NEGRI, Antonio. Kairós, Alma Vênus, Multitudo

download NEGRI, Antonio. Kairós, Alma Vênus, Multitudo

of 115

Transcript of NEGRI, Antonio. Kairós, Alma Vênus, Multitudo

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    1/115

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    2/115

    J :

    -. -

    I-l

    T-t+-IT_ .L-

    .1I

    -l--1--II - T ~

    Kairos, Alma Venus, Multitudo:nove lies ensinadas a mim mesmO

    Antonio Negri

    Coleo Poltica das multidesCoordenao Giuseppe Coeco

    TraduoOrlando dos ReisMarcello LinoReviso tcnicaTatiana Roque

    Reviso de provasDaniel SeidlProjeto grfico e diagramaoCarolina Falco

    Gerncia de produoMaria Gabriela DelgadoCapaBarbara Szaniecki

    CIP-BRAS!L. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RIKairs, Alma Venus, Multitudo: nove lies ensinadas a mim

    mesmo / Antonio Negri. - Rio de Janeiro: DP&A, 2003.Coleo poltica das multides

    232p., 14 x 21 cmInclui bibliografiaISBN 85-7490-262-4

    1. Filosofia. 2. Poltica. L Ttulo. li. Srie.

    Antonio Negri

    Kairs, Alma Venus, Multitudonove lies ensinadas a mim mesmo

    Traduo de Orlan do do s Reis e Marcello Lino

    IColeo POLTICA DAS MULTI6ES I

    --!-DP&Aeditora.

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    3/115

    ,:j-+I~

    1=JTi

    I11+1r-1~ ~ ~ ~ t

    l - - - - ~

    +=1j- [. ,____LI !t 1---t---.--I Ii 1 ~ t~

    PREFCIO

    Tatiana Roque'

    cada vez mais freqente aludir inseparabilidadeda trade tica/esttica/poltic?-,O que seria a unio entrea ~ t ~ ~ a e a esttica, sem a poltica, seno uma exaltaodo indivduo? Como se arriscar na associao entre aesttica e a poltica, se m a tica, depois da terrvelex:r.erincia nazista? Por que insistir na relaoprivilegiada da poltica com a tica, sem a esttica, apso enfado dos ltimos anoS na trajetria da esquerda?

    Poderamos, portanto, retomar a mesma trade parafalar do ttulo deste livro: Kairs, Alma Venus, MuItitudo.Isso quer dizer que cada um desses termos deve serassociado, respectivamente, aos domnios do ser, dacriao e da poltica? N o exatamente, e a necessidadede repetir, ao fim, a palavr a "poltica" s vem a confirmaro carter apressado de uma tal associao. Para retomara essa palavra e saber como associ-la multido, preciso percorrer todo o livro, Acontece que _ s domniosda tica, da esttica e da poltica j haviam sido reunidosintrinsecamente, desde que a noo de yida entrou em* Professora do Instituto de Matemtica da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro (UFRJ).

    DP&A editora

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    4/115

    I.-IIJliritJ- - ~ - +

    t iIII; I+. I f1+- I ~ -I

    -. II

    i-t.-j - iI i-r----I IT 1 ~

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    cena, por exemplo, com Foucault - quando cunhou otermo "biopoltica" -, e com Deleuze - quando a vidatomou-se imprescindvel para a filosofia .

    Gostaramos, todavia, antes de tudo, de localizarrapidamente o presente livro na obra do prprio AntonioNegri, no de modo cronolgico ou bibliogrfico, mas emrelao aos questionamentos levantados em trabalhosanteriores, sobretudo aqueles que foram traduzidosno Brasil, dos quais o mais esclarecedor a esse respeito A anomalia selvagem (1993). Nele, aps percorrer a obrade Espinosa e apresentar uma anlise original do livro V datica, o autor introduz uma importante observao sobrea necessidade de pensar as conseqncias dessepensamento acerca tanto do ~ ~ p a o como do te:'l:Po. Semrevisitar todas as questes a tratadas, enfatizaremosapenas o modo como o pensamento do tempo precisou iralm de A anomalia selvagem, onde vemos, em vriostrechos, a tenso ser afirmada como um ~ o d o deexpresso do ser: tenso entre l i b ~ _ r a o e limite, entreinfinito e determinao. Aceitar o limite, ao pensar oprocesso de constituio, possibilidade de alegria: comoaceitar a derrota sem ser derrotado? Qual a borda noderrotada da revoluo? Como estend-la em projeto? Aliberao, que h muito vem sendo pensada como utopia,para ser real, deve ser, sobretudo, desutopia - descoberta

    8

    Prefcio

    de um horizonte revolucionrio. Desutopia o"entrelaamento da tendncia constitutiva e do limitedeterminado, crtico" (NEGRI, 1993, p. 279). Tal relaoentre tendncia e limite, por ser constitutiva, reverte asconcepes sobre a divindad e e sobre o real. divindade,que chega a ser definida pela ausncia de limite, atribui se um sentido do limite, e ao real, ao qual a tendncia foifreqentemente negada, imprime-se, pela ontologia, umsentido de tendncia. E os dois movimentos s oinseparveis, pois o limite no est fora, delimitando oreal, mas passou para dentro, tomando-o aberto, fazendocom qu e o ser precise constituir-se. A tens.o entretendncia e limite exprime a potncia do infinito, e aexpresso do ser como qualidade da organizao doinfinito anomalia selvagem. Contudo, afirma Negri, aqualificao temporal deste processo constitutivopermanece implcita na obra de Espinosa.

    Os captulos finais de A anomalia selvagem retomam oprojeto de Espinosa, explicitando sua temporalidade,instalando-se sobre a borda do ser e em sua a b ~ r t u r a para ':-,o porvir. Fiel ao materialismo, e j pensando "Marx alm :.de Marx", Negri reconhece que a fora produtiva est,materialmente, em equilbrio instvel sobre a borda doser, onde a constituio se debrua sobre o porvir. Selevada s ltimas conseqncias, a constituio espacial

    9

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    5/115

    -r:: -

    I-I1-,

    -i-1i

    -!l!-r---I-I-+r,! - .-- - ,i :

    I ~j=-

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    do ser em Espinosa inclui uma proposta de metafsica dotempo como constituio. O se r se constri e escolhe seuporvir, e preciso, ento, investir em uma filosofia doporvir, pois a que o pensamento da s.ingularidade (comopensamento construtivo e constitutivo) se abre. Adimenso do porvir , assim, a relao entre ser, produoe constituio.

    o caminho de A anomalia selvagem at agora passa porvrios escritos do mesmo autor, porm nenhum tocompleto quanto o que temos em mos. De l at aqui, porexemplo, o eterno ganhou um destaque especial, o que jhavia sido anunciado no posfcio proposto pelo prprioNegri edio brasileira do livro sobre Espinosa, no qualo eterno j era enfatizado como sendo imanente democracia e potncia da democracia: a eternidade oque se ope morte. Tomar-se livre , portanto, tomar-seeterno. A atividade e a perfeio do existente multiplicamse quando se desenvolvem na sociedade, logo ademocracia condio da experincia de tomar-se eterno.Mas, para alm dessa constatao, preciso saber a causamaterial desse tomar-se eterno. Como o homem se tomalivre? "Atravs de uma metamorfose na qual seu corpo ese u esprito, agindo concertadamente, r e ~ o n h e c e m narazo o amor. A eternidade, portanto, vivida na prxisconstitutiva, a prxis nos constitui no eterno" (NEGRI, 1993,

    10

    Prefcio

    p. 298). Essa metamorfose se insere na coletividade ereafirma a potncia da comunidade. Sero tambm estesos temas tratados agora: o eterno, o amor e o comum.

    O poder constituinte (2002) j falava do amor, e o comumhavia sido citado, entre outros, em um trecho enigmticode Exlio (2001) que fala do "nome comum". Enigmticoporque Negri faz referncia ao l ~ m o trabalho D e l e _ ~ : : e ,no publicado, La grandeur de M ~ r x . , em qu e teriaencontrado uma idia formidvel: "Trata-se de traduziruma tomada de posio epistemolgica como a qu erepresenta a definio do 'nome comum' (um conjuntode percepes que formam um conceito) na construolingstica de uma comunidade epistemolgica. Tratase, portanto, da traduo desse processo de produo do'nome comum' nu m processo ontolgico. O comunismo a multido que se toma comum" (NEGRI, 2001, p. 32).

    As "nove Lies" que iremos aprender partem desteponto - do nome comum - para reinventar o comunismo.Na primeira, [

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    6/115

    ~F-JJ-+

    ---t- -I-Li

    jiII-I-I,

    ;

    - ' - -

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    c ~ e x t e n s i v o s homogneos de uma temporalidadeindiferenciada, q:mvm ser substitudo po r outros nomes,

    ~ a i s ~ f i ! l a d o s com a potncia criativa tempo. Portanto,instalando-se no ponto de vist,a- do kairs, qu e nomesatribuir ao ser que veio a ~ t e s e ao que a,inda no veio?Antes o eterno, e ~ e p o i s , o porvk O eterno o ser que ,onde est kairs. Mas kairs, por sua vez, faz com que, noslimites deste eterno, o ser se crie e se incremente. Tal Osentido da eternidade: o ser que cria a produz. E o depois o porvir.

    de extrema importncia . neste ponto . a distinoentre eterno e infinito. Negri postula um finito eterno eafirma o eterno no lugar do infinito (que estaria ligado aofuturo). Pensando o eterno na temporalidade, ao rejeitaro infinito e admitir o kairs, torna-se possvel falar daconsistncia de uma p r x ~ _ s , responsvel pela produoda eternidade na experincia da desmedida entre o antese o depois, entre o eterno e o porvir. A desmedidapressupe um investimento do ser pleno - che io - novazio do porvir: no sabemos o que esperar, mas sabemosque preciso incrementar o ser (ainda que, s vezes,tenhamos a iluso de que basta incrementar o ter). o

    c o n ~ t r r i o da utopia que, partindo do vazio, investe no~ u t u r o como pleno - alm do mais, sendo no-lugar, autopia fala de lugar, logo espao, e no tempo. Trata-se

    12

    Prefcio

    aqui, ao invs disso, de desutapia: investir no po.rvir, com ovazio, projetando-se nele com pleno ser. Otimismoradical? Crena no mundo, neste mundo.

    O tico deve ser pensado na presena eterna, mas--.-- -lembremos que eterno o "isto aqu,i", finito e cheio de ser,que se lana em direo ao P9.rvir. ~ _ t ~ " ~ a , portanto, o :,..en?"egar-se desmedida; resistir o agir "for a da medida",e potncia constituinte o agir "para alm da medida". Apartir da, aprendemos por que - e como - resistir sempreproduzir e produzir sempre produzir na tenso docomum. Pensar o comum , no ps-moderno, umimperativo incontornvel. Mas, no ps-moderno, pensaro comum pensar a sua crise. E como captar o sentidodessa crise?

    A posio tica diante dessa questo o que h demais original no pensamento de Negri: precisocompreender a crise sem se deter diante do escndalo, oque s daria lugar a um catastrofismo estril (que, noraro, se impe na atualidade), mas tambm se m seaprisionar na face que o domnio e o controle impem smutaes de nosso tempo. Ou seja, sair da armadilha apreender mutaes revolucionrias para investir em suasconseqncias revolucionrias. Mas, para compreendlas, f ~ d a m e n t a l partir de uma " o ~ t r a histria", no ado poder, no a do domnio nem a do controle, mas a da- . -

    13

    . ,

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    7/115

    ~t-

    lji1+

    -I4I

    -i -f~ ~

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    \ ! resistncia que anterior ao domnio e ao controle, ey ,proyoca suas mutaes. Aqui, o espinosismo de Toni Negrise confirma vigorosamente. No por uma subscrioterica filosofia de Espinosa, mas pela afirmao vivad : uma tica que alegria. J era assim em A anomaliaselvagem, quando o limite havia passado para dentro doreal; o ~ ~ r , aberto constitui5o, e a borda no derrotadada revoluo, pensada como projeto. Em Kairs, AlmaVenus, Multitudo, procura-se tirar todas as conseqncias,por ora possveis, dessa abertura, e dar um passo almna direo da dinmica da constituio propriamentedita, suas condies e suas foras. P e n ~ ~ _ p o s i t i v a m e n t eas r e ~ i ~ ~ I l c i a s (e suas mutaes no ps-moderno), e darum primeiro passo "para alm", uma das principaismotivaes de Alma Venus, sem dvida o conjunto deLies de maior fora e beleza. Na verdade, Alma Venusfoi escrito antes dos outros dois: Kairs, qu e buscaestabelecer suas bases lgicas e ontolgicas, e Multtudo,qu e desdobra suas conseqncias guisa de um aefetividade livre das amarras de qualquer soberania.Nenhum comentrio sucinto que fizssemos a respeitode Alma Venus estaria altura da clareza e do impacto deseus prolegmenos sobre a pobreza e sobre o amor. Aquia poltica - biopoltica - pensada em sua ferozatualidade, e sua dinmica, absolutamente renovada.

    14

    Prefcio

    Possveis desdobramentos dessa nova configuraoda s foras - da s foras produtivas - aparecem emMultitudo. Assistimos, passo a passo, destituio da ssolues mais conhecidas para a crise, entendendo aimpotncia de cada uma, sem vermos erigir-se, de seusescombros, nenhuma outra soluo preconcebida oupredeterminada. Apenas entendimento do problema,esboos de possveis determinaes, apostas em vias desada: estas Lies apresentam a admirvel c o r ~ g e m deacre?-itar n? presente (mesmo em crise) e apostar em suaabertura (sem antecipar nenhuma soluo). Tal pode sera razo do incmodo que o pensamento poltico de Negricertamente provoca naqueles que crem ter solues - aestes, ele responde com problemas em aberto. Mas htambm, claro, perguntas que so respondidas nestelivro; por exemplo, um de seus objetivos declarados ode resolver a antiga aporia do materialism?, investigandocomo o pensamento materialista pode unir, a partir do ' 'comum, eternidade e inovao.

    Parte-se de uma dupla herana: por um lado,Espinosa e seu pensamento da liberdade comoconstruo imanente a partir de foras vivas; por outro, omaterialismo e sua compreenso da relao entreeternidade e existncia. Valorizando os avanos de ambos,trata-se de ir alm e da r alguns passos para resolver

    15

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    8/115

    -Fi+--~I:j

    -jI-I--t,-IIII- II-I-It

    1-I1,:

    ~ T~ t-+ -

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    aquela aporia: eternidade e inovao s podero serelacionar se admitirmos que a progresso do comum criativa, prope Negri. Sendo assim, o comum no oresultado, mas a chave para a constituio do mundo,uma vez que a expresso do comum se d sobre a bordado ser e do tempo_ claro que, no comum, vida e polticaso indistinguveis, mas, por isso mesmo, as condiesformais desse comum devem ser postas prova no terrenotico-poltico.

    Segundo Negri, o pensamento de Deleuze e Guattarise aproximou bastante desta renovao da poltica, ma sapresentou o comum como um crculo se m sada, aodespedaar a borda do tempo e afirmar a durao_ Comnossas palavras, diramos que ao aio_'l!, vertente dob:rgsonismo de Deleuze, ele prope substituir o kairos.Uma pequena crtica em relao ao U devir" j havia sidoesboada em A anomalia selvagem, e a introduo do kairsexplica melhor po r que esse conceito consideradoimprprio. Grande parte dos leitores de Negri, ao menosno Brasil, so tambm leitores de Deleuze e Guattari, e importante sublinhar que nossos comentrios sobre asdiferenas entre os dois pensamentos no visam explorarnenhum tipo de divergncia ou polmica, um a vez queessas diferenas decorrem, cremos, da extrema fidelidadede ambos a seus propsitos e a seus problemas, que so o

    16

    Prefcio

    motor de qualquer filosofia e que, no caso, so distintos,apesar de terem muitos pontos em comum, dos quais osde D e ~ e u z e t m grande influncia sobre Negri, e os destemereceram a admirao daquele, como os vimos celebrarem diversas ocasies. Mas, como dissemos, esses problemasapresentam distines no desprezveis - basta lembraro fato de que Deleuze e Guattari falam de ~ v i r como umdevir minoritrio, l ao passo que Negri prefere investir naa b e r t u r ~ do porvir. Observamos, ainda, que, para fazerface ao a p r i s ~ , ? ? ~ ~ m e n t o da medida, D ~ l e u z e prope aidia de ri_tmo, enquanto ~ e g r i , a esta mesma medida,contrape a afirmao da desmedida. N o por acaso,pois, que o pensamento de Deleuze e Guattari lembrado,na maioria das vezes, CO m grande propriedade, em 'relao a questes micropolticas, e o de Negri pode ser

    iuma ferramenta mais til para pensar a poltica tout court.Nesse sentido, como pensamos que essas duas vertentesn o se opem, uma grande chance termos os doispensamentos nossa disposio.

    Na filosofia de Deleuze e Guattari, a triade tica/esttica/poltica foi ontologicamente unida, uma vez que. _- ----

    vida, j inseparvel da filosofia, tomou-se t i c ~ 1 e s t t i ~ ~e poltica_ Para a filosofia poltica de Negri, porm, isso

    I Que nada tem a ver com as minorias, ma s se ope a um padromajoritrio.

    17

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    9/115

    . ~t--li-- IIII---Ii- I-IfT1

    '; -;----i--- -j

    Kairs, Alma Venus, Multi tudo

    no basta. preciso pensar outra ordem da vida: um aordem comum. Mas um outro comum, que renova,tambm, a poltica e destitui qualquer possibilidade depensar o poltico por si s: Negri faz nO pensamento dapoltica o que Deleuze fez na filosofia, investe a vida - e'n a vida. Mas, para ser poltica, a vida deve tornar-secomum

    O comum produzido pela multido. O belo o quea ~ u l t i d o vive com alegria, e o ~ ? z o esttico est napercepo da desmedid_a. l

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    10/115

    II --t

    -I-+

    r ~f i

    ' l.-1i '

    I ri1 -I-rI !t---1--I 1-1--1-lj-+t i

    , ,' '- ': . i,1

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    Na poca, eu e meu amigo havamos deixado emaberto uma animada discusso sobre o materialismo. Euconheo Espinosa, e ele conhece bem o Sculo das Luzese Diderot. Concordvamos sobre a constatao de que o

    m ~ ~ : ~ i a l i s m o no poder ter h i s t ~ i a , ~ n e m continuidadecategorial, enguanto a definio da verdade basear-se no, -.- '-,'- . " -_.'

    ,exerccio de um poder eficaz fundamentado na_.t r ~ n s c e n d n c i a ; concordvamos, por conseguinte, que o, ..m a ! ~ r i a l i s m o sempre reprimido porque - negando-se ar e c o E ~ _ e c e r a fonte transcendental do p o ~ e r - imediatamente subversivo; e, portanto, muito difcilsustent-lo nessas condies (se a filosofia confina como cabresto, "bene vixit qui bene latuit")2 - entretanto,concordvamos tambm quanto ao fato de que, no limiardo sculo XXI, os dispositivos do transcendentalismopareciam esgotados, o Rei estava nu e a sua Guarda estava beira de uma crise de nervos. Podamos, portanto, repetirum antigo e vigoroso incitamento: Cidados, mais umesforo para se tornar m a t e r i a l i s t a ~ ! e para fruir de umapotncia numinosa:

    " ... hominum divumque voluptas, II Alma Venus ..". 3Mas como proceder? Como inventar uma ~ s t r i a do

    materialismo que fosse alm das caricaturas traadas por2 "Bem viveu quem bem se escondeu." (N.T.)3 " a volpia dos homens ricos, Ii Alma Venus ..." (N.T.)

    20

    ...

    Introduo

    Lange ou Bucharin, destruindo a interrupo domaterialismo revolucionrio provocado pelas fogueiras,e o neokantismo e o Diamat? Como recompor, atravs daviolncia de eve,ntos singulares, o d ~ v i r terico de:'materialismo? Se apenas o idealismo e o transcendentalismotm histria (pois o poder que faz a histria sua imagem :e semelhana), como destruir essa horrvel continuidadee subverter essa normalidade? como dizer: possveldispor numa "mquina de guerra" os produtosindividuais da inteligncia materialista do cosmo e davirtude, e projetar sua potncia contra o poder?

    Esse era o assunto que, na poca, discutamos enquantoeu me preparava para voltar ao crcere - realizando, nessemeio-tempo, preciosas incurses filolgicas na s ilhasencantadas do materialismo, com muita ironia (que, em vistada situao, no fazia mal a ningum, se for verdade o quediz o maior do s materialistas: "hilaritas excessum habere nequit,sed semper bona est'').'

    Fui ento para a cadeia, e - como naqueles lugares areeducao para a virtude passa pelo cio - me perguntei:o que pode ser mais ocioso do que se dedicar, ainda umpouco, ao m_aterialismo? A essa altura, a velha demandade um artigo sobre o "materialismo contra o poder" me4 "O bom humor no pode ser excessivo, mas sempre bom."(N.T.)

    21

    -;;/

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    11/115

    ,=jIiJJ-tIL+~

    - ! , ")I ,'l,;,IIIIL--t,rI- I,,

    -+ -

    ,(

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    estimulava, e respondi afirmativamente ao meu amigo.Sentia-me, entret anto, muito triste naquele momento difcil(principalmente quando escasseava a lea ldade exigida dasinstituies republicanas como contrapartida), e talvez,de incio, no tenha captado as complexas variantes doproblema. Ao trabalhar sobre"o materialismo contra opoder", estava me dedic ando aos temas com os quais estavamais familiarizado, pois o hbito de lidar com textosespinosianos (que, na nova experincia disciplinar,carreguei comigo) fazia-os voltar tona com grande vigor.Quero dizer que, para mim, a coisa mais importante a sercompreendida a ontologia materialista da potncia: trata-

    :::.-=- " -- se de explicar como, hoje, o novo conjunto da spossibilidades instauradas sobre o comum ps-moderno(isto , sobre a cooperao e a produtividade que osindivduos ps-modernos experimentam como acrscimode potncia sua capacidade expressiva) abre-se, aomesmo tempo, para o antagonismo contra a explorao (eisso po r causa da pobreza crescente do homem psmoderno) e para a constituio de n ~ ' : . a s c o n s t ~ ~ _ ~ ? ~ ~c?_

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    12/115

    +ttI-i

    rt- I!-IJ~-Il,- ..--I1- iti

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    do ser; e todas as conseqentes duplicaes-mistificaestranscendentais do real que se revelam como perversolgica - tautologia contnua e insuportveL Deleuze, nacontemporaneidade que se abre para o ps-moderno,rejeitou com firmeza e vigor a infmia da repetio nalgica transcendental: por isso, dizia Foucault, "oprximo sculo ser deleuziano". Mas essa denncia no suficiente. Se realmente o entrelaamento de lgica etranscendentalismo revela-se, tambm, como um amaquinao para dominar o social, para cO,nstruir o

    j ~ ~ d i c o , para e n ~ u r e c e r um a teoria da legitimao dopoder numa prtica de execuo eficaz, ento precisoreunir e rejeitar tudo isso. ainda Foucault a base dessaexperincia crtica, ou melhor, do desmascaramentodaquele platonismo ancestral (na nossa civilizao) que

    d e ~ c o n h e c e direito ao real, potncia ao evento, e que, poroutro lado, reconduz tudo, sempre, a uma "lei" q u e ~antecederia qualquer coisa. Assim, antepus a Alma Venustrs Lies sobre o conhecer, ou, melhor, sobre a ontologiada construo do nome comum dentro da "desmedida"do campo materialista.

    Aqui, conhecer (uma episteme e uma lgica que estono campo materialista) ~ i r s : o evento do conhecer, donomear, ou seja, o conhecer como singularidade,entrelaamento de inovao lgica e de criao ontolgica

    24

    Introduo

    - kairs a imagem clssica do ato de lanar a flecha -,aqui, na ps-modernidade, a ocasio ontolgica,absolutamente singular, de,nomear o ser diante do vazio,. . . ' - .

    a n ~ e c i p a n d o - o e construindo-o na borda do tempo . ,ocasio de adequar, assim, o nome ao evento e de construirsua legitimao no acima ou alm, mas dentro da coisacomum. A teoria materialista do conhecimento , comoacontece na experincia cientfica, um a construo dese r irredutvel, arriscada e absoluta. Um dplacementepistemolgico radical, j que o nome comum, paragarantir as condies do evento, implantado nohorizonte de uma fenomenologia fundamental do tempo,- '- --indicado pela flecha do tempo, na luta que separa a

    ,abertura de "ser-porvir" da repetio insensata no vaziodo "futuro". Uma nova lgica, portanto, construda sobrea vontade/pela vontade do comum; por seu risco e pelasua potncia, exposta temporalidade. Em suma, tratava-se, aqui, de inserir fortemente o ponto de vista ontolgicona filosofia ps-moderna, ou melhor, na Erlebnis psmoderna. po r isso que as consideraes sobre ~ ~ 'Zfora singularssima de produo de temporalidade, o - ..contrrio das tristssimas e nuas f i ~ ~ ~ a s heideggerianasda m p o t n c i a , ruptura de toda a tautologia ps-moderna,renovao (diante) da cupiditas espinosiana - kairs,portanto, redescober to como trao e tempo de constituio

    25 :

    " - - - - - ~ ,

    "'

    ij

    --c '-'\-,'-

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    13/115

    fj1---+- ~

    -iII:l~ lJ---I-1=- t

    !rI-+--

    Kairos, Alma Venus, Multitudo

    ontolgica -, tornavam-se, assim, antecipaes reais,pressupostos necessrios argumentao sobre Alma Venus_

    intil acrescentar, a esta altura, que grande partedas reflexes qu e desenvolvi em Alma Venus e em Kilirsesto diretamente ligadas ao projeto terico e experinciaprtica de viver "com" e "alm de .Marx" (ou seja, nombito do m a t ~ ~ i _ ~ l ! s m o histrico), que sempre guiaram,no be m e no mal, o me u discurso filosfico e poltico.Aqui, em especial, as reflexes sobre a temporalidade e asua importncia ontolgica associam-se ao trabalhopublicado em 1981 sobre a "co:,stituio do tempo"(atualmente reeditado pela Manifestolibri, 1998), e asreflexes sobre o comum (e as antinomias da su aconstituio) associam-se a alguns artigos publicadosem 1987 no livro Fabbriche del soggetto (trabalhodesconhecido pela maioria po r ter sido publicado, quaseclandestinamente, no auge da represso contra os"verdadeiros comunistas", graas ao esforo decompanheiros de Livorno, aos quais expresso meureconhecimento fraternal). Havia, naqueles escritos, aplena conscincia da impossibilidade de manter ou dedefender a teoria da explorao e da revoluo que, 'nomodelo "valor-medida-tempo", er a imposta pelaortodoxia marxista. Essa crtica teoria do valor n o erainfame, ne m era a expresso de uma conscincia

    26

    Introduo

    derrotada: era a conscincia da t e ~ p o r a l i d a d e desfiguradapelas lutas, pelo progresso da conscincia proletria epela vitria militar do poder capitalista_ Como a paixorevolucionria podia unir-se a essa alma racionalmarxiana? Como o desejo de revoluo podia reacender-sea partir da renovao da crtica e da su a tragdia temporal?

    Depois de ter visto as seis Lies de Kairs e de AlmaVenus, finalmente dispostas em ordem, pareceu-mepossvel, ento, atacar aquele tema poltico (e passional)cuja incumbncia, em matria metafsica, tinha provocadoe continuava a provocar a crise de qualquer pensamentocomum aberto para o futuro. A questo era simples edificlima de resolver: como se d um a deciso da~ u ~ ~ d o ? Essa pergunta poltica, no materialismo, no simplesmente o correspondente subjetivo de umdispositivo, material e objetivo, que leva co.nstruo do"nome comum". De forma alguma: seria cmodo demaister essa relao bem na nossa frente, um anjinho qu e nosprotege, uma "glndula pineal" __ No, quando AlmaVenus intervm em Kairs, a vontade comum mais doqu e a razo comum, a deciso comum mais do qu e onome comum, o evento comum mais do que qualquertranscendncia. Se n o fosse assim, tomar-nos-amos osdefensores do ensimo imbrglio idealstico e dafalsificao do comum na moeda da "soberania", de sua

    27

    - --:...;

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    14/115

    I_1-[iI-f--+--t-

    -III1_i

    _ o -

    .I__ _ 1-_I-l

    j .

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    validao transcendental da "vontade geral", entreHobbes, Rousseau e Hegel: eles se representariam, aqui,como limites no superados, f e ! ! ~ h e s da concepob u ~ g u e s a do poder! No, aqui no est em jogo o uno domltiplo ou qualquer outra (straussiana) exumao doantigoi nem, como foi dito, uma reinveno da ideologiamoderna e do milagroso mascaramento da "representao":na verdade, esse jogo, agora, repugnante (a maioria daspessoas e l certamente, os meus leitores o vem dessafanua). Aqui, ao contrrio, a discusso gira em tomo dafOI?latividade, da cons!itutividade do c o m ~ m ~ Um aconstitutividade inevitavelmente aleatria e selvagem,-nas condies atuais de domnio, mas sempre aberta,irrefreavelmente aberta, flecha do tempo, semprerenovada sobre a borda do ser. Aqui (esta minhahiptese no terceiro grupo de Lies: Multitudo), o

    c a ~ i n h o ontolgico reencontra o c a ~ ~ n ~ ~ : p o l ~ ~ , , ? :porque essa multido que decide muito semelhantequela que no moderno tentou a aventura do comunismoe que no "ps-moderno", por ora, prope-se no "xodo",nova figura "espectral" de qualquer comursmo futuro.

    Entre moderno e ps-moderno, muitas, muitssimascoisas mudaram. Em primeiro lugar, mudaram as relaesde produo, porque a fora-trabalho se metamorfoseou.Em segundo lugar, triunfando sobre seus adversrios e

    28

    Introduo

    concorrentes socialistas, o regime capitalista se tornoutotalitrio e, claro, mais feroz. A razo uma s: ele fazcom que sua produo no provenha unicamente de suasfbricas, mas, para seu prprio enriquecimento, faztrabalhar toda a sociedade; no explora mais somente osoperrios, mas todos os cidados; no paga, mas faz comque todos paguem para que ele comande e ordene toda asociedade. C? capitalismo investiu sobre a vida, suaproduo biopoltica; o poder, na produo, um a"superestrutura" do que est espalhado e reproduz-sena sociedade. O JI sistema disciplinar" da organizaosocial foi, ento, su bstitu do por um "sistema de contro.le"(para usar a terminologia de .I"oucault): no podia se r deoutro modo, se o produtor (o operrio ou o proletrio, afora-trabalho intelectual ou material) reapropriou-se doinstrumento da produo, que se chama, cada vez mais,crebro. Como dito acima: a fora-trabalho metamorfoseouse .. Ento, como a subjetividade revolucionria podeformar-se na multido do s produtores? Como essamultido pode decidir a resistncia e a rebelio? Comopode desenvolver uma estratgia de reapropriao?Como a multido pode conduzir, po r si s, um a luta peloauto(\overno? No ps-moderno biopoltico, nessa fase queassiste transformao e ao enriquecimento produtivoda fora-trabalho, ma s - po r outro lado - tambm

    29

    -

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    15/115

    J-I--i-..

    IJ+.-+-IIlItIIlT\- --.- i -It-1

    r

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    explorao capitalista da sociedade inteira, levantamosessas questes. Quanto resposta, certamente no apossuo. Mas, raciocinando sobre MuIttudo, depois deKairos e Alma Venus, provavelmente alguns tijolos para areconstruo da esperana (como mais be m dito emAlma Venus, da " d ~ s u t o p i a " ) foram colocados.

    Quando sa do crcere ("sa" modo de dizer, poisessa histria n o termina mais e um a centena decompanheiros dos anos 1970 ainda se encontra na prisoou no exilio), quando comecei a freqentar novamente(s durante o dia) os amigos e a sociedade (porque noitefreqento os companheiros), ciente dos limites desteescrito que trouxe comigo da cadeia, no queria public-10. Estas "Lies ensinadas a mim mesmo" me pareciammarcadas pela falta de conclusividade e pela tristeza deum ano de clausura. Ento, guardei este manuscrito nabiblioteca .. Mas, de repente, algo me impeliu a mudar deidia: uma guerra .. Uma guerra como as outras; por umlado, de uma terrvel banalidade, com as suas vtimascausadas po r bombas inteligentes, os ferozes massacresdo dio balcnico entre os pobres, as destruiesprogramadas e o esplio da reconstruo. Depois, outrosadminculos .. Mas, por outro lado, um a guerra "no"como todas as outras: estranha guerra, ou seja - diziam -, uma guerra justa, uma ao tica, uma violncia santa ..

    30

    Introduo

    Eu no entendia. Poderia ter sido chamada (e assim foichamada por numerosos Talibs do Ocidente) de

    t r ~ n s c e n d e n t a l i s m o em ao, ~ e r r a do direito. Oximorostriunfantes. Muitos eram os motivos que me deixavamestupefato. Eu me perguntava como tudo isso podiaacontecer. Diante da prepotncia do transcendentalismodos Talibs do Ocidente, o materialismo militante noconseguia compreender: e, pior, no conseguia explicaro retrocesso "pr-"moderno do debate poltico e abarbrie lingstica (os direitos humanos, a justia dostribunais contra os inimigos, a beleza da invaso da terrae do corpo-a-corpo etc. etc.) dos refinados afegosO

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    16/115

    I

    - - t ~ . 1-1irt'- I ~ lUt-t

    --r-;-I-!! I, Ite- 11--1-+-ir,

    -i -lt--+-+--i-j-. IrIL

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    instncia, consiste na resposta a esta pergunta: p E > ~ ~ r ~ oos pobres decidir o destino da humanidade? quer dizer,de uma organizao comum que no nos traga nem aguerra nem a paz dos escravos e dos mortos, mas a vidac ~ I l ! u m de homens livres produzem riqueza, no seentediam de viver e experimentam a eternidade? ou seja,um a vitria do trabalho vivo sobre todas as formas detraballio morto? No materialismo, pregar o ser inov-lo.

    Para encontrar essas concluses no livrinho de Liesque publico aqui, o leitor ter, com certeza, que fazer umgrande esforo. Talvez algum chegue ao fim, e a essasconcluses, e fique contente. Se assim for, este texto noter sido iniciado por acaso.

    32

    Toni NegriRoma, 6 de setembro de 1999

    Kairos

    "Vi um cu novo e uma terra nova, porque oprimeiro cu e a primeira terra haviamdesaparecido e o mar j no existia."

    Apocalipse de Joo, 21,1

    1. Prolegmenos do nome comum2_ Prolegmenos da desmedida3. Prolegmenos do campo materialista

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    17/115

    III-I_1-.?

    ,"--1

    =-1

    KAIRS, PROLECMENOS DO NOME COMUM

    1. Dizamos: conhecemos os conceitos, conhecemosatravs dos conceitos. Mas "conceito" uma palavra gastapo r guerras longas demais e tradies interpretativasdiferentes demais. Em vez de "conceito", digamos "no me",ou seja, um signo lingstico que atribumos a uma coisa;e "nome comum", quando as coisas so muitas epretendemos representar o seu elemento comum. Todas ascoisas tm, ou podem ter, um nome, e todos os conjuntosde coisas, a despeito de como tenham sido remtidas, tm,ou podem ter, um nome comum.

    1 bis. Tudo o que nomeio existe. Mas se trata de entenderqual a sua existncia. Para ns, interessa que o nomechame a coisa existncia e que o nome e a coisa estejamaqui. Os problemas do conhecer nascem porque o meunomear catico e as coisas qu e chamo existnciadispem-se confusamente. O ser, aqui, foge minhacompreenso. Por exemplo, exprimindo um nome, entreos infinitos possveis, me u crebro d existncia a um acoisa qu e se chama "nome"; nem sempre, porm, dexistncia, ao mesmo tempo, a um nome que chame acoisa. E criando, entre os infinitos possveis, um nomecomum, meu crebro d existncia a um a coisa comum

    DP&A editora

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    18/115

    t

    1IIf

    T"ri

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    que se chama "nome comum"; nem sempre, entretanto,d existncia, ao mesmo tempo, a um nome comum quechama existncia um qud comum de um conjunto decoisas. Ora, exatamente esse "ao mesmo tempo" queimprime verdade ao nome e ao nome comum, que penome e coisa" exatamente aqui".

    1 ter. O nome marca um a coisa no espao: essa pareceser a primeira e mais simples experincia do nomear.Tambm o nome comum parece, primeira vista, surgirde uma experincia desenvolvida no espao. O crebrosobrevoa o mundo das coisas e cria aquele nome comumque corresponde ao conjunto da s coisas que, daquelaaltura, foram reconhecidas como comuns (e muitas vezeso so). E, todavia, nos dois casos, se marcar a coisa noespao (ou exprimir um nome comum) no ocorresse aomesmo tempo que o evento da coisa (ou do quid comum),no estaramos em condies de imprimir verdade aonome nem ao nome comum.

    1 quater. Nosso problema, portanto, consistir emestabelecer, com o nome (o nome comum), as condiesde existncia, ao mesmo tempo, do evento e da coisanomeada.

    2. Na tradio transcendental das teorias do conhecer,aquele" ao mesmo tempo" no , paradoxalmente,

    36

    Kairs, prolegmenos do nome comum

    reconhecido como modalidade temporal. Mas nossaindagao vai alm do paradoxo: a idia do tempo quenutre aquela tradio completamente subjugada por umadefinio "parmenidiana" do ser, ou seja, pela fixaoespacial da s condies ontolgicas do nome comum. Averificao da adequao do nome e da coisa ocorreanaliticamente: o nome (mais ainda o nome comum) aidentidade da coisa e da sua essncia (ou seja, daquilo quecoloca a coisa fora do tempo). Conseqentemente, aproposio que estabelece o nexo do conhecer e do real, donomear e do nomeado, ser verdadeira quando forfundada na identidade entre sujeito e predicado. Ora,identidade significa que duas coisas se sobrepem noespao, esto uma sobre a outra no mesmo ponto do espao.Mas um mesmo ponto do espao no existe. Porque, seexistisse, seria necessrio que todos os pontos do espaofossem retirados da atividade do tempo.

    2 bis. o que acontece na tradio clssica, em que otempo a imagem mvel da imobilidade do ser. Nessatradio, o tempo , portanto, uma modalidade extrnseca:ele se apresenta como iluso ou como medida, nuncacomo evento, nunca como o "isto aqui".

    2 ter. Definir o tempo como modalidade extrnseca feriuo senso comum dos modernos. Ao contrrio da filosofia

    37

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    19/115

    Ii-tiiI

    1---I"- __ _,

    -r-+i

    Kairs, Alma Venus, Multitu do

    clssica, a filosofia transcendental moderna tentar,ento, neutralizar a resistncia da temporalidade,empurrando a compreenso do nexo adequado entre acoisa e o nome (ao mesmo tempo) na direo de umaidentidade primeira e fundamental que a garanta, ou seja,po r meio de um processo infinito de indiferenasdialticas. Esse processo regido por uma causalidadeinfinita. Mas essa causalidade infinita tambm extrnseca e retira o evento do se r exatamente aqui - elagostaria de afog-lo no infinito. Aqueles que noganhavam a partida jogada segundo as regrasparmenidianas procuram faz-lo, agora, tirando damanga os dois ases: da causalidade e do infinito.

    2 quater. As variantes subjetivistas e fenomenolgicasda filosofia transcendental, mesmo recuperando atemporalidade do sentido interno da experincia,modificam apenas a direo do infinito. De fundamentoque antecede e organiza o juzo sob forma de infinito, aidentidade passa a se projetar na fora de um processoindefinido sobre o qual o juzo desenvolve sua trama.

    2 quinque. Na mesma perspectiva, nada impede queaquele infinito seja circular. Se o nome e a coisa s podemser considerados realmente adequados por meio de umainfinita referncia identidade e, portanto, mediante umaconexo infinita de relaes analticas, nada muda

    38

    Kairs, prolegmenos do nome comum

    enquanto o infinito for representado pela figura do crculo:a tautologia ser garantida, ou melhor, reforada. No psmoderno, na noite polar de uma teoria da verdade baseadano fim do tempo, o carter circular das relaes do nome eda coisa toma o evento definiti vamente efmero e ilusrio.

    2 sexo A despeito de como seja considerada, a subordinao modalidade espacial da adequao "ao mesmo tempo"do nome e da coisa incapaz de compreender o evento dacoisa nomeada. Ela o afasta, o esvazia, o anula. Entendidassob o ponto de vista da filosofia clssica e transc endental, e,portanto, propostas segundo a abordagem do juzoanaltico, as condies espaciais r esultam ser, em todo caso,transcendentes ou extrnsecas ao evento.

    3. Mas, ento, o que o "isto aqui"? O que o evento donomear adequado, ou o nexo real do nomear e donomeado ("ao mesmo tempo")? Certamente, no aidentidade transcendental do sujeito e do predicado;certamente, no a projeo indefinida dessa mesmaidentidade. Essas do dor de cabea. Mas, ento, o que ?

    3 bis. Numa primeira abordagem realista, o "isto aqui" o "isto aqui". Mas essa relao no novamente umaidentidade? No, no : eu a realizo como um evento.Mas o que um evento? Nesta primeira abordagem,entendo por"evento" a verdade (a adequao) do nomear

    39

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    20/115

    ,-1ii

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

    e da coisa nomeada que nascem ao mesmo tempo. Ambosso chamados a existir: nesse sentido, nome e nomecomum constituem um evento.

    3 ter. Mas essa primeira abordagem realista, por si s,no nos torna prisioneiros de um a espcie de tautologia?Seramos prisioneiros se, ao analisarmos a constituiodo nome comum , portanto, ao vivermos a experincia donomear em relao coisa que surge diante de ns, noreconhecssemos que a constituio do nome se realizana concretude da prpria experincia, em que a nossatemporalidade (kairs) e a da coisa, encontrando-se,chamam existncia um se r concretssimo (seja ele nomeou nome comum). E, no nome (e mais ainda no nomecomum), essa relao concreta entre sujeito e predica do singularssima, isto , no-ordinria, no-repetitiva.

    3 quater. Mais adiante, poderemos acrescentar que onome (e o nome comum), quando gerado na temporalidade(apresentando-se a como evento concreto, coisa chamadaa existir no nomear), assume caractersticas corpreas:se for verdade que o corpo O predicado de qualquersujeito que vive no tempo, ou seja, de algo que existe noprprio momento no qual ele nomeado. QuandoEspinosa definia a "noo comum", quando Leibnizconstrua a lgica das "verdades de fato", a teoria daverdade se movia num contexto de relaes corpreas.

    40

    Kairs, prolegmenos do nome comum

    3 quinque. Mas esse conjunto de experinciasdefinitrias, essa primeira abordagem, ainda no suficiente para captar a intensidade daquele "isto aqui"(daquele "ao mesmo tempo") que constitui o evento doconhecimento verdadeiro. Essas experincias, apesar deapresentarem a consistncia de uma primeira forma deconscincia, so calmas. Ou seja, estticas. J o se rconcreto e singularssimo do nome comum (e do processoque"ao mesmo tempo" o gera), o seu corpo, inquieto.

    3 sexo Daqui em diante, no distinguiremos mais,acuradamente, nome e nome comum, pois evidenteque no nome comum as caractersticas do evento doconhecimento verdadeiro emergem com nitidez, resumindoas caractersticas do evento do nome.

    4. O tempo inquieto. Ora, as condies de existnciado evento do nomear e da coisa nomeada, isto , daconstituio do nome comum, so temporais. nu mcontexto temporal que estabelecemos a relao entre oconhecer e o ser, a adequao entre eles. Mas, at aqui,po r assim dizer, puxamos o tempo para dentro daontologia do conhecer, ou seja, fizemos ressoar a ratioexistendi (temporal) dentro da ratio cognoscendi. Ainda noenfrentamos o problema central: como o tempo se instaurano processo do conhecimento, como a ontologia do tempoparticipa da ontologia do conhecer.

    41

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    21/115

    I

    I-I___ -1-1J,

    ,:__ LiII

    4 bis. Incorporamos ao processo cognitivo (d econstruo do nome comum) uma determinaotemporal: "ao mesmo tempo". Ora, a experincia imediataestabelece que a determinao ontolgica sobre a qual onome se instaura hic temporis. Mas essa experinciaimediata do tempo, como simples ato de conscinciainterna do tempo, no garante o conhecer - ao contrrio,traz o risco de arrast-lo para a dissolvncia, dado que oestado de apercepo imediata do tempo selvagem.

    4 ter. A experincia, por ser uma testemunha imediata daincorporao do conhecer temporalidade, nos diz que otempo no um invlucro ou uma modalidade extrnsecado conhecer, mas que, ao contrrio, o tempo participa daconstruo do nome comum. Mas como podem o tempo e asua modalidade inquieta incorporar O conhecer?

    4 quater. A partir do momento em que a experincia dotempo foi assumida na definio do conhecer, ela foidescrita, principalmente, como fluxo (positivo: impulsovital, fora criativa; ou negativo: destino, dejeo, corrupo).Essas qualificaes ontolgicas, que pretendemapresentar-se como formas fenomenolgicas daconscincia da temporalidade, mostram, em todo caso,estigmas transcendentais incapazes de determinar oconhecimento do evento. Por outro lado, o tempo est l,na sua selvageria - a sua ambigidade, a sua dissolvncia,

    42

    Kairs, prolegmenos do nome comum

    l esto como tais, a inquietude do tempo o verdadeirodado ontolgico. Aqui, a definio agostiniana do tempolhe cai perfeitamente.

    4 quinque. O que aconteceria se assumssemos, absolute,a inquietude do tempo como tecido ontolgico doconhecimento? Fazer isso significa assumir a temporalidadedo ser, as seqncias de determinao temporal doconhecimento, os hic temporis que se sucedem de maneiraselvagem na conscincia, como tecido exclusivo daexperincia cognitiva - na sua ambigidade alternativade consistncia e de dissolvncia, na corrente intermitenteque ilumina o seu existir. Como transformar a inquiet udeontolgica da temporalidade em produo de verdade?

    4 sexo A realizao do evento do nome comum temaontolgico. , portanto, no campo da ontologia do tempoque ele proposto, l onde a temporalidade se declinacom inquietude.

    5. Kilirs , na concepo clssica do tempo, o instante,ou seja, a qualidade do tempo do instante, o momento deruptura e de abertura da temporalidade. um presente,mas um presente singular e aberto. Singular na decisoque ele exprime a propsito do vazio sobre o qual se abre.Kilirs a modalidade do tempo atravs do qual o ser seabre, atrado pelo vazio que est no limite do tempo, e

    43

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    22/115

    Kairos, Alma Venus, Multitudo

    decide preencher este vazio. Podemos dizer que, no kairos,nomear e coisa nomeada chegam, "ao mesmo tempo", existncia, e que so, portanto, exatamente "isto aqui"?

    5 bis. Se assim for, kairos representar, ento, emprimeiro lugar, aquela modalidade do tempo e aquele hictemporis, o ponto que exclui, absolutamente, da prpriadefinio, tanto o fluxo quanto a catstrofe do tempo.E isso um passo frente. Melhor ainda: se a conscinciapercebe kairs de modo ambguo, como "o ser emequilbrio", como "uma lmina de barbear", ou como oinstante no qual o "arqueiro lana a flecha", kairos ser,ento, a inquietude da temporalidade - o nome quequeramos para aquela experincia. Mas, se assim for,poderemos perguntar, em segundo lugar, se kairos no igualmente a insistncia real naquele ponto do tempo e,portanto, o ato do ser de se debruar sobre o vazio doporvir, ou seja, a aventura para alm da borda do tempo.Em terceiro lugar, poderemos nos perguntar se kairos no, simpliciter, a potncia de experimentar a temporalidade.

    5 ter. Pergunto-me se aquele"ao mesmo tempo", quequalifica as condies de existncia do nome comum eintegra a adequao do nomear e da coisa nomeada, no o kairos. Pergunto-me se o evento do nome comum, nasua inquieta temporalidade, no pode ser determinadopor nada mais alm da experincia do kairos. Pergunto-me

    44

    Kairos, prolegmenos do nome comum

    se a temporalidade do conhecer no est, simplesmente,radicada naquela modalidade da existncia no tempoque kairos.

    5 quater. E j que, at aqui, procurei na ontologia do tempoaquele momento no qual o nome chama existncia a coisanomeada, e a coisa lhe responde na sua concretude esingularidade, digo que o evento do conhecimento

    Iverdadei ro surge, com toda probabilidade, exatamente nesteponto em que a inquietude do tempo se revela como potncia.

    5 quinque. Se eu quiser dar certeza minha hiptese,deverei demonstrar que kairs potncia, no mesmomomento em que a experincia do tempo observa inquietao bordo sobre o qual se debrua. Deverei demonstrartambm que kars constituinte, no exato momento emque o olhar se fixa no vazio; que kairs gerar, einai naforma do gignetai. E s terei certeza disso quando,percorrendo as diversas potncias do nome comum, tiverdemonstrado que conhecer o verdadeiro olhar, exprimire viver o ser do ponto de vista do kairs, ou seja, do instanteque est entre a realizao do tempo e a abertura do porvir.

    6. Antes de mais nada: kairos o instante de verificaodo nome. O nome realmente se apresenta no oscilar dokairos e po r meio dessa oscilao que a verdade semostra. No instante, oscilando, o menino se apropria do

    45

    Kairs, prolegmenos do nome comum

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    23/115

    ,--t

    -I,,,

    , . _ - ~i--i

    Kairs, Alma Venus, Multitud o

    nome; assim, quem inventa aproxima o novo; e o poetafixa o verso. A soluo da oscilao, a sua necessriadeciso, a apresentao do nome. Isso se d do pontode vista de uma elementar, mas no menos real,fenomenologia do conhecer.

    6 bis. Todas as teorias da verdade giraram em torno desselampejo de certeza que , no kairs, a apresentao do nome.Mas todas as teorias da verdade sempre evitaram inserir,nessa temporalidade oscilante, o signo do verdadeiro_ Essarecusa , simplesmente, a de levar o tempo a srio e a desubjugar a verdade ontologia do tempo_ (Ser til recorda raqui que, quando a fenomenologia da conscincia internado tempo descobre a ontologia, absolute, na figura daoscilao do kairs, ela pretende que essa oscilao seja opressuposto da "revelao" da aletheia. Pelo contrrio: apotncia da verdade no est atrs, nem no fundo, mas nafrente, no risco de oscilar.)

    6 ter. Mas, em segundo lugar, como compreender, doponto de vista ontolgico, o surgimento do nome a partirdo kairos? Da maneira como expomos adiante. Dissemosqu e kairs oscila entre nomear e coisa nomeada. Mas,quando olhamos kairos nesse movimento, vemos que suapresena exposta ao vazio em direo ao qual o tempofaz com que o ser se precipite. Por que kairos tambm ano se precipita? Porque isso exprime novo ser. aqui,

    46

    portanto, que nasce o nome, quando kairos se expe aovazio e decide a respeito do vazio. Atravs do kairos, aafirmao ontolgica do nome s pode ser entendidacomo deciso de novo ser. Nesse sentido, no kairs apresena expresso. E o nome produto da expresso.

    6 quater_ At aqui, falamos de verdadeiro comoadequao do nome e da coisa. Como podemos, agora, daruma funo decisiva A"expresso" no kairs? Podemosfaz-lo porque a percepo ontolgica do kairs estabelecea adequao como evento de gerao. A coisa, posta sobrea borda do ser, convida o ato de nomear a incrementar oser, assim como o nome chama a coisa para uma novaexistncia singular. Kniros , ento, a flecha que foi lanada.

    6 quinque. Nesse sentido, nossa experincia doverdadeiro no sabe o que fazer com a "intuio", estticaou extasiada, do objeto espacializado. Ela sernecessariamente impotente, porque esse objeto no existe.A intuio procura as essncias, um jogo enlouquecidode cabra-cega que se agita, a cada vez, para cima ou parabaixo, sempre na direo do oculto - a mo-boba do saber.Quem quiser ver, dizia Max Weber, que v ao cinema.

    6 sexo Ao contrrio, eis como a "noo comum"espinosiana, ou a "verdade de fato" leibniziana, se colorede nova luz quando o nome expresso pelo kairos, porque,

    47

    Kairs, Alma Venus, Multitudo Kairs, prolegmenos do nome comum

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    24/115

    assim, sua corporeidade pode ser lida em termostemporais. Estes nomes esto carregados de vida.7. Diferentemente de tudo o que aconteceu nas pocas

    clssica e moderna, nesta abordagem da teoria da verdadeo espao fica subordinado temporalidade. Dizer que oespao est subordinado ao tempo no significa negar aconsistncia espacial do nome (e do nome comum), massim defini-la em sua especificidade, subordinada smodalidades do tempo. O nome deve, portanto, ter umaconsistncia espacial, que s pode OCOrrer na constirutividadedo tempo. Em outras palavras, se a verdade do nomeconsiste em construir o ser para alm da borda do presente,e se a Sua adequao coisa est no gerar, isso no retirardo nome uma certa forma espacial: mas ir defini-la nanova constituio ontolgica do tempo (e no em um lugaresttico).O que isso quer dizer precisamente? Como, e onde,pode-se fixar o espao do ser da temporalidade, ou seja, olugar da verdade do nome?

    7 bis. Essas observaes tm valor, em razo daconstituio do nome comum, que o instrumento (e ooperador) central do conhecimento.

    7 ter. A verdade de um nome s pode ser dada (comovimos) pela sua insistncia no kairos. Portanto, o nomeno tem, propriamente, lugar. Mas um nome dito e

    48

    ouvido: ele vive na linguagem. Dessa forma, revela umaespacialidade especialssima, a do ser lingstico. Ditode outra maneira: o nome no exige da linguagem suaprpria verdade porque j a pediu ao karos. Mas encontrana linguagem um lugar onde "habitar".

    7 quater. Mas um lugar onde habitar sempre um lugarcomwn. No existe wna experin,?a do karos (isto , do pontode vista da gerao ontolgica do nome) que seja a experinciade um lugar solitrio. O que significa, ento, lugar comum donome? Significa que, em um lugar, que chamamos"lingstico", rene-se um conjunto de nOmes. Por isso,quando lembrarmos que o nome wn evento, o lugar comwnlingstico ser definido como lugar de um conjunto deeventos. (A respeito da linguagem e do habitar a linguagem,discutiremos, muito mais amplamente, em Alma Venus.)

    7 quinque. Kairos singularidade. Mas assingularidades so mltiplas. Por isso, diante de umasingularidade, h sempre uma outra singularidade, e okairos , por assim dizer, multiplicado em outros kairos.Quando um nome dito, ouvido e vive na linguagem,todos os karos esto abertos a outros kairos - e todos esseseventos do nomear, juntos, constituem nomes comuns,confrontando-se, dialogand o e, eventuahnente, encontrandose. em relao alteridade que o nome se expande nocomwn. Aqui o ser se revela como mit-Sen, como "ser-com".

    49

    Kairs, Alma Venus, Multitudo

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    25/115

    i--

    7 sexo Eis O pressuposto ontolgico que permite passardo nome ao nome comum, do signo de verdade do nomede uma coisa construo do signo comum de umamultiplicidade de coisas. O nome comum aparece aqui,numa primeira definio, como expresso de uma novaespacialidade, ou melhor, de uma territorializao comumdo kairs mltiplo. Mas essa , exatamente, uma primeiradefinio: diz respeito s condies formais de construodo nome comum.

    8. No meu entender, nome comum o nome queexprime aquilo que comum a muitas coisas, portanto, amuitos nomes. Mas no kairs o nome um evento:portanto, a construo do nome comum dever participarde uma comunidade de eventos. Esses eventos ocorremno presente, sobre a borda do tempo, ou seja, onde atemporalidade se abre ao porvir. O nome comum oevento lingstico da comunidade do kairos.

    8 bis. Mas o lars, por definio, se prolonga no porvir.A construo do nome comum, portanto, ser feita naqueleprolongamento do ser, naquele evento do kilirs aberto parao porvir, que chamamos "imaginao". A imaginao no a fantasia (que uma modalidade da memria, comoveremos). Portanto, a imaginao um gesto lingstico,logo comum, o gesto que lana a rede sobre o porvir, paraconhec-Io, para constru-lo, para organiz-lo com potncia.

    50

    Kairs, proLegmenos do nome comum

    8 ter. A imaginao aquela potncia do kairs qu eencontrou expresso total. Essa expresso da potnciaimaginao no um fundamento, nem algo que vem detrs, do fundo ou de longe, mas - ao contrrio - consisteno fato de reconhecer a si mesma sobre o precipcio dotempo como criadora de novo ser.

    8 quater. Sobre a imaginao, falou-n'lS Espinosa, que a fezfuncionar como potncia cognitiva que, oscilando, liga osgneros de conhecimento e permite a passagem de um gneroa outro. Por conseguinte, em Espinosa, a imaginao temuma funo ontolgica de recomposio dos estratos do ser:por isso ela antecipa, desde o interior da matria, aqueledesenvolvimento da vida tica que leva ao ato absoluto deconhecimento, o amor. A filosofia moderna, de Kant aHeidegger, com miservel retrocesso, tentou traduzir aimaginao ontolgica em imaginao transcendental, emesquematismo que indica rastros temporais da construodo ser. Mas, atravs do transcendental, a imaginao seafogou na dialtica (fosse ela positiva ou negativa). preciso,portanto, retomar a Espinosa e reconhecer, na imaginao,no o caminho para chegar sntese do saber, mas o risco e oamor do conhecer, da construo dos lugares comuns donome, da prospeco criativa do porvir. Porque o ser kairs.

    8 quinque. O nome comum se define, assim, comoexpresso do comum das coisas e, ao mesmo te mpo, como

    51

    Kairs, Alma Venus, Multitudo Kairs, prolegmenos do nome comum

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    26/115

    projeo construtiva do ser no porvir. Ele , por um lado,sobrevo da multiplicidade do ser e, por outro, ao mesmotempo, kairs potente que constitui este comum no porvir.A ratio cognoscendi se toma, pela imaginao, prospectivae constitutiva, ratio fiendi.

    8 sexo Em Marx, a metodologia da "abstraodeterminada", estreitamente articulada com a construoda "tendncia", est ligada a essa proFosta de definiodo nome comum. As determinaes do ser, em Marx,podem ser levadas de fato "abstrao' (ao conhecimento)apenas quando, pelo conhecimento, o ser determinadose abre ao devir, ou seja, potncia da "tendncia". Ora,me u propsito, nestas Lies, desenvolver a filosofiada prxis, o materialismo da prxis, insistindo nosseguintes pontos: a dimenso da temporalidade comotecido ontolgico do materialismo, a potncia afirmativado ser e a subjetivao do devir (que daqui a pouco, nonos esqueamos, no chamaremos mais assim). Ora, aconcepo do nome comum estruturado por kairs estinteiramente no plano filosfico marxiano, e serexatamente essa referncia a Marx que nos impelir abuscar, sob o ritmo da imaginao (que at aqui vimosunir ratio cognoscendi e ratio fiendi), a passagem ulterior ratio agendi. Porque a imaginao sempre tica.

    52

    9. Segundo os fillogos clssicos, kairs, depois de tersignificado a abertura da temporalidade sobre o vazio,aperfeioou sua figura em relao ao telos. Mas a relaokairs-telos extraordinria: "autotlica", porque o kars spode conter em si o prprio telos. Decorre da uma extensoda definio: kairs, no pensame nto clssico, p ponto sobreo qual poiesis e techne, interiorizando no tempo a finalidadeconsciente do agir, constituem a praxs. Em outras palavras:kairs d finalidade prtica ao nome comum.

    9 bis. Em seu livro La grandeur de Marx, Gilles Deleuzefala da noo comum (do comunismo, em particular) comopossibilidade de traduzir a comunidade da episteme emcomum ontolgico. O nome comum o trao teleolgico(uma teleologia do instante, o telos do evento) que une oseventos na construo de uma comunidade, ou seja, acomposio ontolgica dos eventos que se expressa comopotncia e que se imagina como realidade por vir.

    9 ter. Essas duas citaes nos introduzem na plenapercepo da potncia de kairs. Kairs a potncia dever daquele ponto de vista a partir do qual a plenitude(cheia) da temporalidade se abre sobre o vazio do ser, ede entender essa abertura COmo inovao. Na passagem(kairs) do ser entre plenitude e vazio, situa-se o nomecomum, que ato comum e imaginativo de produo.

    53

    Kairs, Alma Venus, MuItifudo

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    27/115

    Portanto, o nome comum no apenas signo do existentesingular no instante que liga o nomear e a coisa nomeada,nem somente prospeco da multiplicidade no sobrevoda borda do tempo sobre o porvir: ele tambm , ao serposto na potncia de fazer ser, construo do telos dogerar. Chamamos esse produzir, ou esse gerar, de prxis.

    9 quater. A potncia de kairs corno passagem do cheiopara o vazio e corno produo de ser sobre o limite dotempo agora o fundo, ou melhor, a articulao e oesquema da prxis. A ratio agendi produto da ratiocognoscendi, e vice-versa, com uma s condio: expor-seno evento. O verdadeiro reencontra o aspecto de existnciana prxis, sendo reconhecido no nico tempo em que possvel que seja dito: o instante do kairos.

    9 quinque. Kairs Cristo que se esvazia para criarnovo ser, temporalidade incrementada pela expresso, prxis do nome comum.

    9 sexo possvel transformar o mundo ao mesmo tempoque ele interpretado. Aqui, novamente, recompem-se aepisteme e a tica. Pois kairs , como diz Aristteles,na virtude do tempo".

    54

    KAIRS, PROLEGMENOS DA DESMEDIDA

    ,1. Todos parecem admitir que kairos lana uma flecha eque sua trajetria irreversivelmente estabelecida (que otempo desenhado pela ponta da flecha). Mas a filosofiatranscendental negou, sobretudo, que o nome comumtamb m aja conforme a flecha do tempo. Ns, ao contrrio,defendemos essa posio. Mas se o tempo, corno potnciaontolgica, urna flecha, como o nome comum nele seposicional O que significa dizer que o nomear se adapta coisa nomeada seguindo a direo da flecha do tempoe em relao sua irreversibilidade?

    1 bis. A argumentao anterior, ao afirmar o n ome comumcorno produto do kairs, insistiu num instante que faz donome comum o ato de uma produo pontual do ser.Entretanto, no podemos esquecer (como muitas vezes ressaltado) que, revelando-se na produo de um realsempre novo, uma espcie de inquietude ressoa na potnciada temporalidade. Mesmo quando o nome comum seapresenta (como vimos ao analisar o devir comum noconhecimento) como sobrevo e prospeco e produtoda imaginao, o oscilar inquieto de sua produocontinua a se fazer sentir. A inquietude no se aplaca.

    DP&A editora

    Kairs, Alma Venus, Multitudo Kairs, prolegmenos da desmedida

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    28/115

    1 ter. A condio i nquieta que a criao do nome comummostra, atravs do kairs, ainda mais evidente seconsiderarmos essa produo do ponto de vistapsicolgico. A inquietude se apresenta, ento, comoindiscernibilidade dos momentos da conscincia. Porconseguinte, a temporalidade, rompida e tornada criativapo r kairs na flecha do tempo, parece apresentar-se comodurao, entre um passado e um futuro. O nome comum,mesmo tendo alcanado sua realidade no kairs, , agora,de forma ambgua, levado novamente a testemunhar umaespcie de tecido constante do antes e do depois (em vezda criatividade do tempo-kairs e da sua irreversvelpotncia).

    1 quater. Mas se o nome comum no fosse mostradocomo pice da flecha do tempo; se, portanto (mesmodeixando intacta sua potncia), considerssemos oinstante do kairs em uma espcie de continuidade entreum antes e um depois, e fizssemos dele a inquieta ponteda durao, ento toda possibilidade de determinar asingularidade do nome comum no valeria tanto; e, como nome comum, at o tempo seria concebido como fluxo,e no como potncia, e seria recompactado fora da flechada potncia, como destino. Mas essa definio desmentida pela experincia de kairs.

    56

    ,

    1 quinque. Por outro lado, se (como acontece nopensamento clssico) o instante fosse retirado dadefinio do tempo e considerado elemento definvelapenas pela intuio efmera de um oscilar do devir (entreo ser e o nada), qualquer experincia determinada pelaadequao do nomear e da coisa nomeada seria imprpriae inconcludente.

    1 sexo Se quisermos dar ao nome comum a direo daflecha do tempo e coloc-lo em relao com suairreversibilidade, sem perder a singularidade, sernecessrio, ento, entender o nome comum como ato ouprxis da temporalidade. S assim a ontologia sair dainquietude que a percorre, e o conhecimento, da percepoda ambigidade que o faz vacilar.

    2. Considerado do ponto de vista da flecha do tempo,ou seja, da sua consistncia, kairs o verdadeiro e nicoponto de irreversibilidade ontolgica. Isso porque kairs fora (vis) que vai em frente.

    2 bis. Se quisssemos, de fato, pensar na"reversibilidade" da flecha do tempo, deveramos, dequalquer forma, passar atravs do kairs para depoisvoltar atrs: mas isso no possvel. aqui que seapresenta a falsidade do argumento de Zeno, que

    57

    Kairs, Alma Venus, Multitudo Kairs, prolegmenos da desmedida

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    29/115

    pretende a presena simultnea da fora do kairs (que um caminhar para frente) e do raciocnio sofisticado (que,ao contrrio, caminha para trs, e, recuando, divide okars); ma s aqui tambm se compreende o aspecto deverdade do argumento eletico, que consiste na destruioda idia transcendental do tempo-durao, um a vez que(afirma ele) s o instante ontologicamente verdadeiro.

    2 ter. No kars, portanto, se apresentam como nicarealidade o nome e a coisa nomeada, e ambos s oexpressos pela fora da temporalidade na borda dotempo. A expresso do kairs fora ontolgica.Encontramo-nos, aqui, no corao do paralelismoespinosiano, em que o ser apresenta, como moldes de simesmo, a coisa e a idia (que o conatus produz juntas).

    2 quatet. O nome comum , portanto, um modo deafirmao do ser, e o nome comum uma fora do ser, ouseja, alguma coisa que constri novo ser. Por exemplo,passando da adequao do nome e da coisa expressoimaginativa do nome comum, assistimos a uma verdadeiraoperao constitutiva que coloca na borda do ser (ou nopice da irreversvel flecha do tempo) a sua potncia criativa.

    2 quinque. Chamamos esse processo, que expressodo kairs, de prxis ontolgica do verdadeiro. Dizer prxis

    58

    dizer fora (vis) que constri (ou transforma) a coisa emnO;,1e e o nome em coisa.

    2 sexo Em Marx, a frmula "prxis do verdadeiro"aparece. Ela consiste em fixar a verdade daquilo que aprxis constri, a partir da expresso determinada (etendencial) de uma resistncia. O verdadeiro aparecercomo afirmao do ser que nasce da luta. J antes deMarx, Maquiavel havia considerado a "prxis doverdadeiro" como potncia para fazer surgir, da ocasiotemporal, a virtude constitutiva do poltico. nessa duplaperspectiva que definimos a prxis do verdadeiro comodesenvolvimento da fora do kars.

    3. A coisa mais bvia, quando se fala de tempo, dividilo em passado, presente e futuro. Mas, se comearmos aobservar o tempo do ponto de vista da temporalidadepresente do kars, passado e futuro so tudo, menosnomes bvios. Dado que a nica consistncia ontolgicacerta est na ponta da flecha do tempo, quando ela sefinca entre o nome e a coisa (como no si-mesmo), aconsistncia do que vem primeiro e do que vem depois,ser preciso analis-la atentamente antes de assumir emnossa linguagem os nomes "passado" e "futuro". Talveztenhamos em mos algo diferente daquilo que o usoentende como passado e futuro.

    59

    Kairs, Alma Venus, MuItitudo Kairs, prolegmenos da desmedida

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    30/115

    3 bis. Fora da luz do kairs e da fora que, abrindocontinuamente o tempo, constri o ser, o passado pareceser aquilo que "aqui findo", enquanto o futuro parece seraquilo que, daqui para frente . est "in-findo".5 Mas essaprimeira definio de passado e futuro totalmenteinconsistente. Na verdade, no tem sentido chamar definda (ou finita) aquela massa enorme, irreversvel, de serque nos antecede, ou de in-findo (ou in-finito) aquilo queainda no existe. Aquela primeira definio (e este primeiroerro) vive, porm. graas a uma espcie de tendncia obtusaa considerar o passado e o futuro no na flecha do tempo,ma s em um plano homogneo. No percebemos que,fazendo assim, tiramos do tempo a sua irreversibilidade edo kairas a fora criativa. Na verdade, ,ocorre que, naq uelaperspectiva errnea, o tempo reduzido a uma nicaextenso, sem vazios, e percorrvelem todos os sentidos -e isso contradiz a experincia comum da irreversibilidadeda flecha do tempo. Por outro lado, na perspectiva quecriticamos, o kairas no existe mais porque, naquele tempofeito de extenso, no possvel conhecer o evento criativo.

    3 ter. Nas concepes do tempo como res extensa, tudoreside no poder de um ente transcendente que retira dotempo toda consistncia ontolgica, e, assim, a retira do

    5 Nooriginal,"in-finito".(N.R.)

    60

    passado e do futuro. Vale a pena recordar o "Deushomicida" que o mstico Geulincx teorizava contra oespinosismo: Deus como dspota absoluto em cujosbraos repousava a iluso de um mundo bem-ordenado,em que tudo, me smo o horror, era praticamente necessrio,e o passado e o futuro se apresentavam imperscrutveisno ato constitutivo do absoluto.

    3 quater. O que so o ser que veio primeiro e o ser queainda no veio, do ponto de vista do kairas? Quais, e oque, so os nomes que damos quilo que, na flecha dotempo, vem antes do kairs e quilo que ainda no existe?

    4. No nome "futuro" , muitos vem repetir-se identicamenteo tempo do que j aconteceu. Nessa perspectiva, futuro o perdurar. E, da mesma forma, quando o futuro visto,por outros, como uma progresso que modifica ascondies de chegada em relao s de partida, tambmo futuro (com variaes mais ou menos importantes) serum reproduzir-se positivo ou negativo, mas constante.Por outro lado, todas as formas nas quais procuramosuma previso do futuro so, de alguma maneira,estatsticas, ou seja, so o estudo das repeties e da sconstantes dent ro das quais (ou na proporo das quais)a exceo eventual reduzida. O mesmo se pode dizer detodas as formas de prescrio normativa futura (aquelas

    61

    Kairs, Alma Venus, Multitudo Kairs, prolegmenos da desmedida

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    31/115

    que se exprimem na forma: voc deve, portanto vocdever), que sempre so resultantes da hipstase dosprincpios do que aconteceu. Para a maioria, portanto, ofuturo durao futura. A inquietude do tempo est sujeita continuidade do espao.

    4 bis. O futuro, como durao futura, a viso que estna base das tecnologias, tanto das cincias exatas quantoda s cincias humanas e normativas. Tambm nesse caso,o a posteriori temporal reduzido s normas de clculodo a priori espacial. O avano das tecnologias se apresentacomo pretenso de prefigurar o futuro de maneira cadavez mais precisa. Mas as coisas no so bem assim, e, defato, a previso daquilo que ser s vale quando nasceda prxis do kairs e se constitui, como veremos, natemporalidade da sua ferramenta.

    4 ter. Tambm o desejo afeta o futuro: ns o chamamosde utopia. Entretanto, a utopia afeta o futuro de maneiraambgua: por um lado, prope a homologia espacial dopassado; po r outro, a supera na expresso imaginativado desejo. Todavia, em geral, a utopia no pode ocorrercomo nome comum do porvir, pois (mesmo quando norepete o perdurar da figura espacial) o desejo se apresenta,aqui, de toda maneira, como distncia espacial (no-topos,mas ainda lugar).

    62

    4 quater. Em todos e em cada um desses casos, o quefalta a apercepo do momento criativo que instaura oque vem. Na perspectiva que criticamos (e que nos parecepertencer maioria), "futu ro" no me mistificado, errneo.Por outro lado, damos o nome de "porvir"6 ao horizontede experimentao da adequao do nome e da coisa (bemcorno da prospeco imaginativa) em que, ao se realizar,apresentam-se como novo ser. A passagem ao porvir sempre uma diferena, um sobressalto criativo. A repetio,e com ela a durao, desestruturada pela experinciaatual do porvir, e o real , assim, novamente compr eendidono fazer do kairs (ou seja, das suas mnadas).

    4 quinque. Definimos, ento, o tempo que vem comoporvir; e o porvir como constituio ontolgica em ato;e o nome comum "porvir" como expresso de forainveno (que a vis do kairs).

    4 sexo O senso comum da vida confirma a definio doque vem corno porvir, mais do que como futuro. De fato, na luta pela livre apropriao do presente que a vida seabre para o porvir e que o desejo percebe - contra o tempovazio e homogneo que iguala tudo (inclusive, eprincipalmente, o futuro) - a potncia criativa da prxis.Se a vida no se baseasse nessa experincia ativa do, No original, "avenire". (N.R.)

    63

    Kairs, Alma Venus, Multitudo Kairs, prolegmenos da desmedida

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    32/115

    porvir no poderia se chamar "vida". O mesmo vale paraas tecnologias e as cincias: elas no s o mquinasespaciais para dominar o futuro - ao contrrio, so geradase renovadas em sua eficcia pela atividade do nome comumcomo prxis (da vis do kairs). Cincias e tecnologias soferramentas do kairs - nascem e se desenvolvem dentroda vida e produzem porvir brotando do presente (mas esseassunto ser abordado em outros captulos).

    S. Quando considero o nome "passado", encontro-me,tambm, normalmente, diante da idia errnea do tempotranscorrido como uma extenso, e da imagem de umtempo morto, finito, estendido na durao. Compreendo,entor por que, para a maioria, "passado" apenas nomede destruio e morte. De fato, quando entendido dessamaneira, passado o inimigo do tempo kairs. A partir domomento em que disse "O tempo para si mesmo,sobretudo, causa de corrupo, porque nmero domovimento, e o movimento pe o existente fora de si",Aristteles deu aos filsofos a possibil idade de se enganarsobre aquilo que foi, porque dessa forma se considera otempo, simpliciter, como durao cuja concluso acorrupo, corno nmero que expele do ser a existncia.Ao contrrio, s posso conceber o tempo corno kairs, ejamais como corrupo e morte. Em outras palavras: opassado considerado, normalmente, o cmulo da

    64

    destruio dos eventos fsicos. Mas pensar que atem para idade pode ter a destruio como nome insensato, pois a temporalidade que experimentamos, e daqual vivemos, aquela (e somente aquela) do kairs e do atocriativo que o constitui. No ser, "tudo se cria e nada sedestri" na imediatez do presente.

    5 bis. O "passado" do homem constitui sua histria.Quando considero o nome "passado" nesta acepo,vejo-me, normalment e, diante da idia errnea de urnagnese contnua do presente, estendida sobre um(ordenado ou desordenado que seja, no muda nada)depositar-se de eventos humanos concludos. Ma sconsiderar o que existiu antes de ns como depsito dotempo transcorrido, se m recuperar - momento pormomento - ponto a ponto - a vitalidade que o criou, asmnadas de kairs que ali se exprimiram, vai contra nossaexperincia da temporalidade, que exatamente a de umafora criativa.

    5 ter. Os homens se divertem fazendo a histria(historiografia) do tempo que vem antes deles e que,falsamente, imaginam acumulado conforme urna ordemcemiterial, interpretando (dizem) o passado. Mas no hpossibilidade de mergulhar naquele ser que vem antes, ano ser iluminando-o com o presenter reconstituindo-o e

    65

    Kairs, Alma Venus, MuItitudo Kairs, prolegmenos da desmedida

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    33/115

    sentindo-o viver no presente. Em outras palavras, o nomecomum da prxis histrica s pode ser"genealogia dopresente", quer dizer, uma imaginao que traz a ser aquiloque existiu antes, da mesma maneira como constitui o serpor vir. No se interpreta o passado, mas se experimenta.

    5 quater. a inovao que emana do kairs que produzo mundo e, portanto, que produz tanto o ser que vemantes quanto o ser que vem depois. (Cada instante davida, da que foi e da que ser, um evento criativo.)Aquela inovao, ou seja, a fora do nome, sempresingular e determinada, e no existem para ela,considerados do ponto de vista desse ser, dessa su aintensidade, nem um primeiro nem um ltimo, nempassado nem futuro. E, dessa forma, para ela no existe"devir", nem ao passado nem ao futuro, mas somenteum dar nome ao que adveio e ao que est, aqui, por vir.Quando utilizamos o errneo nome de "devir", perdemoso sentido da temporalidade, ou seja, o seu pulsar vivo:este pulsar no nos d a transformao (isto , o devir)como ma u infinito, como indeterminao, antes oudepois, ma s como emergir de diferenas, de momentosdeterminados do kairos e da potncia de nome-los.

    5 quinque. Daremos, portanto, o nome de "eterno" aotempo que antes. Eternidade o tempo que antes: ele ,

    66

    de fato, potncia de vida acumulada, temporalidadeirreversvel e indestrutvel, nome comum do ser que .Cada kairs est instalado nessa eternidade.

    5 sexo O que estamos dizendo - que o kairs est instaladono eterno, isto , no tempo que vem antes - no lana Okairos no passado, mas devolve o eterno presente aopresente do kairos. O "aqui" do kairos no separado doaqui do eterno; no existe ordem que mea sua distnciatemporal; mas tambm no possvel pensar numa espdede contemporaneidade do kairos e do eterno: o eterno umconsistir no lugar do kairos, um consistir simultneo.

    6. Como pode ser expresso o nome comum do eterno?Como estamos no eterno? Em primeiro lugar: nopodemos pensar aquele ser indestrutvel que nos precedeem termos "equvocos", isto , como se, por natureza,fosse diferente do que ns exprimimos. O eterno no diferente do ser-kairos: o kairos , sim, diferena, ma s sporque prolonga o eterno, o incrementa e o inova, naborda da temporalidade vivida. Se o ser eterno fosseontologicamente outro, apresentar-se-ia como uminvlucro de natureza diferente, um recipiente datemporalidade presente (ou seja, da temporalidade quetem poder de expresso). Mas isso contraditrio emrelao percepo que temos daquilo que foi como

    67

    Kairs, Alma Venus, Multitudo Kairs, prolegmenos da desmedida f

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    34/115

    genealogia daquilo que . Portanto, o eterno no contmo tempo, mas temporalidade eterna. E ns estamos noeterno e o percebemos como potncia daquilo que .

    6 bis. Em segundo lugar, ne m mesmo em termos/I analgicos" poderemos pensar o indestrutvel ser quenos precede, como se fosse um fundamento primeiro, umasubstncia temporal eterna da qual nossa experincia dotempo traz consigo some nte o vestgio. J vimos como nossocaminhar para aquilo que foi no um caminhar para ooutro. No , nem mesmo, remontar uma corrente infinitade relaes, ao cabo da qual- pelo fato de ela ser infinita -nossa razo seria obrigada a exigir um outro, paraconseguir compreender. Pensar o eterno , ao contrrio,simplesmente instaurar o kars numa indestrutvel massade vida, de um ser que se havia realizado, por sua vez, emnome do kars, e que s a genealogia do presente, do novo,atravs do kairs, atualiza.

    6 ter. Do ponto de vista ontolgico, a analogia do ser(procedimento-chave do pensamento teolgico) um aforma fraca da "dialtica" transcendental. Na verdade,enquanto a dialtica, operando sobre o infinito de maneiradescontnua (que modelada sobre a descontinuidadedo mundo), produz uma hierarquia de consistncias doser que se sublima no eterno (no absoluto), o procedimento

    68

    analgico, separando imediatamente infinito e eterno dofinito e do tempo, d ao tempo uma consistncia fraca ("otempo imagem mvel da eternidade") e ao mundo umgrau ontolgico subalterno ao absoluto. Dialtica eanalogia entis operam, portanto, no mesmo plano(analogia uma dialtica esttica; dialtica um aanalogia em movimento), mas a analogia d respostasmais fracas insacivel fome transcendental do absoluto.Resta o fato de qu e nenhuma dessas concepes,concentrando-se no absoluto, pode aceitar a coisa maissimples: que seja o finito a incrementar o absoluto e okairs a da r flego potncia do eterno.

    6 quater. Ser no eterno significa ser na "produo".Grande parte dos filsofos considerou o tempo em relaoao movimento, e a definio do tempo sempre esteveligada do devir e idia de infinito, que constituem oprincpio da modalidade espacial de considerar o ser.Ao contrrio, com base na experincia, nos concedidopensar o eterno no na modalidade do espao, mas nada temporalidade, no com base no infinito, ma s napresena do kairs, n o no "movimento que p e oexistente fora de si", mas na produo que pe aexistncia dentro de si. E, assim, podemos fazer com quea essa consistncia siga a construo de uma prxis deverdade, produtora do eterno.

    69

    I"I1

    Kairos, Alma Venus, MuItitudo Kairs, prolegmenos da desmedida

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    35/115

    6 quinque. O kairs repousa, portanto, no eterno. Alis,kairs o eterno que cria. Esse eterno vem antes de nsporque no seu limite que criamos, incrementando o ser,ou seja, a eternidade. Tudo o que kairs abre eterno. E nssomos responsveis, portanto, pela eternidade e pelaproduo da eternidade.

    7. Quando o antes o eterno e o depois o porvir, otempo , na flecha que o constitui, a "desmedida" daproduo entre aquele antes e este depois.

    7 bis. Quando dizemos "desmedida", no dizemos nemindefinido, nem indeterminao. J vimos por que aconstruo do nome comum no pode ser baseada emum processo cognitivo indefinido: porque a adequaodo nome e da coisa fixada pela expresso"ao mesmotempo" de um "isto aqui". Pela mesma razo, a construodo nome comum no pode ser indeterminada: o produtoda expresso do kairs sempre singular (a hecceitas).

    7 ter. Engendra-se, ento, ainda mais, o problema decomo a ontologia da expresso (quando o kairos opera novazio que expe a eterna potncia inveno do porvir)poder configurar-se como produo finita e determinadana desmedida. Se o ato criativo do kairs, que qualifica acada vez (ao mesmo tempo) o ser, um salto para o novo

    70

    e se essa passagem desmed ida, a definio , sem dvida,problemtica. (Para abrandar sua problematicidade, noadianta especificar a anlise em tomo da prxis do kairs,como atividade "autotlica": desse modo, o problemaseria apenas deslocado.) Trata-se, ento, de aprofundar,nos modos da temporalidade, a relao entre o toposvertiginoso no qu al o ser se cria e o telos que auto-organizaessa produo. Esse aprofundamento, todavia, s poderencontrar desenvolvimento e concluso na prxima partedas Lies, no captulo Alma Venus, no qual procuraremoscompreender a fora que constitui a figura comum donome comum.

    7 quater. Logo a seguir, porm, resta ainda co mpreen dercomo possvet nessa passagem desmedida, construiruma investigao ontolgica, ou melhor, garantir seuspressupostos. Onde se posiciona aquele que descreve adesmedida? A que estado de coisas corresponde o regimede definio da desmedida? Qual , ento, o campo dainvestigao ontolgica no materialismo?

    71

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    36/115

    KAIRS, PROLEGMENOSDO CAMPO MATERIALISTA

    1. O problema definir o campo no qual os enunciadosdo conhecer correspondem aos estados de coisas (oueventos). A oscilao inquieta que caracteriza a relaoconstitutiva do nome comum na abertura desmedida dokairos demonstra amplamente que essa determinao problemtica. O que , ento, o corpo da s verdadescomuns quando os nomes, ao se tornarem comuns,expem-se continuamente ao risco do porvir? Ou seja,quando que a consistncia daquilo que foi se abre,atravs do kairs, para uma experimentao sempre nova?

    1 bis. De maneira paradoxal, a questo levantadapela teoria das mutaes da cincia, quando esta observaa crise e a transformao do s grandes agregadoscientficos. Quando um paradigma cientfico dissolv idoe um novo paradigma surge, o enunciado prprio doprimeiro paradigma incomensurvel co m o novoparadigma. Isso evidente, porque se refere apenas aoqu e foi: s na ao do kairs, na genealogia do que presente, o estado anterior de coisas poder ser, de fato,novamente compreensvel. Ma s essa problemtica

    DP&A editora

    Kairs, Alma Venus, Multitudo Kairs, prolegmenos do campo materialista

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    37/115

    questo do conhecer, e sua eventual soluo, torna-semenos bvia quando, ao invs de olhar para o que foi,olhamos para o que est para ser. Aqui, quando se olhapara frente e no mais para trs, a prpria inovao,aquilo que est p ara ser, que aparece como incomensurvela partir das dimenses anteriores do ser. A novidade donovo estado de coisas produzido pelo agir do ser revelase, em si, irredutvel a toda enunciao anterior. Querdizer, na experincia da inovao, o conhecer mostra adesmedida do seu afirmar-se, alis, a desmedida em queele mesmo se pe, entre eterno e inovao. E isso imprimeinquietude ao conhecer.

    1 ter. Os lgicos nos dizem que no existe nenhum fatorelevante para estabelecer a que coisa se refere um termoqualquer da linguagem. Dizem-nos, igualmente, que onico modo para traduzir a linguagem e as coisas, e parada r determinao a essa traduo, um "quantificadorexistencial" (ou seja, a afirmao de que "existe algocomo" um nome adequado a um fato, um regime deenunciao adequado a um campo de estados de coisas). preciso, ento, dizer "existe". Paradoxalmente, oslgicos devem aceitar a verdade do kairs, sob a forma daontologia. Esse xito no remove, pelo contrrio, evidenciaainda mais o oscilar inquieto do kars.

    74

    1 quater. Se continussemos considerando a determinaoontolgica apenas dentro das trajetrias de cada kairs(das mnadas do kairs), no teramos a possibilidade debene vivere o oscilar inquieto do kairs, apesar de saberque nele a verdade se determina. Na ruptura datemporalidade entre eterno e inovao, necessrio,portanto, assumir o conjunto dos eventos e defini-lo comocampo material do kairos. Esse campo o nico "lugar"(mas sempre "lugar da temporalidade") em que o serunvoco se apresenta como ser produtivo - o campo domaterialismo, onde predicar o ser inov-lo.

    1 quinque. Para afirmar o nome comum na desmedida,devemos compreender a emergncia, sempre nova, deuma fora de predicao do ser materialmente capaz dedizer: "Isto est aqui". Isso no elimina a inquietude,a "tentao pirronist a" e o conseqente oscilar da conscinciafenomenolgica - mas a eles resiste. O campo materialista esse campo de resistncia.

    2. O campo material de produo do ser corporal.Definimos o corpo como predicado do sujeito, qualquerque ele seja (afirme ser) no tempo, quer dizer, comopredicado de alguma coisa qu e existe no prpriomomento em que nomeia. O conjunto dos corpos omundo, ou seja, o campo material de produo do ser.

    75

    Kairs, Alma Venus, Multitudo Kairs, prolegmenos do campo materialista

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    38/115

    2 bis. Entretanto, no h razo para considerar oconjunto dos corpos como menos inquieto do que cadakairs, essas mnadas do kairs. Por si, a constituiocorprea do campo material do kairs nada retira dooscilar inquieto do conhecer; alis, restitui-o plenamente desmedida. Para sup erar essa situao (que parece umquebra-cabea lgico) a anlise dever penetrar no modode produo do mundo como expresso da potncia donome comum: o que procuraremos fazer no prximogrupo de Lies (Alma Venus). Porm, queremos (pareceno s importante) nos habituar, aqui, a considerar acorporeidade do kairs na desmedida do mundo.Proceder nesse sentido comear a exercitar a ascesematerialista que sabe perceber a unidade, no corpo, dosujeito e do predicado.

    2 ter. A distino analtico/sinttico foi derrubada,justamente, pelos ataques da crtica contempornea dalinguagem (e do saber cientfico). Uma pesquisaconceitualmente correta est to sujeita falibilidadequanto todas as outras afirmaes (empricas?) quemudam com o tempo. A construo cognitiva do campomaterialista assume, ento, nome e nome comum nainquietude da temporalidade. E isso, apesar de certamenteanular a iluso de que existem, no absoluto, seqnciascorretas de pensamento, no retira da afirmao do kairs

    76

    a intensidade corporal do ser verdadeiro. O roseaupascaliano a melhor metfora do campo materialista eda verdade que nele vive.

    2 quater. O roseau pascaliano se dobra sob o vento doeterno, mas, reconhecendo a prpria existncia frgil,afirma a dignidade do conhecer. A ginestra7 leopardianaoscila, interpretando o mesmo personagem no theatrummundi. Mas essas citaes seriam inspidas, se no asreferssemos quele paradigma comum que O prncipe,de Maquiavel, no qual a dignidade de resistir ao mundo eao destino se configura como virtude. Ou como potnciaconstitutiva do mundo. Porque, depois de escapar dasquimeras transcendentais, o nico outro caminho paraafirmar a consistncia do se r colocar sua potenteinsistncia sombra do eterno. Isso, e somente isso, materialismo (no, certamente, aquelas filosofias que fazema apologia do emprico, nem as que, paradoxalmente,concebem a matria como um grande invlucrotranscendental). De outro ponto de vista, a noo comumespinosiana e a verdade de fato leibniziana sofrem essamesma transfigurao: ambas prope m, na verdade, assimcomo a superao da diviso entre juzo analtico e juzosinttico, uma qualificao produtiva do ser unvoco.7 Referncia a La ginestra, de Giacomo Leopardi. Ver Multitudo,

    "Prolegmenos sobre o trabalho vivo", p. 199. (N.R.)

    77

    Kairs, Alma Venus, Multitudo Kairs, prolegmenos do campo materialista

  • 7/30/2019 NEGRI, Antonio. Kairs, Alma Vnus, Multitudo

    39/115

    2 quinque. O campo materialista produtivo. Suaproduo atravessa a carne, o desejo, o gerar do nomecomum expresso por kairs. Estamos dentro dessa produoporque s podemos ser no corpo. Mas, ao mesmo tempo,nos medimos com um a potncia expressiva desmedida.Retornando sobre nossos passos, perguntamos ento:onde podemos nos colocar para refletir sobre nossa imersono ser material constirutivo? Reconhecer-se na consistnciacorporal do ser, conduzir uma investigao ontolgica quese refira continuamente potncia do kairs entendida comoprxis do verdadeiro e como produo da subjetividade -como isso possvel? Onde est aquele que conduz ainvestigao ontolgica no campo materialista?

    3. Ao levantarmos a questo da investigao ontolgicano campo materialista, necessrio ter em mente que aquise apresentam caminhos que no podem ser seguidos,pois propem uma dura distino entre o campo corpreodo conhecimento e a reflexo que age nesse campo.Analisaremos alguns desses erros mais abaixo. Aocontrrio, para validar a investigao no campomaterialista, devemos, por um lado, confron tar a reflexo,em sua autonomia, ao mundo, e, por outro, garantir que,nesse gesto, a reflexo no perder sua insero intensano kairos. difcil, contudo, sair-se bem nesse exerccioda reflexo, mesmo ag