Notas Sobre a Suspensão Do Calendário Acadêmico

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Notas sobre a suspensão do calendário acadêmico Assim que se deflagra uma greve, surge, de maneira recorrente, o problema do calendário acadêmico, e insistentemente, a suspensão do calendário é proposta e aceita não só pela instituição como também pelo comando local de greve e pelos estudantes. Quero aqui defender o argumento de que essa suspensão, embora necessária de um ponto de vista pragmático, alimenta-se de um pacto tácito muito perigoso, o qual torna de antemão inócua parte do potencial da greve nas IFES, e, ao mesmo tempo, favorece certo barganhismo nas negociações. Como diz o ditado, o diabo habita os detalhes. Por que a suspensão do calendário acadêmico acaba por servir aos interesses do governo? Por um lado, aceitamos implicitamente que a greve não traz na verdade prejuízo algum, a não ser um atraso de calendário com o qual já estamos habituados e que, por conseguinte, quase nem mais incomoda. Juntando a isso o fato de que outras atividades (tais como pesquisa, extensão, administração, pós-graduação) costumam não parar, sob justificativas das mais variadas, acaba que a greve se transforma numa pausa da graduação. Aceitamos isso, seguimos resignados, e nesse intermezzo a vida segue na sua monotonia de sempre. Diante das dificuldades, a suspensão do calendário também serve para que o comando local de greve possa organizar melhor as atividades de greve, e também atender a possíveis e frequentes iniquidades praticadas por docentes que não atentam para o fato de que para além de suas necessidades, há questões coletivas que carecem uma reflexão conjunta. No entanto, no afã de cercar os “fura-greve”, a suspensão do calendário acadêmico também pode servir, na mão dos delegados da greve, como uma espécie de chibata contra os mais resistentes, contra aqueles que não querem aderir ao movimento de luta docente e que por isso “precisam” ser contidos à força. É bem verdade que, em termos práticos, a suspensão do calendário acadêmico acaba sendo uma solução razoável para facilitar a retomada das atividades, e para minimizar certas incoerências que a continuidade do calendário em tempos de greve acarretaria, sendo uma delas a dificuldade de gerenciar o retorno às aulas tendo que equalizar quem deu e quem não deu aula, quem veio ou quem não veio às aulas, que pôde ou quem não

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Notas sobre a suspenso do calendrio acadmicoAssim que se deflagra uma greve, surge, de maneira recorrente, o problema do calendrio acadmico, e insistentemente, a suspenso do calendrio proposta e aceita no s pela instituio como tambm pelo comando local de greve e pelos estudantes.

Quero aqui defender o argumento de que essa suspenso, embora necessria de um ponto de vista pragmtico, alimenta-se de um pacto tcito muito perigoso, o qual torna de antemo incua parte do potencial da greve nas IFES, e, ao mesmo tempo, favorece certo barganhismo nas negociaes. Como diz o ditado, o diabo habita os detalhes.Por que a suspenso do calendrio acadmico acaba por servir aos interesses do governo? Por um lado, aceitamos implicitamente que a greve no traz na verdade prejuzo algum, a no ser um atraso de calendrio com o qual j estamos habituados e que, por conseguinte, quase nem mais incomoda. Juntando a isso o fato de que outras atividades (tais como pesquisa, extenso, administrao, ps-graduao) costumam no parar, sob justificativas das mais variadas, acaba que a greve se transforma numa pausa da graduao. Aceitamos isso, seguimos resignados, e nesse intermezzo a vida segue na sua monotonia de sempre.Diante das dificuldades, a suspenso do calendrio tambm serve para que o comando local de greve possa organizar melhor as atividades de greve, e tambm atender a possveis e frequentes iniquidades praticadas por docentes que no atentam para o fato de que para alm de suas necessidades, h questes coletivas que carecem uma reflexo conjunta. No entanto, no af de cercar os fura-greve, a suspenso do calendrio acadmico tambm pode servir, na mo dos delegados da greve, como uma espcie de chibata contra os mais resistentes, contra aqueles que no querem aderir ao movimento de luta docente e que por isso precisam ser contidos fora.

bem verdade que, em termos prticos, a suspenso do calendrio acadmico acaba sendo uma soluo razovel para facilitar a retomada das atividades, e para minimizar certas incoerncias que a continuidade do calendrio em tempos de greve acarretaria, sendo uma delas a dificuldade de gerenciar o retorno s aulas tendo que equalizar quem deu e quem no deu aula, quem veio ou quem no veio s aulas, que pde ou quem no pde vir universidade (h, por exemplo, suspenso de transporte pblico de prefeituras que fornecem esse servio para os estudantes, o que impede muitas vezes que os mesmos sequer cheguem universidade). Mas, insisto, o diabo habita os detalhes...

Para sermos coerentes com o tempo parado, que s vezes, como na greve de 2012 chegou a quatro meses, seria importante no s suspender o calendrio, mas acima de tudo, anular o semestre. Do ponto de vista legal isso quase impossvel, mas levantar esse problema nos leva dimenso das conivncias. Isso significaria perder um semestre, e difcil pensar que mesmo os estudantes mais entusiasmados com a greve estariam dispostos a se sacrificar a tal ponto. A suspenso do calendrio protege, mas tambm alimenta um jogo de conivncias entre professores e estudantes, no qual as atividades so mantidas s vezes em surdina, ou lanadas no sistema aps a greve, a fim de que ningum seja prejudicado, ou, mais precisamente, a fim de que as vontades individuais, as necessidades individuais, no deixem de ser contempladas. Ora, por mais nobre que isso possa parecer, no fundo essa questo levanta um problema poltico importante, e que diz respeito coerncia de nossas aes, coerncia nas filigranas. Claro que minimizar prejuzos importante, mas tambm importante que os prejuzos inevitveis sejam sentidos, sejam relevantes, doam na carne de nossas escolhas, pois isso parte do dispositivo de greve. E quem sabe, ao enfrentar consequncias mais duras da greve, passemos a nos envolver mais diretamente no processo... fato que a mobilizao pequena, o que no implica que ela seja menos relevante. Que alguns bravos tcnicos, docentes, discentes, lancem-se de modo mais corajoso na conduo da greve, isso algo a ser respeitado (mesmo que as razoes para tal engajamento no sejam sempre claras), mas no universo das IFES, e de nossa universidade especificamente, esses bravos representam parcela ainda pequena, e isso precisa ser considerado, no apenas em termos de queixa em relao aos menos motivados, mas tambm no que diz respeito s estratgias da luta.

Talvez seja necessrio discutirmos mais o calendrio acadmico, e a suspenso deste, pois que por detrs desse gesto h um universo de questes polticas e ticas que remetem diretamente educao, e luta pela educao, no sentido amplo do termo.