(o artista plástico colombiano Ale- jandro Obregón, que ... · Tudo parecia maravilhoso até que...

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Sábado 7.12.2013 l Prosa l O GLOBO l 3 O fotógrafo Mauricio Vélez já não se lembra do dia em que sua cabeça se encheu do calor de Macondo, o mesmo que, transformado em borboletas, perseguia seu xará, Mauricio Babilônia, em “Cem anos de solidão”. Foi o amarelo que o uniu — a principio sem que ele mesmo soubesse — a um dos mais belos mo- mentos de amor, respeito e fidelidade ocorri- dos no lar de Gabriel García Márquez. Rosas amarelas, espécie de flores que Merce- des Barcha punha todos os dias, sem falta, na mesa de trabalho do grande escritor, era um amuleto macondiano por excelência, uma es- pécie de testemunha das linhas mais brilhantes que nossa terra já viu. Numa certa manhã, Vélez viu uma imagem clara a sua frente: Gabo carregando um buquê de rosas amarelas para homenagear sua espo- sa. E a oportunidade apareceu. Germán Santa- maría, diretor da revista “Diners”, determinou que fosse elaborada uma edição em homena- gem ao Nobel e pediu que Vélez se encarregas- se da foto da capa. A sorte parecia estar a seu favor... Mas o dia do fechamento da revista chegou, e a foto acabou não sendo feita. A de- cepção, no entanto, levou à determinação, e Vélez continuou perseguindo seu sonho ama- relo — desta vez, para seu livro. Faltavam poucos dias para que a obra “Re- tratos de Sociedad” (publicada este mês) fosse enviada para impressão. Conseguir fazer aquela foto já parecia algo impossível. Apa- rentemente, todos os caminhos tinham se es- gotado, mas a força dos sonhos é capaz de fa- zer milagres. O telefone tocou. Era Dona Yo- landa Pupo de Mogollón, diretora do Museu de Arte Moderna de Cartagena — a última pes- soa a quem eu e Vélez havíamos solicitado me- diação. E ela, em nome da arte e com voz de quem traz boas notícias, disse: — Anota aí o número da Mercedes. Ela está esperando o telefonema do fotógrafo. Aceitou recebê-lo. Euforia! Era isso que gritavam as rosas amare- las que chegaram às minhas mãos com destino marcado: ser parte do retrato sonhado, da ima- gem perseguida, da fotografia de Gabriel García Márquez. O olhar de Vélez antecipava um mila- gre. Cartagena brilhava em seu maior esplen- dor. Tudo parecia maravilhoso até que Dona Yo- landa nos contou sobre “A polaca” . DOÇURA DE UM MENINO Um calafrio percorreu nosso corpo, e eu me en- chi de angustia só de pensar que, graças à ousa- dia de uma polaca silenciosa que se apresenta- va sempre às portas do escritor — estivesse ele no México ou em Cartagena — com um buquê igual ao que eu levava, teria problemas. Mas o bálsamo do sorriso diáfano de uma mu- lata bonachona nos abriu a porta, emitindo a seguinte frase: — Passem e escolham o lugar onde querem fazer a foto. Com dois passos largos quase imprudentes, Mauricio Vélez venceu os degraus da escada à sua frente, enquanto eu me acomodava no ban- co de madeira onde repousava um guarda-chu- vas preto que servia para confirmar as chuvas recentes. A poucos metros de distância, estava o pai de Florentino Ariza. A mulata cândida me guiou até a locação es- colhida por Vélez. O frio na barriga atingiu seu ápice. Entrei na sala, e meus sentidos foram pre- miados como uma visão inesperada, o talento de Obregón (o artista plástico colombiano Ale- jandro Obregón, que morreu em 1992) se mani- festou diante dos meus olhos no mural branco e azul escuro que havia sido retirado de uma casa no centro histórico e levado àquela edificação. Escolhi ficar na esquina mais longe da porta, de pé, abraçada às rosas amarelas como se elas fossem a única razão por eu estar ali. E aconte- ceu o que esperávamos. Sentimos os passos de quem já cumpriu sua tarefa com a Humanidade e, de repente, vimos a figura do criador de Ma- condo. Mauricio Vélez o cumprimentou. Ele res- pondeu e inspecionou a cena ao seu redor, movendo a cabeça. Deu de cara comigo e per- guntou: — Quem é ela? O frio na barriga atingiu o ápice, mas eu resisti e não lhe disse nada. Mauricio respondeu por mim. — Ela veio trazer essas rosas amarelas para o senhor. Meus pés se mexeram na direção dele. Entre- guei as rosas ao neto de Papa Lelo e Mina, ao so- brinho de Tia Pa e aquele que, com a mesma doçura de um menino, seguiu as instruções do fotógrafo. Vélez, em meio a um êxtase criativo, capturou a imagem que hoje comove milhares de pessoas que folheiam o livro “Retratos de So- ciedad” . Gabriel José, como foi chamado em homena- gem ao patrono de sua cidade natal, Aracataca, ou Gabito, como seu irmão Jaime me instruiu a chamá-lo, convidou-me para sentar ao seu lado e disse: — Melhor assim. — O senhor prefere falar com as mulheres? — Sim. É que com as mulheres dá para saber se elas estão bem ou mal. Com os homens, a gente nunca sabe... ENCONTRO DE VELHOS AMIGOS O humor rápido e único de Gabo se manifestou diante de nós, e um mar de gargalhadas povoou o local. Vélez me chama para posar ao lado de nosso interlocutor para que ele pudesse captu- rar uma imagem, e eu me perco na ternura de um olhar que me diz muito mais do que jamais poderia ter esperado... Passam-se alguns minutos, e é o fotógrafo que pede para ser fotografado. O assistente prepara tudo, e aquele encontro de almas fica imortalizado. A cumplicidade salta aos olhos na imagem. Nem parece que haviam passado apenas 105 minutos desde que os dois se co- nheceram. Aquilo lembrava um encontro de velhos amigos. Entrou, então, Dona Mercedes, investida com a doce voz da autoridade. Disse ao marido que, no cômodo ao lado, seus sobrinhos o espera- vam. Ele fica de pé, mostrando a elegância do Caribe que nunca perdeu. Usa mocassins bran- cos que lembram Barranquilla e uma guayabera perfeitamente engomada, confirmando que tem quem o cuide, admire e ame. Saímos daquele lugar com a alma cheia de borboletas amarelas. Eram 12h45m do sábado 25 de maio de 2013. “A polaca” não estava per- to, e nós havíamos compartilhado mais de uma hora com um ser de outro mundo, uma alma de Aracataca que, nos anais da História, é e será conhecido como o Nobel de Literatura de 1982, mas que, graças à imagem de Mauri- cio Vélez, também será lembrado como Gabi- to, o escritor das rosas amarelas. l O escritor das rosas amarelas Jornalista relembra o encontro mágico com García Márquez numa das mais recentes sessões de fotos do autor colombiano ESPECIAL MARÍA DEL PILAR RODRÍGUEZ FOTO PARA CAPA DO LIVRO “RETRATOS DE SOCIEDAD”, DE MAURÍCIO VELEZ, PUBLICADO POR MARCA PAÍS COLOMBIA Encontro. Acima, a imagem do escritor, feita em maio de 2013 por Maurício Vélez, para ilustrar a capa do livro “Retratos de Sociedad”“, recém-lançado na Colômbia. Ao lado, o fotógrafo reverencia Gabo após a sessão María del Pilar Rodríguez é curadora de arte e es- critora, e escreveu este texto especialmente para o jornal “El Tiempo” , da Colômbia, membro do GDA (Grupo de Diários América) E m 25 de junho de 2006, os 22 mil habitan- tes da pequena Aracataca, cidade situada no extremo norte da Colômbia, foram con- vocados para participar de um referendo. A per- gunta proposta ao povo pelo então prefeito, Pe- dro Sánchez Rueda, era simples: “A cidade deve passar a se chamar Aracataca-Macondo?” . Mas, o que tinha sido pensado para servir de homena- gem ao filho mais nobre daquela localidade — o escritor e jornalista Gabriel García Márquez — acabou revelando o desdém com que a cidade o trata. Apenas 3.596 pessoas se dignaram a ir às ur- nas, e o plebiscito foi cancelado devido à forte abstenção. Fundada em 1885, Aracataca vive, desde sempre, sob intenso calor. Quarenta e um graus é uma constante tão presente quanto a pobreza de seu povo. Quem circula por suas ruas vê muitas delas sem calçamento e escuta queixas aqui e ali sobre a escassez de hospitais. Em 2011, os adolescentes de Cataca (como é carinhosamente conhecida a cida- de) tiveram as piores notas no exame nacional que dá acesso às universidades. Na terra do Nobel de Literatura da Colômbia, escrever corretamente em espanhol continua sendo problema crônico. Foi naquele calor que Gabo nasceu, em 1927, e onde morou até completar oito anos. Foi lá tam- bém em que se inspirou para criar a fictícia cidade de Macondo e todos os personagens de sua obra- prima “Cem anos de solidão”. É verdade que, quando menino, ele circulava por uma Aracataca ainda pujante. Tinha uma filial da multinacional americana United Fruit Company (que cultivava bananas na região) e salas de cinema que ofereci- am dois ou três filmes diferentes por semana. Mas a empresa faliu na década de 1970 e dei- xou a cidade imersa numa profunda depressão econômica e envolta em violência. Não fosse o berço de Gabriel García Márquez e Aracataca certamente teria hoje uma posição ainda me- nos importante no mapa-múndi. ‘INGRATO’ E ‘MEXICANO’ Mas nem por isso a cidade é grata ao autor. Em rodas de jovens cataquenses, falar sobre os livros de García Márquez é algo fora de moda, apenas para velhos. Foram adolescentes, aliás, que há meses vandalizaram o mural que dá as boas-vin- das à Aracataca e que mostra o rosto do escritor. Por ali, não se lê Gabo. Nem no museu ergui- do em sua homenagem — reproduzindo a ca- sa de seu avô, onde ele nasceu — há obras suas à venda. E uma reportagem recente do jornal “El país de Calí” trouxe à tona uma informação curiosa: em Aracataca, livros de Gabo são pi- rateados para atender aos turistas. Para os poucos cataquenses que topam falar de Gabo, ele é hoje um “mexicano” — em referência ao fato de ter se mudado para a capital do México nos anos 1960 e de não pisar por ali desde 2007. Também há quem o classifique como “ingrato” — por supostamente não ter contribuído para o de- senvolvimento da cidade ou a diminuição da po- breza de seu povo. Porém, em sua mais forte defesa, saltam es- critores e jornalistas colombianos como Al- berto Salcedo Ramos: — Algumas pessoas aqui na Colômbia tem o hábito de exigir dos famosos aquilo que deveri- am exigir do Estado. García Márquez não tem porque solucionar o atraso social de Aracataca. Isso é uma tarefa para o país — pontua Salcedo Ramos, em entrevista por e-email. — Através de seus textos, García Márquez já deu muito a seu povo. Tornou-o visível e o universalizou. Não se pode pedir mais a um escritor. l Desdém pelo filho mais ilustre Aracataca, que inspirou a mítica Macondo, ignora Gabo e, para atender a turistas, pirateia seus livros Cristina Tardáguila FERNANDO VERGARA/AP/4-01-2006 Aracataca. Painel lembra Gabo, ignorado pela maioria MAURICIO VÉLEZ/DIVULGAÇÃO User: Llvieira Time: 12-04-2013 20:30 Product: OGloboProsaeVerso PubDate: 07-12-2013 Zone: Nacional Edition: 1 Page: PAGINA_C Color: C M Y K

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Sábado 7 .12 .2013 l Prosa l O GLOBO l 3

Ofotógrafo Mauricio Vélez já

não se lembra do dia em quesua cabeça se encheu do calorde Macondo, o mesmo que,transformado em borboletas,perseguia seu xará, Mauricio

Babilônia, em “Cem anos de solidão”. Foi oamarelo que o uniu — a principio sem que elemesmo soubesse — a um dos mais belos mo-mentos de amor, respeito e fidelidade ocorri-dos no lar de Gabriel García Márquez.

Rosas amarelas, espécie de flores que Merce-des Barcha punha todos os dias, sem falta, namesa de trabalho do grande escritor, era umamuleto macondiano por excelência, uma es-pécie de testemunha das linhas mais brilhantesque nossa terra já viu.

Numa certa manhã, Vélez viu uma imagemclara a sua frente: Gabo carregando um buquêde rosas amarelas para homenagear sua espo-sa. E a oportunidade apareceu. Germán Santa-maría, diretor da revista “Diners”, determinouque fosse elaborada uma edição em homena-gem ao Nobel e pediu que Vélez se encarregas-se da foto da capa. A sorte parecia estar a seufavor... Mas o dia do fechamento da revistachegou, e a foto acabou não sendo feita. A de-cepção, no entanto, levou à determinação, eVélez continuou perseguindo seu sonho ama-relo — desta vez, para seu livro.

Faltavam poucos dias para que a obra “Re-tratos de Sociedad” (publicada este mês) fosseenviada para impressão. Conseguir fazeraquela foto já parecia algo impossível. Apa-rentemente, todos os caminhos tinham se es-gotado, mas a força dos sonhos é capaz de fa-zer milagres. O telefone tocou. Era Dona Yo-landa Pupo de Mogollón, diretora do Museude Arte Moderna de Cartagena — a última pes-soa a quem eu e Vélez havíamos solicitado me-diação. E ela, em nome da arte e com voz dequem traz boas notícias, disse:

— Anota aí o número da Mercedes. Ela estáesperando o telefonema do fotógrafo. Aceitourecebê-lo.

Euforia! Era isso que gritavam as rosas amare-las que chegaram às minhas mãos com destinomarcado: ser parte do retrato sonhado, da ima-gem perseguida, da fotografia de Gabriel GarcíaMárquez. O olhar de Vélez antecipava um mila-gre. Cartagena brilhava em seu maior esplen-dor. Tudo parecia maravilhoso até que Dona Yo-landa nos contou sobre “A polaca”.

DOÇURA DE UM MENINOUm calafrio percorreu nosso corpo, e eu me en-chi de angustia só de pensar que, graças à ousa-dia de uma polaca silenciosa que se apresenta-va sempre às portas do escritor — estivesse eleno México ou em Cartagena — com um buquêigual ao que eu levava, teria problemas.

Mas o bálsamo do sorriso diáfano de uma mu-lata bonachona nos abriu a porta, emitindo aseguinte frase:

— Passem e escolham o lugar onde queremfazer a foto.

Com dois passos largos quase imprudentes,Mauricio Vélez venceu os degraus da escada à

sua frente, enquanto eu me acomodava no ban-co de madeira onde repousava um guarda-chu-vas preto que servia para confirmar as chuvasrecentes. A poucos metros de distância, estava opai de Florentino Ariza.

A mulata cândida me guiou até a locação es-colhida por Vélez. O frio na barriga atingiu seuápice. Entrei na sala, e meus sentidos foram pre-miados como uma visão inesperada, o talentode Obregón (o artista plástico colombiano Ale-jandro Obregón, que morreu em 1992) se mani-festou diante dos meus olhos no mural branco eazul escuro que havia sido retirado de uma casano centro histórico e levado àquela edificação.

Escolhi ficar na esquina mais longe da porta,de pé, abraçada às rosas amarelas como se elasfossem a única razão por eu estar ali. E aconte-ceu o que esperávamos. Sentimos os passos dequem já cumpriu sua tarefa com a Humanidadee, de repente, vimos a figura do criador de Ma-condo.

Mauricio Vélez o cumprimentou. Ele res-pondeu e inspecionou a cena ao seu redor,movendo a cabeça. Deu de cara comigo e per-guntou:

— Quem é ela?O frio na barriga atingiu o ápice, mas eu resisti

e não lhe disse nada. Mauricio respondeu pormim.

— Ela veio trazer essas rosas amarelas para osenhor.

Meus pés se mexeram na direção dele. Entre-guei as rosas ao neto de Papa Lelo e Mina, ao so-brinho de Tia Pa e aquele que, com a mesmadoçura de um menino, seguiu as instruções dofotógrafo. Vélez, em meio a um êxtase criativo,capturou a imagem que hoje comove milharesde pessoas que folheiam o livro “Retratos de So-ciedad”.

Gabriel José, como foi chamado em homena-gem ao patrono de sua cidade natal, Aracataca,ou Gabito, como seu irmão Jaime me instruiu achamá-lo, convidou-me para sentar ao seu ladoe disse:

— Melhor assim.— O senhor prefere falar com as mulheres?— Sim. É que com as mulheres dá para saber

se elas estão bem ou mal. Com os homens, agente nunca sabe...

ENCONTRO DE VELHOS AMIGOSO humor rápido e único de Gabo se manifestoudiante de nós, e um mar de gargalhadas povoouo local. Vélez me chama para posar ao lado denosso interlocutor para que ele pudesse captu-rar uma imagem, e eu me perco na ternura deum olhar que me diz muito mais do que jamaispoderia ter esperado...

Passam-se alguns minutos, e é o fotógrafoque pede para ser fotografado. O assistenteprepara tudo, e aquele encontro de almas ficaimortalizado. A cumplicidade salta aos olhosna imagem. Nem parece que haviam passadoapenas 105 minutos desde que os dois se co-nheceram. Aquilo lembrava um encontro develhos amigos.

Entrou, então, Dona Mercedes, investida coma doce voz da autoridade. Disse ao marido que,no cômodo ao lado, seus sobrinhos o espera-vam. Ele fica de pé, mostrando a elegância doCaribe que nunca perdeu. Usa mocassins bran-cos que lembram Barranquilla e uma guayaberaperfeitamente engomada, confirmando quetem quem o cuide, admire e ame.

Saímos daquele lugar com a alma cheia deborboletas amarelas. Eram 12h45m do sábado25 de maio de 2013. “A polaca” não estava per-to, e nós havíamos compartilhado mais deuma hora com um ser de outro mundo, umaalma de Aracataca que, nos anais da História, ée será conhecido como o Nobel de Literaturade 1982, mas que, graças à imagem de Mauri-cio Vélez, também será lembrado como Gabi-to, o escritor das rosas amarelas. l

O escritor das rosas amarelasJornalista relembra o encontro mágico com García Márquez numa das mais recentes sessões de fotos do autor colombiano

ESPECIAL

MARÍA DEL PILAR RODRÍGUEZ

FOTO PARA CAPA DO LIVRO “RETRATOS DE SOCIEDAD”, DE MAURÍCIO VELEZ, PUBLICADO POR MARCA PAÍS COLOMBIA

Encontro.Acima, aimagem doescritor, feita emmaio de 2013por MaurícioVélez, parailustrar a capado livro“Retratos deSociedad”“,recém-lançadona Colômbia. Aolado, o fotógraforeverencia Gaboapós a sessão

María del Pilar Rodríguez é curadora de arte e es-critora, e escreveu este texto especialmente para ojornal “El Tiempo”, da Colômbia, membro do GDA(Grupo de Diários América)

Em 25 de junho de 2006, os 22 mil habitan-tes da pequena Aracataca, cidade situadano extremo norte da Colômbia, foram con-

vocados para participar de um referendo. A per-gunta proposta ao povo pelo então prefeito, Pe-dro Sánchez Rueda, era simples: “A cidade devepassar a se chamar Aracataca-Macondo?”. Mas, oque tinha sido pensado para servir de homena-gem ao filho mais nobre daquela localidade — oescritor e jornalista Gabriel García Márquez —acabou revelando o desdém com que a cidade otrata. Apenas 3.596 pessoas se dignaram a ir às ur-nas, e o plebiscito foi cancelado devido à forteabstenção.

Fundada em 1885, Aracataca vive, desde sempre,sob intenso calor. Quarenta e um graus é umaconstante tão presente quanto a pobreza de seupovo. Quem circula por suas ruas vê muitas delassem calçamento e escuta queixas aqui e ali sobre aescassez de hospitais. Em 2011, os adolescentes deCataca (como é carinhosamente conhecida a cida-de) tiveram as piores notas no exame nacional quedá acesso às universidades. Na terra do Nobel deLiteratura da Colômbia, escrever corretamente emespanhol continua sendo problema crônico.

Foi naquele calor que Gabo nasceu, em 1927, e

onde morou até completar oito anos. Foi lá tam-bém em que se inspirou para criar a fictícia cidadede Macondo e todos os personagens de sua obra-prima “Cem anos de solidão”. É verdade que,quando menino, ele circulava por uma Aracatacaainda pujante. Tinha uma filial da multinacionalamericana United Fruit Company (que cultivavabananas na região) e salas de cinema que ofereci-am dois ou três filmes diferentes por semana.

Mas a empresa faliu na década de 1970 e dei-xou a cidade imersa numa profunda depressãoeconômica e envolta em violência. Não fosse oberço de Gabriel García Márquez e Aracatacacertamente teria hoje uma posição ainda me-nos importante no mapa-múndi.

‘INGRATO’ E ‘MEXICANO’Mas nem por isso a cidade é grata ao autor. Emrodas de jovens cataquenses, falar sobre os livrosde García Márquez é algo fora de moda, apenaspara velhos. Foram adolescentes, aliás, que hámeses vandalizaram o mural que dá as boas-vin-das à Aracataca e que mostra o rosto do escritor.

Por ali, não se lê Gabo. Nem no museu ergui-do em sua homenagem — reproduzindo a ca-sa de seu avô, onde ele nasceu — há obras suas

à venda. E uma reportagem recente do jornal“El país de Calí” trouxe à tona uma informaçãocuriosa: em Aracataca, livros de Gabo são pi-rateados para atender aos turistas.

Para os poucos cataquenses que topam falar deGabo, ele é hoje um “mexicano” — em referênciaao fato de ter se mudado para a capital do Méxiconos anos 1960 e de não pisar por ali desde 2007.Também há quem o classifique como “ingrato” —por supostamente não ter contribuído para o de-senvolvimento da cidade ou a diminuição da po-breza de seu povo.

Porém, em sua mais forte defesa, saltam es-critores e jornalistas colombianos como Al-berto Salcedo Ramos:

— Algumas pessoas aqui na Colômbia tem ohábito de exigir dos famosos aquilo que deveri-am exigir do Estado. García Márquez não temporque solucionar o atraso social de Aracataca.Isso é uma tarefa para o país — pontua SalcedoRamos, em entrevista por e-email. — Através deseus textos, García Márquez já deu muito a seupovo. Tornou-o visível e o universalizou. Não sepode pedir mais a um escritor. l

Desdém pelo filho mais ilustreAracataca, que inspirou a mítica Macondo, ignora Gabo e, para atender a turistas, pirateia seus livros

Cristina Tardáguila

FERNANDO VERGARA/AP/4-01-2006

Aracataca. Painel lembra Gabo, ignorado pela maioria

MAURICIO VÉLEZ/DIVULGAÇÃO

User: Llvieira Time: 12-04-2013 20:30 Product: OGloboProsaeVerso PubDate: 07-12-2013 Zone: Nacional Edition: 1 Page: PAGINA_C Color: CMYK