Novos Caminhos, Cooperação e Solidariedade a Psicologia Em Empreendimentos Solidários

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7 Psicologia & Sociedade; 17 (1): 17-28; jan/abr.2005 INTRODU˙ˆO Vivemos em um momento de crise, desem- prego e intensa exclusªo social. Homens e mulheres se tornaram descartÆveis, como meras mercadorias de prateleiras de supermercados, no qual excludos se tornam multidıes. Em todo o mundo, crescem os pro- testos, em prol de alternativas para solucionar tais problemas. Buscam-se maneiras que possam garantir a sobrevivŒncia das camadas mais atingidas da popu- laªo, oferecendo oportunidade real de se re-inserir na economia por sua prpria iniciativa; transforman- do, dessa forma, desempregados em microempresÆrios ou operadores autnomos. Entre as estratØgias de sobrevivŒncia cabe destacar a ampliaªo e o desenvolvimento de organi- NOVOS CAMINHOS, COOPERA˙ˆO E SOLIDARIEDADE: A PSICOLOGIA EM EMPREENDIMENTOS SOLID`RIOS 1 Maria Chalfin Coutinho Adriano Beiras Dhiancarlos Picinin Gabriel Luiz Lückmann Universidade Federal de Santa Catarina RESUMO: Cada vez mais se buscam alternativas para garantir a sobrevivŒncia das camadas mais atingidas da populaªo. Dentre as estratØgias jÆ realizadas, cabe destacar a ampliaªo e o desenvolvimento de organizaıes populares, fundadas nos princpios da solidariedade, constituindo, assim, alternativas de trabalho e geraªo de renda para trabalhadores excludos do mercado de trabalho formal ou informal. Dentro deste contexto, este trabalho buscou evidenciar novas possibilidades de atuaªo da psicologia social e do trabalho junto a estas organizaıes fundadas nos princpios gerais da autogestªo. Para isso props-se a realizaªo de uma discussªo sobre a economia solidÆria hoje e a delimitaªo do papel da psicologia neste setor. Assim, efetuou-se um breve levantamento sobre o significado e os conceitos de economia solidÆria, autogestªo, cooperativas e associativismo, e sua historia no Brasil de forma a integrar este conhecimento com a psicologia visando evidenciar possibilida- des de um novo campo de atuaªo. PALAVRAS-CHAVE: Economia solidÆria, cooperativismo, psicologia social do trabalho NEW PATHS, COOPERATION AND SOLIDARITY THE PSYCHOLOGY IN SOLIDARY ENTERPRISES ABSTRACT: More and more often, alternatives to provide the survival of the most needy part of the Brazilian population have been searched. Amongst these strategies, solidary organizations accomplish an outstanding work. Recently, these organizations have been developing and increasing in popularity, as well as providing alternatives in employment and income for workers excluded from the formal and the informal labour market. Given this scenario, there are contributions which social and occupational psychology can make to these self- managing organizations. This article begins proposing a discussion about the current situation of solidary economies and the definition of the psychologists role in this sector. This discussion is based on a research regarding the history of solidary economies in Brazil, its meaning and related concepts, such as self-management, cooperatives and associative organizations. The combination of the knowledge acquired through the research and the psychology provides a new field of possible interventions. KEY-WORDS: solidary economy, cooperatives, social and occupational psychology zaıes populares, fundadas nos princpios da solida- riedade, constituindo, assim, alternativas de trabalho e geraªo de renda para trabalhadores excludos do mercado de trabalho. neste contexto que iniciamos uma discussªo sobre economia solidÆria e a partici- paªo da psicologia social e do trabalho neste setor, visando embasar teoricamente um projeto de exten- sªo em psicologia 2 . A psicologia tem, no que se refere ao traba- lho, grandes possibilidades de atuaªo, sendo de sig- nificativa importncia na medida em que possibilita resgatar, escutar as experiŒncias dos trabalhadores, seus sofrimentos, seu dia-a-dia dentro deste contexto excludente do mundo globalizado. Assessorando-os na construªo de uma consciŒncia crtica, propondo no-

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Arquivo de pesquisa acadêmica.

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  • 7Psicologia & Sociedade; 17 (1): 17-28; jan/abr.2005

    INTRODUOVivemos em um momento de crise, desem-

    prego e intensa excluso social. Homens e mulheresse tornaram descartveis, como meras mercadoriasde prateleiras de supermercados, no qual excludos setornammultides. Em todo omundo, crescem os pro-testos, em prol de alternativas para solucionar taisproblemas. Buscam-semaneiras que possam garantira sobrevivncia das camadasmais atingidas da popu-lao, oferecendo oportunidade real de se re-inserirna economia por sua prpria iniciativa; transforman-do, dessa forma, desempregados emmicroempresriosou operadores autnomos.

    Entre as estratgias de sobrevivncia cabedestacar a ampliao e o desenvolvimento de organi-

    NOVOS CAMINHOS, COOPERAO E SOLIDARIEDADE:A PSICOLOGIA EM EMPREENDIMENTOS SOLIDRIOS1

    Maria Chalfin CoutinhoAdriano Beiras

    Dhiancarlos PicininGabriel Luiz Lckmann

    Universidade Federal de Santa Catarina

    RESUMO: Cada vez mais se buscam alternativas para garantir a sobrevivncia das camadas mais atingidas dapopulao. Dentre as estratgias j realizadas, cabe destacar a ampliao e o desenvolvimento de organizaespopulares, fundadas nos princpios da solidariedade, constituindo, assim, alternativas de trabalho e gerao derenda para trabalhadores excludos do mercado de trabalho formal ou informal. Dentro deste contexto, estetrabalho buscou evidenciar novas possibilidades de atuao da psicologia social e do trabalho junto a estasorganizaes fundadas nos princpios gerais da autogesto. Para isso props-se a realizao de uma discussosobre a economia solidria hoje e a delimitao do papel da psicologia neste setor. Assim, efetuou-se um brevelevantamento sobre o significado e os conceitos de economia solidria, autogesto, cooperativas e associativismo,e sua historia no Brasil de forma a integrar este conhecimento com a psicologia visando evidenciar possibilida-des de um novo campo de atuao.PALAVRAS-CHAVE: Economia solidria, cooperativismo, psicologia social do trabalho

    NEW PATHS, COOPERATION AND SOLIDARITY THE PSYCHOLOGY IN SOLIDARY ENTERPRISES

    ABSTRACT: More and more often, alternatives to provide the survival of the most needy part of the Brazilianpopulation have been searched. Amongst these strategies, solidary organizations accomplish an outstandingwork. Recently, these organizations have been developing and increasing in popularity, as well as providingalternatives in employment and income for workers excluded from the formal and the informal labourmarket.Given this scenario, there are contributions which social and occupational psychology can make to these self-managing organizations. This article begins proposing a discussion about the current situation of solidaryeconomies and the definition of the psychologists role in this sector. This discussion is based on a researchregarding the history of solidary economies in Brazil, itsmeaning and related concepts, such as self-management,cooperatives and associative organizations. The combination of the knowledge acquired through the researchand the psychology provides a new field of possible interventions.KEY-WORDS: solidary economy, cooperatives, social and occupational psychology

    zaes populares, fundadas nos princpios da solida-riedade, constituindo, assim, alternativas de trabalhoe gerao de renda para trabalhadores excludos domercado de trabalho. neste contexto que iniciamosuma discusso sobre economia solidria e a partici-pao da psicologia social e do trabalho neste setor,visando embasar teoricamente um projeto de exten-so em psicologia2 .

    A psicologia tem, no que se refere ao traba-lho, grandes possibilidades de atuao, sendo de sig-nificativa importncia na medida em que possibilitaresgatar, escutar as experincias dos trabalhadores,seus sofrimentos, seu dia-a-dia dentro deste contextoexcludente domundo globalizado. Assessorando-os naconstruo de uma conscincia crtica, propondo no-

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    vas formas de experienciar o trabalho, reconstruindovnculos e reivindicando direitos. Neste sentido, a psi-cologia social, voltada para o trabalho, busca com-preender a realidade social destes trabalhadores, iden-tificando suas diferenas e igualdades, suas histrias,regras, reestruturaes e lutas. Desta forma, busca-secriar um novo campo de atuao para psiclogos,voltado para coletivos solidrios de trabalhadores3 .

    O presente artigo se insere no campo propos-to acima. Inicialmente propomos uma reflexo teri-ca sobre o conceito de Economia Solidria e suas for-mas de organizao. Em seguida procuramoscontextualizar a realidade brasileira sobre este tema.Na seqncia, discutimos a participao da psicolo-gia procurando evidenciar uma possvel prtica, den-tro de seus limites e possibilidades.

    ECONOMIA SOLIDRIAA economia solidria tem se disseminado

    cada vez mais como uma possibilidade de sobrevi-vncia das camadas da populao excludas do mer-cado formal de trabalho. Manifesta-se sob diferentesformas organizativas, construdas sobre princpiosgerais que fundamentam a prtica da autogesto,caracterizada por tomadas de decisomais democr-ticas, relaes sociais de cooperao entre pessoas egrupos e pela horizontalidade nas relaes sociais emgeral.

    Gaiger (2000), acredita que a economia soli-dria estaria apontando para a possibilidade de cria-o de uma forma social de produo diferente, queconvive com a produo capitalista. J para Lisboa(2000), esta foi concebida para atuar fora da esferaestatal e em paralelo economia mercantil, fundan-do-se na tradio familiar, na economia camponesa,no trabalho por conta prpria, nos empreendimentosautogestionrios.

    Machado e Ribas (2002) acreditam ser o ob-jetivo central da economia solidria a gerao depossibilidades econmicas destinadas reintegraodos excludos pela ordem neoliberal de forma quepassem a pertencer novamente ao processo de produ-o e, portanto, com possibilidade de trabalho e derenda. Para compreender a lgica da economia soli-dria, segundo Singer (2000), fundamental consi-derar a crtica operria e socialista ao capitalismo,que condena a ditadura do capital nas empresas e opoder ilimitado que o direito de propriedade d aodono dos meios de produo.

    A histria da autogesto marcada por vri-as experincias de lutas operrias, surgindo sempredepois demomentos de crise e caracterizando-se comouma estratgia bem definida na luta de classes, queobjetiva o pleno domnio do processo e das condiesde trabalho, atravs da propriedade coletiva dosmei-

    os de produo e de processos coletivos de tomada dedeciso, fundados na solidariedade de classe.

    Segundo Albuquerque, citado por Singer(2003), so identificveis duas determinaes essen-ciais do conceito de autogesto: a) superar a distin-o entre quem toma as decises e quem executa e b)autonomia decisria de cada unidade de atividade. Ocarter radical da autogesto abole a diviso socialdo trabalho, pois, em tese, os prprios produtores di-rigem sua produo e controlam os meios de produ-o, no existindo mais classes sociais, mercado, oumesmo Estado. A autogesto no uma relao ape-nas poltica, mas uma relao de produo que sedissemina por todas as esferas da vida social, pormno acreditamos que sua expresso radical seja poss-vel no capitalismo. O que acontece so formasorganizativas solidrias inspiradas nos princpiosautogestionrios como: associaes e cooperativas.

    Guillerm e Bourdet (1976) apontam um con-tnuo desde formas participativas mais limitadas, talcomo a gesto participativa e a co-gesto, at aautogesto social, que implicaria em uma transfor-mao radical da sociedade. Para estes autores [...]ascooperativas tm convivido com o sistema capitalistasem contest-lo seriamente, uma vez que, no podem,por simesmas, levar autogesto social(COUTINHO,2000, p. 14).

    Acreditamos que os empreendimentos solid-rios podem constituir-se em alternativas de geraode trabalho e renda, mas so incapazes de confrontaras formasmercantis de produo. Diante do contextode desemprego e precarizao das relaes de traba-lho, as formas cooperativas, assim como outras orga-nizaes do terceiro setor, no so ...uma alternati-va efetiva e duradoura ao mercado capitalista, mascumpre um papel de funcionalidade ao incorporarparcelas de trabalhadores desempregados pelo capi-tal. (ANTUNES, 2000, p.113).

    A economia solidria vemse estruturandohojeatravs de associaes e cooperativas. Associaes soquaisquer grupos sociais unidos em torno de uma fi-nalidade especfica e com estatuto orientado peloCdigo Civil Brasileiro de 2002. No Brasil, oassociativismo ainda est em processo de constitui-o como movimento social forte e articulado.

    O cooperativismo teve contribuies tericasde vrios pensadores, que procuravam ver realizadauma ordem econmica baseada na justia social,impulsionando diversas realizaes prticas. Segun-do Singer (2003), uma das mais famosas experinci-as foi a de Robert Owen na Inglaterra. Esta iniciativade experimentar os princpios revolucionrios deautogesto e justia social foi imitada em diversospases.

    As cooperativas calcadas nas propostas soli-

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    drias em geral operam sob alguns princpios, comoliberdade de adeso, gesto democrtica participativae igualdade de participao econmica, isto , cadamembro contribui igualmente para o capital da coo-perativa, cujos excedentes, se for este o caso, teroseu destino estabelecido atravs de decises democr-ticas feitas pela cooperativa. Todas as aes das coo-perativas devem primar pela segurana do controledemocrtico e autonomia. As cooperativas devempro-mover a contnua educao e formao de seusmem-bros, dos representantes eleitos e dos trabalhadoresde formaque estes possamcontribuir eficazmente parao desenvolvimento dasmesmas.

    A sobrevivncia das cooperativas requer atu-ao conjunta, atravs de suas representaes locais,regionais, nacionais e internacionais, facilitando a tro-ca de produtos e servios que possibilitem a subsistn-cia e desenvolvimento dos empreendimentos coopera-tivos em geral e criao de novas cooperativas. Con-tudo, preciso que se esteja atento a ummecanismoutilizado por empresas que, para no terem de arcarcom encargos sociais de seus empregados, alteramseus registros legais de forma a apresentarem umafachada de cooperativa enquanto continuam funci-onando como empresas, isto , calcadas na relaopatro-empregado e sustentadas no lucro. So as cha-madas cooperativas-gato, que do sociedade umaimagem falsa das cooperativas solidrias ou popula-res, prejudicando os grupos que semostram engajadosem empreendimentos legitimamente solidrios, queacabam esbarrando no preconceito e na escassez depolticas pblicas e linhas de crdito para esse tipo deiniciativa.

    UM POUCOMAIS SOBRE OSEMPREENDIMENTOSSOLIDRIOSNOBRASIL

    Os primeiros empreendimentos solidrios noBrasil comearam a ganhar mais destaque na dcadade 19804 e se tornaram mais comuns a partir da me-tade da dcada de 90. Eles so resultantes de vriosmovimentos sociais que semobilizaramdiante da crisede desemprego que passou a assolar o pas a partir de1981 e se agrava no incio dos anos 90 com a abertu-ra demercado para os produtos importados. SegundoSinger (2000), os primeiros empreendimentos so re-sultado do apoio de assessores sindicais a operriosque se apossaram da massa falida de empresas assu-mindo seu controle administrativo com o objetivo demanter os empregos e a renda dos trabalhadores. Es-sas empresas se uniram para formar a AssociaoNacional de Trabalhadores de EmpresasAutogestionrias e de Participao Acionria(ANTEAG).

    OMovimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra (MST) tambm tem papel fundamental na con-

    solidao das cooperativas no Brasil. Uma das prin-cipais estratgias do movimento para fazer com queas reas assentadas se tornem economicamente vi-veis organizar diferentes tipos de cooperativas. Singer(ibid.) tambm cita as Incubadoras Tecnolgicas deCooperativas Populares (ITCP), que funcionam liga-das a universidades como fortalecedoras docooperativismo no Brasil. As incubadoras tm porobjetivo organizar grupos de trabalhadores em tornode cooperativas de trabalho ou de produo dandoapoio administrativo e jurdico.

    Atualmente, no h dados claros sobre o n-mero de empreendimentos autogeridos emnosso pas.Mas est evidente que seu nmero vem aumentando ej bastante significativo. Esse aumento se deve, prin-cipalmente, as diversas formas de precarizao do tra-balho e ao aumento vertiginoso do desemprego. Po-rm pode-se perguntar por que os empreendimentosautogeridos ganharam fora nos ltimos anos, j quea precarizao do trabalho e o desemprego esto pre-sentes hmuitomais tempo emnossa sociedade.Ocor-re que o tempo de retorno dos trabalhadores ao mer-cado formal est muito mais longo e muitos delesno tem possibilidade de voltar ao mercado formalpor diversos motivos como baixa escolaridade, faixaetria entre outros.

    O ENVOLVIMENTODA PSICOLOGIA:CONTEXTUALIZAOE POSSIBILIDADES

    Buscando auxiliar os trabalhadores nesta di-fcil realidade, acreditamos que a psicologia social edo trabalho pode ser de grande valia para a consoli-dao destes empreendimentos, atuando de diversasmaneiras, seja com a organizao como um todo, sejacom cada trabalhador. Priorizaremos aqui as inter-venes de carter coletivo, porm, faz-se necessrioadaptar tcnicas tradicionais, como as dinmicas degrupo, s caractersticas dos membros da comunida-de, revendo referncias de tempo, espao, escolarida-de etc.

    A psicologia do trabalho aplicada s organi-zaes passoupor vrias etapas desde o seu surgimentocomo instrumento das indstrias que seguiamos pres-supostos tayloristas. A psicologia industrial, classifi-cada por Sampaio (1998) como a primeira face dapsicologia no campo, tinha como funo realizar se-leo e colocao profissional, ou seja, se integravaao princpio taylorista de colocar o sujeito na funoquemelhor se adequasse s suas caractersticas. Almdisso, fazia orientao profissional e avaliava as con-dies de trabalho com o objetivo de aumentar a pro-dutividade.

    O mesmo autor classifica a segunda face dapsicologia aplicada ao trabalho como psicologiaorganizacional, argumenta que essa face no foi uma

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    ruptura com a primeira, mas sim a incorporao denovas atividades como treinamento, classificao depessoal e avaliao de desempenho, alm de passa-rem a discutir as estruturas das organizaes de tra-balho. Nesse perodo foram incorporadas as novida-des do estruturalismo e da teoria sistmica da admi-nistrao. Fica claro que essa passagem no repre-sentou mudanas nos objetivos da psicologia, pauta-dos no aumento da produtividade nas empresas.

    Muitas crticas foram feitas psicologiaorganizacional enfatizando sua orientaotecnocrtica e sua falta de interesse pelo simblico.Chanlat, citado por Sampaio (1998), coloca que apesquisa e o desenvolvimento da psicologiaorganizacional foi orientada pela busca de eficcia,desempenho e produtividade.

    Sampaio (1998) critica o carter instrumen-tal da disciplina, mesmo quando da introduo denovas teorias, como a teoria contingencialista. Estateoria, introduzida pela Administrao nos anos 70,buscava compreender os fenmenos produtivos a par-tir dos condicionantes externos, masmantinha o focono aumento da lucratividade. O questionamento dosobjetivos da psicologia organizacional originou a ter-ceira face da psicologia do trabalho, que busca com-preender o trabalho humano nos seus significados eem todas as suas manifestaes. Diferencia-se das fa-ces anteriores por se voltar para a sade e bem-estardos trabalhadores, no priorizando o lucro e a produ-tividade.

    Diferente das prticas tradicionais, a psico-logia do trabalho voltada para as organizaes soli-drias visa o desenvolvimento da autonomia e da so-lidariedade, buscando re-significar a identidade pro-fissional do trabalhador/cooperado, fortalecendo ovnculo grupal. Para a realizao destes objetivos, oresgate da psicologia comunitria mostra-se de gran-de valia, considerando que, historicamente, estevevoltada para os grupos populares. Na mesma linhade pensamento de Campos (1996), procura-se traba-lhar com estes grupos para que eles assumam pro-gressivamente o papel de sujeitos de sua prpria his-tria, conscientes dos determinantes scio-polticos desua situao e ativos na busca de solues para osproblemas enfrentados.

    Para Lane (2003), a psicologia comunitriano Brasil surge no perodo posterior ao golpe militarde 1964 como um questionamento dos profissionaisde psicologia a respeito da sua atuao junto maio-ria da populao. A autora tambm salienta que osgrupos so o espao privilegiado para uma anliseterico-prtica do desenvolvimento dos indivduos eque o psiclogo inserido em comunidades trabalha-r, fundamentalmente, com as relaes grupais, vn-culo essencial entre indivduos e a sociedade.

    Ao resgatarmos os conhecimentos acumula-dos pela psicologia comunitria, buscamos incorpo-rar um saber construdo a partir da perspectiva dascamadas menos favorecidas da populao. Pretende-se, assim, ampliar o campo de pesquisas e interven-es da psicologia do trabalho, tradicionalmente vol-tada para a adaptao dos trabalhadores ao modocapitalista de produo. Neste sentido, fizemos umaproposta de interveno articulando as abordagensterico-metodolgicas da psicologia comunitria e dapsicologia do trabalho.

    Em nossa experincia nas atividades de ex-tenso universitria, encontramos grupos bastanteheterogneos, principalmente no que diz respeito faixa etria. O trabalho foi feito em uma Associaode Recicladores de Lixo, a partir de um levantamentoinicial das associaes e cooperativas existentes naregio da grande Florianpolis e de posterior apre-sentao de uma proposta de interveno. Nossa pr-tica procurou tornar o grupo consciente de suas difi-culdades e conquistas, bem como de seu prprio pro-cesso grupal. O grupo levantou problemas a seremresolvidos, tais como: a falta de conscientizao douso do material de segurana, a desvalorizao dotrabalho e das condies fornecidas pelos prprios as-sociados e pela populao em geral.

    Compete, portanto, aos psiclogos/as comu-nitrios/as trabalharem na construo de uma cons-cincia crtica, de uma identidade coletiva e individu-al mais autnoma e de uma nova realidade socialmais justa. (Neves & Bernardes, 2001, p.242). Sendoque, esta busca do desenvolvimento da conscinciacrtica, da tica, da solidariedade e de prticas coo-perativas ou autogestionrias, a partir da anlise dosproblemas cotidianos da comunidade,marca, de acor-do com Freitas, citado por Campos, (1996), a produ-o terica e prtica da psicologia social comunit-ria.

    Utilizando teoria emtodos da psicologia emtrabalhos feitos emcomunidades de baixa renda, comoem experincias em bairros populares, favelas, asso-ciaes de bairro, comunidades eclesiais de base emovimentos populares, esta prtica visa a melhoriadas condies de vida da populao trabalhadora,partindo de um levantamento das necessidades e ca-rncias vividas por cada grupo.

    E COMO ESSE TRABALHO PODE SER FEITO?Osmtodos tradicionais da psicologia do tra-

    balho, construdos nos setores de recursos humanosdas organizaes de grande porte, no so compat-veis com as organizaes solidrias, da decorre ne-cessidade de desenvolvimento demetodologias oriun-das da psicologia comunitria e centradas nos pro-cessos grupais.

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    Os programas de interveno desenvolvidosem coletivos solidrios devem buscar contribuir parasua organizao e gesto. Para tanto, preciso en-frentar ...dois grandes desafios: 1) o de desenvolverestruturas e canais de dilogos compatveis com asnecessidades e a cultura dos cooperados; 2) o de ga-rantir a organicidade entre as estruturasorganizacionais e os sujeitos que delas participam.(SCOPINHO&MARTINS, 2003, p. 136).

    Temos comoprincipal objetivo o fortalecimen-to dos laos coletivos, atuando a partir do entendi-mento dos processos grupais desenvolvidos em cadaorganizao solidria, utilizando tcnicas de dinmi-ca de grupo que favoream a emergncia das caracte-rsticas singulares do grupo. Em nossa prtica com aassociao de recicladores, o nosso modelo de inter-veno passou por vrias revises, j que, apesar determos buscado referncias no tradicionais da psico-logia organizacional, o coletivo com o qual estva-mos lidando tinha especificidades que exigiram umtrabalho de adaptao na linguagem utilizada e naforma de interveno. Apesar de algumas dificulda-des, encontramos resultados bastante positivos. Per-cebemos problemas relacionados a: comunicao,confiana e entendimento grupal (fofocas, intrigas,falta de conversa etc.). Vimos que a associao temseusmecanismos prprios para regular alguns destesproblemas, como advertncias verbais, regulamenta-das no estatuto.

    Oelementodesencadeadordoprocesso grupal o reconhecimentomtuo dos sujeitos, que ao se ve-remcompartilhando algo significativo, sentem-se cons-tituintes de um grupo. A partir do encontro promo-vem, simultaneamente, continuidades e rupturas coma histria pregressa, construindo assim sua prpriarota, sendo esta marcada tanto pelas singularidadespresentes quanto pela ao coletiva ali engendrada.Neste sentido, concordamos com a afirmao: A pro-duo do coletivo se faz medida que todos interageme negociam visando o interesse em comum, sendoque o coletivo produzido concomitantemente pelassingularidades que o produzem (ZANELLA& PEREI-RA, 2001, p.112).

    O que caracteriza a constituio do grupo a ao grupal ou coletiva, desencadeada por umaconsiderao mtua, realizando-se com oenvolvimento de todos e tendo como resultado o cole-tivo. Desta forma, sua existncia depender da aodeliberada de seus participantes e este agir coletivoser gerador de outras novas necessidades querealimentaro, por conseguinte, as relaes entre ossujeitos e seus interesses em trabalhar coletivamente.

    Partindo do entendimento do processo grupalcomo uma ao coletiva, buscamos uma maneira deinterveno profissional adequada aos coletivos soli-

    drios. Este suporte terico fundamentou a escolha detcnicas de dinmica de grupo adequadas para umainterveno grupal transformadora, possibilitando queos trabalhadores sejam vistos como sujeitos ativos,capazes de decidir coletivamente seus destinos, aindaque conscientes de suas possibilidades e limites.

    A expectativa inicial era a de desenvolver ummodelo de interveno psicolgica capaz de atenders necessidades de organizaes no tradicionais. Estaexperincia foi realizada a partir de mdulostemticos criados para organizar a atuao, relacio-nados a temas como: laos grupais, comunicao, li-derana e tomada de decises em grupo, cooperaoe solidariedade e identidade profissional e coletiva.Um desafio foi adaptar as prticas a trabalhadorescom baixo grau de escolaridade (muitos analfabetos),estabelecendo uma relao flexvel e no autoritriacom eles.

    Procurou-se realizar atividades vivenciais ins-pirados no psicodrama, em brincadeiras infantis e nosjogos cooperativos, de forma que o conhecimento pu-desse ser entendido de formamais eficiente e adequa-da para esses grupos. importante destacar as contri-buies da psicologia no que se refere a: compreen-so de fenmenos grupais, tomadas de deciso e reso-luo de problemas; fornecendo estratgias de resga-te da cidadania e da conscincia coletiva, estimulan-do a reflexo dos trabalhadores sobre seu potencialcomo agentes de mudanas sociais.

    O contato com estas organizaes permitiuque fosse percebido o quanto o apoio externo funda-mental para sua sobrevivncia. Foi possvel observarque freqentemente a criao, manuteno e desen-volvimentodesse tipodeorganizaodependedeapoiode educadores, de sindicalistas ou de tcnicos de ou-tras entidades. O desenvolvimento de polticas pbli-cas voltadas para o campo da economia solidria tam-bm fundamental para a sobrevivncia dos coleti-vos solidrios de trabalhadores.

    CONSIDERAESFINAISA economia solidria decorre de um conjun-

    to de circunstncias que pressionaram pela busca desadas para a difcil situao atual da classe traba-lhadora. Acreditamos que as experincias neste cam-po resultam de um processo contnuo de trabalhado-res em luta contra as desigualdades provocadas pelocapitalismo.

    Atuando no processo grupal, pode-se, tam-bm, auxiliar o grupo a tornar-se um local de dilo-go, solidariedade e cooperativismo, onde os sujeitosse envolvam na luta coletiva contra a opresso, injus-tia edesigualdade, antes enfrentadas individualmente.Se, por um lado, o desenvolvimento de um projetocomum transforma esses indivduos em grupo, por

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    Coutinho, M.C.; Rodrigues, H.B.C.; Beiras, A.; Picinin, D.; Lckmann, G.L. Novos caminhos, cooperao e solidariedade:a Psicologia em empreendimentos solidrios

    outro, somente sua estruturao como grupo quepossibilita a construo de alternativas solidrias deluta.

    Novos significados e aes so produzidos co-letivamente, pois juntos podem reconstruir seu mo-mento histrico, modificando-o, buscando superar asopresses existentes sobre o grupo. Tal superao, en-tretanto, defronta-se com os limites impostos pela in-sero dos coletivos solidrios em uma sociedade demercado, que privilegia valores econmicos.

    A partir disso, cabe ressaltar a importnciade projetos de extenso universitria voltados paraorganizaes solidrias, na medida em que estes au-xiliam a populao em suas necessidades bsicas eespecificas atravs de conhecimentos produzidos nocontexto da universidade, marcadamente nas univer-sidades pblicas. A integrao da universidade comas comunidades permite a aplicao dos conhecimen-tos acadmicos, adaptando-os a cada contexto e cri-ando novas possibilidades de atuao profissional.

    NOTAS1 Uma verso inicial deste artigo foi apresentada noXII Encontro Nacional da ABRAPSO, em outubro de2003 na PUCRS, Porto Alegre.2 Projeto de extenso universitria do curso degraduao em psicologia da Universidade Federal deSanta Catarina, intitulado Assessoria Psicolgica aOrganizaes Solidrias de Trabalhadores.3 Entendemos aqui como organizao solidria detrabalhadores (OST)uma formaalternativa de geraode renda, sendo que este coletivo pode se organizarcomo cooperativa ou associao, caracterizando-sepor formas coletivas de tomadadedeciso, propriedadecoletiva dos meios de produo e distribuioigualitria dos rendimentos.4 preciso ressaltar que as cooperativas agrcolas jeram comuns no Brasil, mas no se caracterizavamcomo empreendimentos solidrios.

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    Psicologia & Sociedade; 17 (1): 17-28; jan/abr.2005

    Maria Chalfin Coutinho docente do Departamentoe do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da

    Universidade Federal de Santa Catarina,coordendadora do projeto de extenso Assessoria

    Psicologia a Organizaoes Solidrias deTrabalhadaores.

    O endereo eletrnico da autora :[email protected]

    Adriano Beiras Psiclogo, Mestrando em Psicologiapela Universidade Federal de Santa Catarina.

    O endereo eletrnico do autor :[email protected]

    Dhiancarlos Picinin Psiclogo, Mestrando em Psi-cologia pela Universidade Federal de

    Santa Catarina.O endereo eletrnico do autor :

    [email protected]

    Gabriel Luiz Lckmann Psiclogo formado pelaUniversidade Federal de Santa Catarina.

    Maria Chalfin Coutinho, Adriano Beiras,Dhiancarlos Picinin, Gabriel LuizLckmannNovos caminhos, cooperao esolidariedade: a psicologia emempreendimentos solidrios.Recebido: 14/10/20041 reviso: 27/01/20052 reviso: 8/04/2005Aceite final: 25/04/2005