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7/25/2019 Neidson Rodrigues
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Nelma Maral Lacerda Fonseca
148 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 N 22
Entrevistando Neidson Rodrigues*
Nelma Maral Lacerda FonsecaSecretaria de Educao do Estado de Minas Gerais
Centro de Referncia do Professor
* Entrevista realizada em 1 de setembro de 2000, no Cen-
tro de Referncia do Professor Museu da Escola de Minas Ge-
rais , como parte das comemoraes dos 70 anos da Secretaria de
Estado da Educao, integrando a srie de depoimentos orais rea-
lizados com os gestores da Secretaria, no perodo 1960 at 2000.
Neidson Rodrigues foi entrevistado pelo seu importante papel
como superintendente educacional daquela Secretaria, pela reali-zao do I Congresso Mineiro de Educao em 1983, e pelo que
representava no cenrio educacional em Minas Gerais e no Brasil.
A entrevista foi realizada por Nelma Maral Lacerda Fonseca,
coordenadora do Projeto de Histria Oral desde 1997 e sua trans-
crio ficou a cargo de Cludia Botelho, Helenice Giovanardi e
da prpria Nelma Maral, pedagogas do Centro de Referncia do
Professor, e tambm das digitadoras Daniela Magalhes Pereira e
Rosngela Pereira dos Santos.
Neidson: Muito obrigado pelo convite para par-
ticipar do projeto de Histria Oral da Educao em
Minas Gerais. Fico feliz de vocs imaginarem que j
fao parte desta histria. Mas, de outro lado, muito
triste saber que a gente j est virando histria...
Nelma: Histria do tempo presente, Neidson.
Essa histria se caracteriza por ser do tempo presen-
te. [risos]
Neidson: Tudo bem! Comeo respondendo sua
primeira solicitao, a respeito de dados biogrficos.
Nasci na cidade de Ituiutaba, no Tringulo Mineiro,
em 1942. Fui educado, at o final do antigo curso gi-
nasial (as oito primeiras sries atuais), nessa cidade.
Quando avalio minha formao hoje portanto, no
futuro daquele passado , percebo aspectos positivos
que no havia percebido em tempos anteriores, em
tempos pretritos. Quando estou falando no futuro do
meu passado posso olhar para trs e, de alguma for-ma, recuperar passagens importantes que, em outros
momentos, no teria considerado to importantes. Em
primeiro lugar, a estrutura da minha famlia: uma
famlia praticamente de pessoas analfabetas. Meu pai
sempre me dizia que havia freqentado 45 dias de
escola. Ele chegou a aprender a ler, mas escrevia muito
mal. Lia com muita dificuldade, mas era capaz de ler;
era um leitor inveterado da Bblia Sagrada. Em se-
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gundo lugar, a formao que tive em casa foi muito
importante. Uma formao protestante; a Bblia era
um livro que estava presente em nossa casa. bas-
tante interessante observar o comportamento das fa-
mlias protestantes naquele tempo. Assim que a crian-
a aprendia a ler, o primeiro livro que ganhava era
uma Bblia. Ento, ficvamos sempre ansiosos na ex-
pectativa de ganhar a Bblia, pois podamos demons-
trar que sabamos ler. De alguma forma, isso coloca-
va certo empenho entre ns, crianas, porque era
motivo de orgulho a gente ir igreja levando a B-
blia. Era uma demonstrao de que sabamos ler.
Houve ainda outro aspecto muito importante na mi-
nha formao: minha av era analfabeta e gostava de
ouvir leituras da Bblia. Ela fazia certa exigncia aesse respeito, e como eu gostava muito da minha av,
cumpria essa exigncia com muito prazer. Todos os
dias, antes dela deitar ou quando j estava deitada,
ns gastvamos eu, principalmente, gastava 40
minutos, at uma hora, lendo a Bblia para ela. Isto
talvez me tenha tornado um leitor sem eu saber. Tal-
vez isso tenha tido um papel extremamente impor-
tante, quero crer, na minha formao como leitor. Pri-
meiro, porque a Bblia um livro complexo, e como
minha av gostava de leituras diversas da Bblia, eume empenhava em ler desde os salmos, o que ela mais
apreciava. Apreciava tambm os Evangelhos e as
Cartas de Paulo. E tambm fatos da histria antiga,
da criao do mundo, a histria do povo judeu e as-
sim por diante. Isto produziu outro aspecto na minha
formao, que considero muito importante: o fato de
eu gostar muito de histria. A histria do povo judeu
e as relaes do povo judeu com os egpcios me leva-
ram mais tarde a querer conhecer mais sobre os egp-
cios e os gregos, especialmente por causa das rela-
es do cristianismo com esta rea do mundo, na poca
o que talvez tenha produzido em mim certa identifi-
cao com o pensamento clssico. Contando isso, es-
tou tentando resgatar uma viso minha de um passa-
do, que eu no tinha naquele momento. Minha histria
escolar, por sua vez, considero que foi muito pobre.
Era considerado um aluno com todas as deficincias
prprias dos alunos com pssimo aproveitamento es-
colar. Tive vrias reprovaes na escola. Repeti duas
ou trs vezes alguns anos no curso primrio. No cur-
so ginasial, no me lembro de ter passado nenhuma
vez sem recuperao (naquele tempo se chamava se-
gunda poca), especialmente em matemtica e cin-
cias. Quando se tratava de histria antiga, eu era um
timo aluno; mas os professores no queriam saber
totalmente da histria antiga. Queriam saber tambm
de histria medieval ... e eu no gostava da histria
medieval. Ento, de repente, era um bom aluno de
histria antiga, um bom aluno de histria moderna,
mas um pssimo aluno de histria medieval. Aos
trancos e barrancos, consegui terminar o curso gina-
sial. Uma certa iluso na minha cabea, naquele mo-
mento, me dizia que eu deveria fazer medicina. A,mudei de cidade aos 16 anos, fui para Uberaba, na
expectativa de fazer o curso cientfico e seguir medi-
cina. Entretanto, no consegui sucesso no curso cien-
tfico e fui reprovado trs vezes, porque no conse-
guia aprender cincias, matemtica; tinha enorme
dificuldade neste aprendizado e formei, inclusive, uma
certa autoconscincia, estimulada pelo sistema esco-
lar, de que era um aluno deficiente, que tinha enorme
deficincia mental e intelectual. Isto me acompanhou
durante muitos anos, at que, num momento bastantecurioso da minha vida, me deparei com um livro de
filosofia, o Assim falava Zaratustra, de Nietzsche.
Estando sem poder sair de uma pequena cidade do
interior de So Paulo, em 1963, peguei este livro por
acaso. Ia passar uma semana sozinho em Piraju e re-
solvi lev-lo para casa, porque ouvira falar que filo-
sofia era alguma coisa bastante interessante. Come-
cei a ler Assim falava Zaratustra, e isto mudou
radicalmente a histria da minha vida. A partir desse
livro de Nietzsche, entrei num enorme conflito de
natureza religiosa; ele me fez checar determinadas
convices religiosas que eu tinha.
Nelma: Isso com que idade, Neidson?
Neidson: Eu j tinha meus 21 anos de idade, e
isso me colocou numa outra direo, a direo da for-
mao intelectual. Comecei a participar de movimen-
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tos ligados aos estudantes secundaristas e entrei em
um movimento de luta poltica em favor das reformas
de base, encampadas naquele momento por Joo
Goulart. Passei a participar de movimentos polticos,
o que me levou a leituras de alguns pensadores liga-
dos aos marxistas e antimarxistas. Assim, foi-se crian-
do um outro universo na minha formao intelectual.
Eu me considerava e ainda me considero um leitor,
um bom leitor, algum que estava e est sempre inte-
ressado em novidades. Tanto na novidade do contem-
porneo, quanto na novidade do antigo; isto , o que
havia no mundo antigo e no pensamento antigo e que
poderia se constituir numa informao, num conheci-
mento novo para compreender o presente. Isso sem-
pre me levou a me enfronhar em leituras de pensado-res dos tempos contemporneos e de pensadores
ligados aos momentos fundantes da histria da huma-
nidade. Aquela minha formao religiosa inicial, que
me havia colocado em contato com a cultura egpcia
e a cultura judaica, me levou a perscrutar um pouco
mais sobre os egpcios, os judeus, os gregos, os
caldeus, os babilnios, os romanos, me colocando em
contato com a literatura e a filosofia, naquele momen-
to. Voc pode perceber que isto me encaminhou para
o curso de filosofia, me levou a fazer o vestibular naUniversidade de So Paulo. Foi a minha primeira gran-
de surpresa em relao a minha formao. Eu no ti-
nha recursos financeiros para freqentar um cursinho,
havia feito um curso cientfico muito malfeito, no
havia feito um curso clssico, e iria prestar um dos
vestibulares mais difceis naquele momento, na Uni-
versidade de So Paulo. No vestibular para o curso de
filosofia havia mais ou menos dez candidatos por vaga.
Era feito em trs partes: exame de lngua, exame es-
crito de filosofia e exame oral, onde voc passava por
uma banca composta por quatro examinadores. Entre
eles estavam o professor Bento Prado, o famoso Ben-
to Prado, o professor Rui Fausto e o professor Lvio
Teixeira, titular da cadeira. No estou me lembrando
quem era o quarto examinador. O vestibulando era
examinado por uma banca desse tipo. Fui aprovado
de uma maneira bastante singular. No sei se fui bem-
sucedido nas questes chamadas mais objetivas em
relao filosofia, mas me sa muito bem nas entre-
vistas, porque o que se avaliava naquele momento no
era o contedo, no era a quantidade de informaes
que voc tinha sobre a filosofia, mas qual era real-
mente o seu potencial para se tornar um filsofo. Era
o que se dizia naquele momento, e possivelmente mi-
nha ampla formao intelectual possibilitou que eu
fosse bem-sucedido naquele vestibular, o que me leva
at hoje a questionar as formas de avaliao da esco-
la: a escola no avalia o progresso do aluno, avalia a
quantidade de coisas que este aluno conseguiu reter
durante o ano escolar. E sempre me lembro que aque-
le vestibular tambm demarcou, de maneira muito cla-
ra, o juzo que eu fazia de mim mesmo. Pude compa-
rar o modo como a escola avaliava a minha trajetriae o juzo que passei a fazer a respeito de mim mesmo,
frente ao novo modo de avaliao sobre o progresso
intelectual, moral, profissional de uma determinada
pessoa. Desde ento, para mim, se tornou muito
questionvel a forma de avaliao da escola e a forma
como ela s vezes exclui pessoas que poderiam no
ser excludas se fossem avaliadas de outra maneira.
Tudo isso compe um conjunto de coisas, e esse con-
junto se constitui, portanto, em um relato de uma tra-
jetria, um relato sobre avaliao porque infelizmen-te no estou falando apenas do passado, estou falando
do passado tendo como referncia o meu presente;
estou falando a partir do futuro daquele passado.
Nelma: Ento, a sua vida deu um salto na ques-
to auto-estima, porque uma pessoa que vinha sendo
reprovada... Voc devia sofrer muito com isso. Voc
sofria, Neidson?
Neidson: Olha, sou capaz de dizer o seguinte: quan-
do tinha algum sucesso eu ficava feliz; quando no ti-
nha sucesso no sofria muito com isso, porque tinha a
convico de que eu era uma pessoa incompetente...
Nelma: Voc j havia introjetado esta idia?
Neidson: Veja s, isso j estava de alguma forma
introjetado, tanto assim que, quando eu estava no 3 ano
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cientfico, havia tomado a deciso de abandonar o
curso porque no teria possibilidade de ter sucesso
na vida acadmica , fazer um curso de contabilidade
e virar um contador. Por que isso? Porque tambm
estava tendo uma experincia bastante curiosa: esta-
va trabalhando num escritrio de contabilidade e, cu-
riosamente, eu, que nunca havia estudado contabili-
dade, havia me tornado uma pessoa extremamente
importante no escritrio. O grupo que trabalhava na-
quele escritrio era um grupo de contadores bem-in-
formados e, inclusive, o gerente geral do escritrio
tinha uma enorme confiana no meu trabalho. Ocor-
ria ento uma coisa contraditria: eu me saa bem
como contador, num trabalho de contabilidade para o
qual eu no havia sido preparado na escola. Nestemomento, comecei a avaliar que no s a escola rea-
liza a atividade formativa, mas tambm a famlia e
toda a sociedade. Por exemplo, aquele exerccio di-
rio de leitura da Bblia e de explicao de conceitos
ou de situaes histricas que minha av no enten-
dia, e me perguntava, isso me fazia necessariamente
procurar informaes. Ento, muitas das coisas que
aprendi de histria, na escola, aprendi para poder ex-
plicar para minha av. Por exemplo, quando ela me
perguntava o que era ser escravo no Egito, coisas dopovo judeu, eu tinha que saber um pouco o que era o
povo judeu, como que ele foi constitudo, por que
ele foi para o Egito, como que ele esteve no Egito,
onde era o Egito, como era governado. Ia aos livros
de histria, aos livros didticos, tomava aquelas in-
formaes e passava para ela. Olha s, a minha gran-
de educadora e formadora foi minha av, uma pessoa
analfabeta. Ento, o processo formativo das pessoas
tem caminhos nem sempre muito claros, no segue
uma trajetria linear que podemos demarcar. E este
o processo de formao. Os educadores devem com-
preender que o processo de formao uma rede de
relaes, inclusive cheia de contradies. Com a crian-
a na escola, o professor deve estar preocupado em
orient-la, ajud-la a sair e ser capaz de observar e
ver esta rede. O professor no pode simplesmente
querer colocar os alunos numa linha reta de aprendi-
zado. Acho que este um problema muito srio na
atividade escolar, porque os professores tendem a
imaginar que o aluno s aprende histria ouvindo sua
aula de histria; s aprende matemtica assistindo a
sua aula de matemtica, ou fazendo os exerccios de
matemtica; e, na realidade, aprendemos num con-
junto de experincias que se do na escola e fora da
escola. A escola um local timo para se fazer snte-
ses, discusses, ampliar experincias, mas nunca para
reduzir as experincias de aprendizado.
Nelma: Isto , h no formato da escola um redu-
cionismo, um empobrecimento?
Neidson: Acho que existe um reducionismo, in-
felizmente. Em especial da 4 srie para a frente, osprofessores passam a julgar que a atividade formativa
se resume em transmitir um conhecimento ligado a
uma disciplina especfica. Sequer imaginam que as
disciplinas s tm sentido se estiverem concorrendo
na formao do ser humano; o que importa no a
disciplina, o ser humano que est ali sendo forma-
do. E isso significa que cada um reduz a relao ensi-
no/aprendizagem quilo que acontece na sala de aula;
assim que se avalia. Muitos professores dizem:No,
ns estamos preocupados com a formao total, inte-gral do ser humano. Mas eu sempre pergunto: O que
voc avalia quando est ensinando?Na realidade, o
que se avalia o aprendizado de um ano, um semes-
tre, um bimestre, uma semana. Portanto, no for-
mao total, integral; voc avalia o que passou de in-
formaes e o que o aluno recebeu dessa informao.
Na prtica isso que se faz, por mais que o discurso
seja o contrrio. Se voc me perguntar qual a solu-
o; no tenho nenhuma! Estou dando este testemu-
nho para mostrar que, independentemente do fracas-
so escolar, a escola ajudou a me formar, me ajudou a
perseguir uma formao acadmica, intelectual. Apren-
di isso na escola: aprendi a ler na escola, aprendi re-
gras da gramtica na escola, aprendi formas de leitu-
ra na escola. Me lembro, no 4 ano primrio, de uma
professora no-formada que veio substituir uma pro-
fessora de portugus que havia deixado a escola. Essa
professora tinha um hbito, talvez exatamente por-
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que no fosse formada, estava ainda aprendendo, e
possivelmente (estou fazendo uma avaliao subjeti-
va) por no dominar grandes metodologias: diaria-
mente trazia livros para a sala de aula e dava um livro
para cada aluno; ns tnhamos de ler aquele livro e
depois ela nos fazia perguntas a respeito daquela lei-
tura. Outra coisa muito importante: tnhamos de ler
em voz alta e ela corrigia a nossa entonao de leitura
nos momentos das vrgulas, da exclamao, do pon-
to, do ponto e vrgula. Ela gostava tambm de fazer
um exerccio: pegava um livro qualquer, ia lendo e
ns tnhamos de transcrever o que ela estava lendo,
mas ela no dizia a pontuao; tnhamos de ir pontu-
ando; depois ela corrigia. Outra coisa muito interes-
sante: ela gostava de dar livros de poesia para nosensinar a ler poesia; ensinava onde se faz a interrup-
o, o ritmo da poesia. Olha, essa professora, com
essa simplicidade de processos pedaggicos, hoje eu
reconheo que foi quem mais me ensinou o exerccio
da leitura. Eu nem sei o nome dela, gostaria de saber,
no sei onde ela est, mas eu atribuo a ela uma com-
petncia fantstica na minha formao como leitor!
So coisas s vezes simples que se tornam altamente
produtivas na formao e que fazem uma diferena
enorme, como hoje eu avalio.
Nelma: Neidson, e como voc chega a Belo Ho-
rizonte? Como que voc vem parar aqui, vindo
do Tringulo, fazendo doutorado na PUC/SP?
Neidson: Primeiro fui para Uberaba, depois para
Uberlndia; de Uberlndia fui para Lins, de Lins para
Pirajui, de l para So Paulo, onde fiz minha gradua-
o em filosofia e o mestrado. Quando estava fazen-
do o mestrado, tinha um ideal na minha cabea: que-
ria ser professor de curso superior. Trabalhei em So
Paulo como datilgrafo, trabalhei em escritrio, tra-
balhei em departamento de pessoal de empresas, mas
minha vontade era me tornar um professor universi-
trio. Para isso, julgava que deveria fazer pelo menos
mestrado; no sonhava com o doutorado era uma
coisa restrita naquele momento, poucas pessoas o atin-
giam. Achava que o doutorado estava fora do meu
propsito, mas imaginava: pelo menos o mestrado eu
deveria fazer, vou depois para o interior, ser profes-
sor. Imaginava que j estaria com uma carreira mais
bem definida. Passei a enviar meu currculo para v-
rias escolas do interior. Naquele momento havia co-
meado uma enorme criao de cursos de ensino su-
perior no interior do estado de So Paulo, e mesmo
na cidade de So Paulo, fruto da Reforma Universit-
ria de 1968. Passei ento a espalhar meu currculo.
No era um grande currculo. No mximo dizia que
eu estava fazendo uma ps-graduao na USP sob a
orientao da professora Marilena Chau j era um
atestado de certo prestgio intelectual: ser um mes-
trando e ser orientado por ela, no ? Depois de algu-
mas tentativas, fui convidado a fazer um concurso naPUC de Campinas. Fui aprovado, mas ocorreram al-
guns fatos bastante curiosos; no vou relat-los por-
que no tenho como provar o que aconteceu. Come-
cei a dar aulas na PUC de Campinas, e duas semanas
depois o diretor me chamou para dizer que havia ocor-
rido um erro na avaliao do meu currculo: eu no
poderia ser contratado para aquelas aulas. Enfim, fui
demitido. Naquele momento, dava aula em vrios
cursinhos e, felizmente, essa demisso da PUC coin-
cidiu com o chamamento de Piracicaba, que acabeiaceitando. Piracicaba estava instituindo um centro uni-
versitrio, no era ainda universidade, chamava-se Ins-
tituto Educacional Piracicaba, composto de algumas
faculdades cujo funcionamento havia sido autoriza-
do pelo MEC: direito, pedagogia, filosofia, cincias e
letras. O Instituto estava requisitando professores para
assumir disciplinas. Fui para Piracicaba com um n-
mero de aulas suficientes para me mudar com a mi-
nha famlia. Me instalei l num regime quase de tem-
po integral, o que significava dar 25 a 30 horas/aulas
semanais. O Instituto cresceu, e antes de eu deixar
Piracicaba, em 1978, ele j havia se transformado na
Universidade Metodista de Piracicaba. Nela fui in-
clusive o diretor que implantou a Faculdade de Co-
municao. Fui tambm diretor da Faculdade de Psi-
cologia e coordenador da Faculdade de Cincias,
porque a gente tinha de assumir vrios cargos, alm
das aulas que dava. Estava com meu doutorado enca-
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minhado na PUC/SP, j estava para termin-lo, em
1978, quando recebi um convite, atravs de Luiz An-
tnio Cunha, para vir a Belo Horizonte, porque aqui
na UFMG estavam reformulando o Programa de Ps-
Graduao em Educao e queriam contratar novos
professores. Naquele momento, os contratos eram
feitos como professores colaboradores, com a chance
de mais tarde fazer um concurso e tornarem-se efeti-
vos. Eu e Carlos Roberto Jamil Cury fomos convida-
dos; viemos aqui examinar os termos do convite e
julgamos que valeria a pena investir. Avaliei que era
a minha chance de realmente me profissionalizar, en-
trar numa universidade federal, porque na universi-
dade privada, por melhor que fosse, a atividade bsi-
ca era em sala de aula, muito semelhante a um colgio.Ganhava-se pelo nmero de aulas dadas. Cheguei a
dar 30 e tantas horas/aulas na Universidade de
Piracicaba, assumindo cinco ou seis disciplinas dife-
rentes. Isso no significava uma carreira, no me for-
mava um professor universitrio. O convite aqui de
Belo Horizonte foi bastante desafiador, pois era para
participar da reformulao de um programa de ps-
graduao. Veja que coisa curiosa: no havia com-
pletado o doutorado e j estava sendo convidado para
trabalhar num Programa de Ps-Graduao em Edu-cao. Hoje, por exemplo, a no ser em situaes ex-
cepcionais, no se entra numa universidade, para ser
professor na graduao, se no tiver o doutorado.
Naquele momento, eu ainda no era doutor e estava
sendo convidado para trabalhar numa ps-graduao,
porque havia uma enorme carncia de pessoal forma-
do. Bem, viemos para c e comeamos a trabalhar na
ps-graduao. Em 1979 defendi a minha tese de dou-
torado, que acabou se tornando meu segundo livro:
Estado,educao e desenvolvimento econmico, que
dava outra direo para minha atividade terica, isto
, discutir as relaes entre Estado e educao. Eu
estava muito preocupado com a situao da educao
brasileira naquele instante, criticando especialmente
a dimenso de racionalidade tcnica do Estado e a
viso da educao como instrumento no processo de
desenvolvimento econmico. Ou seja, a instrumenta-
lizao da educao para o desenvolvimento econ-
mico, que era a tnica do regime militar naquele mo-
mento. Meu doutorado vai nessa direo, analisando
a constituio do Estado autoritrio no Brasil e a vin-
culao da educao ao processo de legitimao des-
se Estado e poltica econmica elaborada por ele. A
tese foi defendida em outubro de 1979, me dando le-
gitimidade para trabalhar na Universidade. Fui pro-
fessor colaborador em 1978 e 1979; em 1980 abriu
um concurso na UFMG e, tendo j o meu doutorado,
me candidatei a uma vaga de professor adjunto. Apro-
vado, fui efetivado como professor adjunto. Em 1991
fiz outro concurso, para professor titular.
Desde quando comecei a trabalhar no ensino su-
perior em Piracicaba, passei a ter um enorme envol-
vimento poltico, de incio com a Prefeitura de Pira-cicaba. As pessoas conheciam minha histria de
envolvimento poltico, o que me levou a participar
tambm, aqui em Minas Gerais, da campanha polti-
ca do Tancredo Neves, em 1982. Participei inclusive
da formulao do Programa de Tancredo Neves, e isto
redirecionou um pouco meu trabalho, tanto do ponto
de vista terico, na Universidade, porque naquela po-
ca passei a trabalhar mais com polticas educacionais,
quanto do ponto de vista prtico, quando assumi fun-
es executivas na Secretaria de Educao do Esta-do, como superintendente de Educao. uma hist-
ria longa, cheia de detalhes, a gente vai se esquecendo
desses detalhes, mas...
Nelma: Mas... interessante. Est muito bem co-
locado! Quer dizer que naquele momento, j de aber-
tura, de redemocratizao, a equipe que pleiteava o
governo foi buscar na Universidade pessoas para aju-
dar a compor aquele plano de governo, e voc se in-
seriu nesse grupo?
Neidson: Sim, voc deve lembrar que at a Cons-
tituio de 1988 a organizao de partidos polticos
tinha uma legislao muito dura, muito impeditiva.
Com o Ato Institucional n 1, os partidos antigos fo-
ram extintos, e constitudos apenas dois novos parti-
dos: a ARENA, que era o partido do governo, e o
MDB, de oposio. At 1970, as pessoas que tinham
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uma determinada participao crtica e lutavam con-
tra o regime militar tendiam a no apoiar sequer o
MDB, porque julgavam que era um partido de
legitimao do regime militar. Havia uma enorme
campanha para o voto nulo, para no votar. Isso era
muito tpico, e todos ns, de alguma forma, partici-
pamos desse tipo de atuao. A partir de 1974, Ulisses
Guimares se candidatou como anticandidato e criou
uma campanha absolutamente inovadora. Ele sabia
que no haveria possibilidade de ser eleito no Con-
gresso, porque a ARENA era maioria e o regime mi-
litar havia fechado todas as possibilidades (bastava o
MDB crescer um pouco, cassava o nmero de depu-
tados e senadores para que a ARENA continuasse
sendo a maioria). Ento, Ulisses Guimares criou afigura do anticandidato. Dizia: Eu no sou candidato
(porque sabia que no haveria eleio); eu sou um
anticandidato.Aproveitou as fissuras da legislao
para fazer a sua campanha como anticandidato. A,
mesmo ns, ou alguns de ns, que julgvamos que
no deveramos ter nenhum envolvimento, passamos
a nos envolver. Com isso, o MDB, em 1974, teve um
crescimento estrondoso no Pas, chegando a ameaar
a hegemonia da ARENA no Congresso. O governo
militar imediatamente cassou vrios mandatos e mu-dou outra vez as regras eleitorais. Essas regras passa-
ram a ser extremamente rgidas. Criou-se at uma fi-
gura mais ou menos cmica, nas campanhas: como
era uma campanha silenciosa, os candidatos podiam
apenas apresentar o seu currculo e a sua fotografia;
ento, todo mundo dizia que era a campanha dos ex.
A pessoa ia para a televiso ou para o rdio e mostra-
va sua figura ou dizia seu nome ou seu nmero e ti-
nha que dizer seu currculo: Eu fui/eu sou ex-presi-
dente, ex-professor, ex-lder, ex. no sei o qu...Isso
tudo inviabilizava a campanha eleitoral, mas a situa-
o j estava de alguma forma colocada de maneira
radical no tecido social, inclusive a campanha pela
anistia tinha sido muito forte. Alm da anistia, assi-
nada em 1979, a partir de 1980 j estava claro que o
regime militar comeava a desmoronar, que suas en-
tranhas comeavam a se esgarar. Naquele momento
j havia se constitudo o Partido dos Trabalhadores,
que se apresentava como partido de oposio. Isso
produziu um certo racha na chamada esquerda, por-
que havia a seguinte alternativa: Vamos em busca de
uma proposta alternativa e radical de esquerda, ou
vale a pena neste momento lutar mesmo ao lado dos
liberais? Vamos fazer uma espcie de frente ampla
contra o regime militar, derrubar esse regime, depois
vamos ver como a sociedade reorganiza seus proje-
tos polticos, seus projetos sociais? ... e assim por dian-
te. Foi neste momento que acabei me engajando no
PMDB, o partido sucessor do MDB, e participei efe-
tivamente da campanha poltica em Minas Gerais. Em
1982, o PMDB teve uma vitria significativa em v-
rios estados brasileiros. As vitrias das oposies,
encabeadas pelo PMDB e pelo PDT de LeonelBrizola, compuseram o que foi denominado na mdia
de Tringulo das Bermudas: So Paulo, Rio de Janei-
ro e Minas Gerais. Por que Tringulo das Bermudas?
Porque achavam que, uma vez a oposio tendo ven-
cido nesses trs estados, necessariamente representa-
ria o afundamento do poder militar. Isso realmente
ocorreu, logo depois, com a eleio de Tancredo Ne-
ves em 1985 para presidente da repblica e a convo-
cao da Constituinte; tivemos ento uma reorgani-
zao poltica e a instituio da democracia com operfil que temos hoje no Brasil.
Nelma: Ento, na efervescncia de toda aquela
mudana, nesse quadro todo que voc desenhou, como
que se anuncia para voc, naquele momento
engajado no PMDB, buscando tambm colaborar com
a nova situao, como que aventaram para voc a
possibilidade de assumir, em 1982, a posio de su-
perintendente na Secretaria da Educao do Estado
de Minas Gerais?
Neidson: De alguma forma, esse convite partiu
do Octvio Elsio. Ele foi convidado para ser o secre-
trio da educao, o que tambm foi uma surpresa,
pois ningum imaginava que o Tancredo Neves iria
cham-lo para aquele cargo; pensvamos que ele se-
ria chamado para a Secretaria de Cincia e Tecnolo-
gia. Na Secretaria da Educao, para compor a equi-
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Entrevistando Neidson Rodrigues
Revista Brasileira de Educao 155
pe, convidou, primeiro, algumas das pessoas que es-
tavam engajadas na campanha de Tancredo Neves; e
segundo, pessoas que ele conhecia do trabalho na pr-
pria Universidade no caso, a professora Maria Lis-
boa, como secretria-adjunta, e eu, para superinten-
dente de educao. Para mim, havia a alternativa de
ser assessor de planejamento. Mas, de qualquer for-
ma, o que se colocava naquele momento era o se-
guinte: Olha, voc se empenhou durante a elabora-
o do Programa para que no fizssemos apenas
um programa de educao, e sim... (havia sido feito
um programa, publicado naquele livro Governar ...,
no qual existia uma espcie de diagnstico rpido so-
bre a situao da educao em Minas Gerais, e na
hora de se fazer uma proposta para a educao, a pro-posta seria a realizao de um congresso o Con-
gresso Mineiro de Educao). A gente se empenhou
para que fosse dessa forma. Um leitor desse progra-
ma poderia achar aquilo estranho, mas representava
de alguma forma a direo pela qual ns havamos
nos empenhado. Qual era a direo? Nossa grande
crtica era a seguinte: no adianta fazer projetos e pro-
gramas de gabinete; um programa de educao tem
de estar colado no tecido social, tem de estar colado
na expectativa e na mobilizao da sociedade. E, comoconseqncia, no tem sentido ns, que sempre de-
fendemos isso e criticamos os projetos de gabinete,
agora que somos chamados para elaborar um progra-
ma de governo, elaborarmos um programa descolado
desse tecido social. No caberia dizer:Mas ns sabe-
mos qual a vontade do povo. Essa uma mania que
tem a esquerda; critica as posturas anteriores porque
se julga representativa daquilo que o povo quer; e se
agora estamos no poder, no preciso perguntar mais
ao povo, porque sabemos o que o povo quer. Procura-
mos evitar essa postura, naquele momento; decidi-
mos fazer um congresso. E tinha sido imaginado um
congresso com caractersticas bastante restritas: ira-
mos identificar algumas lideranas sociais, professo-
res etc., e fazer um grande encontro em Belo Hori-
zonte, com teses, discusso de problemas, sugestes,
e a partir desse congresso elaboraramos um roteiro
ou alguns princpios fundamentais para a poltica edu-
cacional. Encaminharamos, portanto, uma proposta
concreta de governo aps a realizao desse congres-
so. Bom, Octvio Elsio me convidou, dizendo: Gos-
taramos que voc assumisse a responsabilidade pela
realizao do Congresso. Ento, independentemente
do que estava escrito nas responsabilidades, como
assessor de planejamento ou como superintendente
educacional, a minha tarefa seria ajudar a realizar o
Congresso, j que havia me empenhado por essa idia.
De algum modo, eu no queria me afastar do meu
trabalho na Universidade. Quando deixei Piracicaba
e vim para Belo Horizonte, estava interiormente que-
rendo me comprometer com o trabalho acadmico.
No me furtaria a realizar atividades em secretarias
ou em ministrios etc., mas atividades que me des-sem um certo distanciamento; uma consultoria, uma
assessoria, alguma coisa distante, porque no preten-
dia entrar na mquina governamental. Mas a ocorre-
ram presses de muitos lados, inclusive do prprio
movimento de professores, de pessoas que me conhe-
ciam antes; muitos me telefonando, muitos me en-
contrando ... eu afirmando que no queria, e as pes-
soas dizendo:Mas qual , professor? O senhor sempre
defendeu que ns temos de participar, temos de en-
trar, temos de dar o sangue, temos de lutar pelas trans-formaes, e agora que chega seu momento voc foge,
voc no assume!Comecei ento a me sentir pressio-
nado por esse tipo de situao e sem saber exatamen-
te qual era a melhor alternativa. Como dizia
Kierkegaard, o exerccio da liberdade o exerccio
da opo e o exerccio da opo o exerccio da an-
gstia, porque voc sempre tem de escolher o cami-
nho A ou B, e voc nunca sabe qual o melhor. Eu
no sabia se era melhor participar de longe ou parti-
cipar por dentro. Participando de longe eu poderia fi-
car sempre com o olhar crtico sobre o fazer e, por-
tanto, continuar sempre na posio de um sujeito
crtico, um intelectual que estava criticando a direo
das coisas. Mas se participasse por dentro e no con-
seguisse viabilizar as propostas como elas estavam
sendo operacionalizadas, ou tivesse que me submeter
a outras foras como as prprias da negociao pol-
tica, isso poderia inviabilizar a minha crtica. sem-
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Nelma Maral Lacerda Fonseca
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pre uma situao muito difcil. Na realidade, em fun-
o da clareza que o Octvio Elsio demonstrava eu
encaminharia o Congresso e teria liberdade para
realiz-lo, e na medida em que o processo fosse se
desenrolando, ns amos vendo como as coisas iriam
acontecer acabei aceitando. Botei na cabea que essa
seria minha tarefa, tanto assim que (no sei se Octvio
Elsio vai se lembrar), uma vez terminado o Congres-
so, elaborado o programa de governo, eu o procurei
no gabinete para dizer que achava que a minha mis-
so estava cumprida e, portanto, gostaria de pedir a
minha demisso. Mas ele no quis nem conversar,
dizendo que no, que agora iramos concretizar o tra-
balho, que deixasse disso, que continuasse... e eu aca-
bei ficando os quatro anos seguintes, tentando viabi-lizar e implantar algumas daquelas idias que haviam
brotado no Congresso. O prprio Congresso tomou
rumos diferentes do que imaginvamos no primeiro
momento, mas certamente voc vai ter outras pergun-
tas especficas sobre isso e eu no vou me adiantar
neste ponto...
Nelma: Com certeza. Mas, Neidson, naquele
momento, ento, quando vocs assumem e fazem o
Congresso e tm na mo aquele mapeamento do Es-tado todo, tudo aquilo que apareceu, que emergiu,
todas as reivindicaes, os anseios das comunidades
espalhadas por a, como que foi para vocs, que re-
trato chegou aqui da escola pblica naquele momen-
to, deu para visualizar, o que vocs concluram?
Neidson: Olha, de algum modo j tnhamos um
certo retrato da situao da educao pblica naquele
momento histrico. Ns ramos estudiosos da situa-
o, j compreendamos que alguns problemas eram
crnicos, estruturais da educao brasileira, alguns
estavam profundamente vinculados ao regime auto-
ritrio existente no Brasil, e outros no. O que estava
vinculado ao regime autoritrio? As idias de centra-
lizao, as idias de controle, determinados conte-
dos que tinham de ser trabalhados na escola para le-
gitimar o regime militar, como a educao moral e
cvica, e assim por diante; o fato de o processo de
democratizao das relaes escolares estar compro-
metido, porque existiam definies centralizadas no
Conselho Federal de Educao, no Ministrio da Edu-
cao, leis duras a respeito de disciplina, limitao
da participao atravs da limitao da prpria orga-
nizao e das atividades das associaes estudantis,
das associaes da sociedade civil, como associaes
de professores, sindicatos e assim por diante. Havia
toda uma estrutura poltica e organizacional e de vi-
gilncia que inviabilizava o exerccio da democracia,
tanto fora como dentro da escola. Ao mesmo tempo,
quando voc pensa que a escola um espao de for-
mao do cidado participativo, fica muito difcil
imaginar como se forma o cidado participativo numa
instituio onde a participao negada. Havia essaquesto muito sria, uma questo de natureza poltica
que o regime militar havia imposto. Ento, a realiza-
o do Congresso geraria uma forma de quebrar isso:
convocaramos os professores, os estudantes, os edu-
cadores, os pais para uma participao, para uma fala
sobre a escola, para um dilogo, pois o ser humano
um ser de palavra, um ser que precisa da palavra. Ns
criamos o mundo pela palavra, pela linguagem. Por-
tanto, abrir o espao da escola para que as pessoas
pudessem falar, pudessem at dizer coisas recorren-tes; aquele seria o momento em que as pessoas pode-
riam expressar as suas vontades, os seus desejos. Isso
j representaria um processo inovador e democrtico
na educao. Na realidade, muitas pessoas no en-
tenderam at hoje que este era o esprito do Con-
gresso. Porque o Congresso por si mesmo no era para
capturar quais eram os problemas da educao e nem
mesmo direcionar quais eram as solues. De algu-
ma forma, ns sabamos disso; sabamos que precis-
vamos abrir as portas da escola para a democracia;
sabamos que era preciso aumentar os recursos finan-
ceiros, melhorar os salrios de professores; precis-
vamos estabelecer carreira, concursos pblicos; bo-
tar todo mundo na escola; precisvamos assegurar
melhores prdios, equipamentos. Tudo isso estava
muito claro; a gente j sabia tudo isso. Vale pergun-
tar: Ento, para que o Congresso?Ns temos que
diferenciar essas coisas. Muita gente dizia assim:Aps
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Entrevistando Neidson Rodrigues
Revista Brasileira de Educao 157
o Congresso, vocs vo comear a executar a polti-
ca de educao?E eu dizia:No aps o Congresso;
o Congresso j a execuo de uma poltica de edu-
cao... Ns no temos que esperar o fim do Con-
gresso para comear. O Congresso j era uma prtica
concreta da democracia, em que as pessoas iriam par-
ticipar dizendo dos problemas da escola, dizendo in-
clusive quais eram as alternativas de soluo. No era
para comearmos depois do Congresso a elaborar um
programa, no; amos depois do Congresso elaborar
programas, mas isso era uma segunda etapa. Eu gos-
to de fazer algumas comparaes, inclusive com coi-
sas muito prticas da vida. H pessoas que dizem:
Vou construir a minha casa, vou construir um jardim
e depois que a minha casa estiver pronta, o jardimestiver pronto, eu vou usufruir da nova casa, quando
as rvores crescerem... e assim por diante. Eu penso
de maneira diferente: quando estou construindo a casa,
quando estou fazendo o jardim, quando as sementes
esto nascendo, eu j estou usufruindo. Quer dizer, eu
j estou participando do processo de construo; no
preciso esperar a rvore grande para que eu possa usu-
fruir dela; j estou usufruindo a partir desse momento.
Ento, o Congresso tinha este objetivo; no era algo
que anteciparia as nossas aes, ele j era a ao.
Nelma: Ele j era a abertura de um frum que
deveria ser permanente. Voc acha que a sociedade
no entendeu isso? E a comunidade escolar?
Neidson: Isso no tinha importncia. No h
necessidade que todos tenham conscincia de todas
coisas, mas necessrio que a liderana tenha; ne-
cessrio que a liderana tenha conscincia a respeito
do que est acontecendo. medida que o Congresso
foi criando vulto, inclusive um vulto muito maior do
que imaginvamos, isso significava que estvamos
certos nessa concepo: a sociedade queria partici-
par, a sociedade queria demonstrar o seu inconfor-
mismo, a sociedade queria dizer quais eram os pro-
blemas que ela estava vivenciando e queria participar
da reformulao e da mudana. A estratgia posterior
ao Congresso e as propostas nele apresentadas como
eleio de diretores, criao de colegiados, assem-
blias escolares que ns tentamos implementar es-
barravam em tradies, inclusive do poder poltico.
Por exemplo, naquele momento, a Assemblia Le-
gislativa se colocou contra a eleio de diretores e at
contra os colegiados e as comisses municipais, por-
que achava que as comisses municipais e os
colegiados estavam substituindo o papel que o depu-
tado fazia: o de ser o representante do povo. O fato de
levantarmos uma srie de problemas, traz-los para a
Secretaria, era como se estivssemos criando canais
margem e desvalorizando o trabalho dos deputados
e polticos... a gente teve muito trabalho com os pol-
ticos! O que estvamos fazendo, na verdade, era es-
vaziar a vida deles de uma tarefa que no era prpriada poltica, eles poderiam fazer um trabalho poltico
mais eficiente se no estivessem preocupados em no-
mear um diretor, nomear um professor, reivindicar
carteiras para uma escola, ir no caminho carregan-
do as carteiras com faixas e dizendo que essa era sua
ao... No era para isso que a sociedade queria os
deputados; quer dizer, a sociedade comeava a mani-
festar no apenas o que ela desejava no campo da
educao, mas comeava a ficar evidente o que ela
esperava tambm no campo da poltica. Isso neces-sariamente teve repercusses. Hoje, as pessoas, s
vezes, nem sabem que essas coisas existiam. Muita
gente nem sabe que a indicao de um professor para
uma escola muitas vezes era feita de uma maneira
poltica; a transferncia de um professor era poltica;
a nomeao de um diretor era poltica; a merenda que
ia para uma escola, a carteira que ia para uma escola,
tudo isso tinha que passar por gabinetes de deputados.
Nelma: Era como um negcio na poltica, no ?
Neidson: Era um negcio; era um grande neg-
cio. Hoje, inclusive, nem se sabe que essas coisas
existiam; h uma certa perda da memria desse pas-
sado. muito bom at a gente falar nisso, porque
mantm a memria viva, lembra uma situao que
no queremos que seja novamente recolocada. Tal-
vez no seja, mas para se compreender que muitos
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problemas existentes hoje esto enraizados numa cul-
tura que a gente simplesmente no pode desconhecer.
Eu no tiro e troco cultura como tiro e troco uma ca-
misa, porque a mudana cultural um processo de
longo prazo. Muitas coisas que acontecem hoje de
uma maneira mais fcil, como organizao colegiada,
autonomia das escolas, eleio de diretores, foi ar-
rancado a sangue e fogo, do ponto de vista poltico.
De outro lado, ocorreu porque a conscincia da cha-
mada comunidade est hoje muito mais atenta e no
aceitaria mais esse tipo de atuao. Naquele momen-
to, no entanto, estvamos iniciando esse enfrentamen-
to; era quase uma guerra. S para voc ter uma idia:
eu no freqentava a Secretaria da Educao; quando
falei para o Octvio Elseo que gostaria de assumir aSuperintendncia Educacional, algum me disse:No
assume aquilo l no!Eu perguntei: Por qu? Fala-
ram: Porque aquilo l uma sede de deputados. Os
deputados iam ali porque era onde se fazia toda a ne-
gociao. Eu no sei se era verdade ou no, porque
no freqentava a Secretaria. Essa foi a informao
que me deram. O que eu fiz na Superintendncia Edu-
cacional? Eu disse: No sou um superintendente de
gabinete. Comecei a viajar pelo Estado, agitar, mo-
bilizar para o Congresso de Educao. Ficava atmuito pouco na Superintendncia. O importante que
encontrei uma equipe de funcionrios muito compe-
tentes, ansiosos para participar. Isso permitiu que as
atividades normais fossem sendo realizadas, me libe-
rando para a mobilizao em torno do Congresso. Ao
mesmo tempo, tivemos apoio significativo de vrias
organizaes. Corro o risco de deixar alguma de fora;
portanto, no vou citar todas, mas lembro que a
APPMG e a UTE tiveram participao efetiva na
mobilizao do Congresso. Tambm do Sindicato dos
Professores das Escolas Privadas e do Sindicato dos
Estabelecimentos de Ensino Privado; no incio esta-
vam fora porque no pertenciam ao sistema de ensi-
no pblico, mas acabaram se integrando. A razo
imediata eu no sei, mas houve uma certa presso e
eles participavam, tiveram uma boa participao no
Congresso. A AMAE Educando teve uma participa-
o, a Associao de Diretores, Associao de Su-
pervisores, enfim, diversas organizaes com repre-
sentao no estado de Minas Gerais; compuseram in-
clusive a Equipe Central do Congresso. Essa compo-
sio da chamada Equipe Central de Mobilizao para
o Congresso foi reproduzida nas delegacias de ensi-
no, e depois nos municpios. Dessa reproduo, sur-
giram as chamadas Comisses Municipais para a rea-
lizao do Congresso. Durante o Congresso, essas
Comisses Municipais passaram a reivindicar que
fossem permanentes, para poderem acompanhar a rea-
lizao da poltica educacional da Secretaria de Edu-
cao. Aps o Congresso, incentivamos as Comis-
ses Municipais a terem participao efetiva, o que
de fato, ocorreu durante dois ou trs anos, inclusive
nos programas de expanso da rede: na criao deescolas e construo de escolas, expanso da pr-es-
cola, expanso do 2 grau. Elas tiveram participao
muito efetiva nas negociaes entre a Secretaria e as
prefeituras. Havia um municpio que exigia uma es-
cola de 2 grau, mas no tinha alunos suficientes; ou-
tro municpio precisava efetivamente de uma escola
de 2 grau, e era mais carente. amos s negociaes
intermediadas pelas Comisses Municipais, das quais
os prefeitos faziam parte. E se combinava que have-
ria uma escola de 2grau para o municpio tal. O pre-feito no contemplado dizia: Eu ponho nibus para
levar os meus alunos l; mas, ento, no meu munic-
pio eu quero uma pr-escola. Essas coisas funciona-
vam e demonstravam claramente que este era um bom
caminho na reformulao da poltica educacional. Ago-
ra... tudo isto funcionou s mil maravilhas? No. Fun-
cionou com muita dificuldade, com muitos proble-
mas, com muitas malquerenas. s vezes produzindo
resultados opostos queles que as pessoas imagina-
vam. Cada um chegava com uma lista de reivindica-
es, e como se disse que todos iriam participar, eles
imaginavam que a Secretaria de Educao, ou o Go-
verno do Estado, tinha a obrigao de atender todas
aquelas listas, o que era invivel. No estvamos di-
zendo que, uma vez tendo a participao da sociedade,
as listas de reivindicaes seriam atendidas. Estva-
mos dizendo que as listas seriam objeto de negocia-
o; que as pessoas iam saber o que era e o que no
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Entrevistando Neidson Rodrigues
Revista Brasileira de Educao 159
era possvel, e assim por diante. Ao mesmo tempo,
tnhamos a presso poltica tradicional tambm, que
era o outro lado da moeda. E essa presso sempre era
maior, porque havia um grupo de deputados ou de
prefeitos que chegava para o governador e dizia: Faa
isso, ou no apoio mais, no voto..., e o governo tam-
bm ficava sempre com enormes dificuldades para
tomar decises. No podia simplesmente descartar
essas presses, porque se estava dizendo que era ne-
cessrio mudar de concepo, mudar o comportamen-
to, mudar uma cultura... Isto se faz ao longo de um
processo. O que posso garantir que, quando vejo a
situao de 1983 e a situao de hoje, percebo quanto
mudou. Mudou muito!
Nelma: Como que voc v isso, Neidson?
Neidson: Eu vejo de vrias formas. Em primeiro
lugar: hoje voc no encontra quase em nenhum esta-
do do Brasil este tipo de ao poltica, de negociao,
de p de ouvido. Em segundo lugar, a Constituio
de 1988 fruto da luta pela e na Constituinte. Ela
retrata em seus termos, inclusive da educao, da po-
ltica e da organizao da escola, princpios que ela-
boramos aqui no Congresso Mineiro da Educao:como a democratizao da gesto democrtica, a par-
ticipao, a no-centralizao. E olha: a Lei de Dire-
trizes e Bases aprovada em 1996 pode no ser a lei
dos nossos sonhos, mas uma lei que consagra o prin-
cpio da autonomia, da deciso colegiada, da deciso
participativa, da responsabilidade pblica com a edu-
cao, e no mais a responsabilidade pblica apenas
com o ensino numa determinada faixa etria... A ins-
titucionalizao da educao pblica gratuita, a res-
ponsabilidade do Estado com a educao universal,
novas polticas de formao de professores, a desbu-
rocratizao atravs do fato de que hoje voc no tem
mais aquela estrutura curricular rgida estabelecida
pelo Conselho Nacional de Educao quer dizer, os
conselhos estaduais ficaram mais responsveis por
diretrizes, por grandes polticas. Os colegiados hoje
esto instalados no Brasil inteiro; funcionam de ma-
neira diferenciada, claro, mas representam uma pr-
tica que est se colocando no Brasil todo. E hoje j
estamos discutindo em todo o Brasil uma reorganiza-
o dos tempos e dos espaos escolares. A idia de
ciclo, iniciada naquele momento em Minas Gerais para
resolver um problema de alfabetizao, hoje est se
tornando cada vez mais uma viso de uma nova reor-
ganizao poltica e pedaggica e administrativa da
educao escolar. Por outro lado, houve uma expan-
so fantstica do ensino de 2 grau, hoje ensino m-
dio. Naquele momento s havia trs escolas de 2 grau
pblicas estaduais em Belo Horizonte. Em funo da
presso do Congresso, o governo partiu para a cria-
o de escolas no estado: nos trs anos depois do Con-
gresso foram abertas mais de 400 escolas de 2 grau
no estado de Minas Gerais; houve uma expanso sig-nificativa da pr-escola; houve mudanas muito gran-
des. As pessoas s vezes no percebem essas mudan-
as. Toda a nossa vida assim: quando a situao
posterior melhor, tendemos a esquecer a situao
anterior que era pior, no ? Isto , podemos passar
fome durante muito tempo, e aquilo a gente lamenta,
a gente est desnutrido, passa mal... A, num segundo
momento, quando voc no tem problema de fome,
voc est bem nutrido, voc est numa situao me-
lhor, o mximo que voc faz lembrar com um sorri-so aquela poca de sofrimento anterior, mas normal-
mente as pessoas nem tocam mais naquele assunto. A
situao atual, do ponto de vista poltico, pedaggi-
co, administrativo e de funcionamento, pode ser con-
figurada como uma situao bem melhor que a situa-
o anterior. No estou falando de situaes ideais,
estou falando que hoje estamos em uma situao me-
lhor, que nos permite definir projetos e aes peda-
ggicas em condies melhores que as anteriores. A
gente esquece um pouco esse passado, mas ele no
pode ser esquecido. No pode ser esquecido porque
custou muita luta. O que fizemos, se de alguma for-
ma isto tem sentido, apenas aquilo que dizia um
pensador atuante como Antonio Gramsci (Gramsci
nos orientava, estvamos muito imbudos do seu pen-
samento naquele momento): que um trabalho intelec-
tual efetivo no aquele que produz grandes idias,
mas aquele que representa o pensamento de uma
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Nelma Maral Lacerda Fonseca
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multido. No ramos ns que estvamos fazendo
como pessoas, no ramos simplesmente ns, que a
sociedade reconhecia como autoridades e intelectuais;
estvamos tentando interpretar o sentimento da po-
pulao; e se a gente faz isso de maneira correta ou
adequada, mais ou menos adequada, a sociedade ca-
minha nesta direo; se ns no fazemos, isto aban-
donado e deixado de lado. Ento, a avaliao que fao
hoje que muitas das atividades realizadas naquele
momento certamente representavam uma expectati-
va da populao. Por qu? Porque at hoje estas coi-
sas so lembradas, so referidas, so tomadas como
exemplo, e a sociedade est a todo momento queren-
do saber a respeito disso. Mais ainda: essas idias que
aqui foram iniciadas e praticadas se espalharam poroutros lugares. Eu no me canso de receber convites
de vrios lugares do Brasil; todos esto querendo sa-
ber como fizemos e como podem fazer outras coisas
mais ou menos semelhantes... O que significa que, de
algum modo, aqui em Minas Gerais houve um senti-
mento da direo desse movimento e ele foi imple-
mentado. Muitos erros foram cometidos; cometemos
muitos enganos tericos e prticos. Mas isso faz par-
te das limitaes que todos ns temos. No estou pe-
dindo desculpas a ningum por isso; estou apenas ex-plicando: fizemos muitas coisas que, em minha
opinio, foram acertadas; cometemos muitos erros
tambm; o balano, para mim, que, no momento
em que a maioria das coisas foi acertada, a minoria
errada tende tambm a ser esquecida... Mas eu tam-
bm no gostaria de esquecer, no, porque a gente
aprende com esses erros tambm.
Nelma: Mas o Congresso foi um marco na edu-
cao em Minas Gerais, com reflexos no Brasil in-
teiro, como voc est comentando, inclusive con-
templado na Constituio quanto aos anseios e
reivindicaes surgidas....
Neidson: Gostaria apenas de deixar claro o se-
guinte: no seria capaz de dizer que aquilo que foi
desenvolvido em Minas Gerais o que est traduzido
na legislao posterior, para ningum imaginar que
estamos dizendo que Minas domina intelectualmente
o Brasil. Estou dizendo que aquilo que ocorreu em
Minas foi possvel porque pudemos interpretar o an-
seio nacional; o que ocorreu, com o esfacelamento
do regime militar e com a convocao da Constituin-
te, foi traduzido na Constituio, na Lei de Diretrizes
e Bases. Mas isso representou o anseio da populao
brasileira. O que eu verifico que ns tnhamos cap-
tado este anseio, naquele momento, possivelmente de
maneira correta, e trabalhamos nessa direo.
Nelma: Falando agora um pouco sobre a equipe
da Secretaria. Quando vocs assumiram, oriundos da
universidade, como perceberam a Secretaria naquele
momento? Vocs trouxeram outras pessoas, ou coma equipe que encontraram constituram aquela gran-
de frente?
Neidson: Muito bom voc perguntar sobre isso.
Essa foi uma discusso que fizemos vrias vezes na
equipe, e tomamos a seguinte deciso: no trazer nin-
gum de fora, porque no queramos trazer pessoas
que viriam ensinar para a Secretaria do Estado o que
deveria ser feito; achvamos que estas questes esta-
vam colocadas e que as pessoas que estavam envol-vidas na Secretaria tinham clareza sobre elas. Talvez
no tivessem oportunidades, condies, estmulo e si-
tuao poltica para viabiliz-las. A equipe que veio
de fora, voc pode examinar, foi muito pequena, foi a
mnima possvel... Eu, por exemplo, na Superinten-
dncia, no trouxe sequer um assessor de fora; no
levei uma nica pessoa de fora da Secretaria para tra-
balhar na Superintendncia, porque achava que ali
dentro iria encontrar as pessoas que seriam capazes
de se engajar no processo. Se trouxssemos pessoas
de fora, seriam sempre vistas como os deuses cados
do cu, e no era isso que estvamos propondo. En-
to, procuramos trabalhar o tempo todo com as equi-
pes da Secretaria, com as equipes da Superintendn-
cia. Agora, encontramos nessas equipes os mais
variados perfis, desde as pessoas que acreditavam, e
portanto diziam: Essa uma direo correta, vamos
fazer; at aquelas que diziam:J vi esse filme... todo
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Entrevistando Neidson Rodrigues
Revista Brasileira de Educao 161
mundo que entra aqui fala que vai mudar, vai fazer,
e fica tudo do mesmo jeito, e no buscavam fazer
nada. Havia ainda aqueles que diziam: Esse grupo a
ns no gostamos dele, no gostamos dessas idias.
Estavam comprometidos com situaes anteriores e,
portanto, iriam se esforar para que as coisas no des-
sem certo. Encontramos de tudo, mas nada disso nos
assustava. O importante era identificar quais eram os
grupos e as pessoas que estavam a fim de participar
de um processo de mudana, e avanar com essas
pessoas. Foi assim que fizemos: procuramos o mxi-
mo possvel deixar o pessoal da Secretaria conscien-
te do processo; fizemos muitas reunies com os gru-
pos, fizemos muitas discusses, muitos estudos, e
aqueles que estavam interessados participaram e osque no estavam no participaram. Mas, enfim, no
imaginamos que deveramos trazer equipes, grupos,
recursos de fora, porque isso seria postio. Estva-
mos dizendo desde o incio que queramos mobilizar
a sociedade para a participao, e no trazer pessoas
que j estavam engajadas em atividades de mudana
para serem os sujeitos da mudana. Os sujeitos da
mudana no so os lderes; o sujeito da mudana a
populao que participa. Ela que o sujeito de uma
mudana social. No a cabea de um intelectual;no o Neidson, o Octvio Elsio, a Maria Lisboa
que so sujeitos da mudana. No mximo, podemos
compreender a necessidade de direo que est sen-
do reivindicada para a mudana e sermos os intrpre-
tes. J que ocupvamos os postos-chave, o que tnha-
mos de fazer era abrir os canais para que essa
participao se desse. Se isso acontecesse, mudanas
seriam feitas. Se isso no acontecesse, nada seria fei-
to, por mais brilhantes que fossem as cabeas das pes-
soas que estivessem na direo da Secretaria. como
tudo que humano, no ? O ser humano no um
animal que age movido de fora para dentro. O passa-
rinho, quando est na grama do nosso jardim, fica
olhando o tempo todo para ver se no tem nenhum
movimento externo; quando aparece movimento ex-
terno ele voa, porque ele movido de fora para den-
tro. O ser humano, no; o ser humano movido de
dentro para fora. a minha convico, so as anli-
ses, os balanos que eu fao das coisas, essas coisas
me movem na direo de uma determinada atividade.
Portanto, assim que temos de trabalhar para que o
ser humano possa participar de uma atividade polti-
ca, social, pedaggica, e assim por diante.
Nelma: A gente tem uma lembrana forte daque-
le momento, porque foi nele que a Secretaria se encon-
trou, trabalhvamos em casas muito isoladas. A Secre-
taria era um pouco espalhada e, naquele momento, eu
me lembro de vrias reunies no Colgio Estadual
Milton Campos, onde se reuniam todas as equipes que
desejavam participar daquele processo. Muitos estu-
dos, muita mesa-redonda, muita discusso, muita coi-
sa interessante, mas algo chamava a ateno: suas car-tas. Voc escreveu vrias cartas aos professores: carta
aos diretores, carta aos professores de histria, carta
aos professores de geografia... Como foi aquilo,
Neidson? Como que pintou aquela inspirao, como
que pintou aquela coisa de falar assim: Eu preciso ir
l, quase como ir casa do professor, chegar ao ma-
go dele, e insufl-lo para essa participao?
Neidson: Estas coisas acontecem... por uma ins-
pirao que voc no consegue clarear. No tenhomuita clareza por que surgiu isso, a no ser a seguin-
te: eu estava muito convencido naquele momento de
que teramos de falar numa linguagem adequada aos
educadores; a minha linguagem no poderia ser a lin-
guagem acadmica. Ao chegar Secretaria, eu havia
acabado de defender uma tese sobre Estado, educa-
o e desenvolvimento econmico. Portanto, eu ti-
nha uma concepo de Estado, uma concepo da res-
ponsabilidade do Estado com a educao e de como a
educao estava comprometida com um projeto de
poltica econmica, e assim por diante. Quando che-
guei Secretaria, de repente comecei a me lembrar
do meu texto anterior sobre o Estado e a poltica de
educao. Falei:Engraado, agora eu estou aqui no
Estado e o que este Estado? Tinha muito pouco a
ver com a noo de Estado que eu tinha quando es-
crevi o livro sobre o Estado e a educao. Eu vi que a
minha viso acadmica sobre o Estado tinha pouco a
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7/25/2019 Neidson Rodrigues
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Nelma Maral Lacerda Fonseca
162 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 N 22
ver com o Estado real. O Estado real era aquelas pes-
soas que estavam ali comigo, cheias de ansiedade,
cheias de problemas, cheias de dificuldades, com
muita boa vontade; este era o Estado real. Eu imagi-
nava tambm que os problemas do Estado eram gran-
des problemas... O Estado traava poltica. Quando
chego ao Estado, os professores esto reivindicando
do Estado carteiras, melhores salrios, espao para
trabalho, democracia; ento eu comecei a perceber
que os grandes problemas eram feitos de uma acu-
mulao de pequenas coisas, e as pessoas no esta-
vam dispostas a fazer o discurso a respeito da centra-
lizao do poder econmico, da racionalidade tcnica
do Estado brasileiro e da articulao com o Acordo
MEC/USAID. Eles no estavam interessados nessascoisas; estavam interessados naquilo que era o seu
dia-a-dia na escola. Todo o meu problema era como
articular essas duas coisas. Sabia que o meu trabalho,
enquanto intelectual, enquanto algum do mundo aca-
dmico, no poderia estar deslocado desta realidade.
Ento, todo o meu problema era como fazer o trnsi-
to daquelas minhas concepes e traduzi-las para os
educadores. Isso me incomodou um pouco, e eu co-
mecei a fazer uma coisa na Secretaria: diariamente
(eu chegava l geralmente muito cedo) gastava umcerto tempo retomando os textos de Maquiavel que
falavam sobre o Estado autoritrio, e comecei a fazer
um exerccio, que era muito um exerccio para mim
mesmo, de como eu via a formulao de Maquiavel a
respeito das coisas do Estado e o meu cotidiano ali na
Secretaria. Comecei ento a escrever o que chamei
deLies do Prncipe. Ao mesmo tempo, comecei a
verificar como que eu poderia traduzir estas inquie-
taes para os professores, como que os professores
poderiam compreender aquilo que eu estava dizendo,
como eu poderia escrever de maneira simples mas
sem perder a dignidade dos conceitos. Imaginei es-
crever cartas aos professores, cartas aos diretores, aos
professores alfabetizadores, aos professores de hist-
ria e de geografia, para que, de alguma forma, eles
pudessem ser provocados a este tipo de reflexo. Sur-
preendentemente, o que eu imaginava ser um texto
de circunstncia tomou corpo e virou aquele livro
chamadoLies do Prncipe e outras lies... O que
me surpreende? que este livro est na 16 edio.
At hoje ele anualmente reeditado e encontra leito-
res no Brasil inteiro. Novamente, eu volto ao Gramsci,
quando ele dizia que um grande trabalho intelectual
no a produo de uma idia na cabea de um inte-
lectual, mas quando voc consegue traduzir o que est
na cabea de uma multido de pessoas. Possivelmen-
te asLies do Prncipe fizeram isto. No eram gran-
des idias na minha cabea, era o fato de poder ter
traduzido, de algum modo, o que estava na cabea
das pessoas. No por acaso que, quando escrevo o
livro chamado Por uma novaescola, dedico esse li-
vro aos professores de Minas Gerais. porque perce-
bo que tudo aquilo que falo no Por uma nova escola,todas as propostas que ali esto elaboradas, so pro-
postas que eu nunca havia imaginado fazer antes de
vir para a Secretaria da Educao. o que eu aprendi
com os professores de Minas Gerais; o que aprendi
com o pessoal da Secretaria, com os tcnicos, com as
delegacias, com os professores, com os pais. Atravs
do qu? Atravs das visitas, dos debates, das discus-
ses. Aquilo era o produto do meu aprendizado. Eu
havia aprendido aquilo com os educadores e, portan-
to, no livro estava traduzido aquilo que era o senti-mento deste meu aprendizado. Por isso, no podia ter
outra atitude a no ser dedicar aquele meu livro aos
educadores que foram os que me ensinaram aquelas
coisas. Quer dizer: o que eu havia feito fora da Secre-
taria foi publicado em um livro chamado Cincia e
linguagem, em outro livro chamado Estado eeduca-
o, masLies do Prncipe ePor uma nova escola
o que eu havia aprendido na Secretaria. Portanto, per-
cebi que se eu havia participado de algum modo para
ajudar a mudar a educao em Minas Gerais, este
modo de participar havia me mudado. Ao deixar a
Secretaria eu era uma outra pessoa, totalmente dife-
rente do que era antes. No s pelo acmulo de ex-
perincias, no s isso, no... Aprendi coisas a res-
peito da escola, da educao, da relao com o
professor, da poltica, do papel de uma secretaria de
educao, da organizao coletiva do trabalho, a res-
peito das pessoas, de como as pessoas se articulam,
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Entrevistando Neidson Rodrigues
Revista Brasileira de Educao 163
de como as pessoas so manhosas... Aprendi tudo
isso... Aprendi muita coisa ao participar da Secreta-
ria. Se as pessoas consideram que foi boa a minha
participao naquele momento e aprenderam comi-
go, eu digo que aprendi do mesmo modo. At passei
a entender melhor quando Brecht diz que educador
no aquele que sempre ensina, mas aquele que de
repente aprende. Eu tambm aprendi.
Nelma: Isso me lembra, foi muito comentado na
poca, era um sentimento generalizado entre as pes-
soas todas que participavam do processo, que se tra-
tava de um exerccio de humildade feito por voc.
Aqui chegando voc buscou socializar tudo ou quase
tudo que voc tinha aprendido. Voc buscou passarum pouco daquilo e ajudou as pessoas a adquirir com-
petncia necessria para aquele momento. Mas tam-
bm voc dizia: estou aprendendo; estou doando, mas
tambm estou recebendo. Isso ficava muito claro.
Neidson: Eu me lembro muito de uma afirma-
o por isso eu digo que a gente aprende das mais
variadas maneiras... H um livro escrito no sculo V
a.C., por Sfocles, muito comentado: o dipo Rei...
[riso]. Nele temos a palavra do sbio Tirsias. Em umcerto momento, quando questionado, ele sente o ris-
co de dar a informao, dar o conhecimento que ele
tinha ao rei dipo. Sabendo do risco, faz uma per-
gunta, que sempre bate muito forte na minha cabea:
Deque vale umsaber se ele no pode ser til aos
homens?De que vale um saber se ele no pode ser
til aquem o possui?Isso sempre me bate. Isto , se
eu tenho um conhecimento, este conhecimento s
til se ele for do conhecimento dos outros. Talvez isso
seja um princpio da minha atuao intelectual. Isto
, o que sei s tem sentido se eu puder ensinar outros
a respeito daquilo que sei. E na medida em que as
pessoas conversam comigo, eu reaprendo a respeito
das coisas e posso avanar... Nesse sentido voc tem
razo: se h alguma coisa que procurei no fazer era
esconder o que eu sabia, mas repartir com as pessoas
aquilo que eu conhecia. Se fui bem-sucedido ou no,
no sei... Mas acho que a ao poltica de algum tam-
bm tem uma dimenso pedaggica, e reconheo a
importncia dessa atividade poltico-pedaggica. Isto
, ns podemos levar as pessoas que participam com
a gente clareza a respeito da direo das coisas. Eu
aprendi com muitos intelectuais, e quando passei a
trabalhar aqui no podia privar as pessoas que esta-
vam comigo de aprenderem as coisas que eu havia
aprendido... no ?
Nelma: Nesse sentido voc foi muito generoso:
socializou, repartiu com toda a equipe o seu saber
acumulado e nos colocou em contato com grandes
pensadores e tericos, entre eles Gramsci.
Neidson: , Gramsci me ensinou no apenas doponto de vista intelectual; me ensinou tambm do
ponto de vista de estratgias. Uma coisa que estava
muito presente na minha cabea naquele momento
era uma anlise de estratgia poltica de Gramsci,
quando falava que havia duas guerras. Vou simplifi-
car, para no complicar o pensamento de Gramsci,
at porque ele muito simples. Segundo ele, uma guer-
ra se desenvolve em dois campos diferenciados: uma
guerra de movimento e uma guerra de posio. A
guerra de movimento aquela que leva s grandesaes, aos bombardeios, por exemplo, que so tpi-
cos da artilharia, tpicos do movimento dos avies.
uma guerra que destri e enfraquece o inimigo; mas,
se se ficar nela, ela no representa nunca sucesso ne-
nhum do ponto de vista militar. Do ponto de vista
militar, a guerra que tem sucesso a guerra de posi-
o, isto , aquela guerra de trincheiras, aquela guer-
ra em que a infantaria vai avanando e ocupando as
posies. interessante que eu tinha muito isso na
minha cabea, naquele momento. Pensava: uma coi-
sa era sair pelo estado apregoando, dizendo, escre-
vendo, gritando, falando a respeito dos novos rumos
da educao; essa era guerra de movimento, era para
poder botar as idias o mais rpido possvel no maior
nmero de cabeas. No entanto, se ficasse nela, de-
pois que sassemos da Secretaria isso poderia ser per-
dido. Era fundamental que a gente fizesse tambm a
guerra de posio, segundo Gramsci. O que era? Era
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Nelma Maral Lacerda Fonseca
164 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 N 22
criar trincheiras, criar grupos convencidos; em to-
dos os lugares do Estado, era preciso ter grupos con-
vencidos, que tivessem participado, que quisessem
implantar as novas idias. Por isso era fundamental
fortalecer as comisses municipais, os colegiados nas
escolas, as assemblias municipais. Isso garantiria que
essas idias estariam espraiadas por todo o Estado.
Depois, mesmo que um novo governo quisesse retor-
nar situao anterior, ele teria um trabalho muito
grande, teria de destruir todas essas posies. No
bastaria fazer uma guerra de movimento novamente;
era ele que teria que fazer um trabalho de destruio.
Como no acreditava que isso pudesse ocorrer, acha-
va que quanto mais ns avanssemos mais assegu-
raramos a permanncia dessas idias. Discutimosmuito isso na nossa equipe, e at quais as estratgias
para que isso pudesse ser feito. O interessante que,
quando analiso a situao de hoje, percebo: muitas
coisas no tm os perfis que desenhvamos naquele
momento; mas muita coisa realmente mudou, porque,
independentemente dos governos que nos sucederam,
aquilo que representava a vontade da populao mi-
neira teve permanncia, teve continuidade, indepen-
dentemente do governo. Pode ter acontecido com per-
fis diferentes, mas... isso teve uma certa continuidade.Eu vejo hoje de maneira muito positiva este momen-
to passado.
Nelma: Neidson, conversaramos muito ainda
sobre o Congresso Mineiro. Teramos ainda vrias
questes a colocar, mas vamos ter outros momentos
para discutir isso. Eu perguntaria agora: tendo em vista
todo o seu passado, todo o seu engajamento, todo o
empenho, o trabalho e a luta que foi feita para a mu-
dana naquele momento, como que voc avalia hoje
a questo da educao no Brasil e em Minas Gerais?
Que avaliao voc faz, que sugestes, que recomen-
daes teria para o enfrentamento dos problemas que
continuam a nos desafiar? Como voc est vendo isso?
Neidson: Bom, essa uma pergunta que tem uma
complexidade muito grande, porque os grandes pro-
blemas colocados pela educao na dcada de 1980
no so os grandes problemas colocados nesta vira-
da de sculo e de milnio... Temos de lembrar o se-
guinte: na dcada de 1980 tnhamos ainda uma viso
de um pas industrial e uma viso de nacionalismo
um tanto quanto arraigada. As nossas prprias idias
de transformao eram para a criao de uma socie-
dade avanada, moderna, e os problemas educacio-
nais estavam todos ligados quela concepo de que
a escola, ou as atividades tpicas da escola, eram res-
ponsveis pela formao integral do ser humano. Essa
uma viso que predomina no mundo ocidental des-
de, talvez, a Revoluo Francesa. ela que generali-
za, universaliza a educao escolar, e com isto h uma
enorme confuso entre educao escolar e educao.
Naquele momento, a nossa viso era de educao es-colar, quer dizer, os meus livros tratam de educao
escolar como se fossem toda a educao. Com isto,
os problemas eram problemas relativos escola, eram
problemas de natureza pedaggica, de natureza e de
concepo de educao escolar, de fins e funo da
educao escolar. Uma das discusses que mais cir-
cularam naquele momento foi sobre a funo social
da escola; a questo da formao da cidadania. Dis-
cutamos o que era essa formao do cidado atravs
da escola. Alguns diziam que era a formao do su-jeito crtico; outros diziam que era a formao do su-
jeito competente... porque s o sujeito competente
poderia ser crtico; outros diziam que era a formao
do sujeito engajado e no-alienado. Enfim, havia v-
rias idias, e o eixo em torno do qual essas idias gi-
ravam era a questo da educao escolar. Atualmente
a coisa muda um pouco de configurao, pelo menos
do ponto de vista terico. Por qu? Porque neste mo-
mento se comea a debater que a educao um pro-
cesso de formao humana. Que essa formao hu-
mana? De repente, comeamos a descobrir no de
repente; comeamos a retomar uma discusso que
milenar, mais do que milenar no campo da reflexo
filosfica, no campo da reflexo antropolgica que
o ser humano no nasce formado como ser humano;
o indivduo nasce segundo determinaes prprias da
natureza. Mas para viver, no vive na natureza; vive
numa oposio, numa luta contra a natureza, vive no
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Entrevistando Neidson Rodrigues
Revista Brasileira de Educao 165
mundo da cultura, naquilo que prprio do mundo
da cultura... Por exemplo, no tenho possibilidades
de viver humanamente no mundo da cultura se no
for detentor de uma linguagem, a linguagem do am-
biente social onde eu estou. Isto , no h comunida-
de humana, conhecida no passado ou no presente,
que no seja detentora da linguagem, da linguagem
oral. Agora, ningum nasce sabendo falar; preciso
aprender. E h outras linguagens decorrentes dessa
linguagem oral e que todos so obrigados a dominar;
como seres humanos, tm de aprend-las. muito
importante que todos aprendam a linguagem escrita,
mas nem todos vo aprend-la; os nveis de aprendi-
zado e de domnio dela sero diferenciados, o que
no impede que o indivduo viva; mas, se ele no fa-lar, isso impede que ele viva no ambiente social. As
pessoas tm de aprender comportamentos. Ningum
come as coisas de maneira natural; o ser humano tem
de aprender como comer, como beber, como dormir,
como sentar, como se vestir, como circular na vida
social, as regras da vida social. Tudo aquilo que com-
pe o mundo cultural tem que ser aprendido. O que
se est hoje discutindo no meio acadmico que o
processo educativo o processo dessa formao
humana. Essa formao humana tem vrios compo-nentes, entre eles a aprendizagem dos conhecimen-
tos, das habilidades, da histria da humanidade, por-
que tenho de ser inserido no meu momento histrico.
Ento, os conhecimentos e habilidades que so pr-
prios da escola e que em muitos momentos foram
identificados como toda a educao, para mim hoje,
bastante claro que so apenas uma parte do proces-
so educativo. Bom, mas ento quem faz o restante da
educao? A existe o n grdio do momento atual.
Quando examino a histria da civilizao, a tradio
que a gerao mais velha educava a gerao mais jo-
vem, os pais cuidavam desse processo de insero
social, de domnio da linguagem, das regras bsicas
da vida cultural; a comunidade tambm fazia este pa-
pel, e outras instituies, como a igreja, como a legis-
lao, cumpriam parte deste papel. O que percebe-
mos no mundo moderno, no mundo contemporneo,
que estas instituies tradicionais cada vez mais se
afastam destas atividades normativas, desta
disciplinao do indivduo para a vida social. E cada
vez mais h uma expectativa de que a escola cumpra
esta tarefa: os pais esto mandando as crianas mais
cedo para a escola, as crianas esto permanecendo
mais tempo na escola e cada vez mais se reivindica
que nelas permaneam por mais tempo durante o dia.
Por qu?... Os pais no esto dando essa atividade
formativa. Mas as crianas esto sendo formadas de
maneira dispersa, desorganizada, inclusive de manei-
ra contrria aos interesses da sociedade. Ficam na
frente da televiso, ficam criando a imagem... porque
todas as crianas gostam de imitar... Como ficam na
frente da televiso o tempo todo, a imitao exata-
mente aquilo que refletem: o homem mais forte, omais violento, o mais larpio, aquele que engana o
outro. Isto vai criando uma corroso da formao,
coisa que ns estamos assistindo neste momento.
Ento, o que ocorre? O processo educativo hoje est
sendo desafiado a recolocar suas grandes questes.
E quais so estas grandes questes? A primeira delas
que ele tem de cumprir uma atividade formativa, e
no apenas repassar conhecimentos. Este me parece
o grande problema, um grande desafio que est sen-
do colocado hoje, muito maior do que se vai havermais carteiras ou menos carteiras, ou qual o curr-
culo ou no-currculo, se as disciplinas vo se
interrelacionar ou no, problemas tpicos da atividade
pedaggica da escola. O grande problema : o que
estamos chamando de educao? O que estamos cha-
mando de ao educativa? Qual o papel que a escola
vai exercer nesta funo educativa, e no apenas na
funo de distribuio de conhecimentos e formao
de habilidades? A mim me parece que este o grande
desafio dos tempos contemporneos. Isto coloca-
do pelos temas tambm da globalizao; , portanto,
aquilo que era objetivo fundamental de formar um
cidado consciente da sua ptria e dos valores nacio-
nais, na dcada de 1980. Hoje temos que formar o
cidado do mundo; quer dizer, formar um cidado
que no est comprometido com uma regionalizao,
com uma fronteira nacional... questo que tem de ser
enfrentada pelos educadores. Hoje, todos ns, com a
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Nelma Maral Lacerda Fonseca
166 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 N 22
globalizao, estamos interligados ao mundo inteiro.
Como vamos pensar um cidado que est ligado numa
sociedade em rede, como diz o fantstico intelectual
espanhol Manuel Castells, numa trilogia que publicou
recentemente e est traduzida em portugus (uma das
partes se chama A sociedade em rede; aoutra, Fim
de milnio; a terceira, O poderdas identidades). Nes-
sa trilogia ele analisa todo este fenmeno de final de
sculo e de abertura para o prximo sculo, para o
prximo milnio. Pessoalmente, consideraria esses
livros como os livros da dcada, aqueles que melhor
colocam as grandes questes com as quais temos de
nos haver. Castells no fala especificamente na edu-
cao; mas, como educador, ao ler este texto, digo
que ele me traz grandes problemas para pensar osrumos da educao. Ento, temos vrios problemas
para serem postos e analisados, e temos de saber li-
dar com estes problemas. Temos muitos desafios pela
frente. De um lado, vejo com satisfao o maior n-
mero de crianas ingressando na escola e sua maior
permanncia na escola. Os governos esto muito fe-
lizes com isso, apresentando as estatsticas como se
fossem resultado da sua preocupao com a educa-
o. No me importa que eles faam isso, mas isso
no resultado da preocupao deles com a educa-o. resultado do sentimento coletivo mundial de
que as pessoas tm que ser formadas para serem ci-
dados do mundo; sem isso, estaro marginalizadas.
Nelma: Sem isso impossvel viver...
Neidson: Impossvel viver como ser humano. E
viver como ser humano uma presso que, indepen-
dentemente do governo...
Nelma: Porque esse mergulho no mundo cultural
irrevogvel...
Neidson: Eu no posso revogar a minha inser-
o no mundo cultural. nesse sentido que a educa-
o um direito de todos, um direito subjetivo, por-
que a ningum pode ser negado o direito de ser gente.
E no posso ser gente se no for inserido no mundo
cultural. E para ser inserido no mundo cultural, de-
pendo de aprendizado. No posso fazer isso de ma-
neira espontnea, nem o recebo por herana. Tenho
de ser preparado para um mundo em contnua trans-
formao, em contnua mudana. Tenho o direito de
ser preparado para viver nesta situao, sem o que
fico marginalizado. nesse sentido que a sociedade
vai pressionar cada vez mais por uma ampliao da
escola. E por que ampliao da escola? Acho que a
razo est a: as foras tradicionais e educativas da
sociedade no do conta mais de fazer essa insero.
Quer dizer, os pais esto preocupados com seu em-
prego, com seu trabalho, com seu desemprego; a me,
e mesmo os avs, no esto mais em casa, os filhos
mais velhos no esto, as igrejas no tm mais papeleducativo, a famlia no mais uma unidade educati-
va, comunidade no existe mais, existe ajuntamen-
to... Portanto, as pessoas esto desorientadas. E o que
educao? Vou lembrar uma frase de um filsofo
alemo de quem gosto muito, Adorno. Ele diz:A edu-
cao o ato atravs do qual nspreparamos as
crianas para se orientarem no mundo. isso que
temos de fazer: ajudar as pessoas a se orientarem no
mundo, se orientarem na vida.
Nelma: Neidson, eu lhe pediria para tecer algu-
mas consideraes em torno do pensamento de um
filsofo que nos intriga muito: Walter Benjamin. Ele
diz o seguinte: Uma das principais responsabilida-
des do homem revelar o esquecido, mostrar que o
passado comportava outros futuros alm deste que
realmente aconteceu.
Neidson: uma expresso muito intrigante esta.
Benjamin foi um filsofo que teve uma vida muito
turbulenta e que morreu de maneira trgica; bom
que as pessoas que no conhecem sua histria de
vida possam conhec-la. Ele tinha o grande desejo
de ser professor universitrio, nunca conseguiu, es-
pecialmente porque era judeu e viveu na Alemanha
nazista. No teve muito espao e, alm de tudo, era
uma pessoa aparentemente muito desorganizada. Es-
tabeleceu boas relaes com outros intelectuais,
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Entrevistando Neidson Rodrigues
Revista Brasileira de Educao 167
muitos o aconselharam a fugir da Alemanha, mas
ele no quis fugir. Quando tentou, j durante a guer-
ra, a perseguio aos judeus era muito violenta. O
interessante que ele era de uma famlia muito bem
posicionada, de uma famlia rica, mas sofria terri-
velmente de doenas do pulmo, especialmente por-
que era um fumante inveterado. Durante sua fuga,
uma das dificuldades era que ele tinha que atraves-
sar as montanhas da Alemanha para a Espanha, ten-
tando chegar a Portugal. De Portugal, pensava em
fugir para os Estados Unidos, mas a perseguio foi
to grande que, no alto da montanha, ele acabou se
suicidando. Mas foi um intelectual muito importan-
te. Deixou obras bastante interessantes, e o que ele
escreve tem muito a ver com a sua experincia devida e a sua experincia intelectual. Voltando ex-
presso dele que voc lembrou; ela muito interes-
sante. Em primeiro lugar, porque revela a dimenso
racional que ele atribui a sua vida. Quando diz que o
passado comportava outros futuros alm daquele que
realmente ocorreu, daquele que realmente aconte-
ceu, significa, para mim, uma mensagem que ele nos
est dando: no existe nada determinado na socie-
dade humana, no existe fatalismo, ningum pode
dizer: No, isto aconteceu porque tinha de ser as-sim... Quer dizer, no h uma fatalidade. Dadas as
circunstncias da Alemanha, o nazismo tinha de
acontecer; e, dada a fragilidade do povo j