no vocabulário crítico do cinema, poucos termos deram lugar a tantos excessos e ambiguidades. Isto porque, se a ence-nação é um gesto do teatro, como compreender a sua intervenção no cinema? Devemos limitá-la às filmagens, ao que se passa no local de filmagem [plateau], (outro termo que assinala também a segregação do espaço da arte e do espaço da vida)? Será que a devemos alargar, mesmo que metaforicamente, a todo o fílmico e ver nela um princípio geral, a arte de reger a filmagem de forma a obter um determinado resultado em imagem? Ou tratar-se-á ainda de outra coisa mais vaga e profunda, uma espécie de qualidade que estabeleceria a diferença entre filmes com encenação e filmes sem encenação? Na história da crítica, todas estas definições foram adoptadas, por vezes com um surpreendente vigor polémico. O termo tem sido visto ora como excessivamente negativo (a «ence-nação» assimilada a «artificial», «rígido» e até a «datado» ou a «alavanca»), ora como, pelo contrário, excessivamente positivo, numa reivindicação da encena-ção como virtude essencial, ainda que inefável. Hoje em dia o debate é menos fervoroso, pois desde há 30 anos que o cinema segue outros caminhos e, em muitos casos, esqueceu o teatro, a cena e, em geral, os condicionalismos da dramaturgia; mas o termo não deixou de ter uso, e até vários usos – sempre marcados pelo mesmo equívoco.

Falar de encenação a propósito de cinema é, pois, instalarmo-nos na contradição ou, pelo menos, na duplicidade: por um lado, a cena e a sua orga-nização, o teatro, a peça, os actores, o espaço, os trajectos, os pontos de vista,

2 No original, mise en scène; traduziremos este termo por «encenação» e mettre en scene por «encenar», seguindo assim a conotação teatral sugerida pelo autor (N.T.)

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em suma, toda uma topografia ou uma topologia do mundo da ficção, toda uma série de gestos narrativos e expositivos; por outro, uma ciência, uma arte, uma sensibilidade e, por que não, uma qualidade específica, que não estará apenas ligada ao êxito técnico. Como dizia, de forma muito lúcida, Éric Rohmer em 1961: «A Beleza – ou belezas – é um conceito preferível ao da encenação, também aqui preconizado, mas que não quero, porém, denunciar. A primeira noção inclui a segunda, a qual, por sua vez, possui também uma acepção téc-nica.3» Não se pode ser mais rigoroso e mais económico: a encenação é uma questão de «técnica», aprende-se, pratica-se e discute-se; mas, afinal de con-tas, toda esta técnica visa apenas obter um efeito que deve ser considerado estético – ainda que tenhamos dificuldade em perfilhar o termo «beleza», já obsoleto em 1961.

O projecto deste livro nasceu da admiração constante que me pro-vocou a leitura de textos críticos, que, por volta de 1960, foram autênticos manifestos da encenação como valor estético específico do cinema (e acerca dos quais voltarei a falar). Como podemos defender o cinema enquanto arte específica, que não só concretiza aquilo que antes dele era impossível (o registo das acções com um forte quociente de mimetismo, a narração em imagens e sons, a produção de imagens dotadas de movimento), como também inventa sensações totalmente novas e, com elas, os meios de as apreciar – e, por outro lado, para isso, apoiarmo-nos na noção de encenação, que parece fazer retroce-der incessantemente o cinema para antecedentes teatrais? Por que escolhi esta expressão, em vez de um vocabulário da imagem (o estilo, a representação, a figuração, a expressão) ou de um vocabulário da narração (o ritmo, a lógica, a economia)? Será que, apesar de tudo e dos seus esforços para aceder ao esta-tuto de arte, o cinema nunca saiu do espectáculo?

Inútil dizer que não responderei totalmente a estas perguntas. O cinema foi visto socialmente como primo e rival do teatro, muito mais do que a pintura ou a literatura: é um facto que é preciso registar e que se prende a outras coisas que não aos filmes – entre outras, às condições, muito especiais, da apresentação das obras. É provável que, se o cinema se tivesse desenvolvido mais segundo a tendência do quinetoscópio de Edison e da visão individual (se tivesse passado directamente para o DVD), teríamos mais dificuldade em pensar no teatro, na cena ou na encenação. A verdade é que se desenvolveu, em toda a parte, em salas de espectáculo, com cadeiras, uma escuridão pelo menos relativa, uma atenção concentrada no ecrã, e que isso contribuiu muito para fazer pensar na situação do espectador de teatro. Apesar das transforma-ções, por vezes brutais, sofridas pela organização do espectáculo de cinema,

3 E. Rohmer, «Le goût de la beauté», Cahiers du cinéma, nº 121, Julho de 1961, publicado também em Le Goût de la beauté, Paris, Éd. de l’Étoile, p. 80.

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este dado de base nunca desapareceu: vamos ao cinema para estar frente a qualquer coisa, que está separada de nós por uma rampa, real ou virtual, e que vai, durante o tempo de uma representação, oferecer-nos um simulacro acei-tável de mundo. Os filmes podem até ser cada vez menos «encenados», mas o teatro está sempre lá enquanto formos «ao cinema» – talvez, agora, já não por muito tempo.

Este livro não é uma história da encenação cinematográfica, nem um panorama exaustivo das concepções críticas sobre a encenação. Pretendi ape-nas apresentar, com algum pormenor, o ponto de partida da minha questão, que continua a ser um ponto enigmático: como é que pudemos hipostasiar a «encenação» a ponto de nela vermos a qualidade primordial do autor, do poeta, do génio – e como se pôde conciliar isso com uma estética, uma moral e até uma política da arte cinematográfica que lhe valorizou a beleza dos gestos, dos corpos e dos sentimentos? Este é o tema do segundo capítulo deste livro e, para clarificar esta questão, é necessário desde já recordar tudo aquilo que o cinema, no seu início (que durou muito tempo, pelo menos 30 ou 40 anos), foi buscar ao seu grande antepassado e as querelas de antiguidade e de território que isso engendrou; tentei fazê-lo (no primeiro capítulo) marcando os dois pólos desta relação: por um lado, a dependência em que esteve, para o bem e para o mal, o cinema do primeiro meio século relativamente à concepção cénica do espaço e à riqueza do texto (e, em geral, do verbal) mesmo nas imagens; por outro, a inventividade a que esta sujeição deu lugar, manifestando mais uma vez a velha máxima sobre a arte que nasce do condicionalismo. Por último, o terceiro capítulo tenta interrogar-se mais directamente sobre o que é a encenação no cinema: uma série de gestos técnicos e, mais essencialmente, uma postura analítica, que, sob este ou aquele nome, são inevitáveis e permanentes.

Terá a encenação morrido? É fácil pensar isso, face aos produtos da indústria (americana, de Hong Kong e outras) desde há pelo menos 20 anos. Cada vez menos filmes – e cada vez mais marcados como «filmes de arte», fil-mes de autor ou filmes marginais – mostram cenas seguidas e, quando o fazem, é geralmente levando aos limites a autonomia e a arbitrariedade do ponto de vista da câmara. Os filmes de acção, actualmente, já não têm o apanágio de uma concepção do cinema como arte do plano e do plano obrigatoriamente expressivo. A arte da encenação, nas suas realizações mais puras, pertence à história do cinema, ao museu (ainda que este museu, com o DVD, se tenha transformado num «museu imaginário» formidável e permanente). No entanto, a encenação permanece, e permanecerá, na raiz de toda a arte cinematográfica imaginável, pelo menos enquanto o cinema consistir em filmar corpos huma-nos a exprimirem-se, a representarem, a sentirem, a viverem num quadro, num meio, num espaço e num tempo.

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A matéria deste livro foi retirada de cursos leccionados entre 2002 e 2005 na Universidade de Paris-3 e na EHESS. Agradeço a todos os alunos que, pelos suas intervenções e exigência, me ajudaram a clarificar as ideias. Os meus agradecimentos vão também para Michel Marie, que encomendou este livro, pela sua paciência amiga, e para Dominique Paini, pelos seus encoraja-mentos paradoxais; a Frank Kessler, pelas cópias que me arranjou de alguns textos raros. Agradeço especialmente a Lyang, a minha primeira leitora, pela inspiração e estímulo.

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A HERANÇA DO TEATRO:A ENCENAÇÃO, O TEXTO E O LUGAR

Capítulo 1

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Encenador, cineasta, realizador (e autor)

O teatro filmado«Quando a fala se apoderou da película, foi um grande banzé. (...) Os

intelectuais, os literatos, os fervorosos do teatro triunfavam insolentemente.4» Os «intelectuais», não é certo, mas os «fervorosos do teatro», sem dúvida: a invenção do cinema sonoro provocou, de forma previsível e inevitável, uma vaga de filmes que não passava de uma imitação insípida de representações teatrais. René Clair, ainda jornalista, parecia pensar que o «teatro filmado» era um género novo, que tinha a sua legitimidade, e que não havia qualquer razão para melindres (desde que, claro, não travasse o desenvolvimento do «verda-deiro» cinema). Na sua obra retrospectiva de 1970, René Clair conclui: «Profecia não realizada.5» O teatro filmado passou a ser o estigma dos inícios do cinema sonoro. De resto, os amantes de teatro não viam vantagens nesse cinema. «O cinema não pode substituir o teatro, tal como a fotografia não substituiu a pin-tura6», afirma Sacha Guitry em meados dos anos 30. O teatro filmado é atacado por todos: por aqueles que têm saudades do «cinema puro», feito para os olhos e não para os ouvidos, por aqueles que acham que o cinema só adapta peças de terceira categoria, por aqueles (por vezes, os mesmos) que se alegram por o ver a evitar as grandes obras, que só poderia desnaturar. A causa é conhecida: o cinema não é o teatro, o teatro filmado é cinema inferior.

Numa entrevista de 1968, Jacques Rivette declarava que «todos os filmes são sobre o teatro; não há outro tema7». De uma forma mais prosaica,

4 Alexandre Arnoux, Du muet au parlant. Souvenirs d’un témoin. Paris, La Nouvelle édition, 1946, pp. 184-185.

5 «O teatro filmado substituirá as representações teatrais de bairro e de província, tal como a edição popular de grande tiragem ajudou a edição original a difundir uma obra literária.» Cinéma d’hier, cinéma d’aujourd’hui, Paris, Gallimard, 1970, p. 236.

6 Sacha Guitry, «Pour le théâtre e contre le cinéma» (1936), Le Cinéma et moi, ed. revista, Paris, Ramsay, 1990, p. 63.

7 «Le temps déborde», entrevista a J. Rivette, Cahiers du cinéma, nº 204, Setembro de 1968, p. 15.

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O CINEMA E A ENCENAÇÃO

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pode concluir-se que, três quartos de século após a passagem para o cinema sonoro, uma percentagem não negligenciável de filmes se apresenta como a transcrição mais ou menos directa de uma representação teatral. A televisão, cujo aparecimento e popularização, um pouco mais tarde, desencadearam polémicas comparáveis, não alterou as coisas: os telefilmes e as séries televi-sivas não são teatro, mas continuam a assemelhar-se-lhe bastante, gerando personagens que se deslocam em espaços definidos, que se encontram e se falam – que ocupam uma cena. Boa parte dos filmes de autor preocupa-se tam-bém com o teatro, seja por uma referência directa – como em Noite de Estreia [Opening Night] de John Cassavetes, em Esther Khan ou Léo, en jouant «Dans la compagnie des hommes», ambos de Arbaud Desplechin –, seja pelo interesse contínuo na cena (quase todos os filmes franceses, as comédias e os dramas hollywoodescos). Ao mesmo tempo, o cinema alterou consideravelmente a sua definição do espectacular, desde os «efeitos especiais» dos anos 70 à digitali-zação cada vez mais usada nos filmes. O teatro continua subterraneamente presente no cinema, mas e a encenação? E, desde logo, quem é responsável por esta «encenação» no cinema?

O encenador«Receita da ratatouille8*: pegue numa obra-prima de Balzac ou numa

comédia famosa de Sardou e confie-a a um encenador.9» Para Guitry – especia-lista das posições reaccionárias corajosamente assumidas –, é claro: a pretensão do cinema em imitar o teatro é insustentável; o espectáculo cinematográfico, que não tem espírito nem técnica, mais não faz do que degradar a arte do tea-tro; «encenador», no cinema, é um título usurpado à força. No início, o cinema não tinha qualquer termo para designar o homem responsável pelo carácter do filme. Com o crescimento das ambições artísticas e da especialização das tarefas, o vocabulário desenvolveu-se e diversificou-se, segundo dois eixos – o do ofício e o da arte: havia, de um lado, o realizador e encenador; do outro, cineasta e, depois, autor. «Cineasta» é o único destes termos que tem uma data de nascimento e um progenitor: em Maio de 1921, no seu jornal Cinéa, Louis Delluc propõe o termo, um pouco por acaso e com o desejo confesso de substituir o termo francamente bizarro de «écraniste», que fora inventado por Canudo. Os Ingleses chamar-lhe-ão filmmaker, fazedor de filmes, mas outras línguas europeias (espanhol, português, alemão, etc.) usarão o termo cineasta, por vezes em concorrência com outros. É que este termo oferece uma solução para uma verdadeira dificuldade: como designar este indivíduo de pretensões artísticas, cuja obra, porém, não resulta do trabalho solitário normal, mas de

8 A ratatouille é uma antiga receita culinária provençal à base de beringelas e tomates (N.T.).

9 S. Guitry, op. cit., p. 62.

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A HERANÇA DO TEATRO: A ENCENAÇÃO, O TEXTO E O LUGAR

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uma colaboração? Na época em que se tentava definir a todo o custo o cinema como arte, cineasta foi o cómodo equivalente de pintor, escultor ou músico: o oficiante de uma arte singular. No entanto, durante bastante tempo, o termo foi equívoco e designava «todos – animadores, realizadores, artistas, industriais – os que fizeram alguma coisa pela indústria artística do cinema10», incluindo os produtores ou os operadores; quando dá o título de «Os Cineastas» à sua crónica, Delluc juntou Abel Gance, Serge Sandberg, Adolph Zukor, Lillian Gish e David W. Griffith. Foi para voltar ao trabalho solitário e distinguir estas perso-nagens que, a partir dos anos 30, a terminologia se decidiu pela atribuição da qualidade de «autor» (voltarei a este assunto).

Face a estas fórmulas gerais, dois termos concorrentes visam definir um ofício. O realizador, evidentemente, é aquele que realiza. Mas o que é que ele realiza? Hoje em dia, temos tendência a dizer que realiza um filme; ora, este termo foi concebido para designar aquele que «realiza», ou seja, que faz passar um argumento para a realidade sensível. O realizador é um homem do concreto, do visível e do audível, aquele que sabe traduzir uma narrativa escrita em acções e gestos. Nos anos 20, quando este termo entrou no uso corrente, estava separado do de «encenador» apenas por uma nuance recentemente apa-recida no teatro; ambos estão incumbidos de passarem para a realidade actos, gestos e movimentos, a carga expressiva de um texto escrito, de um argumento ou de uma peça de teatro. Seria o homem do cinema também um encenador? Esta é a questão, a meu ver, levantada pela difícil emancipação do cinema rela-tivamente ao teatro. Realizador, encenador: o cineasta, através destas designa-ções, tem a missão, de qualquer modo, de ser o ilustrador de um texto.

Felizmente, isto não é inteiramente verdade. Claro que há numerosos filmes de peças de teatro, quase sem diferenças. Mas, inversamente, esta pers-pectiva inquietante do «quase sem diferença», do registo sem imaginação, foi, para alguns cineastas, aquilo que os levou, como que por desafio, a pegarem em peças de teatro puro para as transformarem em filme, quer «desteatrali-zando-as», como dirá mais tarde Jean Cocteau a propósito das suas próprias experiências, quer «sobreteatralizando-as» (como o fez o próprio Guitry). Uma das primeiras realizações neste sentido foi a adaptação, por Jean Renoir (foi o seu primeiro filme sonoro), de uma comédia de George Feydeau, On purge Bébé. Se há um teatro convencional, é este, que exige a cena ou palco à italiana mais tradicional, para organizar as entradas, as saídas, os apartes, e que, além disso, se baseia num diálogo incessante em que os efeitos cómicos se sucedem quase sem interrupção. Renoir não pratica uma operação revolucionária sobre a comédia de Feydeau; conserva a sua estrutura geral e boa parte do diálogo,

10 Louis Delluc, Le Monde nouveau, V, 17-18, 15 de Agosto-1 de Setembro de 1922, p. 34. Reeditado em Delluc, Écrits cinématographiques 1. Le Cinéma et les Cinéastes, Paris, Cinémathèque française, 1985.

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e respeita no essencial as indicações cénicas. Mas faz duas coisas simples que tornam o seu filme um autêntico filme. Em primeiro lugar, «areja» a peça, acres-centando-lhe pequenos sainetes, na maioria quase mudos, situados fora da cena principal; dupla vantagem: estes sainetes ou inserts agem principalmente sobre a imagem (nomeadamente a primeira, e a mais importante, a do menino a quem a mãe quer dar o laxante e que o recusa, fazendo caretas) e permitem introduzir uma montagem alternada, isto é, uma das bases mais sólidas da linguagem do primeiro cinema. Em seguida, usa, no próprio interior das cenas que conserva, uma montagem sempre cortante, muitas vezes surpreendente, em que os saltos de pontos de vista no interior de um mesmo local são fre-quentes e não obedecem a regras identificáveis. Todo o filme é, pois, a simples e constante produção de um ponto de vista enquanto tal, o da câmara, que tanto desaparece como se afirma: seguimos sem dificuldade a continuidade dos diá-logos e das situações, mas nunca podemos antecipar o ponto de vista em que nos serão apresentados. Este estilo, feito de «ataques11» repetidos, típico de Renoir12, afasta decisivamente o filme do «teatro em conserva»: aqui, o cinema soube juntar a sua encenação à que era proposta pelo texto teatral.

A herança do teatro: o verbo e o lugar

Os anos 20, apogeu do cinema mudo, e os anos 30, aparecimento e consolidação do cinema sonoro, preocuparam-se com esta difícil relação. Dever-se-á seguir a tendência teatral? Dever-se-á contrariá-la? E que pensar da criação, da arte? Quem é o representante do projecto, quem é o autor? De todos estes pontos de vista, o cinema até aos anos 40 (até ao muito simbólico Citizen Kane, O Mundo a Seus Pés, que marca brilhantemente a mudança radical dos dados sobre todas estas questões) aparece-me como o único grande período, uma espécie de «primeiro cinema», em que a técnica e o dispositivo inventados com o Cinematógrafo se desenvolvem até se tornarem «completos». Liberto dos pro-blemas de aquisição da técnica de reprodução, o cinema concentrar-se-á depois mais nos problemas de enunciação. Mas este primeiro cinema confronta-se constantemente com o teatro, porque, entre os problemas que ainda não resol-veu, há dois, enormes, em relação aos quais o teatro impõe as suas soluções: o lugar central atribuído ao verbo, a importância da noção de espaço.

11 No sentido em que o entende Alain Bergala, a propósito de Fassbinder, mas também de Renoir e de alguns outros. Ver Le Cinéma comment ça va. Lettre à Fassbinder suivie de onze autres, Paris, Cahiers du cinéma, 2005, pp. 18 ss. Lembremos que, ao comentar o seu filme Carmen [Prénom Carmen] (1982), Jean-Luc Godard assimilara o ataque no banco ao «ataque» no sentido musical, e, implicita-mente, a sua própria forma de conceber o quadro e o plano.

12 E mais alguns outros cineastas, como Mizoguchi. Permitam-me remeter para o meu artigo «Appren-dre le Mizoguchi», Paris, Cinémathèque, nº 14, Outono, 1998, pp. 14-27.

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Teatro filmado: a imposição de um ponto de vista.(On purge Bébé, Jean Renoir, 1930)

D. R.

Logo no princípio do filme, entramos no escritório de Follaivoine com a criada (1). No plano seguinte, a câmara salta para o outro lado do escritório, num raccord a 90º (2). A mesma mudança brusca de ponto de vista, na primeira cena entre Follavoine e a mulher (3 e 4). Na cena (muda) entre Madame Follavoine e Bébé, o ponto de vista conserva um eixo fixo, mas recua progressivamente (por travelling) do princípio (5) ao fim (6) do plano. Estamos longe do registo passivo de uma representação teatral; o cineasta impõe ao espectador a consci-ência do olhar da câmara.

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O verbal no fílmicoNo princípio era o textoO reportório teatral do século XIX parece-nos hoje identificado com o

seu reportório literário. Num como noutro, há obras-primas e grandes auto-res, produtores em série e pequenas obras que se esquecem facilmente; auto-res célebres totalmente desaparecidos da nossa memória. Ora, por volta de 1850 ou 1860, havia, na crítica mais exigente, uma grande diferença, quase um abismo, entre literatura e teatro. Ninguém a expressou tão violentamente como Barbey d’Aurevilly: «Percorram-se todos os registos do espírito humano, desde o poema épico, que é o romance dos homens primitivos, até ao romance, que é o poema épico dos povos modernos, e ver-se-á se a arte dramática com as convenções que a regem não é a menos profunda, a menos completa das altas composições literárias13.» Ainda em 1912, uma revista parisiense fazia um inquérito com estas perguntas reveladoras: «Será que o espectáculo implica as mesmas faculdades espirituais que a leitura? Quem, para vós, é superior: o homem que “tem amor pela leitura” ou o homem que tem “a paixão do tea-tro”? Será o gosto do teatro uma forma do gosto da literatura?14» Ler um texto é um fenómeno espiritual, activo; o espectáculo, pelo contrário, mobiliza meios materiais, efémeros; pressupõe um destinatário passivo, ao qual só acede pelos sentidos. Muitos eram os críticos que repetiam esta axiologia, quando não acrescentavam que, sendo o teatro uma arte de massas, é necessariamente inferior à arte de elite que é a literatura (é a posição de Barbey d’Aurevilly). É difícil não sorrir, reconhecendo a mesma cantiga que acolherá o cinema primi-tivo, rejeitado pela crítica literária e teatral pelos mesmos motivos e com os mesmos argumentos: demasiado sensacional, não suficientemente espiritual, o cinema adula o gosto naquilo que este tem de mais grosseiro e mais material, transforma o espectador em receptáculo passivo, é a distracção de um povo estúpido (de «hilotas», segundo a expressão de um literato esquecido, Georges Duhamel).

Era noutra direcção que, por volta de 1870, se esboçava a evolução da arte do teatro, com Richard Wagner a enveredar por uma Gesamtkunstwerk15, que incluía a música, a poesia e também uma cenografia sofisticada. Mas, ape-sar dos esforços conscientes de alguns, por volta de 1900, para defenderem a arte do teatro enquanto tal, ou seja, enquanto espectáculo, apesar do apa-recimento notável do encenador, esta relação com a literatura nunca deixou de inquietar os espíritos, como uma má consciência. Stéphane Mallarmé, que

13 Jules Barbey d’Aurevilly, Théâtre contemporain (1866-1868), Paris, 1908. Citado de André Veinstein, La Mise en scène théâtrale et sa condition esthétique, Paris, Flammarion, 1955., p. 51.

14 In Veinstein, La Mise en scène et sa condition esthétique, op. cit., p. 53.

15 Ou seja, uma obra de arte total (N.T.).

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compreendeu o problema de forma mais profunda, percebeu bem que o teatro (de que fora espectador assíduo) assentava em fenómenos psíquicos e estéti-cos que em nada ficavam atrás, nem em grandeza nem em profundidade, dos do livro: «O palco é o centro evidente dos prazeres sentidos em comum, bem como, afinal de contas, a majestosa abertura ao mistério pelo qual estamos no mundo para descortinar a grandeza [...]16.» No entanto, a solução que propõe é a de um homem para quem a literatura é e continua a ser a referência: o teatro puro consumado no livro17.

Ler em voz alta numa apresentação pública aquilo que é feito para ser lido em voz baixa, passar do Livro para o Teatro e do Teatro para o Livro: esta utopia, alguns escritores, homens de teatro e até vários cineastas, desde Jean-Marie Straub a Raoul Ruiz, passando por Manoel de Oliveira, vão realizá-la em alguns dos seus filmes, e Jean-Luc Godard18 evoca-a de forma mais abstracta. É o acme, que se quer positivo, da sujeição do teatro à literatura, ao poema. «Penso que a literatura, extraída na sua fonte que é a Arte e a Ciência, nos dará um Teatro cujas representações serão o verdadeiro culto moderno; um Livro, explicação do homem, suficiente para os nossos mais belos sonhos.19» Salva-mento do teatro pela eliminação da grosseria que o encobre e por concentração no canto primordial: o diagnóstico é mais optimista do que o de Barbey, mas assenta nas mesmas premissas. Entregue a si próprio, o teatro é uma literatura invadida por ervas daninhas; o verdadeiro teatro, que representará a continui-dade do grande teatro original (a tragédia grega), será, de qualquer forma, um teatro da literatura. A representação teatral, nesta concepção do século XIX que ainda perdura e alimenta a televisão, é feita apenas para ouvir um texto, para o ouvir dizer e para o ouvir dito.

Paliativos mudos: a pantominaO cinema mudo está quase sempre associado no nosso espírito à

ideia de actores cujos gestos impressionam pela incongruência, pelo exagero e pelo artifício. É impossível não pensar na pantomina, essa arte teatral menor,

16 Mallarmé, Crayonné au théâtre (1887), em Œuvres complètes, Paris, Gallimard, «Bibliothèque de la Pléiade», 1945, p. 314.

17 «Teatro», se quisermos, no qual a relação entre o oral e o escrito seria regida com um rigor implacá-vel, em que um «operador» dá o espectáculo total, perfeito, de uma leitura que seria, a seu modo, tão rigorosamente encenada quanto uma representação teatral. Das 200 páginas do manuscrito em que pensa neste Livro Ideal, Mallarmé dedica apenas algumas a esboçar o conteúdo desse livro-poema, concentrando-se quase exclusivamente no dispositivo – incluindo económico – da sua apresenta-ção. Ver a edição feita por Jacques Schérer, Le «Livre» de Mallarmé, Gallimard, 1957.

18 «[...] o teatro não pode nem deve ser representado, apenas lido e, por conseguinte, escrito, ou então inventado e vivido.» (1990) Citado por Liandrat-Guiges e Jean-Louis Leutrat, Godard simple comme bonjour, Paris, L. Harmattan, 2005, p. 268.

19 Mallarmé, «Sur le théâtre», fragmento sem data, Œuvres complètes, Paris, Gallimard, «Bibliothèque de la Pléiade», p. 875.

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baseada na capacidade expressiva (não verbal) do corpo. Ora, no século XIX, a teorização da pantomina acentua a sua parte de codificação paraverbal. A obra de François Delsarte, cuja influência foi enorme em todos os países ocidentais (incluindo os Estados Unidos), propõe um «método» assente na fisiognomonia20, baseado numa espécie de dicionário ou léxico que estabelece uma correspondência entre gestos e estados de espírito: só há uma forma de o corpo manifestar a ira, a angústia, o ciúme, a inquietação ou a ternura. A uma emoção corresponde sempre um movimento do corpo; inversamente, um movimento do corpo representa adequadamente uma única emoção21. Representar, segundo o sistema da pantomina, é aprender a produzir «enun-ciados bem formados», numa linguagem convencional e artificial que mobi-liza o corpo.

O cinema mudo contém, em muitos filmes, o vestígio desta tradição. Veja-se o exemplo, cómodo e genérico, das curtas-metragens de David Wark Griffith para a produtora Biograph. Todas as semanas, Griffith realizava um ou dois filmes, primeiro de só uma bobina e depois de duas bobinas, entre The Adventures of Dollie, filmado a 18 e 19 de Junho de 1908, e Judith of Bethulia, filmado em Julho de 1913 (estreado apenas em 1914). Nestes cerca de 450 filmes podemos ver as marcas da encenação a ficarem cada vez mais ténues, a utilização das paisagens naturais a adquirir cada vez mais importância, e até a representação se torna mais natural à medida que se afirmam como actores de cinema personalidades como as irmãs Gish, Lionel Barrymore, Harry Carey, Robert Harron, Mae Marsh ou Mary Pickford. Griffith nunca teme recorrer ao sistema do dicionário mímico. Para indicar que é casada, uma personagem mostra o dedo anelar; se tem filhos, coloca a mão horizontalmente à altura da cabeça (tantas vezes quantas o número de filhos); ninguém faz um brinde sem inclinar o busto para trás e estender o braço; o desespero é expresso pelas duas mãos levadas às têmporas (sobretudo nas mulheres), etc.

Ao mesmo tempo, no cinema mudo encontramos um eco directo da tese de base do naturalismo: uma origem natural da gestualidade expressiva

20 Fisiognomonia: «ciência» que pretende deduzir das características puramente físicas (em especial, as do rosto e da cabeça) um conhecimento acerca do carácter e da psicologia dos seres humanos. Foi inventada por Johann Kaspar Lavater, numa obra publicada em 1775-1778, e que, durante um século, exerceu grande influência (nomeadamente através de Goethe e Balzac).

21 Na obra que expõe o sistema de Delsarte (do seu discípulo Alfred Giraudet, Mimique: Physionomies et gestes, méthode pratique d’après le système de F. del Sarte, pour servir à l’expression de sentiments, Librairies-Imprimeries Réunies, 1895), os corpos são representados por uma espécie de manequins com linhas simplificadas e abstractas. Acerca desta obra e da posteridade de Delsarte no cinema, remeto, por um lado, para Mikhail Iampolski, «Les expériences de Kuleshov et la nouvelle anthropo-logie de l’acteur», Iris, vol. 4, nº 1, 1986, e, por outro, para Emmanuelle André, Formes filmiques et idées musicales: en quête de musicalité au cinéma, tese de doutoramento na Universidade de Paris-3, 2000 (ver também «L’homme désaccordé. La gestuelle de Jerry Lewis», Cinéma 04, Outono, 2002, pp. 21-31).

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e da mímica do actor. Em concorrência com o léxico de gestos e poses padro-nizados, há também o contrário da convenção, na forma de gestos originais inventados pela sua expressividade ou, mais claramente naturalistas, gestos que não parecem premeditados. Estes três géneros de gestos – convencionais; artificiais mas originais; naturais e espontâneos – coexistem, na verdade, em todo o cinema mudo, sem que nisso se veja qualquer progressão. Existe sem-pre, pelo menos até meados dos anos 20, tanta ou mais mímica como inven-ção, mesmo em filmes a priori próximos do documentário. Desde as vistas de Lumière encontramos toda a gama, dos gestos espontâneos dos sujeitos filmados na sua actividade quotidiana até às pantominas puras dos filmes de estúdio, passando pelo vasto registo intermédio dos gestos copiados do espon-tâneo por sujeitos filmados que se mostram demasiado conscientes de o serem. Os Primeiros Passos do Bebé [Premiers Pas de bébé] (vista 67) são executados com a maior das naturalidades pelo bebé; a mãe, muito consciente da presença da câmara, assegura a encenação por delegação, fazendo com que o menino se mantenha no campo, ao mesmo tempo que, espontaneamente, vela para que ele não caia. Ainda nos filmes de família, Jogo de Cartas [Partie d’écarté] (vista 73) oferece um contraste nítido entre as poses dos jogadores, atentos para não perderem (por isso parcialmente naturais), e do criado que serve as bebidas e se contorce para exprimir – pensa ele – a sua reacção às jogadas, num desem-penho que acaba por ser tão exagerado quanto o dos actores de Griffith.

A pose, a postura, a conformidade do gesto dramático a um dicionário implícito constituíram a lei em praticamente todos os dramas e melodramas (o caso do filme cómico é um pouco diferente, com o excesso carnavalesco a que chamamos burlesco). As divas italianas de Il fuoco (Giovanni Pastrone, 1915) ou de Assunta Spina (Gustavo Serena, 1915), tal como as primeiras stars de Hollywood, mostram-nos uma representação exagerada, artificial, facilmente decomponível em gestos unitários, nos quais se vê a excessiva articulação. Fazer do corpo, privado da fala, um meio de recuperar a linguagem articulada copiando-lhe, precisamente, a articulação: é esta a definição de princípio de grande parte da representação do actor do período «mudo». A linguagem, no cinema mudo, não se limita, pois, aos entretítulos; não partilho a opinião de Michel Chion, que vê nestes entretítulos um «corpo estranho» à imagem e uma forma de manter «a ilusão de que o cinema mudo poderia tornar-se puro e, dispensado-a [a linguagem], emancipar-se das palavras22». Mesmo nos pou-cos filmes que procuraram esta pureza desembaraçando-se dos entretítulos, a imagem continua impregnada de alguma linguagem, que provém da longa habituação, no teatro, de ver a coabitação de um corpo, de uma voz e de uma dicção articulada. O próprio Chion observa que, nas cenas dialogadas

22 Michel Chion, Un art sonore, le cinéma, Paris, Cahiers du cinéma, 2003, p. 18.

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dos filmes mudos, a maior parte das vezes as personagens mantêm-se imóveis mesmo quando falam23. Com efeito, é como se fosse necessário optar entre falar e mover-se; se o actor «fala», não se move e a palavra tem de ser veiculada, do exterior do corpo do actor, pelo pesado sistema dos entretítulos; e se não «fala», a pantomina reenvia a linguagem para o corpo do actor.

Esta carga de linguagem da representação exagerada, esta impregnação da linguagem nos gestos, foi percebida na primeira década do século XX pelos cineastas mais atentos. O dinamarquês Urban Gad, autor da primeira obra completa sobre a realização de filmes, nota que o actor de teatro tem maior tendência em levar para o filme essas convenções, uma vez que está habituado a exprimir-se de forma exagerada: «No cinema, um actor não pode limitar-se a exprimir o desespero pelas mãos postas no rosto, ou a paixão encostando-as ao coração; por causa da distância do espectador, no teatro, estes gestos exer-ceram o seu efeito durante tanto tempo que se tornaram símbolos tradicionais [...]. Num filme, o público deve ter o sentimento autêntico, tal como se reflecte na vibração do rosto humano.24» Gad acrescenta ainda que, nas cenas de diá-logo, é no rosto daquele que ouve que veremos o sentido das palavras – abrindo assim caminho, pelo menos em teoria (porque os seus filmes estão longe deste ideal), a um cinema liberto do teatro e da sua gestão da fala.

A logorreiaÀs primeiras representações de filmes mudos dramáticos, o público

tinha tendência a reagir como aquele crítico que escrevia em 1908: «Come-çamos a sentir uma espécie de irritação com o mutismo obstinado daque-las silhuetas gesticuladoras. Temos vontade de lhes gritar: “Digam qualquer coisa!”25» Este desejo foi satisfeito, ampla e copiosamente, em filmes sonoros que não faziam senão isso – dizer qualquer coisa, fosse o que fosse; a encena-ção, então, consistia no seu princípio, e para além das habilidades individuais, em conservar no centro da nossa atenção aquelas «silhuetas» falantes.

Na altura da passagem para o cinema sonoro (entre 1926 e meados dos anos 30), a ambição era alcançar os famosos «100%» prometidos pelos slo-gans dos produtores: filmes em que a fala dramatizada nunca se calaria. É uma concepção hiper-teatral a que visa a «Querela do teatro filmado», e que, por ser o seu oposto exacto, não é diferente na sua essência de um cinema mudo reduzido à mímica articulada e focalizada. O cinema sonoro teve opositores, que nele viam apenas uma regressão a um estádio primitivo da encenação, em

23 Chion, op. cit, p. 49.

24 Urban Gad, Filmen: Dens Midler og maal, Copenhaga, Gyldendal, 1919. Cito a partir da tradução alemã, Der Filme, seine Mittel, seine Ziele, trad. por J. Koppel, Berlim, Schuster & Loeffler, 1920, pp. 151-152.

25 Adolphe Brisson, citado em Marcel Lapierre, Anthologie du cinéma, La Nouvelle Édition, 1946.

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A HERANÇA DO TEATRO: A ENCENAÇÃO, O TEXTO E O LUGAR

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que a câmara devia permanecer imóvel e registar o desempenho dos actores. Mas este critério da mobilidade da câmara e da fluidez da montagem, ainda que pertinente, foi apenas provisório, uma vez que a câmara depressa recuperou a liberdade de movimentos – em parte, graças a invenções como a dobragem. Em contrapartida, aquilo que não desapareceu com as invenções técnicas foi o papel central e determinante da fala; adquiriu apenas uma nova forma, que bem se pode chamar logorreia, nos muitos filmes claramente teatrais dos anos 30 (a década em que se fizeram mais adaptações de peças de teatro). Sacha Guitry não escondia que desejava, antes de tudo, registar um testemunho da encenação e da dicção que aprovara para as suas próprias peças: «Encenei [em 1916] uma comédia intitulada Faisons un rêve, na qual Raimu esteve admirável. Foi há exactamente 36 anos. Mais tarde [1936], filmei-a – e está agora [1952] a ser representada num cinema dos Campos Elísios. Raimu já não está cá, eu já não tenho idade para a representar – e podeis vê-la ainda!»26 Faisons un rêve é uma peça em que o reduzido número de personagens (três) não impede a abun-dância dos diálogos; está sempre alguém a falar, como no célebre monólogo em que Guitry, enquanto espera pela amante (Jacqueline Delubac), a imagina a arranjar-se, a sair de casa, a apanhar um taxi, etc. – tudo isto, sem dúvida, para benefício do espectador, suspenso nesta narração durante quase oito minutos pela magia do verbo e da voz, a ponto de, quando a personagem chega à con-clusão de que pecou por optimismo e que a jovem não vem, ficarmos, tal como ele, desiludidos.

O objectivo da logorreia é sempre o mesmo: suspender o espectador na enunciação do sentido, fazer com que deseje e espere pelo seguimento do diálogo (ou do monólogo). O jogo dramático é então reduzido à circunstância desta enunciação. Uma das obras-primas da logorreia é O Grande Escândalo [His Girl Friday], de Howard Hawks (1940), adaptado de uma peça de Ben Hecht e de Charles MacArthur, remake de uma primeira adaptação, Front Page (Lewis Milestone, 1931); esta primeira versão tinha a fama de ser o filme mais rápido alguma vez realizado e Hawks apostou em tornar o seu ainda mais rápido. «Para isso, só é preciso algum trabalho suplementar no diálogo. Colocam-se algumas palavras antes da réplica de uma personagem e algumas palavras logo a seguir, e depois sobrepomo-las. Isto dá uma sensação de rapidez que, na realidade, não existe. E depois, põem-se as pessoas a falar mais depressa. [...] Expliquei isto a Hecht e a MacArthur. Falávamos os três ao mesmo tempo e eu disse-lhes: “Estão a ver? Eles vão falar exactamente como nós estamos agora a falar”.27» O resultado é surpreendente e, ainda hoje, a velocidade de elocu-ção desses diálogos, perfeitamente articulados, continua a ser incomparável.

26 Sacha Guitry, Le Cinéma et moi, 2ª ed., Paris, Ramsay, 1984, p. 105.

27 Joseph McBride, Hawks on Hawks, University of California Press, 1982, pp. 80-81.

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O CINEMA E A ENCENAÇÃO

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Mas, tal como na pantomina, o preço a pagar é a imobilidade dos actores e também, com frequência, da câmara. Na cena em que Walter (Cary Grant) toma o pequeno almoço com a ex-mulher Hildy (Rosalind Russell) e o noivo desta (Ralph Bellamy), as três personagens estão enquadradas juntas e, além disso, como nenhuma delas pode voltar as costas, estão sentadas no mesmo lado da mesa, de forma muito pouco natural. É nestas condições que decorre o diálogo, a um ritmo de metralhadora. A encenação, aqui, é apenas o puro exercício da logorreia – ou não participasse Cary Grant, um dos actores mais versáteis que alguma vez existiu, que «actua como um elfo com as pernas, os braços, os músculos do rosto, e executa um bailado digno de Massine28».

A dicçãoQuando o cinema se tornou sonoro, o dilema da pantomina (exprimir

convencionalmente ou tentar exprimir naturalmente) incidiu na dicção, com o seu duplo pólo normativo: por um lado, o verosímil e, por outro, o prosódico. Com efeito, há duas grandes tradições na dicção teatral: a que se esforça por naturalizar o diálogo, por o tornar tão fluido quanto possível, por fazê-lo esque-cer; e a que, ao contrário, se impõe, se destaca, se apresenta ao ouvinte por si mesma e pelas qualidades sonoras. Este dilema nunca foi tão visível como na representação de peças antigas, que nos chegaram na forma escrita, sem que se saiba exactamente que relação tinham com a oralidade. Sabemos apenas que a dicção era muito artificial e articulada (a dicção mais solta, no teatro, só apa-receu com o naturalismo de André Antoine). Várias tentativas de recuperação desta pronúncia e de reconstituição do estilo gestual, sonoro e visual da cena do século XVII ao século XVIII foram propostas; eram sugestivas, mas sempre hipotéticas29. Para além destas tentativas, apaixonantes mas experimentais, montar Le Cid (Corneille) ou Andrómaca (Racine) implica uma escolha entre duas soluções igualmente contestáveis: dizer alexandrinos, com o risco de ser difícil seguir a construção das frases, ou naturalizar o discurso, quebrando a métrica e a rima, como se se tratasse de um texto contemporâneo.

Quando, em 1970, filmou a peça Othon, de Corneille, Jean-Marie Straub tomou, entre outras, posição sobre estas relações entre o verbal e o espectacu-lar. O seu filme é uma representação da peça, que oferece algumas particularida-des notáveis (e notadas, pois o filme foi recebido como uma provocação). Desde logo, em termos cenográficos: cada um dos cinco actos é filmado num único

28 Manny Farber, «Preston Sturges: du succès au cinéma» (1954), Espace negative, trad. por B. Mat-thieussent, Paris, POL., 2004, p. 127. Sobre o estilo deste actor, ver também Luc Moullet, Politique des acteurs, Paris, Cahiers du cinéma, 2003.

29 Penso sobretudo no trabalho sistemático de Eugène Green e do seu Théâtre de la Sapience. Ver o seu livro, La Parole Baroque, Paris, Desclée de Brouwer, 2000, e a aplicação das algumas das suas ideias nos seus filmes, Le Monde vivant (2003) e Le Pont des Arts (2004).

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Introdução. Você disse «encenação»? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

1. A herança do teatro: a encenação, o texto e o espaço . . . . . . . . . . . . . . . 17

Encenador, cineasta e realizador (e autor) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

O teatro filmado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

O encenador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

A herança do teatro: o verbo e o espaço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

O verbal no fílmico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

O palco fílmico: o cubo, os bastidores, a profundidade . . . . . . . . 32

A herança da literatura: o argumento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

Argumento, adaptação, planificação (preeminência do argumento) . . 41

A revolta contra a herança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

Como o cinema mudo dispensa o teatro . . . . . . . . . . . . . . . 54

Como o cinema supera a literatura (e o teatro) . . . . . . . . . . . . 59

2. Um manifesto estético: a encenação e o mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

Um manifesto negativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

A época das estéticas e dos manifestos . . . . . . . . . . . . . . . . 75

A intenção do cinema como arte não se define pelo desejo do artista . 78

A arte do cinema não implica um terceiro simbolizante . . . . . . . . 81

A estética do cinema não é relativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

A «encenação» à prova dos filmes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

Os «quatro ases» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

Cinema da encenação e cinema da imagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108

O fim da encenação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108

ÍNDICE

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3. A essência da encenação ou o fantasma da analítica . . . . . . . . . . . . . . . . 127

A encenação como técnica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

Nascimento do encenador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

A encenação no «primeiro cinema» . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

Crítica e analítica da encenação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140

Eisenstein, Straub e a encenação analítica: a busca do sentido . . . . 142

Rohmer e a análise da encenação: a busca da forma . . . . . . . . . . 153

Encenação e ficcionalização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157

A ficção como construção da encenação . . . . . . . . . . . . . . . 157

Encenação e estrutura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

A parte do acaso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

Conclusão. Será o fim da encenação? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175

Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

A encenação e o teatro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

Cinema e teatro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182

A «encenação» e a arte do cinema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182

A encenação: práticas e análises . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185

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