O CICLO CAROLÍNGIO NA LITERATURA DE CORDEL … · A importância do fenômeno da literatura de...
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O CICLO CAROLÍNGIO NA LITERATURA DE CORDEL
NORDESTINA
SIQUEIRA, Ana Marcia Alves (UFC)
1. INTRODUÇÃO
A importância do fenômeno da literatura de cordel no quadro das literaturas ibéricas –
e de suas ex-colônias – evidencia a força da transmissão oral e de estruturas e temas advindos
de narrativas medievais, especialmente, de repertórios ligados a temáticas guerreiras,
lendárias e heróicas, ou ainda, à exaltação de valores morais, sociais e religiosos. Entretanto,
estes repertórios não procederam tão somente da Idade Média, mas incorporaram, ao longo de
séculos, os legados antigos de diferentes povos, bem como criações de períodos mais
recentes.
A sobrevivência de uma produção literária tão rica – poemas, cantigas, romances,
estórias, narrativas, fábulas –, procedente tanto da tradição popular quanto da erudita,
possibilita a ilação de que a Idade Média não cobre apenas os dez séculos da cronologia
histórica que a delimita, mas recua a tempos imemoriais, para colher a memória do passado,
como avança no tempo futuro, legando uma herança que ainda hoje vive pela boca do povo e
pela pena de escritores e poetas, configurando a longa duração da voz de que nos fala
Zumthor (1993), em consonância com Le Goff (2008) e a Escola dos Anais.
Os primeiros colonizadores trouxeram para as Américas a cultura de “oralidade” da
Europa medieval. Esses primeiros aventureiros eram, em geral, pessoas simples, camponeses
emigrados pela falta de terras, ou desocupados urbanos que decidiam cruzar os mares à
procura de fortuna. Ou seja, pessoas, pouco cultas e alheias às novidades quinhentistas,
estavam ainda impregnadas da visão de mundo e da mentalidade medieval.
Esses colonos povoaram o litoral brasileiro e, ao longo da colonização, adentraram
pelo sertão, região de difícil acesso, que possibilitou a conservação de algumas das
características da sociedade colonizadora. Em resumo, o Nordeste brasileiro recebeu da
metrópole modelos sócio-econômico-culturais ainda muito próximos dos medievais.
Juntamente com estes modelos, veio a ideologia dominante que se balizava em uma profunda
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religiosidade e ultrapassava diferentes dicotomias, como, por exemplo, aquela existente entre
a cultura oficial dos grupos dominantes, em processo avançado de formalização e de escrita, e
a cultura produzida pela camada popular, ainda predominantemente oral, com suas técnicas,
estruturas, temas, personagens e intérpretes próprios. Circunstâncias específicas da região –
isolamento, latifúndios, distanciamento do poder administrativo, organização patriarcal, seca,
banditismo – levaram ao congelamento desses modelos e propiciaram a identificação do viver
e do sentir sertanejo, de seu imaginário com o imaginário medieval.
O mundo medieval e seu aspecto essencialmente oral não estavam destinados a
desaparecer, segundo Zumthor (apud PELOSO, 1996, p.50):
Aqueles que partiam – aventureiros, missionários, marginais de toda espécie, jogados nos portos do Ocidente – mergulhavam ainda, até o ventre, até a boca, no velho mundo medieval, campesino e guerreiro, que tinha sido o mundo da voz [...] Nos estabelecimentos bem frágeis que eles edificavam, em nome de reis distantes, na solidão do seu Novo Mundo, eles mantinham – eles manterão, por tanto tempo quanto foi socialmente e tecnicamente – o sopro desta voz, desta palavra viva, presença e calor [...] É o que testemunha, à sua maneira e no seu setor, a literatura de cordel. A voz que engendra, e à qual ela, hoje ainda, e em toda ocasião retorna, constituía o lugar fundador da consciência do grupo. No meio de uma natureza brutal e hostil, a voz, o canto estendiam à área dos corpos até o fundo das sombras onde levava o eco. [...] Os colonos levavam nas suas barcaças uma imagem arquetípica, difusa tanto em toda a Eurásia como também na África negra: aquela do cantador cego, vagando de aldeia em aldeia, trazendo consigo poemas inspirados.
Desde a época medieval, com a ausência da escrita e com o analfabetismo, os que
sabiam ler formavam os círculos divulgando oralmente essa literatura, tal como ainda hoje,
em feiras no Nordeste, podem ser vistos cantadores que lêem/cantam esses folhetos.
Perpetuou-se o costume de histórias narradas nos serões familiares; histórias dos livros
(produto raro) ou então veiculadas por cantadores ambulantes que iam pelas fazendas ou
feiras, transmitindo notícias, reproduzindo histórias, inventando cantos, improvisos, repentes
e desafios. Enquanto não se difundiu a tipografia, os folhetos constituíam um meio barato de
divulgação dessa produção poética, que era transmitida oralmente, mas que, geralmente tinha
uma origem ou inspiração erudita.
Assim, a tradição oral ibérica dos romanceiros, das histórias de cavalaria e também
dos contos maravilhosos, folclóricos e dos heróis clássicos, trazida pelos colonos, foi e é
transformada e revificada pelos poetas e escritores brasileiros, eruditos e populares. Desse
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amálgama entre o antigo e o novo, cristalizando tradições e lançando novos elementos,
compõem-se os textos produzidos pela “voz popular”.
O trabalho em conjunto de eruditos e cantadores conformam uma voz coletiva, que
expressa anseios, problemas, angústias, sonhos e desejos; conformando, portanto, o registro
das preocupações e acontecimentos de uma época em que a poesia popular, medieval ou
sertaneja, podia cantar os acontecimentos notáveis em suas diversas manifestações, no
romance, na xácara ou mesmo em composições menos extensas.
A propósito, observa-se, na região, uma especial predileção por aventuras
cristalizando imagens de valentia e heroísmo, ao gosto do cavaleiro andante, figura popular no
medievo e também no sertão brasileiro. Tais aspirações têm como fulcro as histórias trazidas
pelos colonizadores, o cordel e a tradição oralmente perpetuada pela população das regiões
interioranas, alheias às constantes transformações das cidades.
Para Queiroz (1977), a épica de Carlos Magno e os doze pares de França, muito
popularizada pelo cordel, constituiu a matriz para a épica do cangaço, na qual Antônio Silvino
e Lampião são relacionados ao chefe supremo que conduziu seus pares por incontáveis
aventuras no sertão brasileiro. Isto porque em uma sociedade de criadores de gado, como a do
sertão nordestino, o ideal do cavaleiro andante e o gosto por aventuras e torneios perduram na
forma de residualidade (PONTES, 1999), isto é, na forma de imagens ou temáticas
remanescentes do imaginário medieval, que se constroem de um modo original, híbrido –
amálgama formado pelos elementos residuais em uma nova configuração.
Por isso, ainda são correntes, além da épica carolíngia, diversas histórias de origem
cavaleirescas. Os habitantes do sertão julgam encontrar nessas lendas a imagem ideal da
ordem social em que vivem, e os grandes latifundiários, chefes de extensas parentelas, de
certo modo, consideram-se “pequenos Carlos Magno, rodeados de seus pares” (QUEIROZ,
1977, p. 38).
Galvão (1972), ao analisar a matéria do romance Grande Sertão: Veredas, de
Guimarães Rosa, justifica:
O tratamento de uma matéria como essa em termos de novela da cavalaria prende-se a dois fatores. Um, a sobrevivência verificável do imaginário medieval no sertão brasileiro, seja na tradição oral, seja no romance de cordel. Outro, o pendor irresistível que têm os letrados brasileiros, dentro e fora da ficção, para representar o sertão como um universo feudal. O primeiro fundamenta, portanto, a verossimilhança; o segundo entra em
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tensão com aquele por veicular representações que servem a propósitos de dominação (GALVÃO, 1972, p.12).
De início, a utilização da idealização do modelo feudal retratado nas novelas de
cavalaria serviu, em terras brasileiras, como instrumento de divulgação dos valores da colônia
e também como instrumento de catequese usado pelos jesuítas nas representações
comemorativas de festas religiosas. A partir dos séculos XV, os romances épicos e novelescos
criados para serem cantados por jograis passam a ser adaptados ao gênero popular e
difundidos em larga escala, facilitando, dessa maneira, o interesse de tornar conhecidos, no
Novo Mundo, os valores monárquicos, a grandeza dos reis cristãos, a bondade e beleza de
princesas e donzelas e a valentia e o heroísmo de nobres cavaleiros. Mais tarde, essa temática
permaneceu como um ideal a servir aos grandes proprietários de terras e chefes políticos, mas
também aos bandos de rebeldes e cangaceiros recriados pela literatura.
Por outro lado, Silvano Peloso (1996, p.46) esclarece que há um fascínio pelas
aventuras de Amadis de Gaula e que o gosto pelos romances de cavalaria “atravessa toda a
literatura de viagem ibérica da época, influenciando inteiras gerações de leitores no Velho e
no Novo mundo”. Segundo seu raciocínio, isso se deve ao fato de os componentes dessa
literatura de tons populares serem aqueles de sucesso garantido ao longo dos tempos: ação
emocionante, aventuras fantásticas, sentimentos e cenas de amor, heróis invencíveis e de
corações nobres, belas damas, vigoroso tom descritivo e otimismo unido à coragem.
Em suma, as explicações se complementam e levam a constatação de que as aventuras
de Carlos Magno e seus pares povoam o imaginário1 do sertanejo, como povoaram o
imaginário do medievo, especialmente, do povo ibérico após a Reconquista, porque essas
aventuras representam um símbolo de resistência ao inimigo, como também sintetizam o ideal
cavaleiresco. Nesta perspectiva, primeiramente, analisaremos a difusão da temática carolíngia
na literatura ibérica, buscando compreender as motivações que subjazem o fenômeno, para
então discutir o aproveitamento desse “material mítico-literário” no cordel nordestino.
1 Conforme Franco Júnior (2003, p.106), imaginário define-se como um conjunto ou sistema de decodificadores e representantes culturais, historicamente variáveis, de um complexo de emoções e pensamentos, ou seja, de um inconsciente coletivo. Constituem, portanto, formas próprias de os homens verem o mundo e a si mesmos.
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2. GÊNESE E DIFUSÃO DO MITO CAROLÍNGIO
A origem desse mito encontra-se enraizada a uma tradição oral francesa muito antiga,
alusiva ao um fato histórico: a batalha entre os Pares de França e o exército do rei Marcílio,
governante sarraceno de Saragossa. Embora a história aponte como motivo da morte dos
estimados cavaleiros de Carlos Magno, quando da retirada do exército da Península Ibérica,
uma emboscada de guerreiros bascos, o poema épico La chanson de Roland (1982), registrado
por escrito entre 1087 e 1090 pelo escritor anglo-normando Turold (MACEDO, 2000), narra a
heróica luta e as proezas de Roland, sobrinho do Imperador e principal cavaleiro franco, que
juntamente com Olivier, o arcebispo Turpin e os demais pares resistem até a morte ao ataque
traiçoeiro dos sarracenos no desfiladeiro de Roncesvales.
De acordo com o poema, o imperador da barba florida retorna tarde demais a
Roncesvales; porém, empreende uma vitoriosa batalha contra o emir Baligant. Após o
aniquilamento do exército inimigo, ocorre o batismo de todos os sobreviventes, inclusive da
rainha sarracena.
Segundo Macedo (2000), o episódio figurou na memória ocidental como pungente
exemplo da epopéia cristã contra os inimigos muçulmanos:
Cantada às vésperas das primeiras cruzadas, seus personagens principais expressavam o clima da Guerra Santa: Rolando e os demais guerreiros francos recebem a auréola do martírio; os mouros ou sarracenos encarnam os detestáveis e satânicos inimigos da fé; e Carlos Magno é sempre lembrado como vencedor absoluto e vingador implacável (MACEDO, 2000, p.19).
A canção apresenta, portanto, o imperador como um símbolo lendário que atua
como defensor e promotor da fé cristã, um paradigma da figura do rex cristianissimus.
Outrossim, a partir do século XII, o ideário carolíngio difundiu-se por toda a Europa,
inclusive na Península Ibérica. Entretanto, no cenário onde se desenrolaram as aventuras
geradoras do mito e que a luta contra mouros mobilizava todas as atenções, esse modelo
inicialmente foi rejeitado a favor de heróis locais, que retratavam as circunstâncias
específicas do contexto ibérico, como Rodrigo Diaz de Vivar – o El Cid – identificado
como o grande herói da Reconquista e o modelo a ser imitado (Cf. MENENDEZ PIDAL,
1960). Suas vitórias e proezas foram registradas no célebre Cantar de Mio Cid e em muitas
outras crônicas redigidas por monges a serviço dos reis cristãos.
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Somente no final do século XII, com a atuação dos monges de Cluny e de Cister,
que difundiram a matéria carolíngia e a associaram a retomada do túmulo de Santigo de
Compostela, essa visão passa a mudar lentamente até chegar ao ponto em que os heróis da
famosa batalha de Roncesvales constarem em cancioneiros, romances e crônicas ibéricas. Já
no século XV, verifica-se na Península, uma enorme profusão de novelas e romances de
cavalaria sobre o tema carolíngio. Os personagens tradicionais (RolandoRoldão e
OliveirosOlivério) passam a ser acompanhados por novos cavaleiros, como Bernardo del
Carpio, Carlos de Montalvão, Floresvento, Valdevinos e o Marquês de Mântua.
Em 1525, o espanhol Nicolau de Piemonte escreveu sua versão da matéria
carolíngia: Historia del Emperador Carlomagno y de los Pares de Francia, y de la cruda
batalla de hubo Oliveiros com Fierabras, Rey de Alexandria, hijo del grande Almirante
Balan. Essa obra apresenta uma significativa reelaboração da temática e obteve ampla
divulgação (PINTO CORREIA, 1992, v.1).
Cascudo (1953, p.443) informa que, nesta versão inspiradora de quase todas as
versões subseqüentes, o autor havia aproveitado uma versão em prosa da canção de gesta
Fierabras, de 1478, publicada as instâncias de Enrique Balomier, cônego de Lausanne.
Menendez y Pelayo (1945) analisa cuidadosamente a obra, fornecendo uma reprodução
parcial de seu prólogo:
E sendo certo que em língua castelhana não há escrita que disto faça menção, mas tão-somente da morte dos doze pares, que foi em Roncesvalles, pareceu-me justa e proveitosa coisa que a dita escrita e os tão notáveis feitos fossem notórios nesta parte da Espanha, como são manifestos em outros reinos. Por fim, eu, Nicolas de Piamonte, proponho trasladar a dita redação de língua francesa em romance castelhano, sem discrepar, nem acrescentar coisa alguma do texto francês. E é dividida a obra em três livros: o primeiro fala do princípio da França, de quem tomou o nome e do primeiro rei cristão que houve em França e deste até o rei Carlos Magno que depois foi imperador de Roma, e foi trasladado do latim em língua francesa. O segundo fala da cruel batalha que teve o conde Oliveiros com Fierabras, rei de Alexandria, filho do grande Almirante Balan e este está em metro francês muito bem trovado. O terceiro fala de algumas obras meritórias que fez Carlos Magno e finalmente da traição de Galalão e da morte dos doze pares, e foram tirados estes livros de um livro bem aprovado, chamado Espelho historial (MENENDEZ Y PELAYO, 1945, t.1, p.227-228).
A citação longa justifica-se pelo interesse em elucidar a origem das diferentes
aventuras que foram acrescentadas ao texto matriz francês, La chanson de Roland, que trata
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tão somente da batalha de Roncesvales. Observação que também reafirma a filiação das
aventuras retratadas pelo cordel nordestino à adaptação portuguesa dessa história
empreendida por Jerônimo Moreira de Carvalho (1863), sob o título: História do Imperador
Carlos Magno e dos Doze Pares de França.
A obra, dividida em cinco livros foi publicada em duas partes em Lisboa;
respectivamente em 1728 e 1737. Uma terceira parte foi publicada, em 1745, pelo
reverendo protonotário apostólico Alexandre Gaetano Gomes Flaviense que traduziu e
acrescentou às aventuras a crônica castelhana de Bernardo del Carpio, herói ibérico que
derrota os Doze Pares. O título: Verdadeira terceira parte da história do imperador Carlos
Magno, em que se escrevem as gloriosas ações e vitórias de Bernardo del Carpio. E de
como venceu em batalha os Doze Pares de França, com algumas particularidades dos
príncipes de Espânia, seus povoadores e reis primeiros. (CASCUDO, 1953, p.445).
Essas versões e adaptações foram constantemente modificadas ao longo do século
XIX, efetuando principalmente a diminuição do texto muito extenso. A edição portuguesa
de 1863, utilizada como fonte principal nesse trabalho, já apresenta o texto usado até nossos
dias, o qual serviu como matriz da tradição brasileira; ou seja, como modelo de todas as
adaptações populares do tema, principalmente, das narrativas de cordel (Cf. FERREIRA,
1979).
3. CARLOS MAGNO E OS PARES DE FRANÇA NO SERTÃO
Marlyse Meyer (1995) chama a atenção para o fato de que história tornada tradição
popular no Brasil, não provenha de fonte oral, mas sim origem impressa, conforme visto.
Houve, portanto, um trânsito entre a gesta primitiva francesa em verso, a transposição em
prosa da novela de origem culta do século XVIII e a forma popular do cordel sertanejo que,
retoma a expressão versificada do gênero épico medieval. Há uma interrelação entre popular e
erudito revelada pela proximidade entre a forma poética do cordel e a forma poética da gesta
francesa primitiva cantada pelos jograis. Partindo do texto culto registrado no século XVIII, o
cantador ou cordelista nordestino se expressa por meio da forma poética característica do
gênero épico.
José Bernardo da Silva, em seu folheto Roldão no Leão de Ouro, faz uma adaptação
rimada muito próxima do texto original em prosa. Neste, a passagem aparece do seguinte
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modo: “Se me foi acendendo um tal amor à princesa que representa, que, passando à loucura
esta vontade estou dias e noites a olhar a pintura” (CARVALHO, 1863, t.2, p.43). Enquanto
no folheto se lê: “Roldão achou no retrato a rainha da formosura / contemplava em seu palácio / dia
e noite tal pintura / e foi lhe tomando amor / para ser sua futura.” (SILVA apud FERREIRA, 1979, p.
29).
Tanto a canção de gesta quanto o cordel são constituídos por fôrma literária (Cf.
MOISÉS, 1999) específica, em épocas distintas que, entretanto, convergem entre si por
revelarem, cada qual de modo distinto, a relação entre memória coletiva e estrutura poética
manifestada pela voz, conforme a concepção de Zumthor (1993). A transmissão de ambos os
textos passam pela voz, pressupõem uma performance, já que o cordel, embora registrado
pela escrita – a letra – é, segundo Ferreira (1979), o texto oral impresso. Sua rima é produzida
para o ouvido e a memória. Ou seja, no cordel, as letras apenas registram a voz interligada à
tradição e à memória – assim como na canção de gesta – poesia compartilhada entre artista e
público.
Cascudo, em Mouros, franceses e judeus (1984), lista diversas manifestações da
cultura tradicional brasileira exemplificativas da disseminação e hibridação da temática:
cantorias, desafios, cavalhadas, reisados, congadas e xilogravura, passando pelo costume de
se batizar os filhos com os nomes de Roldão, Carlos Magno e Oliveiros.
A presença dessa temática revela diferentes influências que engendraram uma
tradição baseada na mistura possibilitada pela memória coletiva, certamente, porque o
modelo de valentia, a exaltação da fé cristã, o gosto pela proeza guerreira e o apreço pelo
sentimento de honra, características do regime feudal, constituem valores profundamente
respeitados pelo sertanejo.
Assim, dentre os componentes presentes no ciclo cavalheiresco ibérico e na literatura
de cordel destaca-se a luta ou o combate, atividade representativa da busca contínua de
provação e da realização de proezas. Fato gerador de núcleos narrativos construídos,
geralmente, em torno de provas, ardis e combates contra inimigos poderosíssimos como
gigantes ou monstros.
Tanto no romance cavaleiresco quanto no folheto de cordel o combate simboliza um
meio de vencer o obstáculo ou o opressor em qualquer circunstância sob a qual se apresente.
A provação do herói, que ostenta como armas principais sua coragem e sua destreza,
representa a travessia do “passo das águas mortas” – provação terrível –, cuja finalidade é a
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libertação. Por isso o adversário, representante do obstáculo, é o inimigo infiel, o gigante, o
dragão ou a fera abominável.
Embora os cordéis sertanejos apresentem mudanças, há um núcleo básico de
significação que costuma ser preservado levando-se em conta o texto matriz, de Jerônimo M.
Carvalho (1863). Vários poetas recriaram o texto matriz tão fielmente quanto sua liberdade
poética o permitiu, já que cada um, à sua maneira e segundo suas possibilidades expressivas,
tomou-o em partes distintas. Processo que pode ser comparado ao regimento de uma orquestra
em que cada artista desempenha um andamento na partitura comum da tradição herdada.
Dessa forma, um pequeno segmento ou episódio ainda não explorado, embora seja construído
pela criatividade única do artista, traz em seu bojo situações e significados de domínio
comum.
Os poetas populares selecionam episódios ou aventuras preferidos, ou os mais
significativos da História do imperador Carlos Magno e os doze Pares de França , para então
produzir sua recriação utilizando a métrica e as rimas típicas do cordel. Esse processo
necessariamente pressupõe reduções e supressões, que, por sua vez, juntam-se a perspectiva
adotada ou a ênfase de determinados aspectos próprios da subjetividade do cordelista.
Complementa a quadro a necessidade de adequação do texto a uma práxis local que,
entretanto, não o afaste muito da matriz textual, tendo em vista a necessidade da aceitação
pelo público do cordel. A expectativa deste público, em geral conservador, é que o poeta seja
o mais fiel possível à tradição. Isto porque a dinâmica da literatura popular não pressupõe
obrigatoriamente a originalidade, mas a manipulação-apropriação de um manancial já
conhecido e apreciado pelos ouvintes. O artista deve, porém, nele intervir com glosas e
comentários referentes à sua própria cultura. Conforme afirma Lessa e Silva (1983, p. 3), “O
poeta de cordel não é propriamente um reacionário. É antes um conservador. Às vezes, por
atitude e convicção pessoal, de outras por espírito prático”.
Lembramos ainda que a passagem do texto em prosa para a sextilha, com o uso do
ritmo e das rimas que simplificam a comunicação, por tornar o conteúdo mais conciso e
facilitar a memorização, obedece aos imperativos da produção e da recepção de cordéis.
Produção esta ligada à oralidade, como destacamos.
Um dos elementos habitualmente modificados pelo cordelista sertanejo diz respeito à
irrupção do maravilhoso, acontecimento muito comum na gesta carolíngia. Ao contrário, o
romance de cordel evita a imaginação desenfreada característica das novelas de cavalaria. Há
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sempre uma referência que imprime o concreto mesmo em meio a um episódio fantástico. Tal
postura pode estar relacionada a uma tentativa de o poeta popular introduzir um tom
moralizante na história, ajustando a tradição herdada ao vivido. O folheto participa, portanto,
da realidade circundante, denunciando, muitas vezes, a corrupção, protestando contra os maus
costumes, chamando a atenção para aquilo que o povo aprecia ou despreza. Os males ou atos
prejudiciais ao povo sempre encontram condenação nos seus versos.
Ferreira (1979) localiza, como exemplo da questão, um trecho do folheto A prisão de
Oliveiros, de José Bernardo da Silva. Embora o autor faça a adaptação de uma passagem do
texto matriz português, reduz seus efeitos dramáticos com uma mensagem prática voltada
para a denúncia social, inexistente no texto setecentista: “Na hora da refeição / tudo ali se
descuidou / Oliveiros enfrentou / O Almirante Balão / viu que a vida estava cara / a solução
era rara / saltou numa das varandas...” (FERREIRA, 1979, p. 31).
O herói do folheto desempenha o papel de um porta-voz dos hábitos e costumes
nordestinos, realizando uma função em conformidade com o seu ambiente regional. Fato
notado no modo como o poeta popular trabalha a oposição entre Bem e Mal, uma das
categorias mais abrangentes e definidoras da ideologia cavaleiresca. Ao contrário dos
romances de cavalaria, nos quais o combate apresenta uma dimensão religiosa (luta contra o
muçulmano, contra o herege), na literatura de cordel, o confronto tem, de modo geral, uma
conotação movente: hora pode refletir um contexto social no uso de expressões reveladoras da
relação superior/subordinado, por exemplo, ligando ao mal o patrão ou coronel opressor em
oposição ao povotrabalhador representante do bem; ora se tornar ambíguo por assimilar os
valores de honra e bondade dos Doze Pares a figuras consideradas bandidos, como mostra o
exemplo do Cancioneiro de Lampião, de Nertan Macedo (1959, p.4): “Nos Doze Pares de
França Foi buscar inspiração o imperador Carlos Magno houvera de ter paixão. Valente
como Olivério, brigava como Roldão...”.
São comuns referências à saga carolíngia em histórias exclusivamente sertanejas, já
que na literatura de cordel, o vaqueiro ou o cangaceiro tem traços de Carlos Magno ou de seus
cavaleiros, embora suas armas sejam fuzis e facões. No cordel As lágrimas de Antônio Silvino
por Tempestade, de Leandro Gomes de Barros, a cena em que Antônio Silvino lamenta a
morte dos companheiros lembra a de Roncevalles: “Eu choro a falta que me faz / Todos os meus
companheiros / Qual Carlos Magno chorou / Por seus doze cavaleiros. / Nada me faz distrair / Não
deixarei de sentir / A morte dos cangaceiros.” (BARROS apud CURRAN, 1998, p. 69).
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Por outro lado, a permanência de referências medievais no cordel é delineada pelo
fato de ser comum a identificação do mal com a figura do mouro ou do turco. Estes, ainda que
desligados do seu contexto próprio (Reconquista, Cruzadas), continuam a representar os
antagonistas. O estatuto destes personagens muda, pois deixam de funcionar como
representação do inimigo infiel para constituírem um símbolo, uma referência para outros
conflitos presentes. Nesse sentido, vencer o mouro é vencer uma guerra em que a vitória
significa mudança. Há ainda o exemplo, em A chegada de Lampião no céu, no qual
Fierrabrás, originalmente filho de rei Balão que luta com Oliveiros, no texto matriz,
transforma-se em um enviado do diabo que tenta reconduzir a alma Lampião ao inferno:
“Disse-lhe a Virgem mãe suprema: Vai-te pra lá Ferrabrás, / A alma que eu pôr a mão / Tu
com ela nada faz, / Arrenegado da Cruz / Na presença de Jesus / Tu não vences, Satanás!”
(CAVALCANTI, 1948, p.12).
Normalmente, nas novelas de cavalaria, a vitória sobre o mal e seus representantes é
atribuída à lealdade do cavaleiro para com o seu senhor e sua fé. A honra do paladino cristão
depende, portanto, de sua lealdade. Contudo, nas histórias de cordel brasileiras, somente a
coragem possibilita que o herói conserve sua honra. Os princípios norteadores da ação do
herói são muito diferentes. O motivo que não se modifica na passagem da História de Carlos
Magno, de 1863, para a versão nordestina é o combate contra o mal que não significa, porém,
uma tentativa de reverter a ordem. A superação do cotidiano, no caso do folheto nordestino,
realiza-se no plano simbólico e ritual do heróico, da aventura, onde “se pode passar à
superação e àquilo que se chamou encantamento do mundo” (FERREIRA, 1979, p. 120).
4. Á GUISA DE CONCLUSÃO
A transformação do herói cavaleiresco no herói sertanejo, portanto, não diz respeito
ao vivido, mas ao campo do discurso, à sua recriaçãotransmissão que faz viver o passado no
presente, unindo dois mundos possíveis em uma voz poética perpetuadora de valores e
símbolos presentes no imaginário medieval e no sertanejo.
Dessa forma, muitos cordéis do passado e reescrituras da atualidade ainda atestam a
permanência da saga carolíngia no sertão, tais como: A Batalha de Oliveiros com
Ferrabrás, A Prisão de Oliveiros, O cavaleiro Roldão, A Morte dos Doze Pares de
França, Roldão no leão de ouro, História de Carlos Magno. Mais de 1000 anos após a
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Batalha de Roncesvales, o Imperador da barba florida e seus Doze Pares permanecem como
modelos de valentia, coragem e altivez, nos versos da literatura de cordel de Leandro
Gomes de Barros, João Martins de Athayde, João Melquíades Ferreira, Antônio Eugênio da
Si1va, José Bernardo da Silva, dentre outros.
Por fim, consideramos também que a identificação entre vaqueiros, sertanejos,
valentões, cangaceiros ou jagunços a Carlos Magno e seus Doze Cavaleiros diz respeito ao
processo de idealização da realidade, convertendo-a em mito ou lenda. Isto é, o povo imagina,
inventa, aumenta, para que a fantasia possa encantar o real. Como assinala Eliade, os sonhos,
os devaneios, as imagens de suas nostalgias, de seus desejos, de seus entusiasmos
[constituem] forças que projetam o ser humano historicamente condicionado em um mundo
espiritual infinitamente mais rico que o mundo fechado do seu “momento histórico”
(ELIADE, 1991, p. 9).
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