NÃO-HUMANOS EM AÇÃO E SUAS PARCERIAS”
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"NÃO-HUMANOS EM AÇÃO E SUAS PARCERIAS”
Eduardo Nazareth Paiva
Professor Colaborador
HCTE-UFRJ
RESUMO
A proposta deste trabalho será refletir sobre os não-humanos em nossa sociedade, suas
ações e suas parcerias. Vemos nossas sociedades cada vez mais sendo populadas de
não-humanos que convivem com nossos cotidianos. São computadores, Internet,
SmartPhones, Câmeras de Vigilância, Assistentes não humanos e Bots de toda ordem,
desde aqueles que atuam nos atendimentos dos bancos e lojas que mais investem em
novas tecnologias, até aqueles que assistem eletronicamente, por exemplo, a frenagem e
a estabilidade de nossos veículos ou mesmo nossos avatares. Os produtos da
tecnociência invadem inclusive nossos corpos, como próteses, marcapassos, entre
outros. Além de produtos das tecnociências, digamos assim, mais duras, dividimos
nosso mundo ainda com produtos de naturezas diversas de outras e tantas ordem tais
como aqueles oriundos da química, da informática, e das biotecnociências, etc; estes se
misturam e reagem em nosso ambiente e em nossos corpos: são vírus (virtuais,
atenuados, etc); agrotóxicos, medicamentos, mosquitos transgênicos, nanodispositivos,
etc. Para nossa tranquilidade, em primeira instância, pensamos que eles sempre
aprendem conosco, os humanos, mas não temos garantias disso. Os não-humanos das
tecnociências mais duras saem dos laboratórios e podem continuar a atuar de forma
similar no ambiente. Já os produtos da inteligência artificial, nos confundem e
prenúncios dessas relações e intervenções podem ser experimentadas, por exemplo, no
filme Her (Ela) de 2013, dirigido por Spike Jonze. Assim como a Ciência e a
Tecnologia acabaram por construir um mundo em que Deus não seria mais necessário,
paradoxalmente a moderna Tecnociência parece conjurar com a nossa sede por avanços
tecnocientíficos em um mundo em que o ser humano parece que não será mais
necessário; ou, ao menos, não será mais existente puro. Ate que ponto somos cada vez
mais parceiros de não-humanos? Como lidar com parcerias humanos-não-humanos
marcadas pela ampliação dos gaps, das irreversibilidades, das ubiquidades e das
produções de obsolescências determinando relações assimétricas de parceria entre o
Global e o Local?
1. INTRODUÇÃO
O trabalho começa reconhecendo, de antemão, as suas contradições e paradoxos ao
tentar buscar uma simetria daquilo que reconhecemos como sendo humano em suas
ações e parcerias com aquilo que não reconhecemos como humano, no stricto sensu da
palavra. Tentaremos dialogar com os não-humanos, pressupostos aqui como os
criadores e origem dos chamados humanos. Assim sendo, este trabalho se interessará
pelos não-humanos em suas diversas identidades, biológicas ou não, sociológicas ou
não, produtoras de cultura ou não, etc. Não é o objetivo do trabalho buscar e demonstrar
possíveis essências dos não-humanos, ou seja, não nos aprofundaremos nas suas
constituições em si, mas sim investiremos nas observações e materialidades produzidas
pelas suas coexistências. A estratégia aqui é buscar um recurso analítico-textual que nos
permita descrever estas coexistências humanos-não-humanos a partir das conexões,
historicidades e semióticas das materialidades envolvidas e produzidas nestas
convivências humanos-não-humanos. Em síntese, este movimento pode ser descrito
como uma tentativa de mirada na sociologia das associações para tentar produzir esta
análise e narrativa de como a interação humano-não-humano é repleta de coexistências
e, por extensão, eivada de parcerias. O trabalho se apoia e é influenciado por ideias e
por autores como Gabriel Tarde (VARGAS, 2000; VARGAS, 2000), Bruno Latour
(LATOUR, 2013), Viveiros de Castro (CASTRO, 2005), Ivan da Costa Marques
(MARQUES, 2014) entre outros (PASTOR, 2019).
2. INTERAÇÕES E PARCERIAS HUMANAS-NÃO-HUMANAS
Vamos explorar um pouco, inclusive etimologicamente, o que seria uma parceria. A
palavra parceria é derivada da palavra parceiro ou parceira, do latin "partiarĭum" (que
participa). Ela tem como sinônimos as palavras sociedade, acordo, união, companhia
entre outras. Pode ser vista como um acordo, uma união ou contrato firmado entre
indivíduos ou empresas que têm um mesmo propósito, às vezes indecifrável. É o
resultado de algo que faz par com outro, que não apresenta diferença em relação a outro;
semelhante, um próximo na visão cristã. É o resultado de um pareamento de algo com o
que (ou com quem) se joga, dança, atua ou pratica alguma atividade. É o resultado de
uma companhia, de uma cumplicidade, de uma sociedade. É um resultado no qual cada
um dos indivíduos ou empresas ao se associarem para realizar ou desenvolver projetos
comuns, permitindo a cada uma das partes servir melhor os interesses da outra. A
parceria é participação e de acordo com a etimologia da palavra, "participação" origina-
se do latim "participatio" (pars + in + actio) que significa ter parte na ação. Assim,
poderíamos dizer que uma parceria efetiva se desenvolve quando temos as partes
envolvidas em ação. É isto que tentaremos desenvolver a partir de então, como humanos
e não-humanos se envolvem, entram em ação ou permanecem juntos em potencial.
Julgamos secundário para os objetivos deste trabalho, debater ou rebater o uso de
argumentos que busquem diminuir a autonomia e o poder de decisão dos não-humanos.
Afinal são questões que demandam muito mais do que algumas páginas. Ou será que
temos autonomia plena sobre nossos destinos no universo? Ou somos o resultado dos
destinos de todos, humanos e não-humanos sem distinção? Ou sabemos bem quando,
como e por quem fomos criados? Queremos mesmo salvar o planeta ou nos salvar? Pois
é, melhor deixarmos estes grandes temas para outros momentos e espaços. Trazê-lo
aqui, nestes termos, penso, levaria a discussão para uma argumentação e retórica que
poderia tender a se aproximar da chamada “falácia do espantalho” ou “falácia do
homem de palha”. Muitos debates para pouco rendimento mútuo. Aqui busco exercitar
em que lê o trabalho a reflexividade e a alteridade humana-não-humana.
Superadas estas possíveis divergências, poderíamos ver as questões situadas das
parcerias entre humanos e não-humanos como as pontas dos icebergs do que Bruno
Latour denominou de Princípio de Simetria Generalizado, ou ainda, a ousadia de tentar
buscar uma posição triplamente simétrica, qual seja: tentar explicar com os mesmos
termos as verdades e os erros - primeiro principio de simetria; tentar estudar ao mesmo
tempo a produção dos humanos e dos não-humanos - segundo princípio de simetria;
tentar ocupar uma posição intermediária entre os terrenos tradicionais e os novos, por
tentar suspender toda e qualquer afirmação a respeito daquilo que distinguiria os
ocidentais dos outros - terceiro princípio de simetria (LATOUR, 2013, p. 93-95;101-
102).
Eu penso que outra forma de apresentar o Princípio de Simetria Generalizado é vê-lo
como uma parceria articulada, nem sempre harmônica, entre o Programa Forte de
Edimburgo (BLOOR, 1991), os Estudos Culturais (WILLIAMS, 2015), as
Epistemologias Ciborgues (HARAWAY, 2016) e os Estudos Fronteiriços (PALERMO
e QUINTERO, 2014) ou Decoloniais (MIGNOLO, 2003).
Consideramos particularmente importante um olhar para a forma como se estabelecem
as parcerias humanos-não-humanos, na medida que observamos que os não-humanos
estão desempenhando um papel cada vez mais importante e funcionando como um
agente determinante na produção de irreversibilidades, obsolescências e ubiquidades em
nossas sociedades, especialmente por parte daqueles oriundos da tecnociência, os
chamados artefatos ou dispositivos tecnocientíficos.
Interessante observar como estão sendo feitas as substituições de alguns serviços e
atribuições que eram evidentemente desempenhados por humanos, mas que estão, cada
vez mais, sendo executados por não-humanos, com convincente aumento de potência e
eficiência.
Para um relato sintético e panorâmico desta situação, ao longo da existência da
humanidade, destacaremos alguns eventos que poderiam ser considerados marcos
emblemáticos do uso desses artefatos na história (real e ficcional) da humanidade:
- No importante filme “2001: Uma Odisséia no Espaço”, de 1968, dirigido por Stanley
Kubrick e que teve coproduzido o livro homônimo de Arthur Charles Clarke
(CLARKE, 1968), é reproduzida uma região na África, 3 a 4 milhões de anos atrás,
onde um dos macacos utiliza um grande um fêmur como um porrete para definir, a seu
favor, o resultado de um conflito com outros macacos que lutavam por comida. Após
vencer o conflito, o macaco arremessa o osso para cima e este é acompanhado pela
câmera. Ao chegar ao ápice de sua trajetória, o osso se transforma (de forma semiótica)
na nave espacial onde, então, se desenvolve a famosa obra da ficção científica no
cinema e, porque não dizer, na nossa própria realidade humana dominada belicamente
pelos artefatos tecnocientíficos desde então.
- Há mais de dois mil anos atrás é creditada a Arquimedes a invenção da “alavanca”,
que permitia mover pesadas cargas e que teve o seu princípio usado na construção das
"catapultas”, um dos mais importantes artefatos bélicos da época, usados na defesa da
cidade de Siracusa diante do cerco imposto pela República Romana (214-212 a.C).
- Em agosto de 1945, nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial, as cidades de
Hiroshima e Nagasaki (do Império Japonês de então) foram bombardeadas pelos
Estados Unidos com bombas atômicas. Estes foram os primeiros bombardeios
nucleares, e, quiçá, os últimos usados em guerra e contra alvos civis. (RHODES, 2012).
Muitos consideram este evento como sendo o marco do início da pós-modernidade, da
consciência e da afirmação da capacidade humana de se autodestruir.
- No plano global, durante o pós-guerra, algumas iniciativas militares nos fazem
confundir ficção e realidade como, por exemplo, a criação da ARPANet (considerada
por muitos a “mãe’ da Internet), em 1969, pela agência estadunidense ARPA (Advanced
Research and Projects Agency). Nesta mesma linha chegamos aos anos 80, no auge da
chamada Guerra Fria (1945-1991) protagonizada pelas superpotências da época (os
Estados Unidos da América e União Soviética) com a criação do Projeto Strategic
Defense Initiative (SDI), que ficou conhecido mundialmente como “Star Wars” (Guerra
nas Estrelas), o mesmo nome da série de oito filmes ( de 1977 a 2017) criada pelo
cineasta estadunidense George Lucas, perfazendo um encontro de ficção e realidade
planetária.
- Mais recentemente, já no Antropoceno, expressão cunhada pelos cientistas Paul
Crutzen e Eugene F. Stoermer para designar o período onde as atividades humanas
começaram a ter um impacto global significativo no clima da Terra e no funcionamento
dos seus ecossistemas, as preocupações com o aquecimento global, têm produzido
diversas ações e controvérsias. A região da Amazônia tem desempenhado, cada vez
mais, papel de protagonista neste contexto. Estes debates de alcance mundial chegam às
Nações Unidas sendo manifestados em diversos protocolos (1992- Rio - 1997 Kyoto –
2015 Paris- Mudanças Globais) e produzindo grandes investimentos em laboratórios
especializados para este fim, em escalas de investimentos nunca vistas mundialmente.
(REPORT, 2019)
Os humanos ao estabelecerem as parcerias com os não-humanos materializados na
forma de osso-porrete, alavanca-catapulta, átomo-bomba, rede-guerra, indústria-
aquecimento global produzem novos híbridos cheios de ambivalências.
Alguns dizem que aí surge o mundo ciborgue, ou seja, o mundo dos humanos acoplado
ao mundo dos não-humanos (HOQUET, 2019).
Estas ambivalências são especialmente produzidas nas regiões de contato, nas fronteiras
entre o que seria humano e o que seria não-humano. Ali, novas demandas, novas
expectativas, novos vínculos são criados. Quer sentir na pele esta sensação? Veja como
nos transformamos em outros humanos quando configuramos e somos configurados
com e pelos nossos smartphones, nossos computadores pessoais, com os sistemas de
identificação e de segurança a que estamos sendo submetidos em nossos cotidianos,
com os radares e lombadas eletrônicas, com a nossa interação uma gama cada vez maior
de coisas que são ditas eletrônicas (em geral precedidas pela letra “e”- e-commerce, e-
mail, e-MEC, e-Título, e-CAC, e-Proc, e-social, e-cartorio, etc) e alguns, até com suas
tornozeleiras eletrônicas. Experiência pessoal destas fronteiras produtoras de
ambivalências, eu peguei recentemente um Uber (taxi por aplicativo de smartphone) na
cidade de Belo Horizonte. O motorista da “corrida” (jargão muito usado no mundo dos
taxis) usava uma dessas tornozeleiras eletrônicas. Em determinado momento da corrida
ele recebeu uma ligação no seu celular perguntando por onde ele andava. Eu assistia ali
uma síntese materializada de um coletivo de humanos-não-humanos monitorados
multiplamente e produzindo intervenções de diversas naturezas e culturas. Ou não?
É importante considerar que esta transição do que era só humano (uma pessoa
caminhando descalça pelas areias de uma praia) naquilo que nos transforma em
ciborgues (um passageiro de aplicativo de transporte) não é nem automática nem plena.
Esta transição se dá de uma forma, digamos assim, metafórica e analógico-digital.
Como exemplo, vamos citar o serviço dos correios. Ele é um daqueles serviços que já
veicularam um dos principais objetos de interesse da sociedade: a carta, a missiva. Pois
bem, os servidores de e-mails, responsáveis pelo gerenciamento dos serviços de correio
eletrônico, oferecem ao seu usuário uma forma de comunicação que usa como endereço
do destinatário o endereço de e-mail do destino da mensagem. É grande a similaridade
metafórica das funções e atribuições dos serviços do tradicional serviço dos Correios.
Nós vamos nos enredando, nos submetendo, aproveitando as facilidades, nos
modernizando, nos tornando mais eficientes e pronto: estamos diante do praticamente
onipresente, irreversível e ubíquo Correio Eletrônico ou e-mail, como queiram. Tenho
dificuldades de lembrar quando enviei minha última carta, daquelas que a gente escreve
o texto com a mensagem numa folha de papel, coloca no envelope, leva numa agência
dos correios, coloca selos, registra ou não e entrega a responsabilidade dela ser entregue
ao destinatário, devidamente identificado no envelope, para o serviço postal.
Aliás, é interessante observar esta categoria de prestadores de serviços, como eles estão
migrando cada vez mais dos chamados servidores humanos, ou simplesmente servidores
para os servidores não-humanos. Alguns exemplos desses novos servidores não-
humanos: servidores de e-mail, servidores de arquivos, servidores de streaming (de
mídias) de músicas, de podcasts, de vídeos, servidor de páginas web, servidor de
impressão, servidor de banco de dados, servidor DNS: converte endereços de sites em
endereços IP e vice-versa, servidor proxy: servidor que armazena páginas da internet
recém-visitadas servidor de mídia: análogo ao servidor de arquivos, servidor de games,
servidor de CFTV (Circuito Fechado de Televisão), etc.
Estamos diante de níveis de eficiência, confiabilidade e disponibilidades jamais
experimentadas, a famosa disponibilidade 24 x 7 ( disponível 24 horas nos 7 dias da
semana) de onde você estiver (desde que tenha acesso à Internet e um dispositivo
minimamente configurável – dispositivo este que a convergência tecnológica hoje
escolheu como sendo um smartphone “moderninho’- que custa em média algo entre
quinhentos e mil reais – um salário mínimo). Isto parece um pouco caro, mas parece
bom. Não?
Eu me sinto atendido pelo automóvel japonês, pelo meu celular estadunidense, pelo
meu computador coreano (do sul), etc. Meus dispositivos para operarem 24x7 usam: os
sistemas operacionais Android e Windows (estadunidenses) e Ubuntu (inglês). Alguns
aplicativos, cada vez mais usados: Uber (estadunidense), Google (estadunidense),
Spotify (sueco), SciHub (cazaque), Microsoft Office (estadunidense), LibreOffice
(alemã), Telegram (russo), Whatsapp (estadunidense), Adobe (estadunidense), etc.
Quando estamos todos juntos (eu, meus dispositivos e aplicativos), produzimos um
todo, na maioria das vezes coerente, que dão o ritmo, a pegada do meu cotidiano. Os
meus dispositivos e meus aplicativos me ajudam tanto que, confesso, sou dependente
deles. Enfim, eu me imagino outra pessoa sem tê-los interagindo comigo, torno-me
praticamente irreconhecível quando fico sem acesso ao automóvel, ao smartphone, ao
computador, à Internet. Alguém conseguiria experimentar o desafio de ficar, por
exemplo, um mês sem acesso a eles (dispositivos e aplicativos) atualmente? Será que só
eu sinto esta dependência? Lembrei-me agora do Poema em linha reta do Fernando
Pessoa: “Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”
(https://www.pensador.com/frase/MjYzMjY0/).
Pois bem, estas capacidades destes dispositivos e seus aplicativos (todos não-humanos)
de serem capazes de se tornarem ubíquos, de produzirem obsolescências e
irreversibilidades ao seu redor os tornam produtores de “GAPS” cada vez maiores entre
as regiões, sociedades e mundos. Quando nos vemos no Brasil, na latino-américa,
poderemos perceber que com a produção, cada vez maior desses gaps, o que é afetado
na forma direta e imediatamente é tudo aquilo que possamos chamar de local, de coisa
produzida por aqui. Esta sensação de que tudo que é originalmente local ir se tornando
obsoleto, esta situação praticamente ubíqua parece cada vez mais irreversível,
especialmente quando nos defrontamos com o cenário tecnocientífico.
Como conviver com esta situação e condição? Como continuar a estabelecer parcerias
com o que outros, de outros locais, nos induzem (para não dizer nos impõem)? Como é
que nos aliamos a estas parcerias que se configuram simultaneamente entidades globais-
locais e humanas-não-humanas (smartphones, computadores, automóveis, aplicativos,
algoritmos, sistemas operacionais, etc)?
Tentaremos enfrentar estas questões com duas frentes: uma epistêmica e outra
estratégica.
Para tentar dar conta dos dilemas apresentados envolvendo a hegemonia do global sobre
o local, lançarei mão da frente epistêmica denominada pensamento antropofágico. Este
pensamento foi inspirado na Semana de Arte Moderna de 1922, onde alguns dos artistas
participantes defenderam um rompimento radical com a arte eurocentrada, em vigência
na época. Este movimento, também sintetizado como Antropofagia, tem como marco de
criação mais importante a publicação do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade
no primeiro número da Revista de Antropofagia (Ano I, No. I) de maio de 1928.
(http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf).
Encontramos no Manifesto Antropofágico:
Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os
individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os
tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as
catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei
do homem. Lei do antropófago.
Outro importante símbolo do Movimento Antropofágico é o quadro Tarsila do Amaral
de nome Antropofagia. Tarsila do Amaral produz neste quadro a fusão de dois outros
importantes quadros seus: “A Negra” e o “Abaporu”.
ANTROPOFAGIA -1929 http://tarsiladoamaral.com.br/obra/antropofagica-1928-1930/
Abaporu "homem que come gente" (canibal ou antropófago) é uma junção dos
termos aba (homem), pora (gente) e ú (comer) é uma espécie de símbolo do movimento
antropofágico.
Adicionalmente, recomendo que assistam ao vídeo de título: "Conhecimentos
Brasileiros e Antropofagia", apresentado pelo Pesquisador e Professor Ivan da Costa
Marques (MARQUES, 2019). Neste vídeo Ivan da Costa Marques ilustra como
poderíamos estabelecer relações entre as ideias do Movimento Antropofágico e as
opções possíveis para a Tecnociência Brasileira e dá uma dimensão da importância do
tema da hegemonia do Global sobre o Local.
Ainda como explicação das ideias antropofágicas, segue o texto de Benedito Nunes:
Como símbolo da devoração, a Antropofagia é, a um tempo, metáfora,
diagnóstico e terapêutica: metáfora orgânica, inspirada na cerimônia guerreira
da imolação pelos tupis do inimigo valente apresado em combate, englobando
tudo quanto deveríamos repudiar, assimilar e superar para a conquista de nossa
autonomia intelectual; diagnostico da sociedade brasileira como sociedade
traumatizada pela repressão colonizadora que lhe condicionou o crescimento, e
cujo modelo terá sido a repressão da própria antropofagia ritual pelos Jesuítas,
e terapêutica, por meio dessa reação violenta e sistemática, contra os
mecanismos sociais e políticos, os hábitos intelectuais, as manifestações
literárias e artísticas, que, até à primeira década do século XX, fizeram do
trauma repressivo, de que a Catequese constituiria a causa exemplar, uma
instância censora, um Superego coletivo. Nesse combate sob forma de ataque
verbal, pela sátira e pela crítica, a terapêutica empregaria o mesmo instinto
antropofágico outrora recalcado, então liberado numa catarse imaginária do
espírito nacional. E esse mesmo remédio drástico, salvador, serviria de tônico
reconstituinte para a convalescença intelectual do país e de vitamina ativadora
de seu desenvolvimento futuro. A jocosa alternativa do dilema hamletiano
parodiado — Tupy or not tupy, that is the question — que parece ter sido a
célula verbal originária do Manifesto, resolve-se pois numa rebelião completa
e permanente. (NUNES, 1970, p. 25-26)
Como uma frente estratégica para dar conta do enfrentamento necessário para lidar com
as problemáticas parcerias humanos-não-humanos oriundas da hegemonia do Global
sobre o Local com suas evidentes consequências geradoras de irreversibilidades,
obsolescências e ubiquidades, irei lançar mão da chamada ‘Avaliação Construtivista da
Tecnologia” (ACT).
Segundo (CALLON, 1995, p. 307-308), para se realizar uma Avaliação Construtivista
da Tecnologia (em inglês ‘Approach of Constructive Technology Assessment”)
precisaremos considerar três hipóteses:
1ª. O desenvolvimento tecnológico resulta de um grande número de decisões feitas por
numerosos atores heterogêneos. Estes naturalmente incluem os cientistas e engenheiros
envolvidos diretamente, mas cada vez mais envolvem a participação dos usuários, dos
mundos dos negócios e das finanças e de todos os níveis de governo. Estes parceiros
negociam as opções técnicas e, em alguns casos – depois do que pode ser uma longa
série de aproximações sucessivas – atingem acordos mutuamente satisfatórios. A
diversidade de centros e critérios de decisão implica em algum grau de plasticidade
técnica.
2ª. As opções tecnológicas nunca podem ser reduzidas à sua dimensão estritamente
técnica. O projeto e a introdução de um novo veículo, um novo processo de produção de
energia, ou um novo eletrodoméstico são indissociáveis de algum grau de reestruturação
social e distribuição de papéis (a serem desempenhados). Portanto, a avaliação das
opções tecnológicas é uma questão para debate político.
3ª. As opções tecnológicas trazem situações irreversíveis, resultantes do
desaparecimento gradual das margens de escolhas disponíveis para aquele que decide:
com o tempo, suas escolhas são inexoravelmente predeterminadas pelas decisões
anteriores. Ao contrário de algumas decisões que sempre permanecem passíveis de
serem revistas, existem outras que são materializadas em enormes compromissos
técnicos, tais como, por exemplo, o capital investido na opção pela energia nuclear.
Estas decisões podem conduzir a desequilíbrios duráveis e ao consequente descarte de
opções que, numa visão retrospectiva, poderiam ter sido pensadas como preferíveis a
aquelas que foram efetivamente tomadas.
Ainda segundo CALLON (ibidem), a implementação de uma Avaliação Construtivista
da Tecnologia deve, portanto, levar em conta as seguintes questões:
a) Como nós podemos assegurar que todos os atores envolvidos, especialmente os não
especialistas e os mais sem recursos, sejam apropriadamente ouvidos durante a
discussão das opções técnicas e nos momentos das tomadas de decisões?
b) Como podem várias opções tecnológicas alternativas serem mantidas abertas o tempo
todo, tendo em mente que uma variedade delas deve existir para que a própria noção de
escolha não desapareça, e com ela toda a possibilidade do debate político?
c) Como nós podemos evitar a emergência de situações irreversíveis que excluem certas
opções tecnológicas meramente porque elas não foram apoiadas em um determinado
tempo?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta comunicação procurei explorar as relações e associações existentes nas parcerias
humanos-não-humanos, especialmente aquelas existentes nos nossos cotidianos,
atualmente repletos de artefatos tecnocientíficos. Fica evidente o meu pertencimento ao
coletivo de pensamento dos Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (Science
Studies ou Science and Technology Studies, ou ainda Science, Technology and Society
Studies) com um viés decolonial e preocupado com as questões brasileiras e, por
extensão, latino-americanas.
As relações de parceria humanas-não-humanas no contexto tecnocientífico implicam em
artefatos tecnológicos com origem hegemonicamente fora de nossos locais. Somos
povoados de dispositivos, algoritmos e aplicações concebidas e produzidas no exterior e
adaptadas ao nosso uso e interesse. Isso implica em neocolonizações, em neocatequeses.
O global impondo o local. O centro determinando as periferias. Existe uma solução
trivial para romper esta arquitetura de poder e dominação? Não. Não existe solução
trivial.
Para tentar dar conta deste dilema, esta comunicação ousou experimentar uma frente
epistêmica baseada no pensamento antropofágico e outra frente estratégica inspirada na
abordagem construtivista da tecnologia, descritas no corpo do trabalho.
São experiências analíticas e narrativas de buscar encontrar abordagens alternativas para
enfrentar este drama de conviver com estas parcerias assimétricas postas pela
governança global à soberania e autonomia de tudo que é local entre nós.
Segundo e seguindo (LATOUR, 2013, p. 9):
“Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre a de reatar o nó górdio
atravessando, tantas vezes quantas forem necessárias, o corte que separa os
conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cultura.
Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior das
instituições científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço de nós
somos instruídos sem que o desejássemos; optamos por descrever as tramas
onde quer que estas nos levem. Nosso meio de transporte é a noção de
tradução ou de rede. Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a
de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne
destas histórias confusas.”
Seguindo as instruções e as inscrições, submeto este trabalho no formato do Word, da
estadunidense Microsoft, atendendo ao previsto nas “Normas para trabalho completo”,
( https://www.historiaeparcerias.rj.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=589 ),
pago minha anuidade da nossa sociedade, SBHC, pela também estadunidense empresa
de pagamento PAYPAL ou, alternativamente, pelo Internet Banking do Banco do
Brasil. Nas mesmas normas, em seu item 2 está prescrito que a fonte do texto deve ser
“Times New Roman”, uma fonte criada pelo jornal inglês “The Times of London”, em
1931. Também não consigo de deixar de conectar, em parceria, com a logomarca da
UFRJ, a Minerva, deusa romana das artes, do comércio e da sabedoria e que também
rege as estratégias de guerra.
Enfim, já que estamos falando de Nova Roma (New Roman), diria Darcy Ribeiro:
Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e
tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude
populacional, e começa a sê‐lo também por sua criatividade artística e cultural.
Precisa agora sê‐lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se
fazer uma potência econômica, de progresso auto‐sustentado. Estamos nos
construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça
e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor,
porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à
convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais
bela e luminosa província da Terra.
A gente escreve o que ouve, nunca o que houve
(Oswald de Andrade – Serafim Ponte Grande)
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