O Brasil na ONU

768
O Brasil nas Nações Unidas 1946 - 2006

Transcript of O Brasil na ONU

  • O Brasil nas Naes Unidas1946 - 2006

  • MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES

    Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim

    Secretrio-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimares

    FUNDAO ALEXANDRE DE GUSMO

    Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo

    A Fundao Alexandre de Gusmo (Funag), instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada aoMinistrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidadeinternacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao daopinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

    Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo, Sala 170170-900 Braslia, DFTelefones: (61) 3411 6033/6034/6847Fax: (61) 3411 9125Site: www.funag.gov.br

    Diretor Embaixador lvaro da Costa Franco

    CENTRO DE HISTRIA E DOCUMENTAO DIPLOMTICA

    INSTITUTO DE PESQUISA DE RELAES INTERNACIONAIS

    Diretor Embaixador Carlos Henrique Cardim

  • O Brasil nas Naes Unidas1946 2006

    Luiz Felipe de Seixas CorraOrganizador

    Fundao Alexandre de Gusmo

    Edio revista e atualizada

    Braslia, 2007

  • Foto da Capa:ALBERTO TEIXEIRA, INTENSIDADE, 1954,LEO SOBRE TELA, 73X73 CM

    Equipe Tcnica

    Coordenao:ELIANE MIRANDA PAIVA

    Assistente de Coordenao e Produo:ARAPU DE SOUZA BRITO

    Programao Visual e Diagramao:CLUDIA SERRADOR CAPELLA E PAULO PEDERSOLLI

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Decreto n 1.825 de 20.12.1907

    Impresso no Brasil 2007

    O Brasil nas Naes Unidas 1946-2006 : Luiz Felipe de Seixas Corra, organizador / Braslia : Fundao Alexandre de Gusmo, 2007. 768p.

    ISBN 978-85-7631-076-1

    1. Naes Unidas. Assemblia Geral. 2. Brasil Relaes exteriores. I. Corra, Luiz Felipe deSeixas, org. II. Fundao Alexandre de Gusmo.

    CDU 341.123

  • Apresentao da Segunda Edio ............................................................................. 13

    Introduo da Segunda Edio ................................................................................. 15

    Apresentao da Primeira Edio ............................................................................ 19

    Introduo da Primeira Edio ................................................................................ 21

    1946 ........................................................................................................................... 29I Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUI Parte - Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas ............................................................... 33II Parte - Embaixador Pedro Leo Velloso Netto ..................................................................... 37

    1947 ........................................................................................................................... 41II Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUEmbaixador Joo Carlos Muniz .................................................................................................. 45

    1948 ........................................................................................................................... 51III Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Raul Fernandes ............................................................................................................... 53

    1949 ........................................................................................................................... 57IV Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUEmbaixador Cyro de Freitas-Valle ............................................................................................... 61

    1950 ........................................................................................................................... 67V Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUEmbaixador Cyro de Freitas-Valle ............................................................................................... 69

    1951 ............................................................................................................................ 73VI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUEmbaixador Mrio de Pimental Brando ................................................................................... 75

    1952 ........................................................................................................................... 81VII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Joo Neves da Fontoura ............................................................................................... 83

    1953 ........................................................................................................................... 89VIII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUEmbaixador Mrio de Pimentel Brando ................................................................................... 91

    Sumrio

  • 1954 ........................................................................................................................... 95IX Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUEmbaixador Ernesto Leme .......................................................................................................... 97

    1955 ......................................................................................................................... 105X Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUEmbaixador Cyro de Freitas-Valle ............................................................................................. 107

    1956 .......................................................................................................................... 111XI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUEmbaixador Cyro de Freitas-Valle ............................................................................................. 113

    1957 .......................................................................................................................... 117XII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUEmbaixador Oswaldo Aranha ................................................................................................... 119

    1958 ......................................................................................................................... 123XIII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Francisco Negro de Lima ........................................................................................... 125

    1959 ......................................................................................................................... 129XIV Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUEmbaixador Augusto Frederico Schmidt ................................................................................. 131

    1960 ......................................................................................................................... 139XV Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Horcio Lafer ................................................................................................................ 141

    1961 .......................................................................................................................... 147XVI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Affonso Arinos de Mello Franco ............................................................................... 151

    1962 ......................................................................................................................... 157XVII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Affonso Arinos de Mello Franco ............................................................................... 159

    1963 ......................................................................................................................... 167XVIII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Joo Augusto de Araujo Castro ................................................................................ 171

    1964 ......................................................................................................................... 189XIX Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Vasco Leito da Cunha ................................................................................................ 193

    1965 ......................................................................................................................... 201XX Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONU

  • Ministro Vasco Leito da Cunha ................................................................................................ 203

    1966 ......................................................................................................................... 213XXI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Juracy Magalhes .......................................................................................................... 215

    1967 ......................................................................................................................... 223XXII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Jos de Magalhes Pinto ............................................................................................. 227

    1968 ......................................................................................................................... 233XXIII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Jos de Magalhes Pinto ............................................................................................. 235

    1969 ......................................................................................................................... 241XXIV Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Jos de Magalhes Pinto ............................................................................................. 243

    1970 ......................................................................................................................... 253XXV Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Mrio Gibson Barboza ............................................................................................... 257

    1971 .......................................................................................................................... 267XXVI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Mrio Gibson Barboza ............................................................................................... 269

    1972 ......................................................................................................................... 279XXVII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Mrio Gibson Barboza ............................................................................................... 283

    1973 ......................................................................................................................... 293XXVIII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Mrio Gibson Barboza ............................................................................................... 297

    1974 ......................................................................................................................... 307XXIX Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Antonio Francisco Azeredo da Silveira ...................................................................... 309

    1975 ......................................................................................................................... 319XXX Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Antonio Francisco Azeredo da Silveira ...................................................................... 321

    1976 ......................................................................................................................... 329XXXI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Antonio Francisco Azeredo da Silveira ...................................................................... 331

  • 1977 ......................................................................................................................... 339XXXII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Antonio Francisco Azeredo da Silveira ...................................................................... 341

    1978 ......................................................................................................................... 351XXXIII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Antonio Francisco Azeredo da Silveira ...................................................................... 353

    1979 ......................................................................................................................... 359XXXIV Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Ramiro Saraiva Guerreiro ............................................................................................ 361

    1980 ......................................................................................................................... 371XXXV Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Ramiro Saraiva Guerriero ............................................................................................ 375

    1981 .......................................................................................................................... 387XXXVI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Ramiro Saraiva Guerreiro ............................................................................................ 391

    1982 ......................................................................................................................... 401XXXVII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUPresidente Joo Baptista de Oliveira Figueiredo ...................................................................... 405

    1983 ......................................................................................................................... 417XXXVIII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Ramiro Saraiva Guerreiro ............................................................................................ 419

    1984 ......................................................................................................................... 429XXXIX Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Ramiro Saraiva Guerriero ............................................................................................ 431

    1985 ......................................................................................................................... 441XL Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUPresidente Jos Sarney .................................................................................................................. 445

    1986 ......................................................................................................................... 461XLI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Roberto de Abreu Sodr ............................................................................................. 465

    1987 ......................................................................................................................... 479XLII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Roberto de Abreu Sodr ............................................................................................. 481

    1988 ......................................................................................................................... 489XLIII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONU

  • Ministro Roberto de Abreu Sodr ............................................................................................. 491

    1989 ......................................................................................................................... 501XLIV Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUPresidente Jos Sarney .................................................................................................................. 505

    1990 ......................................................................................................................... 517XLV Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUPresidente Fernando Collor de Mello ........................................................................................ 519

    1991 .......................................................................................................................... 531XLVI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUPresidente Fernando Collor de Mello ........................................................................................ 535

    1992 ......................................................................................................................... 547XLVII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Celso Lafer ..................................................................................................................... 551

    1993 ......................................................................................................................... 565XLVIII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Celso Amorim .............................................................................................................. 569

    1994 ......................................................................................................................... 579XLIX Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Celso Amorim .............................................................................................................. 581

    1995 ......................................................................................................................... 591L Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Luiz Felipe Lampreia .................................................................................................... 595

    1996 ......................................................................................................................... 607LI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Luiz Felipe Lampreia .................................................................................................... 611

    1997 ......................................................................................................................... 621LII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Luiz Felipe Lampreia .................................................................................................... 625

    1998 ......................................................................................................................... 635LIII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Luiz Felipe Lampreia .................................................................................................... 639

    1999 ......................................................................................................................... 649LIV Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Luiz Felipe Lampreia .................................................................................................... 653

  • 2000 ......................................................................................................................... 661Sesso Plenria da Cpula do MilnioDiscurso do Vice-Presidente da Repblica Marco Maciel ......................................................... 665

    LV Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Luiz Felipe Lampreia .................................................................................................... 669

    2001 ......................................................................................................................... 677LVI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUPresidente Fernando Henrique Cardoso .................................................................................... 681

    2002 ......................................................................................................................... 689LVII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUMinistro Celso Lafer ..................................................................................................................... 693

    2003 ......................................................................................................................... 699LVIII Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUPresidente Luiz Incio Lula da Silva ........................................................................................... 703

    2004 .......................................................................................................................... 711

    LIX Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUPresidente Luiz Incio Lula da Silva ........................................................................................... 715

    Discurso do Senhor Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva,durante reunio da Comisso Mundial sobre a Dimenso Social da Globalizao. ............ 723

    Discurso do Senhor Presidente da Repblica,Luiz Incio Lula da Silva, na Reunio de Lderes Mundiais para aAo contra a Fome e a Pobreza, na sede das Naes Unidas ............................................ 727

    Palavras do Senhor Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva,no encerramento da Reunio de Lderes Mundiais para aAo contra a Fome e a Pobreza, na sede das Naes Unidas ............................................ 731

    2005 ......................................................................................................................... 733

    Discurso do Senhor Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, no Debatede Alto Nvel sobre Mecanismos de Financiamento ao Desenvolvimento .......................... 739

    Discurso do Senhor Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva,durante Reunio de Cpula do Conselho de Segurana das Naes Unidas ........................ 743

    Discurso do Senhor Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, por ocasioReunio de Alto Nvel da Assemblia Geral das Naes Unidas sobre aImplementao das Metas do Milnio ...................................................................................... 747

  • LX Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUDiscurso do Ministro Celso Amorim ....................................................................................... 751

    2006 ......................................................................................................................... 757

    LXI Sesso Ordinria da Assemblia Geral da ONUPresidente Luiz Incio Lula da Silva ........................................................................................... 761

  • 13

    Apresentao da Segunda Edio

    O Brasil nas Naes Unidas

    Celso AmorimMinistro das Relaes Exteriores

    A abertura da Assemblia Geral das Naes Unidas um dos momentosmais importantes da diplomacia multilateral contempornea. Chefes de Delegaodos 192 Estados Membros da ONU, hoje em dia muitas vezes Chefes de Estado ede Governo, apresentam comunidade internacional suas posies sobre umavasta gama de temas.

    Os assuntos tratados vo desde a paz e a segurana internacionais at ocombate fome e pobreza. nas Naes Unidas que ressoam, desde 1946, asvises nacionais sobre como a comunidade internacional deve agir para impedir aguerra, tragdia que est na origem da criao da ONU. Ali se articulam consensoslegitimadores de temas com crescente impacto sobre a vida cotidiana das pessoas,como as questes referentes ao meio ambiente, aos direitos humanos, proteode grupos vulnerveis e promoo do desenvolvimento econmico e social.

    Devemos s Naes Unidas um patrimnio de conquistas inestimveis. Sema vontade poltica coletiva articulada em seus foros, talvez no tivesse sido possvelavanar to decisivamente no processo de descolonizao. A violncia doapartheid provavelmente teria durado mais tempo. Sem a presena das forasde paz da ONU, conflitos e guerras civis teriam seguramente prolongado osofrimento de muitos povos.

    Claro, essas seis dcadas de histria no transcorreram sem revezes.Limitada por sua prpria natureza de instncia parlamentar amparada na igualdadejurdica dos Estados, a ONU muitas vezes no foi capaz de impedir que o uso dafora prevalecesse sobre a opo pelo dilogo como forma de resolver conflitos.

    A idia de utilizar os discursos brasileiros no Debate Geral da ONU comobase para uma viso histrica da diplomacia brasileira nasceu em 1995, ano docinqentenrio da Organizao. Os discursos foram editados pela FundaoAlexandre de Gusmo sob a premissa de que constituem uma porta de entradapara quem deseja estudar a evoluo da poltica externa brasileira, em seus aspectosde continuidade e mudana.

  • 14

    Os textos aqui recolhidos tm grande valor de referncia como umaapresentao global e consistente dessa poltica externa. Os discursos de aberturado Debate Geral sempre foram documentos cuidadosamente trabalhados, seja porseu valor externo, como apresentao das posies do Brasil, seja como indicaopara a opinio pblica brasileira sobre os rumos da nossa ao internacional.

    Assim, podemos ver como, na primeira Assemblia Geral, o Brasil recebeucom entusiasmo a idia da organizao de uma sociedade internacional que iaao encontro da tradio pacifista que sempre orientou as relaes externas doPas. Dezessete anos mais tarde, o ento Chanceler Joo Augusto de Araujo Castropronunciava o emblemtico discurso dos trs Ds, que colocava o Desarmamento,o Desenvolvimento e a Descolonizao como trs temas fundamentais para aOrganizao. Em seu primeiro pronunciamento na Assemblia Geral, em 2003, oPresidente Luiz Incio Lula da Silva reafirmou sua confiana na capacidade humanade vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivncia no interior dasnaes e no plano internacional.

    Os textos obviamente no esgotam o conhecimento de nossa polticamultilateral. As intervenes e votos no Conselho de Segurana e as posiesbrasileiras em tantos outros foros so indispensveis para que se tenha uma idiacompleta da matria. O discurso na abertura da Assemblia Geral, no entanto, ogrande marco pblico dessa poltica, no apenas pela importncia da ONU ou pelopapel do Brasil no moderno multilateralismo, mas tambm pelas expectativas quecria, j que por tradio o Brasil que inaugura o Debate Geral.

    Esta edio dos pronunciamentos brasileiros dos ltimos 61 anos oferececontribuio valiosa historiografia diplomtica brasileira. Mais do que isso,apresenta a um pblico cada vez mais atento agenda externa do Brasil uma visoabrangente de como o Pas percebe a realidade internacional ao longo dos anos. ,portanto, muito bem-vinda e oportuna a iniciativa da Fundao Alexandre de Gusmode proporcionar a estudiosos e interessados mais esta ferramenta para uma melhorcompreenso das relaes internacionais do Brasil.

  • 15

    Introduo da Segunda Edio

    Luiz Felipe de Seixas Corra

    A base do conhecimento, da anlise e da transmisso da Histria no dadanecessariamente pelos fatos em si mesmos, ou pelas imagens dos fatos, mas sim pelostextos a eles referentes. Sabem, porm, os historiadores, em particular os que sededicam hermenutica, que o significado dos textos, antes de constituir um dadoobjetivo da realidade, algo passvel, portanto, de uma determinao cientfica, ,sobretudo, uma emanao cultural, sujeita aos misteriosos caprichos da interpretaoe da subjetividade. Em princpio, os textos tero tantos significados quantos forem osautores que se dedicar a analis-los, cada qual envolto em suas prprias circunstncias.

    Da a importncia de procurar juntar sempre que possvel os textos a suasrespectivas interpretaes. A edio original deste livro teve este cuidado. Foipublicada em 1995, ao ensejo das comemoraes do cinqentenrio da Organizaodas Naes Unidas. A tarefa de organiz-la foi-me confiada pelo ento Presidenteda FUNAG, Embaixador Joo Clemente Baena Soares. Tratava-se de compilar,contextualizar e analisar os discursos pronunciados pelos Chefes das Delegaesdo Brasil na abertura do Debate-Geral de todas as sesses da Assemblia Geralda ONU realizadas, desde a primeira, em 1946, at a qinquagsima em 1995.

    Pus-me ao trabalho com muito gosto. Desde o perodo, entre 1971 e 1974,que passara como Segundo Secretrio de Embaixada na Misso do Brasil junto ONU, ento sob a chefia do Embaixador Srgio Armando Frazo, interessara-mepelo processo de elaborao dos discursos brasileiros no Debate-Geral. Havendoparticipado da equipe de redao dos discursos das Assemblias de 1971, 1972 e1973, examinei antecedentes, comparei as orientaes e as nfases postas nosdiferentes textos ao longo do tempo. Dei-me, desde ento, conta do valor singulardos nossos discursos na abertura do Debate-Geral como fonte primria de anliseda trajetria histrica recente da poltica exterior do Brasil.

    Em 1981, recolhi e examinei todos os discursos at ento pronunciados.Usei-os no meu trabalho para o CAE, Da Confrontao Confrontao: AsRelaes EUA-URSS O Brasil e as Superpotncias, no qual procurei analisara evoluo da poltica do Brasil com relao aos EUA e a URSS sob o prisma desua enunciao nos nossos discursos de abertura do Debate-Geral. Em diferentesfases da carreira, mantive acompanhamento constante e interessado sobre nossosdiscursos, em alguns dos quais, mais adiante, como Secretrio-Geral do Ministrio

  • 16

    em 1992 (XLVII Sesso) e novamente entre 1999 e 2001 (LIV, LV e LVI Sesses),voltei a participar de alguma forma.

    Ao elaborar a edio original deste livro em 1995, vali-me da experinciaacumulada, em particular com a preparao da tese do CAE. A transcrio decada um dos discursos foi precedida por um breve texto, no qual procureicontextualiz-los em funo das circunstncias ento prevalecentes, tanto noquadro interno do Brasil, quanto no mbito das relaes internacionais. Trateide ser o mais objetivo possvel, evitando os riscos inerentes a qualquer anlisemais aprofundada texto por texto. Ao expor a cada ano a viso do Brasil sobrea realidade internacional, os discursos contm em si mesmos uma anliseinstitucional dos fatos e das situaes, sob o ponto de vista da diplomaciabrasileira. Restringi, portanto, minha breve anlise pessoal Introduo geraldo livro, muito embora cada contextualizao, na medida em que pressupeuma determinada seleo de fatos, possa tambm ser estritamente consideradacomo uma forma de anlise.

    Neste ano de 2006, honrou-me o Ministro Celso Amorim com a incumbnciade atualizar a edio original, mediante a adio dos discursos subseqentes.Novamente dediquei-me tarefa com muito gosto.

    Pareceu-me apropriado reter o formato da edio de 1995, mantendo-se omodelo ento utilizado. Mantiveram-se tambm, tanto a apresentao feita peloento Ministro Luiz Felipe Lampreia, quanto introduo que originalmente redigi,na qual exponho:

    1. a importncia histrica do sistema multilateral da ONU, em particularpara o Brasil;

    2. as circunstncias que singularizam o discurso do Brasil, invariavelmenteo primeiro na sesso de abertura do Debate-Geral de cada Assemblia;

    3. as diferentes etapas percorridas pelo Brasil no cenrio internacional e , emparticular, os antecedentes da participao do Brasil no processo multilateral; e

    4. os principais valores que informam historicamente a formulao, aenunciao e a implementao da poltica exterior do Brasil.

    Comentava ento que, em sua poltica multilateral, a diplomacia brasileirasempre buscou servir simultaneamente como instrumento para a preservao dosvalores ticos do pas e do respeito ao Direito Internacional, quanto como veculopara a insero competitiva do Brasil no cenrio internacional.

  • 17

    Esses mesmos objetivos acham-se presentes nos discursos que se seguiram. notvel a coerncia com que o Brasil costuma apresentar-se diante de si mesmoe diante do mundo. As circunstncias mudam. H momentos em que as expectativaspositivas so mais evidentes, outros em que no h muito lugar para otimismo. Emalgumas ocasies, as iluses parecem prevalecer sobre as realidades. Muitas vezes,as formulaes so precisas e as enunciaes assumem certo vis prescritivo.Em outros momentos, porm, o componente utpico do discurso predomina. Masesto sempre presentes, de alguma forma, as demandas consistentes do Brasilpela transformao da ordem internacional, por sua permeabilidade s realidadesemergentes, e pela consolidao da ONU, de jure e de facto, como expressoformal da legitimidade na conduo dos grandes temas polticos, de segurana,econmicos e sociais da agenda internacional.

    Os onze anos cobertos pela presente edio referem-se aos mandatos dosPresidentes Fernando Henrique Cardoso (at 2003) e Luiz Incio Lula da Silva(2003-2006). Nos discursos de ambos os perodos, esto presentes, embora comdistintas modulaes, diversos componentes semelhantes, entre os quais o dereforma da ONU e a demanda do Brasil por um assento permanente no Conselhode Segurana; a prioridade latino-americana da poltica exterior do Brasil; acrescente tendncia singularizao da Amrica do Sul como espao poltico ede integrao diferenciado; o apego do Brasil aos valores do multilateralismo, dademocracia, dos direitos humanos, do desenvolvimento econmico com justiasocial; do repdio ao terrorismo; da necessidade de uma soluo para o conflitopalestino-israelense que conduza efetiva institucionalizao do Estado Palestino;da necessidade de encaminhamento adequado para os gravssimos problemasafricanos. Em praticamente todos os textos, percebe-se a importncia atribudapelo Brasil s negociaes comerciais multilaterais, na medida em que possamcontribuir para a remoo das distores e desigualdades entre os pasesdesenvolvidos e os pases em desenvolvimento.

    As nfases compreensivelmente variam e algumas singularidades soperceptveis.

    Nos discursos do perodo do Governo do Presidente Fernando Henrique, huma insistncia especial nos temas da globalizao, na abertura econmica e comercial,na liberalizao econmica em geral, nos grandes riscos acarretados pela volatilidadedos movimentos de capitais, na necessidade de renovar as instituies de BrettonWoods. H tambm extensas referncias temtica do desarmamento.

    Nos discursos do perodo do Governo do Presidente Lula, por sua vez,verifica-se maior nfase na temtica da justia social, acentuando-se os programaslevados a cabo pelo Governo na rea social como matriz para projetos de natureza

  • 18

    global. Os temas ligados guerra contra a fome e a pobreza tomam preeminnciasobre as formulaes vinculadas estabilidade macroeconmica e volatilidadedos mercados financeiros internacionais. As menes Amrica Latina cedemdefinitivamente lugar a referncias Amrica do Sul.

    O leitor passa a ter, portanto, sua disposio, com esta edio atualizada,a integralidade dos discursos brasileiros na abertura do debate-geral da Assembliade 1946 at 2006. Ter ainda, no que se refere ao ano de 2000, o discurso doVice-Presidente Marco Maciel na Sesso Plenria da Cpula do Milnio; noque se refere a 2004, os discursos do Presidente Lula durante reunio da ComissoMundial sobre a Dimenso Social da Globalizao e por ocasio da Reunio deLderes Mundiais para a Ao contra a Fome e a Pobreza; e, no que se referea 2005, os discursos do Presidente Lula no debate de alto nvel sobre Mecanismosde Financiamento ao Desenvolvimento, na Reunio de Cpula do Conselho deSegurana e na Reunio de Alto Nvel da AGNU sobre a Implementao dasMetas do Milnio. Estes textos adicionais so imprescindveis para acontextualizao e o correto entendimento dos discursos proferidos no Debate-Geral das Assemblias daqueles anos.

    Cada um dos discursos transcritos e brevemente contextualizados no presentevolume importante, tanto em si mesmo, quanto, ao mesmo tempo, como parte deum corpus de poltica exterior que se desdobra ao longo do tempo. Cada um parte de um dilogo de duplo sentido entre os responsveis pela poltica exteriordo Brasil e as suas circunstncias: um dilogo em tempo real entre os fatos e suaapreciao e, simultaneamente, um dilogo em tempo diferido entre o Brasil esuas tradies diplomticas, ou seja, entre o Brasil, sua auto-percepo, sua visodo mundo e sua insero, real ou imaginria, no mundo. Tomados em seu conjunto,os discursos transcritos no presente volume contam uma histria atraente e singular,uma histria inacabada, in fieri, e fornecem ao leitor uma idia fidedigna doincessante debate entre, de um lado, a formulao da poltica exterior do Brasil e,de outro, as vicissitudes que determinaram o passado do Pas, os riscos e asoportunidades que caracterizam o seu presente e as expectativas to longamentedepositadas no seu futuro.

  • 19

    Apresentao da Primeira Edio

    Um compndio valioso

    Luiz Felipe LampreiaEx-Ministro de Estado das Relaes Exteriores

    Esta edio dos pronunciamentos dos Chefes de Delegaes brasileiras ssesses de abertura da Assemblia Geral das Naes Unidas ao longo dos ltimos50 anos constitui mais uma contribuio da Fundao Alexandre de Gusmo(FUNAG) ao conhecimento da histria e da doutrina diplomticas do Brasil.

    Ao mesmo tempo em que assinala para ns, do Itamaraty, a comemoraodo cinqentenrio da fundao das Naes Unidas, o presente esforo editorialcoloca disposio do pblico interessado na poltica externa brasileira um valiosocompndio de textos fundamentais da nossa diplomacia. Nesses textos, encontra-se a sntese por excelncia da viso de mundo e dos projetos da diplomaciabrasileira, atualizada a cada ano, medida em que evoluam as relaesinternacionais e medida em que evolua a nossa prpria concepo do nossopas e do mundo.

    Compilada pela FUNAG, a coletnea est apresentada pelo Embaixador LuizFelipe de Seixas Corra, diplomata de grande experincia e reconhecida sensibilidadepoltica, que foi tambm responsvel pelos textos que situam cada discurso em seuscontextos interno e internacional. A obra passa, assim, a constituir uma fonte autorizadade referncia histrica e doutrinria. Ao longo dos cinqenta e dois discursos aquicompilados, encontram-se expostos os grandes temas que marcaram a histria maisrecente das relaes internacionais e que por isso mesmo concentram a ateno doGoverno brasileiro no cenrio internacional ao longo deste meio sculo de ps-Guerra.Neles encontram-se tambm as grandes contribuies brasileiras ao debate que asNaes Unidas promoveram ao longo de sua existncia, transformandoqualitativamente o direito e a normatividade internacionais. O desenvolvimento, odesarmamento, a segurana econmica coletiva, o hiato normativo entre a Carta ea evoluo das relaes internacionais, o conceito mais moderno de desenvolvimentosustentvel e outros avanos polticos que receberam uma notvel contribuiobrasileira encontram-se aqui perfeitamente refletidos e analisados segundo a ticadiplomtica do momento em que se fizeram os discursos. nfases, avaliaes,intuies e sensibilidades na poltica externa brasileira revelam-se com particularacuidade nos discursos de abertura da Assemblia Geral.

  • 20

    Ao mesmo tempo, a leitura destes discursos vai revelando ao leitor, passo apasso, um grande e bem-sucedido esforo de aprendizado realizado pela diplomaciabrasileira nestes ltimos cinqenta anos: o aprendizado do multilateralismo.Verdadeira escola de diplomacia moderna, marca distintiva por excelncia asNaes Unidas serviram ao mesmo tempo de arena poltica e de foro deaperfeioamento da convivncia internacional, traos que os pases forosamentetiveram de internalizar em suas polticas externas.

    Documento poltico por excelncia, registro e memria da poltica defendidae implementada por um Governo, o discurso nas Naes Unidas, paradigma dodiscurso diplomtico refletido e cuidadosamente elaborado, ganha, com aperspectiva contextual em que colocado nesta coletnea, a sua verdadeiradimenso histrica, ao mesmo tempo em que revela as linhas de coerncia dadiplomacia brasileira.

    Por tudo isso, esta coletnea apresenta-se como uma iniciativa oportuna evaliosa, que ajudar a todos a compreender melhor um perodo da nossa histriadiplomtica que simbolicamente se reinaugura com as comemoraes docinqentenrio das Naes Unidas, s quais o Governo brasileiro e particularmenteo Itamaraty tm o agrado de se somar com esta edio.

  • 21

    Introduo da Primeira Edio

    Luiz Felipe de Seixas Corra

    Em outubro de 1995, a Organizao das Naes Unidas (ONU) comemora50 anos de existncia. Necessidade e esperana, razo e iluso, realidade e utopia,sob qualquer ponto de vista, as Naes Unidas constituem, desde a sua fundaoem 1945, o ponto de referncia central do processo de relaes internacionais.Para a ONU confluem as presses e contra-presses prprias de um sistemainternacional descentralizado e tendencialmente anrquico; nela se articulam ascoalizes de interesses e se expressam as configuraes de poder que movem oprocesso decisrio internacional; e dela emanam determinaes de diversa naturezadestinadas a introduzir na ordem internacional elementos de normatividade e decooperao.

    As Naes Unidas so um sistema de instituies que, com base na Cartade So Francisco, constri gradativamente o corpus jurdico regulador da vidainternacional. So ao mesmo tempo um fim e um processo. impossvel hoje emdia conceber o mundo sem a Organizao das Naes Unidas. Pode-se criticareste ou aquele aspecto de sua operao, apontar este ou aquele fracasso, nesteou naquele campo de atuao. Mas foroso reconhecer a sabedoria de suaconcepo original, os mritos dos resultados que alcanou em sua operao e,sobretudo, a sua capacidade de se renovar mediante a incorporao permanentede novos temas, de novos conceitos e de crescentes reas de atuao. Ao cabodeste meio sculo de existncia, a ONU se tornou, tanto quanto os Estados-membros que a integram, um elemento matricial da ordem internacional.

    A diplomacia brasileira parte original desse que se tornou o grande projetocoletivo da sociedade internacional no Sculo XX. Membro fundador daOrganizao, o Brasil sempre atribuiu ONU um papel central na formulao ena execuo de sua poltica externa. A qualidade de Estado-Membro ativo eplenamente participante da ONU tornou-se parte indissocivel da personalidadeinternacional do Brasil.

    Ao se comemorar o cinqentenrio da Organizao, portanto, nenhumainiciativa poderia ser mais apropriada do que recuperar as palavras do Brasil naAssemblia Geral. Com a publicao de seus discursos no Debate Geral, adiplomacia brasileira exalta a Organizao, ao mesmo tempo que se reencontracom o seu prprio trajeto. Ao faz-lo, constri um monumento diplomtico que

  • consagra exemplarmente a poltica externa do Brasil, sem dvida, um dos maisvaliosos patrimnios morais da sociedade brasileira.

    Nas pginas que se seguem, o leitor encontrar todos os discursospronunciados pelos Chefes das Delegaes do Brasil s 50 Sesses ordinriasrealizadas pela Assemblia Geral da ONU, de 1946 a 1995. Os discursos acham-se reproduzidos na ntegra. Dos textos que no se encontraram em portugus foiprovidenciada a devida traduo, j que, at a dcada dos setenta, era costumeque os discursos fossem pronunciados numa das lnguas oficiais, quase sempre oingls.

    Cada discurso est precedido de uma breve introduo. Nela se expem asprincipais variveis internas e externas que condicionaram o momento histricoem que o texto foi produzido, chamando-se ateno para os elementos distintivosdo discurso e analisando-se sua insero no fluxo de formulao e enunciao dapoltica externa brasileira. Mediante esta contextualizao, o que se pretende dar ao leitor algumas chaves para que possa acompanhar e formar o seu prpriojuzo sobre a poltica externa brasileira contempornea.

    ***

    Desde a IV Assemblia Geral, o Brasil tem sido o primeiro pas a ocupar atribuna do Debate Geral. Acredita-se que essa prtica se iniciou em 1949, emfuno do clima de confrontao que ento se observava, com vistas a evitar quefosse concedida a primazia seja aos EUA, seja URSS. A partir de ento, a cadaano, antes de abrir as inscries para o Debate Geral, Secretrio-Geral da ONUdirige nota Misso do Brasil em Nova York em que indaga se, de acordo com apraxe, o Chefe da delegao brasileira desejar ser o primeiro orador. A respostainvariavelmente afirmativa consulta do Secretrio-Geral assegura a vigncia deuma tradio que honra e distingue o Brasil.

    Essa circunstncia sedimentou na diplomacia brasileira uma valoraoelevada da importncia dos discursos de abertura do Debate Geral, que foram,na realidade, durante muitos anos o principal veculo de que dispunha a diplomaciabrasileira para se fazer ouvir internacionalmente. Contrariamente grande maioriadas delegaes que intervm no Debate Geral, mais preocupadas com questestpicas, os Chefes de Delegao do Brasil, por serem os primeiros a falar, costumamapresentar discursos abrangentes, em que a avaliao da situao internacionalfigura como pano de fundo para a enunciao da viso brasileira do mundo e paraa apreciao das principais questes internacionais.

    Alguns discursos so mais explcitos, outros algumas vezes reticentes; algunsrevelam-se inovadores, outros conservadores; alguns mais acadmicos, outros

  • 23

    mais orientados para o plano da operao diplomtica. Tomados em seu conjunto,estes textos constituem uma espcie de livro de horas, um brevirio da polticaexterna brasileira. Atravs de seu estudo, torna-se possvel discernir os diferentesperodos que caracterizaram a atuao diplomtica do Brasil, as diferentes nfasesque assinalaram os diferentes perodos, os constrangimentos internos e externosque prevaleceram circunstancialmente e, bem assim, identificar os elementos depermanncia e continuidade que se manifestam na projeo externa do Brasil.

    Alm de amplo, o material revela-se valioso do ponto de vista de sua qualidadedocumental. O discurso brasileiro linear, objetivo e fidedigno. No se observamambivalncias entre as polticas enunciadas e as linhas de ao diplomticaimplementadas.

    Em poltica externa, discurso e ao na verdade se complementam e sesobrepem. Freqentemente o discurso a ao e a ao o discurso. No casode um pas como o Brasil, cuja capacidade de se expressar na esfera internacionalpor meios de poder limitada, o discurso diplomtico passa a ser o meio porexcelncia de definio de polticas, de mobilizao de coalizes de interesses, detransao, de busca de equilbrios.

    Um grande lder poltico dizia ter ouvido ao longo de sua vida parlamentarmuitos discursos que o haviam feito mudar de opinio a respeito das questes emdebate. Nenhum discurso, no entanto, jamais havia mudado o seu voto. possvelque o discurso da diplomacia brasileira em Nova York nestes cinqenta anos notenha sido capaz de mudar os votos de outras delegaes. Mas seguramente tersido fundamental para disseminar na comunidade internacional a imagem de umpas que se distingue pela seriedade, pelo sentido de responsabilidade e pela altaqualidade da representao externa de seus interesses.

    ***

    Para que se possa apreciar adequadamente a evoluo da poltica externabrasileira luz dos textos recolhidos no presente volume, convm recordar em linhasmuito gerais as etapas historicamente percorridas pelo pas no cenrio internacional e,em particular, os antecedentes da participao do Brasil no processo multilateral.

    Como instrumento de defesa e promoo dos interesses fundamentais doEstado no plano da convivncia internacional, a poltica externa do Brasil pode serapreciada em trs grandes momentos. O momento inicial se estende por trssculos. Abre-se nas negociaes entre Portugal e Castela que culminaram como Tratado de Tordesilhas de 1594, afirma-se no Sculo XVIII com os Tratados deMadri (1750) e Santo Ildefonso (1777) e culmina com a transplantao da Corte

  • 24

    portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808. Nesta longa fase, o vetor fundamentalda projeo externa do territrio que gradualmente evoluiria para a formao doEstado do Brasil foi a delimitao do espao nacional. A fase seguintecorresponde ao perodo monrquico, embora na verdade se estenda at RioBranco. o momento em que a sociedade brasileira, j plenamente estruturadaem um Estado, busca a consolidao do espao nacional, mediante a suaocupao efetiva, a sua defesa, sobretudo na vertente platina, e a definitivaconfigurao das fronteiras territoriais. E o terceiro momento, que se prolongaat os dias de hoje, pode ser caracterizado como o do desenvolvimento doespao nacional, ou seja, a utilizao da relao externa como fator dearregimentao de recursos, de negociao de coalizes e de neutralizao deobstculos ao desenvolvimento econmico e social do Brasil.

    A participao do Brasil nos foros multilaterais internacionais fruto desteterceiro e atual momento da poltica externa. Inaugura-se no princpio do sculo,aps a proclamao da Repblica, com a busca de uma parceria com a potnciaemergente de ento, os EUA. At Rio Branco, a poltica externa brasileira movia-se em funo de dois objetivos complementares decorrentes do imperativo deconsolidar o espao nacional: administrar a preeminncia britnica e preservar aintegridade da fronteira sul ameaada ocasionalmente, ora pelo Paraguai, ora peloUruguai e permanentemente pela Confederao Argentina. No obstante as suasconvices monrquicas e a sua formao europia, Rio Branco percebeu osriscos de marginalizao a que o Brasil estava submetido no contexto internacionaleurocntrico e anteviu o deslocamento dos centros de poder que se efetuaria emdireo Amrica do Norte.

    Desde Rio Branco, a poltica externa brasileira passou a procurar simultneaou sucessivamente a aliana com os EUA e a ampliao da insero internacionaldo Brasil como fatores de desenvolvimento econmico e social do pas. Os perodosde maior alinhamento com os EUA coincidem com fases da vida nacional em queas correlaes de foras internas permitiram a implantao de modelos polticosque privilegiavam a obteno, atravs da aliana norte-americana, dos recursose da cooperao necessria para sustentar o processo de desenvolvimentoeconmico do pas. Inversamente, os perodos de atenuao da aliana coincidemcom a vigncia de propostas alternativas mais diversificadas, no exclusivamentepredicadas na expectativa da cooperao norte-americana. Nas ltimas dcadas, luz das transformaes ocorridas no Brasil e no mundo, os discursos brasileirosna ONU revelam como a aliana deixou de apresentar um valor referencialunvoco. No mais, como no passado, o padro de sinal positivo ou negativo demobilizao da diplomacia brasileira, cujos horizontes alargados passaram avisualizar na estratgia do universalismo a forma adequada de promover a inserocompetitiva do Brasil no mundo.

  • 25

    No plano multilateral, o primeiro momento que assinala ainternacionalizao da projeo externa do Brasil a II Conferncia de Pazda Haia em 1907. Na Haia, a diplomacia brasileira faria a sua estria nosforos internacionais com um discurso afirmativo e reivindicatrio em que sepropunha desempenhar, como pas intermedirio, um papel na elaborao dasnormas que deveriam reger os grandes temas internacionais de ento: mitigaodas leis e costumes da guerra, codificao do direito da neutralidade, reformada Corte de Arbitragem e estipulao da arbitragem compulsria. Daparticipao do Brasil na Conferncia da Haia sob a liderana de Ruy Barbosaderivam pelo menos dois dos principais paradigmas seguidos desde ento peladiplomacia brasileira: o paradigma da singularidade do Brasil e o paradigmado respeito ao Direito Internacional. perceptvel nas formulaes de RuyBarbosa a preocupao em singularizar o Brasil no contexto internacional comoum pas que no se sente confortvel com tipificaes apriorsticas e querejeita enquadramentos em grupos ou movimentos. Vem igualmente da Haia apretenso do Brasil de atuar no concerto das naes no com o peso de suasarmas ou com eventuais ambies de potncia, mas com a fora de suasrazes e a ascendncia do seu Direito. Segundo expressaria significativamenteRuy Barbosa ao analisar os resultados da Conferncia, a presena internacionalbrasileira se construiria de trabalho, de instruo, de energia, de f, de alianaentre a tradio e o progresso, de amor lei e ao direito, de averso imoralidade e desordem.

    A participao na Conferncia da Haia ensejou a formulao das basesideolgicas para a posterior deciso brasileira de aderir causa aliada na IGuerra Mundial e, em seguida ao trmino do conflito, de participar da Confernciade Versalhes, onde o Brasil foi oficialmente classificado, para fins de reparaes,como potncia de interesses limitados.

    Os paradigmas da Haia foram essencialmente os mesmos que orientarama participao do Brasil na Liga das Naes e que influram na deciso deabandonar a Organizao em 1926, quando a pretenso brasileira de ocupar umassento permanente no Conselho foi baldada pela indicao da Alemanha. Aose retirar, por razes de princpio, de uma Organizao que pouco depoisdesapareceria sob a violncia desatada pela prpria Alemanha, o Brasil sentiu-se reforado nas convices de sua singularidade e de seu apego ordem e moralidade internacional.

    E foi movido por estas convices que, tendo participado da II Guerra noteatro europeu, o Brasil se juntou ao ncleo original de pases que fundaram aOrganizao das Naes Unidas. Os vetores essenciais de poltica permaneciamos mesmos: reforar a aliana com os EUA e ampliar a insero internacional

  • 26

    do pas com vistas ao seu pleno desenvolvimento. Tambm se mantinham osparadigmas da Haia, apesar da decepo causada pela no incluso do Brasilcomo membro permanente do Conselho de Segurana devido oposio da URSS, ambivalncia do apoio norte-americano e a determinao da Frana de manterum status de Grande Potncia. A esse propsito, o Chefe da Delegao do Brasil Conferncia de So Francisco, Ministro Pedro Leo Velloso, observa em seuRelatrio que no descurou de sondar a possibilidade de obter para o Brasiltratamento idntico ao que havia sido acordado Frana, em consonncia com oque tinha sido acertado com os demais quatro membros permanentes do futuroConselho (EUA, Gr-Bretanha, URSS e China) na reunio preparatria deDumbarton Oaks. Mas, verificando que as Grandes Potncias no se mostravamdispostas, por prudncia, a permitir que em So Francisco fosse reaberta adiscusso em torno do aumento do nmero de lugares permanentes no Conselhode Segurana, Leo Velloso achou melhor abster- se, segundo expe no Relatrio,registrando apenas, em carta ao Secretrio de Estado dos EUA a decepo quepoderia causar opinio pblica a excluso do Brasil.

    Em So Francisco, ficariam plasmados pela atuao da Delegao do Brasilpelo menos trs grandes temas que se inscreveriam, da mesma forma que osparadigmas da Haia, como elementos constantes do discurso brasileiro na ONU:as questes geminadas do veto e do funcionamento do Conselho de Segurana, areforma da Carta e o desenvolvimento econmico e social. Quanto ao veto, aposio brasileira foi originalmente ambgua. Leo Velloso recorda em seu Relatrioque a Delegao do Brasil manifestou formalmente durante o debate da questoem So Francisco que o Brasil seria, por princpio, contrrio outorga do veto...(e que), portanto, apoiaria as emendas que restringissem o seu uso mas, para darmais uma prova do desejo de auxiliar o bom xito da Conferncia, no caso denenhuma emenda ser adotada e o seu voto ser necessrio para formar maioria, aDelegao estaria pronta a votar em favor do texto original, isto , do veto.Quanto reforma da Carta, a delegao do Brasil chegou a propor uma emendaque previa a reunio de uma Assemblia Geral revisora a cada cinco anos. Aofinal, contentou-se com a frmula constante da Carta que deriva de uma propostanorte-americana e que se revelou utilizvel apenas para o aumento dos membrosno permanentes do Conselho de Segurana e do ECOSOC. Leo Velloso vinculano seu relatrio o tema do veto com o da reforma da Carta ao assinalar que oBrasil aceitou o primeiro por no poder agir de outra forma: se o tivssemosfeito, de certo no poderamos assinar o Estatuto da nova Organizao Mundial eteramos de ficar margem da comunidade das Naes. Nossos esforos (...)foram no sentido de atenuar a rigidez do veto com a reviso (da Carta). No quese refere ao tema do desenvolvimento econmico e social elemento que viriagradualmente a se transformar na constante mais vigorosa do discurso brasileirona ONU notvel a anteviso revelada em So Francisco. Registra-se no

  • 27

    Relatrio a determinao da Delegao do Brasil de bater-se por dar ao ECOSOCum carter mais dinmico, a fim de impedir que a (sua) preocupao especialfosse a manuteno de um status quo econmico para os pases de economia jmais desenvolvida ou para a reconstruo econmica das naes devastadas pelaGuerra. Acham-se sintetizadas nessa formulao as bases do que viria a seconstituir na diplomacia econmica multilateral do Brasil.

    ***

    Tal como reproduzidos nas pginas adiante, os discursos brasileiros nas 50Assemblias Gerais que se seguiram conferncia fundacional de So Franciscorefletem com fidelidade o percurso trilhado pela diplomacia brasileira nos ltimoscinqenta anos. Demonstram que, no obstante ocasionais mudanas de nfase oude orientao, a diplomacia brasileira buscou invariavelmente servir como instrumentopara a preservao dos valores ticos da paz e do respeito ao Direito Internacional,assim como para a insero competitiva do pas no cenrio internacional.

    Os discursos deixam entrever algumas das principais dicotomias quecaracterizam o processo de formulao de poltica externa no Brasil: nacionalismoe internacionalismo; realismo e idealismo; pragmatismo e utopia; reivindicao einveno; ocidentalismo e terceiromundismo; universalismo e particularismo;fatalismo e esperana; subjetivismo e objetivismo; democracia e autoritarismo;continuidade e mudana; e assim por diante.

    Essas dicotomias refletem as ambivalncias das mltiplas e muitas vezescontraditrias dimenses do Brasil. Mas no obscurecem jamais a escala de valoresticos mediante a qual a diplomacia brasileira se prope a apreciar os fatos edistinguir o real do irreal, a iluso da realidade. Nestas cinco dcadas de polticamultilateral no foro das Naes Unidas, a diplomacia brasileira projetou sempreuma viso valorativa do mundo. A qualidade tica do discurso brasileiro se manifestaem formulaes permanentemente voltadas para a realizao no plano internacionaldos objetivos de liberdade e igualdade inerentes condio humana.

    A utopia brasileira, tal como emerge da leitura destes textos a utopia dajustia universal. Uma utopia que tem os olhos postos no porvir. Irrealizada.Irredenta. A utopia de um pas singular que busca encontrar-se consigo mesmo,ao mesmo tempo que procura construir o seu lugar na Histria.

    Os discursos reunidos neste livro representam, portanto, uma homenagemao passado e uma oferta ao futuro. Honram a tradio diplomtica brasileira eobrigam as geraes vindouras.

  • O trmino da II Guerra Mundial desencadeiaimportantes transformaes no quadro poltico-institucionalbrasileiro. Rompida a censura imprensa, sucedem-se osmanifestos de intelectuais e artistas em favor darestaurao da ordem democrtica e da convocao deeleies. Fundam- se os Partidos que dominariam a polticabrasileira at 1964: de um lado, a Unio DemocrticaNacional (UDN), que seria veculo das tendncias anti-varguistas; e, de outro, o Partido Social Democrtico (PSD)e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), congregando asforas conservadoras e trabalhistas ligadas ao sistemaVargas. Em outubro, o Presidente Getlio Vargas depostopelos Chefes Militares e, em novembro, o candidato doPSD, General Eurico Gaspar Dutra elege-se Presidenteda Repblica. Empossado em janeiro de 1946, o PresidenteDutra empreende a normalizao institucional do Brasilaps os 15 anos de excepcionalidade que se haviam iniciadocom a Revoluo de 1930. Em setembro, promulgada anova constituio, de orientao liberal, que restabelece oprincpio da separao de Poderes e as eleies diretasem todo o pas.

    As transformaes em curso no Brasil obedeciam lgica de um quadro internacional que se caracterizavapela afirmao dos valores democrticos ocidentaisvitoriosos na luta contra o totalitarismo nazi-fascista. Aaliana ainda vigente entre as Grandes Potncias ocidentaise a Unio Sovitica permitia que dependncia estratgicado Brasil em relao aos EUA, se contrapusessemtendncias em favor da aproximao com a URSS. Coma derrocada do Estado- Novo, a anistia de 1945 e o novoCdigo Eleitoral, o Partido Comunista Brasileiro (PCB)emergiria da Guerra como fator relevante no cenriopoltico nacional. quela altura, o PCB era o nico PartidoComunista da Amrica Latina responsvel por uma

    1946

    29

  • 30

    tentativa revolucionria pela fora, a chamada intentonade 1935, que tantos e to intensos ressentimentos haviadeixado nos meios militares. As relaes Brasil-URSS nuncahaviam existido formalmente. O Brasil no reconhecera atento o regime que emergia da Revoluo de 1917. Ao seaproximar o fim da guerra, essa situao se alteraria.Interessado em obter o beneplcito sovitico para as suaspretenses nos arranjos multilaterais que viriam a conformara ordem internacional ps-conflito, o Governo brasileiro,mediante notas trocadas em Washington sob os auspciosdos EUA, reconheceria o Governo sovitico em abril de1945.

    O domnio bipolar do mundo j se prenunciava. Asrelaes entre os EUA e a URSS, anteriormente perifricasa um cenrio que tinha na Europa os seus principais vetoresde poder, passariam a se constituir no fenmeno centraldas relaes internacionais. A partir do final da Guerraat a derrocada da URSS, a histria das relaesinternacionais seria a crnica da interao entre as duassuperpotncias, sua permanente obsesso por seguranae sua competio por influncia ideolgica, poltica eeconmica nas demais reas.

    Esse quadro levaria os EUA a logo procurar reforarsuas alianas estratgicas. Bilateralmente associado aosistema de defesa dos EUA, o Brasil mais adiante, em 1947,com o Tratado Inter-Americano de Assistncia Recproca(TIAR) incorporar-se-ia igualmente ao sistema de seguranacoletiva regional.

    No Brasil, a aliana com os EUA geravaexpectativas positivas. Acreditava-se na iminncia de uminfluxo de recursos norte-americanos para impulsionar odesenvolvimento do pas. Essas expectativas positivas nochegariam a se atenuar mesmo com a decepo surgidanas negociaes finais da Carta da ONU quando, apesarde anteriores insinuaes e algumas promessas de apoiopor parte de autoridades norte-americanas, a pretensobrasileira de ocupar um assento permanente no Conselhode Segurana da ONU viu-se frustrada pela indicao daFrana.

  • 31

    Influenciado pelas transformaes em curso nomundo, o panorama poltico-institucional brasileiro serevelava complexo. relativa simplicidade do modelogetulista sucedia-se um processo institucional que seressentia da inexistncia de modelos (a Repblica Velhano servia obviamente como padro de referncia), e quese achava limitado pela falta de coeso social do pas.Dividido internamente, o Brasil se dividiria tambmexternamente em torno da confrontao sovitico-americana, com a qual o debate poltico nacional passariaa interagir ideologicamente. 1946 o ano em que o ldercomunista Luiz Carlos Prestes declara publicamente queficaria com a Unio Sovitica em caso de guerra entreesta e o Brasil. Meses depois sucede o episdio em que older da UDN, Octvio Mangabeira, beija as mos doGeneral Eisenhower, em visita ao Rio de Janeiro.

    No de estranhar, pois, que os primeirospronunciamentos do Brasil na Assemblia Geral tenhamsido cautelosos.

    A Primeira Assemblia Geral foi composta de duaspartes. A primeira, de carter inaugural, realizou-se emLondres. O discurso da delegao do Brasil, pronunciadopelo Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas reveste-sede acentuado contedo moralista e at certo ponto mstico.Prope-se a configurao de uma comunidade intelectualde naes e a formao de uma nica casa espiritualpara eliminar a guerra, a doena e a necessidade,expresses que se usavam para designar o que mais adianteviria a ser conhecido como segurana internacional edesenvolvimento econmico e social. de notar a referncia inevitabilidade da difuso da cincia csmica entoliberada, como prenunciadora dos problemas que viriam aser criados com a proliferao nuclear.

    A segunda parte da Primeira Assemblia Geraltranscorreu em Nova York. Ao intervir no Debate Geral, oEmbaixador Pedro Leo Velloso Netto revela expectativasbenevolentes em tomo dos ideais da Organizao e nodeixa de desvendar nas entrelinhas algum ressentimentopelo fato de o status do Brasil no ter sido elevado, apesar

  • 32

    do esforo de participao na Guerra. Ainda estavam vivasas seqelas do episdio da retirada do Brasil da Liga dasNaes ao no serem atendidas as pretenses brasileirasde um assento permanente no Conselho. Passando ao largodos problemas que dividiam o Brasil e das grandes questesideolgicas que ensombreciam o cenrio internacional, LeoVelloso projeta a imagem de um pas amadurecido, guiadopela tica e preparado para atuar com responsabilidadescrescentes no plano externo. Admitindo, porm, que a paz,no obstante toda a construo jurdica da Carta de SoFrancisco, repousava efetivamente nas Grandes Potncias,o Representante do Brasil manifesta-se disposto a aceitaro instituto do veto como maneira pragmtica de obterresultados. Enfatizando os objetivos de segurana daOrganizao, Leo Velloso identifica na constituio doStqff Committee do Conselho de Segurana a principalcaracterstica que diferenciaria positivamente a Carta deSo Francisco do Pacto da Liga das Naes. E,prenunciando uma linha que viria a se constituir em vertenteessencial da poltica externa brasileira, refere-se importncia que o Brasil desde ento atribua ao trabalhodo Conselho Econmico e Social.

  • 33

    I Sesso Ordinria da Assemblia Geral da Organizao das Naes Unidas1946

    Primeira Parte

    Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas1

    Em nome do povo brasileiro e de seu Governo, gostaria, em primeiro lugar,de expressar o quanto meu pas grato a esta augusta Assemblia pelo sincerovoto de confiana que lhe foi dado quando de sua eleio para o Conselho deSegurana das Naes Unidas. Deste modo desejastes registrar vossa simpatiapor nossas tradies pacficas e por nossa contribuio nos sacrifcios incorridosna luta pela liberdade e dignidade humana.

    A Repblica dos Estados Unidos do Brasil nunca cessou de trabalhar pela paze tem a satisfao de ter sido a primeira nao a introduzir em sua Constituio umaclusula que prescreve arbitragem compulsria para todos os conflitos internacionais.Sua histria diplomtica foi sempre escrita sob a clara luz do dia e exibe uma sucessode tratados e acordos selados com o esprito do entendimento e da solidariedade.Recorreu s armas apenas para coloc-las a servio da causa geral envolvendo povoscuja independncia e integridade territorial estavam ameaadas. Seu sangue foimisturado ao dos Aliados, seus recursos foram postos disposio de todos, e seunico desejo foi o de servir causa da paz internacional e da segurana coletiva.

    devido fora desses mritos e em nome de nossos soldados que deramsuas vidas pela vitria comum que nos posicionamos ao vosso lado para trabalharpela reconstruo, dever de todos ns. Tendo em vista esta finalidade, nopouparemos esforos e nem haver dificuldade que nos faa recuar. A tarefa aser cumprida por demais fina e nobre para que sejam admitidos pensamentosimpuros ou preocupaes menores. Assumimos sinceramente todas as obrigaesque nossa posio nas Naes Unidas possa implicar.

    O problema que se coloca agora diante dos povos que tenham passado peloteste de terrveis catstrofes o de substituir o interesse prprio, excludente dos

    1 Luiz Martins de Souza Dantas, nascido no Rio de Janeiro, em 17 de fevereiro de 1876. Bacharelem Direito pela Faculdade de So Paulo. Adido de Legao em 2/3/1897. Embaixador em 1/11/19. Duasvezes Ministro de Estado das Relaes Exteriores, interino, no perodo de 1913 a 1917. Serviu comoDelegado do Brasil junto Liga das Naes, em Genebra, em 1924 e 1926. Paris, em abril de 1954.

  • 34

    direitos de terceiros, por uma avaliao de deveres mtuos. Segundo a admirvelfrase de So Paulo, somos todos membros uns dos outros. Portanto, esforoscoletivos deveriam ser coordenados para que se preserve e aperfeioe a sociedadehumana considerada como uma unidade indivisvel da qual as diversas naes sonecessariamente rgos constituintes. Se preciso for, para a obteno desta unidade,cada nao deve aprender a subordinar sua soberania ao interesse prevalecenteda humanidade como um todo; e se, dentre as Naes Unidas, h algumas maispoderosas que outras, tal superioridade deve servir apenas para produzir maiordevoo causa comum.

    Somos chamados a construir uma organizao muito promissora, mas nonos esqueamos, ao iniciarmos este grande trabalho, da lio vinda do passado.Nenhuma fora estritamente temporal pode ter a expectativa de pr um termo sdisputas internacionais. Antes que as armas se calem para sempre, o corao dohomem deve ser desarmado; deve ser drenado de todos os preconceitos quanto araa, nacionalidade e religio; deve ser purgado dos pecados da ambio e doorgulho; devendo ser preenchido, em lugar disso, de esperana e sentimentofraterno. Deve- se erigir um sistema de moralidade internacional, extrado de todoo tipo de fora espiritual, e dever ser esta a moralidade orientadora dos tratadose acordos polticos do mundo de amanh.

    Mais do que nunca, uma comunidade intelectual torna-se urgentementenecessria para a constituio de uma verdadeira assemblia de naes. Cuidemospara que ela seja construda sem interferncia poltica e que se fundamente tantonos grandes movimentos religiosos que brotaram dos ensinamentos de Cristo,Maom, Buda e Confcio, quanto na contribuio laica de poetas, filsofos ecientistas de todos os pases. Sem o apoio de uma opinio pblica bem informadae livre, qualquer tentativa de uma organizao internacional provar-se-ia ilusria,principalmente no presente momento, em que as foras materiais liberadas pelognio humano j ameaam alcan-lo. O homem se prepara para manejar umaenergia csmica, e se no for treinado corretamente para isso, poder ser tragadopor ela. Ainda por algum tempo, as armas secretas provenientes desta energiapodero permanecer ocultas. Mas seria leviano pensar que se trata de uma soluodefinitiva: descobertas cientficas no so privilgio de um nico povo ou grupo.Assim que, dados os primeiros passos, seja alcanado um determinado estgio,estas descobertas iro surgir simultaneamente em vrias mentes. A histria temprovado isso reiteradas vezes.

    Desviados os perigos que a liberao da energia atmica traz para asrelaes internacionais, no resta alternativa seno o desenvolvimento dafraternidade humana por todos os meios intelectuais e morais a nossa disposio.A Carta das Naes Unidas aponta claramente o caminho a ser tomado ao

  • 35

    posicionar o Conselho Econmico e Social lado a lado com o Conselho deSegurana. Contanto que aquele honre seus compromissos, de se esperar queeste jamais ter de intervir. Tenho esperana ardente de que continuar sendo,como tem sido, um escudo que ningum ousar atacar.

    A mxima segundo a qual o perturbador da paz est sempre errado a quedeve guiar as Naes Unidas. Quem quer que procure interromper a paz, semeardiscrdia entre naes, ou promover uma guerra de nervos, ser doravantesubjugado pela inabalvel determinao de todos os que tm sofrido as amargurasda guerra e que resolveram nunca mais admitir que semelhante catstrofe ocorra.

    Em termos polticos, h cinqenta e um pases diferentes representadosnesta Assemblia; poder-se- dizer que nosso trabalho obteve xito se, ao partirmos,nossos pases formarem uma nica casa espiritual. Deste modo, o homem terfeito a sua maior conquista, e poderemos nos reunir em um esforo comum naeliminao dos trs grandes castigos que no momento nos dividem e oprimem: aguerra, a doena e a necessidade.

    Um nico pensamento deve inspirar nossas aes no sentido de seestabelecer a Organizao das Naes Unidas em bases inabalveis e eu esperoque seja o expresso na seguinte mxima: Communis humanitatis causa.

    Muito obrigado.

    Londres, em 10 de janeiro de 1946.

  • Segunda Parte

    Embaixador Pedro Leo Velloso2

    Primeiramente, gostaria de expressar cidade de Nova York, da parte dadelegao brasileira, nossa sincera gratido pela sua gentil hospitalidade durante operodo da Assemblia Geral.

    A Organizao das Naes Unidas viu a luz do dia pela primeira vez emsolo dos Estados Unidos; sua criao foi inspirada pelo grande PresidenteRoosevelt, assistido por seu eminente Secretrio de Estado, o Honorvel CordellHull. O plano delineado em Dumbarton Oaks foi aprovado em So Franciscopelos Estados que formam a Organizao das Naes Unidas. Eles compuseramuma Carta destinada a governar doravante suas relaes mtuas. Esses fatostm uma significao que no nos pode escapar e que eu, como filho destecontinente, fico feliz em ressaltar.

    Amrica, terra da liberdade, habitada por povos que no tm os preconceitosacumulados em outros continentes durante sculos de conflitos interminveis, beroda maior das democracias, oferece Organizao das Naes Unidas umaoportunidade sem precedentes para que floresa e efetue sua grande misso poltica,econmica, social e cultural.

    O Brasil, em sua dupla qualidade de membro da comunidade de naes ede Estado integrante deste hemisfrio, orgulha-se em ter contribudo para a criaoda Carta das Naes Unidas. Seu passado, sua tradio pacfica, seu amor pelaordem, seu respeito pelo direito e seus sentimentos democrticos o prepararampara receber com entusiasmo a idia da organizao de uma sociedadeinternacional para a preservao da justia e do respeito a tratados e outras fontesde direito dos povos.

    por isso que o meu pas tem dado sincero apoio iniciativa das grandespotncias. Participou no somente da Conferncia de So Francisco, como tambmdo trabalho preliminar primeira parte da Primeira Sesso da Assemblia Geral,em agosto de 1945.

    2 Pedro Leo Velloso Netto, nascido em Pindamonhangaba, SP, em 13 de janeiro de 1887. Bacharelem Cincias Jurdicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Segundo Secretrio em 1910.Ministro Plenipotencirio de Primeira Classe, por merecimento, em 1934. Ministro de Estado dasRelaes Exteriores de 1/11/45 a 31/1/46. Nova York, em janeiro de 1947.

    37

  • 38

    A Organizao das Naes Unidas tem apenas poucos meses de funcionamento.E o fato de que o Conselho de Segurana, o Conselho Econmico e Social e outrosrgos tenham se reunido regularmente desde janeiro deste ano no significa que noestejam ainda em processo de organizao, tendo nmero incompleto de funcionrios,oramento experimental, sede permanente ainda indefinida, et cetera.

    Acrescente-se a este quadro as condies de ps-guerra em diversas partesdo mundo, resultantes do atraso na composio e assinatura de tratados de paz.

    Em suma, nossa existncia se resume a um perodo muito curto de tempo,durante o qual temos estado diligentemente comprometidos em nos organizarmosem um mundo que ainda espera um retorno normalidade. Seria inteiramenteprematuro, nas atuais circunstncias, tentar avaliar que papel a Organizaodas Naes Unidas tem desempenhado at o presente momento.

    Desejo expressar a imensa f que o meu pas deposita na causa das NaesUnidas. Aps os anos dolorosos que acabamos de atravessar, no podemosconceber o mundo que ora se configura, sem levarmos em conta o modelo propostopelas Naes Unidas em beneficio da humanidade, a saber, a garantia dapreservao da ordem e da segurana internacional em um sistema poltico elegal que assegure, tanto ao vencedor quanto ao vencido, respeito por suas vidas,seus direitos e suas liberdades.

    Como podeis ver, eu vos falo com meus olhos fixos na Carta. Ela representaa segunda tentativa, em vinte e cinco anos, de dar aos povos um estatuto que lhespossibilite viver em sociedade em um mundo pacfico e civilizado.

    Um esforo foi feito em Dumbarton Oaks e posteriormente em So Franciscono sentido de se aperfeioar a Conveno da Liga das Naes pela introduo, naCarta das Naes Unidas, de provises mais realistas que as contidas noinstrumento cujo insucesso foi marcado pela invaso da Manchria. Dentre asprovises que ressaltam as diferenas entre a Conveno e a Carta, a maisimportante a que estabelece um Comit de Pessoal para ajudar o Conselho deSegurana em caso de ameaa paz, ofensa paz, ou de agresso.

    A Organizao das Naes Unidas foi, contudo, estabelecida tendo porbase um princpio de longo alcance. Este princpio, ao qual os criadores de nossaOrganizao atriburam a maior importncia, tanto antes quanto durante aConferncia de So Francisco, tomou forma no Artigo 27 da Carta. A viso delesfoi a de que a unanimidade entre os membros permanentes do Conselho deSegurana, ou seja, entre as grandes potncias, essencial para que a Organizaodas Naes Unidas sobreviva e cumpra a sua tarefa; sem isso, ela desapareceria.

  • 39

    Se considerado luz do princpio da igualdade de todos os Estados perantea lei, o Artigo 27 foi um preo muito alto pago por pequenos e mdios pases pelaobteno da Carta. Tal clusula do nosso estatuto mais conhecida como aconcesso do direito de veto aos membros permanentes do Conselho de Segurana.

    O Brasil, embora seja em tese contrrio ao veto, aceitou-o dentro de espritoconstrutivo, em nome da obteno de resultados prticos. Pensamos que, enquantotodos os Estados so iguais perante a lei em termos tericos, suas responsabilidadesconcernentes preservao da paz so diretamente proporcionais aos seus meiosde ao e, por conseguinte, variam muito. Por esta razo, decidimos que eranecessrio confiar nas grandes potncias.

    bvio, contudo, que esta confiana depositada com o mesmo esprito pelamaioria dos Membros da Organizao das Naes Unidas nas grandes potnciasobriga-as, enquanto beneficirias, a honr-la. Obtero xito, primeiramente,trabalhando juntas para a reorganizao do mundo. Todos compreendemos que atarefa no fcil. Mas estamos igualmente convencidos de que, por mais difceisque possam ser os obstculos, no resultaro intransponveis, quando confrontadoscom a boa vontade e o desejo sincero por parte das grandes potncias de alcanartodos os objetivos para os quais nos subscrevemos desde a Carta do Atlntico.

    Hoje os povos de todo o mundo tm uma suprema aspirao. Aps osterrveis sofrimentos da ltima guerra, eles desejam ordem e paz. Esto ansiosospor duas coisas: querem um retomo ordem e esperam que ela seja duradoura.No iro tolerar a idia de que toda gerao ter de suportar horrores cada vezmais terrveis, resultantes da soluo ilusria de problemas mediante a guerra.Sem dvida, a paz est nas mos das grandes potncias; mas o mundo nuncaaceitar a idia de que os conflitos de interesse das mesmas possam justificar osacrifcio do bem-estar da humanidade.

    Voltemo-nos ao Prembulo de nossa Carta, que dispe estarmos determinadosa poupar as geraes seguintes das aflies da guerra, que duas vezes durante anossa existncia trouxe indizvel pesar para a humanidade. As naes tm,freqentemente, uma misso histrica a cumprir no mundo; nada pode impedi-las dealcanar seu destino. Porm, nos dias de hoje, tentar efetu-lo fora da estrutura dasNaes Unidas, qual pertencem, seria loucura ou mesmo um crime.

    Uma rdua tarefa nos aguarda. Nos reunimos aqui, em primeiro lugar, parafinalizar os trabalhos iniciados em Londres no inicio do ano. Desde ento, muitostemas adicionais tm sido apresentados para estudo. Temos frente uma agendaextremamente cheia. Ademais, estamos nos reunindo aps um considervel atrasoresultante de duplo adiamento.

  • 40

    Todos os assuntos que nos aguardam so, naturalmente, muito importantes;todos merecem de ns a mesma ateno, seja qual for sua natureza. Contudo, noatual estgio alcanado pela Organizao das Naes Unidas, no hesito em afirmarque alguns temas sejam de interesse predominante. Tais temas so, em primeirolugar, os ligados sua organizao; em segundo lugar, os que nos foram submetidospara exame por parte de rgos como o Conselho Econmico e Social, et cetera.Neles devemos concentrar nossos esforos se quisermos que o trabalho das NaesUnidas alcance os mais completos resultados e se desejarmos que a Organizaodas Naes Unidas, afinal emergente da fase preparatria que alis j duroubastante, exera o papel para o qual foi criada.

    Foi com tal propsito que a delegao brasileira veio participar da segundaparte desta Primeira Sesso da Assemblia Geral que atualmente se rene emNova York. O Brasil, deste modo, continua a agir com a mesma atitude objetiva econstrutiva que adotou em So Francisco, cujo propsito essencial a formao eo desenvolvimento das Naes Unidas no mundo. Esta Assemblia Geral podecontar com o nosso mais sincero apoio para desempenharmos o trabalho queassumimos no mais curto perodo de tempo possvel.

    Muito obrigado.

    Nova York, em 23 de outubro de 1946.

  • 41

    1947

    Em fevereiro de 1947, produzem-se nas relaesinternacionais os acontecimentos iniciais do perodo queviria a ser conhecido como da Guerra Fria. Pressionadapor severas dificuldades internas, a Gr-Bretanha manifestano estar mais em condies de prestar auxlio econmicoe militar Grcia e Turquia, dois pases que, segundo osarranjos do fim da Guerra, haviam sido incorporados suaesfera de influncia. Ante a possibilidade de que o podersovitico passasse a se estender queles dois pases vitaispara as rotas estratgicas do Mediterrneo, os EUAassumem a sua defesa. Ao submeter seus planos aoCongresso, o Presidente Truman expe a doutrina queficaria associada ao seu nome e manifesta a determinaodos EUA de ajudar os povos livres que resistiam atentativas de subjugao por minorias armadas ou porpresses externas. Em junho, os EUA instrumentameconomicamente a poltica de defesa da Europa com oanncio do Plano Marshall. No ms seguinte, aparece narevista Foreign Affairs o artigo em que, sob o pseudnimode Senhor X, George Kennan, diplomata norte- americanoespecialista em Unio Sovitica, defende a necessidade daconteno da URSS mediante a aplicao sistemtica decontra-fora por parte dos EUA em qualquer parte domundo, teoria que ficaria conhecida como do containmente que viria a dominar o pensamento estratgico norte-americano na fase inicial do ps-guerra.

    A URSS responde ao containment mediante acriao do COMINFORM (Communist InformationBureau), destinado a coordenar a atuao do movimentocomunista internacional. Afirma-se, ao mesmo tempo, semprejuzo da rejeio do COMINFORM pela Iugoslvia deTito, o domnio sovitico sobre a Europa Oriental com ainstalao de governos comunistas na Hungria (junho de1947) e na Tchecoslovquia (fevereiro de 1948).

  • 42

    A Europa Ocidental, por sua vez, mobiliza-se paraenfrentar as novas realidades de Poder. Frana, Inglaterra,Blgica, Holanda e Luxemburgo formam a UnioOcidental, embrio da aliana que viria, em 1949, emresposta ao Bloqueio de Berlim, a se transformar na OTAN.O Brasil mantinha-se margem dos acontecimentos. Noperodo inicial da guerra fria, os pases latino-americanosobservavam de longe os acontecimentos que se passavamsobretudo na Europa e na sia. O momento, porm, erapropcio reafirmao de lealdades fundamentais e osEUA empenhar-se-iam em solidificar sua preeminnciano Hemisfrio.

    1947 o ano que assinala o incio de uma fase dealinhamento do Brasil com os EUA. Na expectativa deque a aliana com os EUA criasse as condiesnecessrias para o desenvolvimento do pas, a exemplodo que ocorreria na Europa Ocidental e no Japo, adiplomacia brasileira passa a praticar poltica de bloco. Apretexto de um incidente com diplomata da Embaixadaem Moscou, as relaes diplomticas Brasil-URSS sorompidas. Na ONU, a delegao do Brasil tomainvariavelmente partido dos EUA nas votaes de questesvinculadas polaridade Leste- Oeste. Na Conferncia doRio de Janeiro para a Manuteno da Paz e da Seguranano Continente, em que se aprovou o Tratado Inter-Americano de Assistncia Recproca (TIAR), a diplomaciabrasileira apia ativamente as postulaes norte-americanas sobre a defesa da regio.

    No discurso que pronunciou perante a SegundaAssemblia Geral, o Embaixador Joo Carlos Munizrevela certa preocupao com as divises entre asGrandes Potncias. Faz, em conseqncia, a apologiada Assemblia Gera l como representante daconscincia da Humanidade e rgo plenamente capazde exercer poderes semelhantes aos do Conselho deSegurana em matr ias que afe tem a paz e asegurana. Embora no citada nominalmente, a URSS responsabilizada como fator de irracionalidade e deinviabilizao das Naes Unidas pelo constanterecurso ao veto.

  • 43

    Do discurso do Embaixador Muniz desprende-se aviso do mundo de uma diplomacia que, se dando conta daimportncia secundria a que tinha sido relegado o pasnos arranjos do ps-guerra, refugia-se em formulaes decunho idealista ou mesmo utpico. A Humanidade, afirmao Representante do Brasil, estaria passando por um perodoverdadeiramente existencial, de tenso e de confuso devalores. Reconciliar liberdade e segurana do indivduoseria o caminho de salvao para o homem isolado eaterrorizado diante das ameaas do momento. Entre ototalitarismo e as perspectivas de progresso e bem estarabertas pelo desenvolvimento cientfico, o Brasil semanifesta preparado para contribuir com as idias liberaise democrticas em que se baseava a sua vida nacional. Aconciliao, diria Muniz, evocando a poltica do Gabinetechefiado pelo Marqus de Paran no II Reinado, o traoessencial do povo brasileiro: nossa participao na esferainternacional visa conciliao de idias opostas com vistasa promover o progresso mediante a persuaso.

    O idealismo do discurso, no entanto, compensadopor observaes de notvel pertinncia e acuidade. Sorelevantes nesse particular a meno extremainterdependncia de pessoas postas em contato pelamultiplicidade dos meios de comunicao; e, bem assim,a avaliao pioneira de que a Carta continha defeitos quepoderiam ser corrigidos por reviso ou pela adoo deprticas consensuais.

  • II Sesso Ordinria da Assemblia Geral da Organizao das Naes Unidas1947

    Embaixador Joo Carlos Muniz1

    A presente Sesso da Assemblia Geral das Naes Unidas d um tom deesperana e incentivo a estes momentos angustiantes que vivemos atualmente. Arazo disso que a Assemblia Geral representa a conscincia do mundo e suasdecises so a personificao dessa conscincia no esforo de resolver osproblemas que dizem respeito a todos os povos. Sem uma profunda reflexo sobreesses problemas, nunca poderemos chegar a solues orgnicas capazes deharmonizar interesses nacionais e promover o bem-estar geral. Da a importnciada Assemblia Geral, que deve ser considerada o rgo central das Naes Unidas,e ao qual todas as outras agncias esto relacionadas.

    Enquanto os outros rgos tratam de aspectos fragmentrios dos problemas,a Assemblia Geral observa e fiscaliza de modo que todas as suas agncias possamfuncionar corretamente. Ela o nico rgo no sistema do qual participam todosos Estados-membros integrantes. o grande foro ao qual so trazidas todas asquestes que interessam comunidade internacional. Por este motivo, a Cartano coloca limites sua competncia; ao contrrio, ela a define nos termos maisamplos possveis para que todos os temas que afetam as relaes internacionaissejam includos em sua jurisdio.

    Para que a Organizao das Naes Unidas possa alcanar o seu propsito, essencial que a opinio pblica mundial seja formada com um perfeitoentendimento de seus objetivos e as condies necessrias para a consecuodos mesmos; a opinio pblica deve apoiar suas aes e impor o respeito Organizao. Sem o apoio da opinio pblica mundial, as Naes Unidas nuncapodero tornar-se uma realidade. A Assemblia Geral, com seus meios paradisseminar idias, o rgo que est primordialmente equipado para criar umaopinio pblica global.

    Em um mundo caracterizado pela extrema interdependncia de pessoaspostas em contato pela multiplicidade dos meios de comunicao, tanto na esfera

    45

    2 Joo Carlos Muniz, nascido em Cuiab, MS, em 21 de maro de 1983. Bacharel em Cincias e Letrase em Cincias Jurdicas e Sociais pela Faculdade do Rio de Janeiro. Doutor em Cincias Jurdicas pelaUniversidade de Nova York. Chanceler em Nova York, em 1918. Ministro de Primeira Classe, pormerecimento, em 1939. Rio de Janeiro, em 1960.

  • 46

    material quanto na das idias, a ausncia de um foro como esta Assemblia spoderia levar confuso e a conflitos resultantes da falta de um instrumento deconciliao e de sntese pela livre discusso e para decises tomadas em comum.Na medida em que a Assemblia Geral exercer a funo salutar de formar umaopinio pblica, muitos dos problemas que agora nos afligem desaparecero edaro lugar a reas de entendimento entre naes, intensificando portanto acolaborao internacional.

    A Segunda Sesso da Assemblia Geral rene-se em um momento que verdadeiramente existencial; um momento de fortes contradies que afetam osdestinos dos povos; um tempo de tenso e confuso de valores, como os que sempreprecedem a emergncia de um novo perodo na histria. Todas as civilizaespassaram por pocas idnticas antes de adquirirem formas superiores de conscincia.Poderia ser dito que o esprito, em sua busca de ascenso, recorre negociao e oposio, como um propulsor na direo de sua meta mais elevada.

    A desesperana no , portanto, admissvel, pois precisamente em perodosde dvida e tenso, como o presente, que o homem revela as imensaspotencialidades de seu esprito ao ultrapassar obstculos aparentementeintransponveis e adquire uma concepo mais ampla da liberdade.

    Se, por um lado, o nosso mundo tragicamente obscurecido por antagonismose contradies, seus vastos horizontes, por outro,