NOTAS PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

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 8/28/14, 6:26 PM Page 1 of 7 http://www.bvanisioteix eira.ufba.br/ar tigos/notas2.html TEIXEIRA, Anísio. Notas para a história da educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.37, n.85, jan./mar. 1962. p.181-188. NOTAS PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Na inauguração dos cursos da Universidade pioneira do então Distrito Federal, a 31/7/935, o Reitor Prof. Anísio Teixeira proferiu estas palavras: Por mais limitado que seja o âmbito de vida de qualquer povo, lá iremos encontrar, em gérmen - por vêzes, obscuras e indiscriminadas, - quatro grandes instituições fundamentais, que lhe constróem e condicionam a vida em comum: a família, o estado, a igreja e a escola. Desde que haja vida em comum, e vida em comum de homens, essas instituições, sob alguma forma, hão de aparecer, e aparecem para manter, nutrir, ordenar e iluminar a vida em comum. Existir em sociedade envolve, com efeito, imensas complexidades. Cada indivíduo nada mais sendo do que uma urdidura de laços sociais, tôda sua vida transcorre em plano superior ao de sua própria vida física e seus meios de expressão não podem ser outros que os das instituições de sua sociedade. Dentre essas instituições avultam as que mais largamente lhe compõem o quadro da existência coletiva. A família que vela pelo seu desenvolvimento inicial e o conduz a se tornar, por sua vez, um perpetuador de sua espécie; o estado que lhe defende e regula a vida em grupo; a igreja que lhe dá o sentido profundo do seu devotamente social; e a escola que o humaniza e socializa. Tôdas essas funções se confundem e se misturam, em cada uma dessas instituições, de tal maio que a história de qualquer delas é, de algum modo, a história da humanidade.  À medida que marcha a civilização, melhor se caracterizam, entretanto, essas instituições e um equilíbrio, sem hierarquia, se vai estabelecendo entre suas funções. Se tôdas visam, com efeito, tornar possível e rica a vida entre os homens, nem por isso são menos distintos e independentes os meios de que dispõem para êsse mesmo fim comum e único. Nesse sentido vamos lentamente emergindo da confusão inicial em que tôdas as instituições sofriam a supremacia de uma única, fôsse a família, a igreja ou o estado, para uma separação de podêres que é essencial à ação correta e adequada de cada uma delas. Predomínio estreito da família, prepotência da igreja, ditadura espiritual do estado, êsses foram, com efeito, os estágios que temos atravessado, e em que se corrompeu a pureza funcional de cada uma dessas instituições pelo uso de meios que pertenciam orgânicamente ao desempenho de funções, qualitativamente diversas, das demais instituições.  A independência e separação entre elas não é, assim, contingência política, mas o próprio imperativo experimental para seu bom funcionamento. De tôdas elas, a escola é a que mais recentemente se vem emancipando, não sendo quase possível exemplificar, na história, já não digo período de sua predominância, mas de sua legítima e total, independência. Confundida sua função com a família, com a igreja e com o estado, é, ainda hoje com êsses três senhores, que ela discute sua autonomia... Ou melhor, são ainda êsses três senhores que discutem, entre si, sôbre a sua tutela. Nem por isso, entretanto, a evolução inevitável das instituições deixa de se processar. Nessa designação genérica de escola, há muita cousa que distinguir. Da simples cerimônia de iniciação por 

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Anisio Teixeira

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    TEIXEIRA, Ansio. Notas para a histria da educao. Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos. Riode Janeiro, v.37, n.85, jan./mar. 1962. p.181-188.

    NOTAS PARA A HISTRIA DA EDUCAO

    Na inaugurao dos cursos da Universidade pioneira do entoDistrito Federal, a 31/7/935, o Reitor Prof. Ansio Teixeiraproferiu estas palavras:

    Por mais limitado que seja o mbito de vida de qualquer povo, l iremos encontrar, em grmen - porvzes, obscuras e indiscriminadas, - quatro grandes instituies fundamentais, que lhe constrem econdicionam a vida em comum: a famlia, o estado, a igreja e a escola.

    Desde que haja vida em comum, e vida em comum de homens, essas instituies, sob alguma forma,ho de aparecer, e aparecem para manter, nutrir, ordenar e iluminar a vida em comum. Existir emsociedade envolve, com efeito, imensas complexidades. Cada indivduo nada mais sendo do que umaurdidura de laos sociais, tda sua vida transcorre em plano superior ao de sua prpria vida fsica eseus meios de expresso no podem ser outros que os das instituies de sua sociedade.

    Dentre essas instituies avultam as que mais largamente lhe compem o quadro da existnciacoletiva. A famlia que vela pelo seu desenvolvimento inicial e o conduz a se tornar, por sua vez, umperpetuador de sua espcie; o estado que lhe defende e regula a vida em grupo; a igreja que lhe d osentido profundo do seu devotamente social; e a escola que o humaniza e socializa.

    Tdas essas funes se confundem e se misturam, em cada uma dessas instituies, de tal maio que ahistria de qualquer delas , de algum modo, a histria da humanidade.

    medida que marcha a civilizao, melhor se caracterizam, entretanto, essas instituies e umequilbrio, sem hierarquia, se vai estabelecendo entre suas funes.

    Se tdas visam, com efeito, tornar possvel e rica a vida entre os homens, nem por isso so menosdistintos e independentes os meios de que dispem para sse mesmo fim comum e nico.

    Nesse sentido vamos lentamente emergindo da confuso inicial em que tdas as instituies sofriam asupremacia de uma nica, fsse a famlia, a igreja ou o estado, para uma separao de podres que essencial ao correta e adequada de cada uma delas.

    Predomnio estreito da famlia, prepotncia da igreja, ditadura espiritual do estado, sses foram, comefeito, os estgios que temos atravessado, e em que se corrompeu a pureza funcional de cada umadessas instituies pelo uso de meios que pertenciam orgnicamente ao desempenho de funes,qualitativamente diversas, das demais instituies.

    A independncia e separao entre elas no , assim, contingncia poltica, mas o prprio imperativoexperimental para seu bom funcionamento.

    De tdas elas, a escola a que mais recentemente se vem emancipando, no sendo quase possvelexemplificar, na histria, j no digo perodo de sua predominncia, mas de sua legtima e total,independncia.

    Confundida sua funo com a famlia, com a igreja e com o estado, , ainda hoje com sses trssenhores, que ela discute sua autonomia... Ou melhor, so ainda sses trs senhores que discutem,entre si, sbre a sua tutela.

    Nem por isso, entretanto, a evoluo inevitvel das instituies deixa de se processar. Nessadesignao genrica de escola, h muita cousa que distinguir. Da simples cerimnia de iniciao por

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    que ela se caracterizava nos povos primitivos, diretamente subordinada sociedade, em sua funoglobal de matriz de indivduo, at a complexidade dos sistemas escolares modernos, h uma longaestrada percorrida, em que se podem perder de vista muitos dos objetivos fundamentais da escola, nasua funo caracterstica, de mantenedora dos valores humanos e de instrumento para o seudesenvolvimento.

    em uma das formas que assumiu, nos tempos modernos, tal instituio que vamos encontrar anatureza legtima de sua funo histrica. Essa forma a da Universidade.

    Data realmente das Universidades a distino profunda das funes da sociedade. At sse remotoundcimo sculo de nossa poca, o intersse pelo estudo, pela cultura e pela inteligncia, se confundiadentro das instituies existentes, sobretudo da Igreja, no sendo a conservao e o desenvolvimentodo saber humano objeto de nenhuma instituio especializada e autnoma.

    As origens das Universidades, embora diversas nas suas circunstncias concretas, em cada regio daEuropa, encontram sua causa fundamental na estabilizao das correntes migratrias e napossibilidade que da decorreu para o desenvolvimento da civilizao europia. De certo modo, pois, asUniversidades anunciam o florescer da civilizao ocidental.

    Chegada a vida humana ao estgio de desenvolvimento em que se encontra no sculo dcimo eundcimo de nossa poca, comea a se discriminar, com as Universidades, a funo da escola, no seucarter de rgo supremo da direo intelectual da humanidade.

    O tipo de organizao social dessa poca iria favorecer, de algum modo, a autonomia da novainstituio. A Idade Mdia, com efeito, por efeito, por intermdio do feudalismo, das corporaes e daIgreja controlava e governava, integralmente, a vida individual. Tdas as franquias, direitos e privilgioseram distribudos e assegurados por essas instituies a que se incorporavam todos os indivduos.

    O aparecimento das universidades significava o aparecimento de uma instituio que retirava da Igrejae do Estado funes anteriormente exercidas por sses dois podres. De quem receberia essainstituio o direito de existir e funcionar? Em sociedade menos rgida que a da Idade Mdia, medrariampor si e de si mesmas, sujeitas a tdas as eventualidades. Naquela sociedade, entretanto, a disciplinaque as regulou foi uma condio para o exerccio vigoroso da sua funo. A carta ou estatuto de direitose privilgios, concedidos s novis instituies pelos monarcos ou pelo Papa, foi o primeiroreconhecimento da autonomia essencial que vieram desenvolvendo, da por diante, as universidades,at que se puseram em p de igualdade com as grandes instituies fundamentais da humanidade: afamlia, a igreja e o estado.

    A Universidade , pois, na sociedade moderna, uma das instituies caractersticas e indispensveis,sem a qual no chega a existir um povo. Aqules que no as tm, tambm no tm existnciaautnoma, vivendo, to-smente, como um reflexo dos demais.

    Com efeito, a histria de todos os pases que floresceram e se desenvolveram a histria da suacultura e a histria da sua cultura , hoje, a histria das suas universidades. Sempre a humanidadeviveu utilizando a experincia do passado, mas essa experincia atingiu, nos tempos modernos, atamanha complexidade intelectual, que, sem a existncia das universidades, grande parte dela se teriaperdido e outra grande parte nem chegaria a ser formulada.

    Dir-me-eis que a imprensa e o livro as salvariam, dispensando as dificuldades e dispndios dessascomplexas organizaes universitrias que a muitos, entre ns, chegam a parecer luxuosas esuprfluas.

    De fato, parece que assim devia ser. Com a inveno da imprensa, prticamenle deveria desaparecer aUniversidade.

    Ocorre-me, at, que essa deve ser a razo filosfica e profunda, porque corrente entre ns a idia,verdadeiramente formidvel, de que a cultura de um povo deriva de lhe ensinarmos a ler. Asesperanas exageradas postas na alfabetizao apressada dos brasileiros devem estar a. Por queuniversidade, por que ensino superior, se existem livros e se os livros contm tda a cultura humana?

    J reparastes, entretanto, que a nenhum povo da histria ocorreu sse vo de Colombo? J notasteque, muito pelo contrrio, a imprensa e o livro condicionaram o surto das universidades?

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    No. A funo da Universidade uma funo nica e exclusiva. No se trata smente de difundirconhecimentos. O livro tambm os difunde. No se trata, smente, de conservar a experincia humana.O livro tambm a conserva. No se trata, smente, de preparar prticos ou profissionais, de ofcios ouartes. A aprendizagem direta os prepara, ou, em ltimo caso, escolas muito mais singelas do queuniversidades.

    Trata-se de manter uma atmosfera de saber, para se preparar o homem que o serve e o desenvolve.Trata-se de conservar o saber vivo e no morto, nos livros ou no empirismo das prticas nointelectualizadas. Trata-se de formular intelectualmente a experincia humana, sempre renovada, paraque a mesma se torne consciente e progressiva.

    Trata-se de difundir a cultura humana, mas de faz-lo com inspirao, enriquecendo e vitalizando osaber do passado com a seduo, a atrao e o mpeto do presente.

    O saber no um objeto que se recebe das geraes que se foram, para a nessa gerao, o saber uma atitude de esprito que se forma lentamente ao contato dos que sabem.

    A Universidade , em essncia, a reunio entre os que sabem e os que desejam aprender. H tda umainiciao a se fazer. E essa iniciao, como tdas as iniciaes, se faz em uma atmosfera que cultive,sobretudo, a imaginao. . . Cultivar a imaginao cultivar a capacidade de dar sentido e significados coisas. A vida humana no o transcorrer montono de sua rotina quotidiana, a vida humana ,sobretudo, a sublime inquietao de conhecer e de fazer. essa inquietao de compreender e deaplicar, que encontrou afinal a sua casa. A casa onde se acolhe tda a nossa sde de saber e tda anossa sde de melhorar, a Universidade.

    Tanto mais ficamos capazes de compreender - pelos processos cientficos modernos - tanto maisficamos capazes de aplicar, sob forma nova, o que compreendemos - pelos meios industriais modernos- tanto mais precisamos e tanto mais sentimos a Universidade, a instituio que vela para que acuriosidade humana no se extinga, mas se cultive, se alimente e continue a fazer marchar a vida.

    So as Universidades que fazem, hoje, com efeito, a vida marchar. Nada as substitui. Nada asdispensa. Nenhuma outra instituio to assombrosamente til. Perdoai-me, senhores, essa longaexposio que se tornou necessria para chegarmos ao limiar da nossa jovem Universidade do DistritoFederal, cujos cursos hoje se inauguram. Em pas, como o Brasil, extenso como um continente, a queaportou h 135 anos a civilizao ocidental, a civilizao feita pelas Universidades, deveria ter parecidoa muitos uma extravagncia mais uma universidade. Deveria ser uma extravagncia, tantas jdeveramos ter. A pequena Europa possua no sculo XIII, dezenove dessas instituies. No sculo XIV,quarenta e quatro. No sculo XV, setenta e quatro.

    Quase cinco sculos depois, possumos seis universidades, das quais apenas uma tem, alm deobjetivos prticos e profissionais, objetivos de cultura desinteressada e de preparao para a carreiraintelectual.

    Pois neste nosso pas que no , positivamente, a ptria das universidades, comeamos a nosorganizar, com rumres em volta de ns de que somos de mais, de que nos sobram instituies decultura superior e nos faltam escolas primrias.

    Ningum at hoje mais profundamente sentiu a necessidade de educao popular primria queJefferson, que declarou, certa vez, em 1823, que, se tivesse que escolher entre o ensino primrio e aUniversidade, mais fcilmente fecharia esta do que aqule, de tal modo lhe parecia importante para oseu pas a difuso entre a massa, dos conhecimentos essenciais. Raros homens de estado, entretanto,podem se orgulhar, como Jefferson, de terem deixado de sua vida um monumento to imperecvelcomo Universidade de Virgnia, carinhosamente fundada, organizada e constituda pelo grandeesprito da democracia no nvo Continente.

    E o fz em perodo em que o ensino primrio em seu pas apenas se iniciava, no estando sequerfundada a primeira escola normal de professres primrios.

    Nesta prpria Amrica do Norte, as grandes e famosas Universidades datam de muitas dezenas e, porvzes, centenas de anos antes de se pensar em um sistema de educao pblica para todos.

    que nenhum pas do mundo, at hoje, julgou possvel construir uma cultura de baixo para cima, dos

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    ps para a cabea. Para haver ensino primrio, necessrio que exista antes o secundrio e para queo secundrio funcione, preciso que existam Universidades.

    Entre ns, predominou, entretanto, em cultura o mais espantoso praticismo que j alguma vez assolouuma nao. Em ensino primrio, basta-nos alfabetizao, e acima dele bastar-nos-ia, todos o repetem,ensino de ofcios e artes. Que estranho pas seria sse em que a cultura e a cincia ainda nochegaram a ser aceitas e, por tda a parte, se pede to singular e universal formao utilitarista, nosentido limitado e estreito da palavra?

    sse pas o pas dos diplomas universitrios honorficos, e o pas que deu s suas escolas umaorganizao to fechada e to limitada, que substituiu a cultura por duas ou trs profisses prticas, opas em que a educao, por isso mesmo, se transformou em ttulo para ganhar um emprgo.

    Haver, por acaso demasiado ensino superior, no Brasil? No. O que h so demasiadas escolas decerto tipo profissional, distribuindo anualmente diplomas em nmero muito maior que o necessrio e opossvel, no momento de se consumir.

    Entre essas escolas e as escolas de que precisa o pas para formar seu quadro de intelectuais, deservidores da inteligncia e da cultura de professres, escritores, jornalistas, artistas e polticos, h todoum mundo a transpor.

    E qual a Universidade que abre, hoje, aqui as suas portas? , por acaso, mais urna universidade para opreparo puro e simples de profissionais, de mdicos, bacharis, dentistas e de engenheiros civis?

    No. uma universidade cujas escolas visam o preparo do quadro intelectual do pas, que at hoje setem formado ao sabor do mais abandonado e mais precrio autodidatismo. Uma escola de educao,uma escola de cincia, uma escola de filosofia e letras, uma escola de economia e direito, e um institutode artes, com objetivos desinteressados de cultura no podem ser demais no pas, como no podemser demais na metrpole dsse pas.

    A crtica no tinha como ser mais infeliz. No podia morrer, entretanto, a malevolncia dos que seobstinam em no deixar o pas progredir para que possa continuar a viver custa dle, na sua meiaignorncia. J agora, a Universidade do Distrito Federal podia ser til e at necessria, mas deviafechar-se porque desobedecia os padres de uma lei federal do perodo discricionrio, tcitamentederrogada pela Constituio Federal.

    Representantes diretos da autonomia local se transformaram, sbitamente, em vestais de umregulamento universitrio federal, encontrando a elementos doutrinrios e tcnicos para destruir ainstituio carioca que no quisera duplicar as congneres federais, mas organizar-se em moldesprprios que, entretanto, no ferem, essencialmente, nenhum dispositivo das prprias leis federaisderrogadas pela Constituio.

    Desobedecia, porm, letra dos regulamentos do govrno provisrio; h nomes que no sointegralmente os mesmos; h divises e autonomias que no so previstas; e no h passiva e textualrepetio do que est escrito na lei federal; logo a Universidade inconstitucional, ilegal e nula.

    Nunca se chegou, no Brasil, a to insignificante, estreita e elementar compreenso do problemaeducativo brasileiro. Nunca se pretendeu to infantilmente encerrar-se a cultura nacional dentro de umregulamento. Nunca o esprito burocrtico foi to audacioso em querer sobrepor-se prpria realidadedas coisas e prpria realidade das instituies. Tudo, para qu? Para ferir o Distrito Federal que seatrevera a pensar em uma Universidade e se atrevera a faz-la porque os que deviam t-la feito, no afizeram at agora.

    H, entretanto, senhores, alguma incompatibilidade real entre a Universidade do Distrito Federal e osregulamentos ou leis federais? Nenhuma de nenhuma. Na lei federal, para seu modlo temos apenas aFaculdade de Educao, Cincias e Letras, representada na Universidade do Distrito pela Escola deCincias, Escola de Educao e Escola de Filosofia e Letras, que obedecem aos requisitos mnimos dalei federal. Temos ainda a Escola de Economia e Direito e o Instituto de Artes. Se, por acaso, amanh,as circunstncias demandassem que a Universidade mantivesse maior nmero de cursos idnticos aosfederais, todos les se podero instalar dentro das frmas do decreto institudo.

    lmaginemos, porm, que as maquinaes dos inimigos do Distrito Federal viessem a triunfar e que

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    novas leis federais, como uma que foi tentada, pudessem realmente ferir a Universidade local e impedir-lhe a validez dos ttulos alm dos limites da cidade do Rio de Janeiro.

    Que sucederia? Sucederia que a Universidade no s continuaria a viver e a servir esta grandemetrpole, como ainda ganharia mais profundamente seu carter de Universidade que deseja valer peloseu mrito intrnseco e no pelas chancelas governamentais que possam receber seus ttulos.

    Profisses se regulamentam, mas no se regulamenta a cultura. Um homem culto e um homemdiplomado so duas coisas. Infelizmente, bem diversas entre ns.

    Escreveu certa vez algum a Voltaire, estranhando a pobreza de nomes da lngua francesa paradesignar os sbios. Voltaire respondeu dando ao ingnuo missivista vrios trmos sinnimos e lhedizendo por fim: o que , porm, importante que no smente temos o nome, mas a coisa.

    A nossa situao seria de algum modo semelhante, caso se realizasse a previso absurda com que nosquerem ameaar: deixaramos de ter o nome, mas teramos a coisa...

    So dsse quilate as dificuldades com que procuram obstar a marcha do sistema escolar do DistritoFederal. Ontem, faziam o mesmo com o ensino secundrio. Tambm sse era vedado ao Municpio.Tambm sse era vedado Capital do Pas. Hoje com o ensino universitrio. O povo, entretanto,saber ver e separar os que o esto servindo e os que se dizem seus defensores e, na realidade,amesquinham e diminuem tudo que realizado e tentado por sse forte e intrpido povo carioca.

    O humilde ensino primrio que lhe permitiam possuir est hoje quase que duplicado com escolas quehonram todo o Brasil. O ensino tcnico, redimido de suas bases antidemocrticas, hoje se ostenta comoum verdadeiro sistema de ensino secundrio, de sentido nacional, para uma sociedade de trabalho, queleva para a oficina o mesmo ttulo que habilita a uma ocupao de carteira. E agora o ensino superior, jiniciado com o preparo em nvel universitrio dos mestres primrios, se amplia em uma universidade defins culturais, que buscar desenvolver o saber em todos os seus aspectos, aspirando transformar-senum dos grandes centros de irradiao cientfica, literria e filosfica do pas.

    Essa irradiao de pensamento no vir, smente, do acrscimo de conhecimentos para quepossvelmente a universidade tenha de contribuir.

    Essa irradiao ser antes a conseqncia da coordenao intelectual que a universidade fatalmentedesenvolver.

    A cultura brasileira se ressente, sobretudo, da falta de quadros regulares para sua formao. Em pasesde tradio universitria, a cultura une, solidariza e coordena o pensamento e a ao. No Brasil, acultura isola, diferencia, separa. E isso, por qu? Porque os processos para adquiri-Ia so to pessoaise to diversos, e os esforos para desenvolv-la to hostilizados e to difceis, que o homem culto, medida que se cultiva, mais se desenraza, mais se afasta do meio comum, e mais se afirma nosexclusivismos e particularismos de sua luta pessoal pelo saber.

    No h uma comunho dos cultos. Repelido, muitas vzes, pelo meio, sbre o qual se eleva pelosconhecimentos superiores ou especializados que adquiriu prpria custa, o homem culto , ainda, noBrasil, hostilizado pelos outros homens cultos. A heterogeneidade e deficincia dessas diferentesculturas individuais e individualistas, fazem com que o campo de ao intelectual e pblica, no pas, seconstitua um campo de lutas mesquinhas e pessoais, em que se entredevoram, sem brilho e sem glria,os parcos homens de inteligncia e de imaginao que ainda possumos.

    No ser isso, exatamente, porque nos faltam essas instituies regulares de cultura, em que oshomens se formam num ambiente de livre circulao de idias, seguindo caminhos diversos, mas emuma mesma atmosfera e um mesmo meio, vivendo, afinal, a vida da inteligncia, em comum,associadamente, fraternalmente?

    A singular agrestia do meio intelectual e pblico do Brasil, em que os julgamentos so armas decombate, a anlise, forma insidiosa de oposio, e o desejo de destruir e diminuir a obra alheia, oprprio modo de ser da inteligncia, no ser sse nosso famigerado antropofagismo poltico e mental aconseqncia mais grave do nosso nomadismo intelectual, do nosso isolamento espiritual, e dosnossos processos indgenas de estudo e de formao mental?

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    Estou que sse o mais grave aspecto do aparentemente inocente autodidatismo nacional. Somosisolados e hostis, porque isolada e hostil a forma de nos prepararmos intelectualmente para as lutasda vida e do esprito.

    No cooperamos, no colaboramos, no nos solidarizamos com os companheiros. nem em ao, nemem pensamento porque cada um de ns o centro do universo, e s dsse centro partir a verdadeiraao e o verdadeiro pensamento.

    sse isolamento que a Universidade vir destruir. A Universidade socializa a cultura, socializando osmeios de adquiri-Ia. A identidade de processos, a identidade de vida, e a prpria unidade local far comque nos cultivemos, em sociedade. Que ganhemos em comum a cultura. Que nos sintamos solidrios eunidos pela identidade de objetivos, de preocupaes, de intersses e de idias. E, da, que nossintamos uma comunidade governada por um esprito comum e comuns ideais.

    A coordenao da vida espiritual do Brasil no nos chegar sem o cultivo dos processos universitriosde ensino superior. O isolamento e o autodidatismo nacionais fazem-nos incoerentes, paradoxais,irritadios e extravagantes. A opinio intelectual de um pas o reflexo de seus meios e processos decultura. A universidade vem-nos dar disciplina, ordem, sentido comuns e capacidade de esfro emcomum. Nenhum ideal menor pode-nos bastar, na pequena universidade que hoje aqui se instala, paraa grande aventura intelectual que vamos viver. Ela h de triunfar e h de cumprir seu dever e suamisso.

    Pouco importam as fadas ms... Tambm as boas lhe rodeiam o bero. H tda uma expectativa sadiae otimista em trno da nova instituio, expectativa confirmada peIa escolha dos primeiros professrese pela afluncia de candidatos s suas matrculas.

    De tal modo a Universidade do Distrito Federal vem preencher uma necessidade profunda do pas, quesua marcha se far, a despeito de quaisquer dificuldades materiais e de quaisquer obstculos opostospelos que sonhavam um instrumento semelhante, para afeio-lo aos seus desgnios ou aos seuspropsitos sectrios.

    Porque, foroso repetir, a Universidade, como instituio de cultura, dever estar na encruzilhada dopresente. Ela no se constitui para isolar da vida e torn-la a mestra da experincia. Seus problemassero os problemas de hoje, examinados luz da sabedoria do passado. A servio do presente e dofuturo, a Universidade no deseja, entretanto, constranger o porvir dentro de frmulas apriorsticas oupredeterminadas.

    Muito ciosa das conquistas feitas de liberdade de pensamento e de crtica, a Universidade no asdispensa para viver. No ter ela nenhuma "verdade" a dar, a no ser a nica verdade possvel, que ade busc-la eternamente. Fiel, assim, grande tradio universitria da humanidade, havia de, porcerto, desgostar aos que querem diminuir o Brasil at ajust-lo aos limites de suas ideologias pessoaise de suas pessoais inquietaes.

    Muitos sonhavam, certo, iniciar entre ns, a tradio universitria recusando essa liberdade dectedra que foi conquistada pela inteligncia humana nas primeiras refregas intelectuais de nossapoca.

    Muitos julgavam que a Universidade poderia existir, no Brasil, no para libertar, mas para escravizar.No para fazer marchar, mas para deter a vida. . . Conhecemos, todos, a linguagem dssereacionarismo. Ela matusalnica.

    "A profunda crise moderna sobretudo uma crise moral" "Ausncia de disciplina" "De estabilidade""Marchamos para o caos Para a revoluo". " o comunismo que vem a". Falam assim hoje. Falavamassim, h quinhentos anos.

    que a liberdade, meus senhores, uma conquista que est sempre por fazer. Desejamo-la para ns,mas nem sempre a queremos para os outros. H, na liberdade, qualquer coisa de indeterminado e deimprevisvel, o que faz com que s a possam amar os que realmente tiverem provado, at o fundo, ainsignificncia da vida humana, sem o acre sabor dsse perigo. Por isso que a Universidade e deveser a manso da liberdade. Os homens que a servem e os que, aprendendo, se candidatam a servi-Ia,devem constituir sse fino escol da espcie para quem a vida s vale pelos ideais que a alimentam.Essa bravura que os torna invencveis. No morreram em vo os que morreram por sse ideal de um

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    "pensamento livre como o ar" ...

    Todos os que desapareceram nessa luta, corno todos os que hoje nela se batem, constituem a grandecomunho universitria que celebramos nesta inaugurao solene dos nossos cursos.

    Dedicada cultura e liberdade, a Universidade do Distrito Federal nasce sob um signo sagrado, que afar trabalhar e lutar por um Brasil de amanh, fiel s grandes tradies liberais e humanas do Brasil deontem.

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