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37ª Reunião Nacional da ANPEd 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC Florianópolis O ARTESANATO ENQUANTO TRABALHO NA PERSPECTIVA DO FEMINISMO Márcia Alves da Silva UFPel Agência Financiadora: CNPq (de 2012 a 2013) e PROEXT (2014) Resumo Este trabalho desenvolve algumas reflexões que se referem a um conjunto de experiências investigativas que a autora vem desenvolvendo desde 2006 com mulheres e que tem como objetivo investigar o processo de construção das identidades de gênero a partir do resgate de memórias das participantes, tendo o artesanato como uma ferramenta metodológica. Ao longo desse período, tem-se trabalhado com diversos públicos femininos, desde mulheres organizadas em cooperativas de produção e comercialização de artesanato, mulheres agricultoras, catadoras, professoras, até acadêmicas de cursos de licenciatura, na intenção de incorporar essa discussão aos processos de formação docente. Basicamente levantou-se as seguintes questões investigativas: a artesanato pode ser uma ferramenta para um processo de emancipação feminina no que se refere ao mundo do trabalho? Dessa forma, a proposta se coloca na tentativa de trazer uma contribuição a esse debate, problematizando o mundo do trabalho feminino a partir da implementação de oficinas de artesanato. Esses espaços são construídos intencionalmente e se constituem em um campo de pesquisa. Palavras-chave: Mulheres; Gênero; Artesanato; Trabalho Feminino. O ARTESANATO ENQUANTO TRABALHO NA PERSPECTIVA DO FEMINISMO Introdução Este trabalho refere-se a um conjunto de experiências investigativas que a autora vem desenvolvendo desde 2006 com mulheres e que tem como objetivo investigar o

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37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

O ARTESANATO ENQUANTO TRABALHO NA PERSPECTIVA DO

FEMINISMO

Márcia Alves da Silva – UFPel

Agência Financiadora: CNPq (de 2012 a 2013) e PROEXT (2014)

Resumo

Este trabalho desenvolve algumas reflexões que se referem a um conjunto de experiências

investigativas que a autora vem desenvolvendo desde 2006 com mulheres e que tem como

objetivo investigar o processo de construção das identidades de gênero a partir do resgate

de memórias das participantes, tendo o artesanato como uma ferramenta metodológica. Ao

longo desse período, tem-se trabalhado com diversos públicos femininos, desde mulheres

organizadas em cooperativas de produção e comercialização de artesanato, mulheres

agricultoras, catadoras, professoras, até acadêmicas de cursos de licenciatura, na intenção

de incorporar essa discussão aos processos de formação docente. Basicamente levantou-se

as seguintes questões investigativas: a artesanato pode ser uma ferramenta para um

processo de emancipação feminina no que se refere ao mundo do trabalho? Dessa forma, a

proposta se coloca na tentativa de trazer uma contribuição a esse debate, problematizando o

mundo do trabalho feminino a partir da implementação de oficinas de artesanato. Esses

espaços são construídos intencionalmente e se constituem em um campo de pesquisa.

Palavras-chave: Mulheres; Gênero; Artesanato; Trabalho Feminino.

O ARTESANATO ENQUANTO TRABALHO NA PERSPECTIVA DO

FEMINISMO

Introdução

Este trabalho refere-se a um conjunto de experiências investigativas que a autora

vem desenvolvendo desde 2006 com mulheres e que tem como objetivo investigar o

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processo de construção das identidades de gênero a partir do resgate de memórias das

participantes, tendo o artesanato como uma ferramenta metodológica.

Ao longo desse período, tem-se trabalhado com diversos públicos femininos,

desde grupos de mulheres organizadas em cooperativas de produção e comercialização de

artesanato, mulheres agricultoras, catadoras, professoras, até acadêmicas de cursos de

licenciatura, na intenção de incorporar essa discussão aos processos de formação docente.

Basicamente levantam-se as seguintes questões investigativas: o artesanato pode ser uma

ferramenta para um processo de emancipação feminina no que se refere ao mundo do

trabalho? Dessa forma, a proposta se coloca na tentativa de trazer uma contribuição a esse

debate, problematizando o mundo do trabalho feminino a partir da implementação de

oficinas de artesanato. Esses espaços são construídos intencionalmente e se constituem em

um campo de pesquisa.

A proposta é interdisciplinar e se ancora, especialmente, na teoria feminista e nos

estudos da área de educação e trabalho onde o artesanato é visto aqui como uma importante

ferramenta para a abordagem do universo feminino, onde as oficinas se materializam como

espaços de construção coletiva e de trocas de experiências de vida onde, aos poucos, a

intenção é que as mulheres envolvidas valorizem o que fazem, reconheçam o artesanato

como trabalho e não como algo 'menor' e que, para os grupos mais vulneráveis, também se

materialize como uma possibilidade de geração de renda.

Situamos como origem dessa caminhada a pesquisa realizada pela autora durante a

realização do curso de Doutorado em Educação na UNISINOS, pesquisa realizada com

mulheres artesãs vinculadas a uma cooperativa de produção artesanal. Pesquisa esta que

começou em 2006 sendo defendida em março de 2010. A pesquisa foi publicada por editora

universitária mais adiante, em 2012.

A partir de 2011, após a realização do curso de Doutorado e retomando as atividades

de docente na Universidade de origem, a autora começa a desenvolver a pesquisa

denominada Artesã e Professora: aproximações entre trabalho feminino e docência, onde

se começa a realizar as oficinas de artesanato, a princípio nos espaços da própria

instituição. Entre os anos de 2012 e 2013, essa pesquisa obteve financiamento do CNPq, a

partir da aprovação do mesmo no Edital Universal. Dessa forma, com subsídios, foi

possível comprarmos materiais para as oficinas, além de equipamentos, como máquina de

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costura, overloque, etc. Neste período a pesquisa vai crescendo, tanto no que se refere à

produção acadêmica como no aumento do público interessado em participar.

A iniciativa também articula a pesquisa com a extensão, pois se constitui espaços

onde as oficinas de artesanato acontecem. Dessa forma, nasce a proposta de Programa de

Extensão denominado Gênero, educação e arte: artesania, arte popular e formação em

oficinas de criação coletiva, que foi contemplada no Edital Proext1, tendo financiamento

durante o ano de 2014. Neste período foi possível a contratação de 18 bolsistas, que

atuaram em oficinas de artesanato com diversos grupos de mulheres, no qual algumas

experiências serão abordadas neste texto. Também foi possível a aquisição de diversos

materiais para a execução das oficinas de artesanato.

Histórias de vida: as experiências auto(biográficas) como proposta metodológica

A pesquisa em Educação vem ampliando suas referências metodológicas a partir de

estudos baseados em histórias de vida escritas, em grande parte, com base em depoimentos

com pessoas pesquisadas. A autobiografia como proposta metodológica de pesquisa é de

grande importância para o campo educacional. E ao aproximar autobiografia e estudos

feministas constatamos o longo caminho que as mulheres ainda têm a percorrer para

sistematizar suas experiências de vida, de trabalho e de aprendizagem.

As histórias de vida são importantes em nossa proposta por visibilizar as trajetórias

das mulheres envolvidas. São nessas histórias que se encontram as raízes dos seus fazeres e

de suas aprendizagens, tanto no artesanato como no que se refere aos papéis sociais de

gênero que incorporam em seus cotidianos.

Trazemos aqui a importância metodológica da obra de Franco Ferrarotti (2014),

que há várias décadas faz a defesa das histórias de vida no campo das ciências sociais.

Apenas em 2014 sua obra História e Histórias de Vida foi traduzida para nossa língua.

1 O Edital Proext é o resultado de uma parceria do Ministério da Educação do país com mais treze outros

ministérios e quatro Secretarias do governo federal, com o objetivo de apoiar iniciativas de extensão

acadêmicas. Atualmente é o maior financiador de projetos e programas de extensão do país, com um

montante de recursos aplicados na extensão brasileira como nunca vistos. Uma das exigências do Edital é que

seja feita a devida articulação da extensão com a pesquisa acadêmica.

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Quando Ferrarotti critica a história tradicional, ele defende uma historicidade não

historicista, que significa uma ruptura com a concepção conservadora de história enquanto

uma sucessão temporal de acontecimentos, segundo o autor

[...] orientada para a suposta verdade de um sentido geral, monopolizado

pelas elites, depositárias exclusivas de valor. A história de vida não se

apresenta mais como um conjunto de elementos para ilustrar o que já é

conhecido, nem como um acréscimo facultativo, sob forma qualitativa, de

resultados incontestes de pesquisa, alcançados por meio de técnicas de

padronização da medida exata. (FERRAROTTI, 2014, p. 51).

Defende o que denominou de história vista de baixo, como sendo a

[...] história da cotidianidade, inventário e interpretação das práticas de

vida e das tradições, não revividas como puro folclore popular, mas

repensadas de maneira crítica como visões psicologicamente

tranquilizadoras e, ao mesmo tempo, como constelações de valores

cognitivos interligados e confirmados pela experiência da vida de cada

dia. (FERRAROTTI, 2014, p.56).

A partir da valorização do cotidiano das pessoas, e na iniciativa de trazer essas

experiências concretas para a prática da pesquisa acadêmica, o autor levanta outro

questionamento: De que maneira a subjetividade inerente à autobiografia pode tornar-se um

conhecimento científico? (p.70). Ferrarotti encara esse desafio epistemológico afirmando

que cada narrativa relata uma prática humana, mas como admite que “a essência do homem

é o conjunto das relações sociais” (usa Marx na 6ᵃ Tese sobre Feuerbach), chega a

conclusão de que qualquer prática humana é representativa de todo o contexto social, pois

Uma vida é uma prática que se apropria das relações sociais (as estruturas

sociais), as interioriza e as reconverte em estruturas psicológicas através

de sua atividade de desestruturação-reestruturação. Cada vida humana

revela-se, mesmo em seus aspectos mais generalizáveis, como a síntese

vertical de uma história social. Cada comportamento, cada ato individual

aparece, em suas formas mais singulares, como a síntese horizontal de

uma estrutura social. (FERRAROTTI, 2014, p.70)

Dessa forma, assume o embate com as concepções quantitativas de pesquisa, que

se alicerçaram historicamente nas concepções naturalista e biologicistas de ciência. Nessa

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perspectiva desenvolveu o conceito de dialética do social, que consiste na relação

complexa entre as condições objetivas e as experiências vividas, pois o contexto estrutural e

as condições objetivas não podem ser vistos de forma isolada do contexto vivido.

(FERRAROTTI, 2014, p.61).

As histórias de vida são trazidas à tona através das narrativas, que se constituem

em experiências vividas. Sobre as experiências, trago a contribuição da obra de Larrosa

(2014), que é brilhante no que se refere às reflexões que suscita sobre as experiências das

pessoas, algo que a academia historicamente apartou. Larrosa propõe se pensar a educação

a partir da experiência. Para isso ele procura caracterizar o que constrói o que

denominamos de experiência. O autor começa caracterizando experiência como sendo “o

que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. [...] Nunca se passaram tantas coisas,

mas a experiência é cada vez mais rara” (LARROSA, 2014, p.18). Dessa forma, para se

chegar ao conceito, Larrosa procura não caracterizar o que a experiência é, mas sim o que

ela não é. Para isso, ele desenvolve alguns aspectos, que são: primeiramente o excesso de

informação, e a informação não é experiência. Inclusive Larrosa faz o alerta da importância

de se separar informação de experiência.

O segundo aspecto nos alerta para o excesso de opinião, o que não nos aproxima

das experiências, pois o sujeito da modernidade se coloca numa imposição de ter que ter

uma opinião. Dessa forma, além de se somar informação também se opina sobre as coisas,

o que também não caracteriza a experiência.

Em terceiro lugar, a verdadeira experiência se torna rara devido à falta de tempo

pois, cada vez mais, os acontecimentos ocorrem de forma muito rápida, o que impede as

pessoas de realmente viverem as experiências, pois

[...] a velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão

pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem a

conexão significativa entre os acontecimentos. Impedem também a

memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por

outro que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar

qualquer vestígio. (LARROSA, 2014, p.22)

Em quarto lugar, Larrosa nos alerta para que não se confunda experiência com

trabalho, pois a modernidade separou teoria de prática, e a experiência tem sido relacionada

à prática do trabalho.

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Assim, o autor caracteriza um saber que, segundo ele, se distingue dos saberes

científicos e de informação, mas que ele defende como sendo de fundamental importância

sua incorporação no mundo acadêmico, que trata-se do saber da experiência. Para ele “o

saber da experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana”

(LARROSA, 2014, p. 30).

Dessa forma, o saber da experiência não é algo externo a nós, mas algo que está

intrínseco às nossas singularidades de estarmos no mundo. Assim, mesmo que os

acontecimentos sejam comuns a muitas pessoas, as experiências são singulares a cada um.

Nessa perspectiva, percebemos o biográfico “como uma categoria da experiência

que permite ao indivíduo, nas condições de sua inscrição sócio-histórica, integrar,

estruturar, interpretar as situações e os acontecimentos vividos” (DELORY-

MOMBERGER, 2008, p.26). No entanto, assim como Ferrarotti (2014), a autora nos alerta

que essas experiências humanas não são, de forma alguma, experiências individuais e

espontâneas, pois elas “trazem a marca de sua inscrição histórica e cultural e têm origem

nos modelos de figuração narrativa e nas formas de relação do indivíduo consigo mesmo e

com a coletividade, elaborados pelas sociedades nas quais se inscrevem” (DELORY-

MOMBERGER, 2008, p.27).

No prefácio à edição em língua portuguesa do livro de Ferrarotti (2014), escrito

por Delory-Momberger, ela alerta que:

Ao considerar que cada ser humano como „a síntese individualizada e

ativa de uma sociedade‟, como „a reapropriação singular do universal

social e histórico que o rodeia‟; ao definir cada narrativa biográfica como

„um ato, a totalização sintética de experiências vividas e de uma interação

social‟, Franco Ferrarotti afirma a possibilidade de „conhecer o social a

partir da especificidade irredutível de uma práxis individual‟, de „ler uma

sociedade por meio de uma biografia‟. (DELORY-MOMBERGER apud

FERRAROTTI, 2014, p.21)

Delory-Momberger (2008), em uma de suas obras, denomina a metodologia de

pesquisa-formação que desenvolve como ateliê biográfico de projeto. Adaptando essa ideia

para nossa experiência de projeto desenvolvemos o conceito de ateliê biográfico de

artesania, nos referindo aos momentos coletivos de produção artesanal.

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Os ateliês biográficos de artesania dizem respeito às produções artesanais

materializadas em oficinas que possibilitam a troca de experiências no que se refere às

aprendizagens em artesanato, possibilitando, dessa forma, momentos de trocas de vivências

entre os dois grupos participantes. Essa iniciativa surge com a intenção de valorizar e

assumir a incorporação dessas atividades produtivas na constituição das identidades

femininas em questão. Incorpora-se na perspectiva de valorização das experiências

concretas de trabalho das mulheres. Dessa forma, percebemos os “ateliês biográficos de

artesania” como a materialização de um espaço que permita aos seus integrantes explorar e

criar, através do processo de formação, constituindo a “invenção de si” num projeto

formador de suas vidas. Essa construção é parte constituinte das biografias, concretizando

outra ferramenta, além da oralidade e da escrita, para resgatar as histórias de vida.

Gênero, trabalho e artesanato

Os estudos de gênero têm buscado resgatar o trabalho das mulheres, incorporando

aspectos relativos às suas identidades que, historicamente, foram apartados do mundo

acadêmico. Percebemos o artesanato, enquanto trabalho manual, nessa perspectiva.

Portanto, o trabalho artesanal compõe as trajetórias de vidas, do universo das mulheres,

pois se trata de um conhecimento apreendido ao longo da vida dessas pessoas.

O uso de narrativas nas pesquisas em educação tem permitido uma aproximação

com essas trajetórias vividas, mas geralmente com o uso de palavras, tanto faladas como

escritas. Mesmo assim, muitas vezes, o que pensam e sentem fica obscurecido na academia,

já que a palavra nem sempre consegue captar uma diversidade de elementos, tanto estéticos

como éticos. Enfim, aspectos como a imaginação, a criatividade, a subjetividade e a

afetividade podem não ser tão visíveis aos pesquisadores que utilizam a palavra como única

ferramenta investigativa.

Dessa forma podemos nos perguntar: Até que ponto a academia incorpora as

mulheres que estão fora dos seus limites, mas que estão no mundo produzindo

conhecimento e experiência? Nesse sentido, os estudos feministas tem contribuído na

insistência de lutar para que a subjetividade seja incluída nas pesquisas acadêmicas em

geral.

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Penso que abordar a temática do trabalho feminino remete à necessidade de

definirmos a concepção de trabalho a qual defendemos. Isso se deve ao fato de que as

concepções tradicionais sobre trabalho formal e/ou mercado de trabalho não dão conta de

uma diversidade de atividades historicamente exercidas por mulheres e que, muitas vezes,

„escapam‟ das estatísticas oficiais. Dessa forma, há a necessidade de ressignificarmos esse

conceito, incorporando e nos apropriando de elementos advindos de uma produção

específica com esse intuito, especialmente oriundos da teoria feminista. Trata-se de um

campo de estudos que está longe de esgotar sua produção, mas que aponta vários caminhos

promissores.

Podemos afirmar que as mulheres sempre trabalharam, embora seu trabalho tenha

sido desvalorizado pelo capitalismo, que passa a valorizar as atividades que geram mais-

valia e que são executadas em espaços públicos, menosprezando-se o espaço doméstico. O

conceito de divisão sexual do trabalho abarca as atividades exercidas historicamente por

mulheres e, além disso, reconhece que a divisão social do trabalho é marcada pelas

diferenças de gênero, pois “o contexto em que vivem homens e mulheres não é o resultado

de um „destino‟ biológico, mas sim de construções sociais” (SILVA, 2011, p. 115).

O conceito de divisão sexual do trabalho localizado na lógica da teoria feminista

tem sido um importante suporte teórico que possibilita problematizar e teorizar sobre a

relação entre gênero e trabalho. Para isso, é fundamental perceber que o contexto em que

vivem homens e mulheres não é o resultado de um destino biológico, como historicamente

tentou-se supor, mas sim oriundo de construções sociais. Portanto, homens e mulheres

formam dois grupos sociais que estão engajados em uma relação social específica, que se

concretiza nas relações sociais de sexo. Estas relações possuem uma base material, que é o

trabalho, e que se revela através da divisão social do trabalho entre os sexos, comumente

denominada de divisão sexual do trabalho.

Portanto, o conceito de divisão sexual do trabalho é central na abordagem do

trabalho feminino. Sobre a origem desse conceito, Danièle Kergoat (2003) salienta que essa

noção foi primeiro utilizada por etnólogos para designar uma divisão “complementar” das

tarefas entre os homens e as mulheres nas sociedades que eles estudavam. Refere-se a Lévi-

Strauss como sendo um expoente dessa ideia e que fez dela o instrumento explicativo da

estruturação da sociedade em família. No entanto, a autora afirma que foram as

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antropólogas feministas, as primeiras que lhe deram um conteúdo novo, demonstrando que

ela traduzia não uma complementaridade de tarefas, mas uma relação de poder dos homens

sobre as mulheres.

A compreensão de que homens e mulheres pertencentes as mais diversas sociedades

se dediquem a diferentes atividades tem sido compreendido como inerente à diferenciação

sexual. Essa compreensão tem sido relacionada com especificidades físicas, intelectuais,

emocionais, de acordo com cada sexo. É, portanto, dessa maneira que as ideologias sexistas

têm compreendido a relação sexo e trabalho. A homologação das atividades exercidas pelas

mulheres como naturais leva a definir a essência de qualquer trabalho feminino como

sexual, biológico, portanto não social. Essa concepção a-histórica e naturalista tem anulado

uma diversidade de trabalhos exercidos pelas mulheres.

A pesquisadora Cristina Carrasco (2003) afirma que o tempo de trabalho tem se

constituído na contemporaneidade como uma nova categoria a ser estudada e analisada.

Para ela, isso se deve a dois fatores, que são a crescente participação das mulheres no

mercado de trabalho (pois isso traz à tona a tensão entre os tempos de cuidados e as

exigências do trabalho mercantil) e, ainda, a flexibilização do tempo de trabalho imposto

pelas empresas (que exige cada vez mais mobilidade e disponibilidade dos(as)

trabalhadores(as).

Dessa forma, Carrasco (2003) usa o tempo como categoria de análise importante

para se refletir sobre o trabalho feminino e defende o que denomina de paradigma da

sustentabilidade da vida, abordando diversos tempos e trabalhos femininos numa

perspectiva histórica. Enquanto existia o tipo tradicional de família aliado com o modelo

fordista de produção, onde os trabalhos de mulheres e homens apareciam como paralelos e

independentes, os trabalhos das mulheres ficavam invisíveis. Mas, quando as mulheres

passaram a realizar os dois trabalhos (produtivos e reprodutivos) e a viver a enorme tensão

da superposição dos tempos, o conflito de interesses entre os diferentes trabalhos se tornou

visível.

Carrasco (2003) propõe a hipótese de que os processos de reprodução e vida tem

sido resolvidos sempre, fundamentalmente, a partir dos espaços domésticos privados dos

lares. Pelo menos até que a casa medieval – que se constituía em centro de produção,

consumo e vida – deixa de ser autosuficiente e começa a produção para o mercado. No

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entanto, mesmo com os processos de reprodução da vida humana sendo cada vez mais

invisíveis em prol da industrialização e do capitalismo, não se alterou a função básica dos

lares como centros de gestão, organização e cuidado da vida.

As necessidades humanas possuem duas dimensões, uma objetiva, vinculada mais

às necessidades biológicas e outra subjetiva, que inclui afetos, cuidados, a segurança

psicológica, a criação de relações e laços humanos, etc. Nos espaços públicos, onde se dão

as relações de troca comerciais, é mais fácil separar essas duas dimensões. No entanto, no

espaço doméstico é muito mais complicado separar os aspectos afetivo-relacionais da

atividade em si, exatamente porque toda a produção está diretamente relacionada com os

fatores pessoais. Resumindo: o trabalho destinado às pessoas do lar possui um contexto

social e emocional diferente do trabalho remunerado.

Dessa forma, a tensão vivida pelas mulheres na contemporaneidade é um reflexo de

uma contradição muito mais profunda: uma contradição que existe entre o capitalismo e o

bem estar humano, entre o objetivo do lucro e o objetivo do cuidado da vida. Entre a

sustentabilidade da vida e o benefício econômico, nossas sociedades patriarcais tem

constantemente optado pelo segundo.

Durante boa parte da história da humanidade, desde a pré-história quando os seres

humanos criaram seus primeiros instrumentos de pedra passando por todas as sociedades

da antiguidade e pela idade média até o século XVIII, a produção artesanal manual

dominava o mundo produtivo. Isso significa que os próprios indivíduos, organizados

coletivamente a partir das estruturas familiares, organizavam-se num processo de produção

de mercadorias de forma artesanal, onde o trabalho manual estava conectado com o

trabalho intelectual, pois não se pensava na separação entre o fazer e o pensar. Desse modo,

a categoria trabalho era articulada com diversos saberes, que agregavam os conhecimentos

necessários ara a vida em sociedade. A figura do mestre artesão da Idade Média bem

vislumbra a figura do pensador da época, que agregava diversos saberes do mundo do

trabalho, mas também do mundo da vida em geral. O sociólogo americano Richard Sennet,

que possui vasta experiência de pesquisa no mundo do trabalho, realizando investigações

em várias partes do mundo com trabalhadores e trabalhadoras de várias profissões, resgata

os saberes e a importância do trabalho manual da idade média no livro O artífice (2012).

Para ele, o avanço surpreendente da ciência e da tecnologia, com todas as consequências

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que ela traz consigo, tem levado a humanidade a um processo de diminuição de sua

capacidade criativa e inventiva, passando a um crescimento da alienação.

O modo de produção capitalista, implementado fortemente via Revolução Industrial,

suplantou o trabalho manual, valorizando a produção em massa propiciada pelo

maquinário. Dessa forma, não apenas o trabalho mudou, mas toda a sociedade se

transformou a partir da implementação do capitalismo e da acumulação. Essa mudança

criou uma ruptura entre criação e produção, entre pensar e executar, entre teoria e prática,

ou seja, os mestres artesãos eram criadores do que eles mesmos produziam, já os operários

das fábricas foram estimulados a simplesmente executar.

No que se refere à articulação entre o trabalho artesanal e o feminismo, se olharmos

com mais atenção a história das famílias no Brasil, veremos que a socialização feminina

passava pelo rigor e pela disciplina do aprendizado de „trabalhos manuais‟, materializados

enquanto técnicas como bordado, crochê, tricô, costura e outras, realizados nos espaços

domésticos e muitas vezes atrelados ao exercício da maternidade, como tarefas para

“ocupar as mulheres”. Esse processo de aprendizagem se dava muitas vezes na própria

escola ou em outros espaços institucionalizados, como em igrejas, por exemplo. Em vista

desses exemplos históricos, muitas mulheres na contemporaneidade passaram a rejeitar

esses aprendizados em prol da luta por um processo de emancipação feminina.

Portanto, pensamos que a grande questão que se coloca em nossa investigação é a

seguinte: a atividade artesanal pode auxiliar num processo que vise à emancipação e a

autonomia feminina? Ou, ao contrário, é uma ferramenta utilizada pela sociedade patriarcal

que visa à alienação da mulher, utilizada para mantê-la fora dos espaços produtivos formais

e também dos espaços públicos em geral, mantendo-a confinada nos espaços domésticos?

Os estudos de gênero já vêm descortinando a instituição escolar, no que se refere às

formas que a instituição adota para reproduzir e construir as desigualdades de gênero2.

Portanto, já sabemos o quanto a escola é importante na manutenção da estrutura patriarcal

de sociedade. Segundo Louro,

2 Aqui temos diversas pesquisadoras importantes na perspectiva de descortinar a instituição escolar na construção dos

papéis sociais de gênero. Apenas para exemplificar, saliento a obra de Guacira Lopes Louro (1997a, 1997b, 2000) e

Marília Pinto de Carvalho (2001, 2003), entre outras.

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[...] os mais antigos manuais já ensinavam aos mestres os cuidados que

deveriam ter com os corpos e almas de seus alunos. O modo de sentar e

andar, as formas de colocar cadernos e canetas, pés e mãos acabariam por

produzir um corpo escolarizado, distinguindo o menino ou a menina que

"passara pelos bancos escolares" (LOURO, 1997a, p.61).

No que se refere à profissão docente, os(as) historiadores(as) da história da

educação tem demonstrado o quanto essa profissão tem sido marcada pela identidade

feminina. Até há pouco tempo, sabia-se que as mulheres constituíam a imensa maioria das

profissionais da educação atuando nos anos iniciais. Com o passar do tempo essa realidade

tem se ampliado para os demais anos do ensino fundamental, a ponto de também se

constituírem em maioria no ensino médio e os índices estão aumentando consideravelmente

também no ensino superior.

Essa realidade tem sido objeto também da caminhada realizada nesta experiência

com mulheres e que tem no artesanato uma ferramenta metodológica. Importante dizer que

as discentes de licenciaturas da Universidade desde o início da proposta fizeram parte de

um grupo incorporado tanto na investigação como na extensão e no ensino. Isso se deve ao

fato do interesse em identificar proximidades entre gênero e docência, onde o artesanato

produzido pelas discentes de licenciatura tem visibilizado suas trajetórias como mulheres e

docentes em formação.

Um pouco do que foi feito até aqui

Como a profissão docente tem se constituído, cada vez mais, em uma profissão

majoritariamente feminina, um dos principais alvos da proposta são as acadêmicas de

cursos de licenciatura da Universidade. Em função de outras investigações que temos

encaminhado com esse grupo, temos percebido que há uma aproximação grande entre

acadêmicas e o fazer artesanal. Muitas alunas têm envolvimento e experiências em

artesanato. Por isso, usamos o artesanato como uma forma de discutir gênero e identidades

femininas também na formação docente. Inclusive a autora ministra disciplinas que

discutem a temática, tanto em cursos de licenciaturas da Universidade como na pós-

graduação, orientando pesquisas nessa temática.

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As oficinas se formam com o intuito de, além de possibilitar a aprendizagem em

artesanato, abordar a temática de gênero entre as participantes e coletar dados para a

pesquisa, na forma de narrativas orais e também artesanais, pois as participantes sempre são

provocadas a contarem suas histórias na produção que realizam. Diversas oficinas têm sido

realizadas. Citamos algumas técnicas: crochê, flores artificiais, fuxicos, bijuterias, papel

machê, materiais reciclados (garrafas pet, papel, caixas de leite, etc.), tecelagem.

O processo de aprendizagem se constitui numa troca constante de saberes, pois

não há a figura de uma professora e/ou oficineira. As próprias participantes se organizam

para elaborarem o cronograma e qual a participante vai encaminhar a atividade de cada

oficina.

Nas imagens apresentada a seguir mostram oficinas realizadas no espaço da

Universidade. São oficinas de flores de EVA e artigos de Natal, respectivamente.

Figura 1: Oficina de arte e criação coletiva com

discentes do curso de pedagogia da UFPel (Acervo do

Programa). Abril de 2014.

O grupo formado pelas discentes apresentam suas particularidades, pois neste

grupo buscamos aproximar a discussão de gênero com a constituição da profissão docente

nas alunas.

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As discentes participantes tem sido, na sua maioria, discentes do curso de

Pedagogia. Isso se explica pelo fato de que as oficinas são realizadas na Faculdade de

Educação da Universidade e o projeto é coordenado por docente desta Faculdade e este

Curso, o que as aproximam mais da proposta.

Figura 2: Oficina de arte e criação coletiva com discentes do

Curso de Pedagogia da UFPel (Acervo do Programa). Dez.

2013.

As narrativas das discentes, que visibilizam suas trajetórias de vida e de escolha

profissional, destacam a proximidade da profissão com suas identidades de gênero. Várias

afirmaram nos depoimentos que um dos motivos pela escolha da profissão é o fato de terem

uma boa relação e afeição por crianças. Aqui aspectos vinculados ao trabalho com infância

são trazidos nos argumentos. Importante dizer que várias discentes em seus depoimentos

afirmaram que vários docentes do curso afirmam abertamente que para se formar em

Pedagogia é necessário „gostar de crianças‟. Pensamos que essa afirmação possa ser

inadequada, no sentido de que restringe a atuação profissional à sala de aula dos anos

iniciais, desconsiderando outras tantas possibilidades que o(a) pedagogo(a) pode atuar,

como na gestão educacional e/ou com Educação de Jovens e Adultos (EJA), por exemplo.

Dessa forma, pode-se estar reforçando os papéis tradicionais de docentes de anos iniciais,

onde as mulheres são imensa maioria, pois se aproxima a infância das mulheres, aliando-se

indiretamente aspectos biológicos, como a maternidade por exemplo, como justificativa

para o ingresso na profissão.

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As imagens a seguir apresentam momentos de encontros com mulheres

agricultoras assentadas pertencentes ao Movimento Sem Terra (MST) no interior do Estado

do Rio Grande do Sul. Este grupo já apresenta outras particularidades, pois se refere a

mulheres que vivem em regiões rurais que atuam na agricultura e possuem escolaridade

inferior a do grupo de acadêmicas.

Figura 3: Mulheres agricultoras do MST participantes do

Programa de Extensão Gênero, Arte e Educação (Acervo do

Programa. Abril de 2014).

Figura 4: Oficina de artesanato com mulheres assentadas do

MST no interior do município de Pinheiro Machado, estado do

Rio Grande do Sul, Brasil. (Acervo do Programa, abril. 2014)

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No entanto, são mulheres que atuam em um movimento social organizado, o que

lhes dá uma formação política mais elaborada, em vários aspectos menos alienada que o

grupo de discentes, já que as agricultoras possuem uma formação que se dá por dentro do

próprio movimento, não se tratando de uma formação no espaço escolar, mas no espaço da

própria luta política pela reforma agrária.

No atual momento, percebemos que as oficinas de artesanato tem se constituído

em um espaço importante para se pensar suas histórias de gênero, pois nesses momentos

elas estão sozinhas, possuem certa privacidade e liberdade para dividirem suas experiências

sem interferências de outras figuras, como lideranças do movimento ou seus parceiros e

demais familiares. Esses momentos têm trazido à tona muitos questionamentos sobre os

papéis de gênero que reproduzem, a ponto delas estarem se organizando

independentemente da participação de nossa equipe.

Além disso, elas estão se “descobrindo” como artistas, mulheres que possuem

criatividades e saberes que elas nem sabiam que tinham, pois em suas narrativas fica clara a

surpresa na produção do artesanato, pois elas não se achavam „com capacidade‟ para

produzirem o que estão fazendo.

Figura 5: Oficina de artesanato com mulheres assentadas do

MST no interior do município de Pinheiro Machado, estado

do Rio Grande do Sul, Brasil. (Acervo do Programa). 2014.

As oficinas em escolas da rede de ensino também são prioridade de nossa

proposta, tanto de investigação como de extensão. As imagens a seguir apresentam

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momentos de oficinas de artesania com docentes, alunos e alunas de EJA, onde

confeccionaram luminárias de garrafas pet. Importante salientar que há uma preocupação

em se utilizar reaproveitamento de materiais na produção do artesanato nas Oficinas.

Figura 6: Oficina de arte e criação coletiva com alunos e

alunas de educação de jovens e adultos (EJA), da Escola

Municipal de Ensino Fundamental Piratinino de Almeida, na

cidade de Pelotas. (Acervo do Programa, ago.2014)

Também com as turmas de EJA a proposta foi construída coletivamente com o

grupo, incluindo os(as) docentes e direção da escola, onde a construção da proposta se deu

articulada ao projeto pedagógico da escola e aos conteúdos que estavam sendo ministrados

pelas disciplinas com as turmas naquele período. Dessa forma, buscamos articular a

extensão com o ensino.

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Figura 7: Oficina de artesanato com alunos e alunas de educação

de jovens e adultos (EJA) da Escola Municipal de Ensino

Fundamental Piratinino de Almeida, na cidade de Pelotas, estado

do Rio Grande do Sul, Brasil (acervo do projeto). 2014

Tendo em vista a articulação da pesquisa e da extensão com o ensino, as imagens a

seguir apresentam momentos de formação na disciplina da graduação em Pedagogia

denominada Discutindo Arte e Gênero em Oficinas de Criação Coletivas3 onde, na figura 8

aparece uma aula sobre arte indígena e na figura 9 aparece as alunas reconstruindo suas

histórias de gênero, a partir da produção artesanal de uma peça própria, que busca

responder a seguinte provocação: quais situações mais marcantes para mim me fizeram

perceber que mulheres são vistas de forma diferentes de homens?

Figura 8: Aula da disciplina Discutindo Arte e Gênero em

Oficinas de Criação Coletiva, ministradas no primeiro semestre

de 2014, no Curso de Pedagogia da UFPel (acervo da disciplina).

2014.

Partindo dessa questão norteadora, as alunas responderam a questão de várias

formas, escrevendo suas histórias, narrando oralmente e criando uma peça artesanal que

„conta‟ o(s) episódio(s).

3 Trata-se de uma disciplina optativa do Curso de Pedagogia da UFPel. Outra disciplina optativa criada nessa

perspectiva de estudo é denominada Estudos de Gênero e Trabalho Feminino.

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Figura 9: Aula da disciplina Discutindo Arte e Gênero em

Oficinas de Criação Coletiva, ministradas no primeiro semestre

de 2014, no Curso de Pedagogia da UFPel (acervo da disciplina).

2014.

A investigação tem buscado estabelecer um diálogo profundo com o ensino, pois se

admite a necessidade da pesquisa fortalecer os processos de ensino-aprendizagem, tanto na

graduação como na pós-graduação. O Programa de Pós Graduação em Educação da UFPel

possui a disciplina Seminário Avançado Estudos de Gênero, Teoria Feminista e Educação,

que tem sido ministrada pela autora deste trabalho.

Considerações finais

As experiências individuais das mulheres participantes funcionam como pano de

fundo para a análise de situações mais abrangentes de enfrentamento ou submissão à lógica,

tanto do capital como do patriarcado. Isso não menospreza de forma alguma as experiências

específicas das envolvidas nas atividades. Pelo contrário, as narrativas abordadas aqui

materializam as experiências de inúmeras mulheres, extrapolando o espaço privado e

visibilizando uma diversidade de situações que não são nada individuais nem privadas.

Trata-se de um processo de „coletivizar‟ as experiências femininas.

Sendo assim, a concepção educativa proposta é de uma educação que coloque a

realidade das mulheres como conteúdo problematizador, que se dá em torno da relação das

pessoas com o mundo, nunca o ser humano isolado desse mundo, mas em permanente

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relação. É problematizando o mundo do trabalho, da produção artesanal, das vivências

femininas, enfim, o mundo da cultura ocidental e do patriarcado, que podemos vislumbrar

um futuro emancipador para as mulheres.

Deste modo, partindo dessa perspectiva e levando em consideração os resultados

alcançados até agora, embora o projeto ainda esteja em fase de execução, podemos afirmar

que as mulheres participantes estão tendo cada vez mais a certeza que o artesanato tem sido

um fator primordial na vida delas, como cidadãs pensantes que estão descobrindo e se auto

descobrindo a si mesmas como seres humanos capazes de produzir o que é belo, e essa

garra que elas estão adquirindo a cada dia que passa está pouco a pouco deixando um

legado muito importante que é o empoderamento dessas mulheres em um mundo que a

cada dia e hora que passa sofre constantes modificações, seja na área urbana e rural, seja na

educação, saúde ou economia.

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