Negacionismo em rede: a negação da escravidão e da ...
Transcript of Negacionismo em rede: a negação da escravidão e da ...
Negacionismo em rede: a negação da escravidão e da ditadura militar no
Brasil ganhou a internet
Isabella Ferreira Luiz
PPGHS/Universidade Estadual de Londrina
O presente artigo busca desenvolver uma breve análise sobre o discurso
negacionista histórico no Brasil presente em conteúdos na internet, no que diz
respeito aos assuntos em torno da escravidão e do tráfico negreiro e dos
crimes cometidos pela ditadura militar, buscando compreender quais relações e
motivações existem por trás desses discursos, é cada vez mais frequente
emergirem discursos que negam determinados acontecimentos históricos,
duvidam das teorias a respeito e tentam deturpar o conhecimento através de
informações falsas, de modo a afetar toda a vida social. Para tanto será
utilizado como base os vídeos publicados na página do YouTube do canal
“Brasil Paralelo”: “CAPÍTULO 2: A Vila Rica | Brasil – A Última Cruzada” e
“1964 – o Brasil entre armas e livros”. Ambas as produções buscam reconstruir
um passado traumático da história brasileira sem considerar as discussões
historiográficas acerca dos assuntos tratados. É importante levar em
consideração os objetivos por trás da empresa de ciberativismo intitulada
“Brasil Paralelo” ao utilizar a internet para divulgar informações com um caráter
de “pseudociência”: disseminar conteúdos históricos sob um viés político
autodeclarado como de direita política e cristão, estimulando um ataque a
conteúdos que fujam dessa perspectiva. Por meio da análise fílmica, pretende-
se compreender tais produtos audiovisuais e suas problemáticas,
especialmente por serem vídeos com amplo alcance e grande número de
acessos.
Palavras-chave: negacionismo; Brasil Paralelo; escravidão; ditadura militar
Introdução
A história e historiografia são constantemente revisitadas e suas
discussões revistas, afinal novos documentos são pesquisados, novas teorias
elaboradas e novas transformações acontecem. Seja por isso, seja pela
proximidade temporal, a sociedade constantemente exprime opiniões e
pareceres sobre assuntos que dizem respeito sobre a história do país.
Entretanto, cada vez mais frequente emergem discursos que negam
determinados acontecimentos históricos, duvidam das teorias a respeito e
tentam deturpar o conhecimento através de informações falsas, de modo a
afetar toda a vida social.
É justamente nessa onda negacionista que se encontra os vídeos
publicados pelo canal Brasil Paralelo que buscam abordar a história do Brasil,
desde o período colonial à história contemporânea, desconsiderando
discussões historiográficas e, por vezes, implicando um senso comum, além de
utilizarem as produções audiovisuais como difusores de suas opiniões sob um
viés político autodeclarado como de direita política e cristão.
Desse modo, a importância em analisar e compreender os vídeos
produzidos e divulgados pelo canal Brasil Paralelo se dá pelo uso da internet
como meio de divulgar conhecimentos com um caráter de “pseudociência”,
além do amplo alcance que os vídeos possuem, permitindo que as ideias ali
apresentadas sejam reproduzidas por diversas pessoas. Além disso, a
necessidade de compreender os discursos utilizados pode ser útil para
combater discursos negacionistas que tem emergido cada vez mais na internet.
A escravidão sob a perspectiva da série documental “Brasil – A
Última Cruzada: A Vila Rica”
A série documental “Brasil – A Última Cruzada” busca traçar uma história
do Brasil a partir da opinião de diversos comentaristas, entre eles profissionais
formados em História e jornalistas. Desse modo, o episódio “A Vila Rica” trata
sobre o período colonial, as relações com Portugal, as relações com os
indígenas e a escravidão. O discurso reducionista apresentado na série não só
apresenta a história sem embasamentos, como demonstra uma exaltação de
Portugal em detrimento dos ameríndios que aqui habitavam, bem como dos
homens e mulheres oriundos da África que aqui foram escravizados.
Sobre a escravidão no Brasil, João Fragoso chama atenção para o fato
de que “[...] escravidão da América lusa não só foi produto da violência das
razias africanas, do tráfico negreiro e do desenraizamento cultural e social de
homens, mas também do Antigo Regime Católico e de sua disciplina social”1.
Ao longo do episódio, é possível notar que a escravidão não é tratada a partir
do que a historiografia aponta. A maneira como a escravidão é abordada pelo
grupo é evidenciada na fala do narrador:
Os engenhos de açúcar a serem construídos, agora eram uma realidade e viriam acompanhados de uma das maiores chagas da História do Mundo. Das grandes manchas morais da biografia humana é impossível não lembrar da escravidão como uma das maiores. Quando falamos em escravos, lembramos da luta e da dedicação dos abolicionistas pela liberdade e dos povos que demoraram tanto para despertar e ver um futuro livre. É difícil pensar, o quão horrível foi nascer e morrer sem ser o dono de sua própria vida. O fato de podermos olhar as coisas dessa forma; é o privilégio de vivermos do lado de cá da linha do tempo da humanidade. O compromisso em manter a humanidade livre vem da lembrança que demoramos milênios para vencer o mal da escravidão. Foi um mal que por muito tempo não esboçava perspectiva de nos libertarmos. Os antigos povos hebreus e assírios, os gregos e os romanos, os europeus, astecas, incas, maias, e tantos outros, não conseguiram vencer o status quo em que nasceram e viveram. Se olhamos para trás e vemos a mancha da escravidão, é a história jogando holofote sobre nós, esperando deliberarmos sobre nossas ações, para saber quem somos e como seremos lembrados. É a História cumprindo seu papel, nos ensinando os grandes erros e lembrando que muito dos nossos antepassados perderam seus sonhos na falta de liberdade.2
Para ilustrar a fala, imagens de escravos vão aparecendo. Podemos
perceber que a escolha de imagens para corroborar com a fala não é em vão,
as imagens abaixo surgem sem sequer uma indicação se retratam de fato a
escravidão no Brasil, quem as fez, onde é possível encontrá-las, assim como
toda a informação trazida ao longo do documentário. Além disso, as imagens
1 FRAGOSO, João. Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas de um ensaio. História (São Paulo) v.31, n.2, p. 106-145,
jul/dez 2012
2 Capítulo 2: A Vila Rica | Brasil – A Última Cruzada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=svViHH8IBVg&list=PL3yv1E7IiXySpilepZSpHnrWGWbmryk9j&index=2. Acesso em: 5 ago 2020
reforçam a ideia da escravidão como “chaga” da humanidade, colocando como
um horror distante da realidade do Brasil atual. Tanto a fala do narrador quanto
as imagens apresentadas não fazem referência a luta e resistência dos
próprios escravos no que diz respeito a sua condição, tampouco mencionam a
vida social da colônia, a cultura material e a relação da colônia brasileira com
outras colônias. Ignora-se a historiografia e reforça-se o senso comum sobre
algo que mantém suas raízes profundamente fixas em nossa sociedade.
Figura 1: Capítulo 2 – A Vila Rica. Reprodução YouTube.
Figura 2: Capítulo 2 – A Vila Rica. Reprodução YouTube.
Figura 3: Capítulo 2 – A Vila Rica. Reprodução YouTube.
Os convidados seguem comentando que “o fundamento da escravidão
nunca foi a origem étnica”3, como uma tentativa de refutar os argumentos sobre
uma reparação histórica (e até mesmo sobre toda a discussão do sistema de
cotas raciais no Brasil), deslegitimando reinvindicações de negros no Brasil, em
uma tentativa de esconder o racismo presente. 4 Sobre esse ponto, é
interessante o apontamento que Carvalho e Rovida fazem:
A resistência dos negros escravizados, as revoltas e as lutas são apagadas e esquecidas nessa narrativa, assim como na proposta do Gilberto Freyre. Na luta pelo fim da escravidão só se mencionam os abolicionistas, eles é que seriam lembrados primeiramente e não a condição e a resistência do escravizado. Este discurso torna-se a primeira estratégia para se construir a realidade desejada pelo Brasil Paralelo. Ao se desconsiderar as lutas, as revoltas e os atos de resistência, procura deslegitimar a luta e a reinvindicações contemporâneas, como se estas fossem algo inventado por pessoas que se vitimizam, arranjando desculpa para conquistar algo de maneira fácil, se aproveitando supostamente de algo que não existiu ou que teve pouca relevância e gravidade.5
É apresentado um discurso anacrônico, que compara a escravidão
corrida no Brasil por meio da compra de pessoas, desconsiderando todo esse
mercado de escravos, com aquela escravidão da antiguidade na Grécia ou em
Roma. A informação ali transmitida é rasa e o objetivo é produzir uma versão
“própria” dos processos ao longo da história do Brasil, numa tentativa de forjar
uma identidade nova. Desse modo, é perceptível como naturalizam a
escravidão e diminuem os problemas que dela decorreram.6
Sobre o discurso e a mensagem apresentada pelos comentaristas,
Carvalho e Rovida apontam que
A construção argumentativa reforça a proposta de que a escravidão não teria princípios raciais, evidenciando as exceções, pois o negro escravizado escravizava outros negros. Uma das possíveis apropriações do espectador inicialmente pode ser a de considerar como exceção o negro escravizando o negro, porém as apropriações constantemente são reapropriadas pelo mesmo indivíduo. Assim sendo, o indivíduo que inicialmente entende como
3 Capítulo 2: A Vila Rica | Brasil – A Última Cruzada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=svViHH8IBVg&list=PL3yv1E7IiXySpilepZSpHnrWGWbmryk9j&index=2. Acesso em: 5 ago 2020 4CARVALHO, Roldão Pires. ROVIDA, Mara. Escravidão e racismo: análise sobre uma das abordagens dos grupos conservadores-liberais. REGIT, Fatec-Itaquaquecetuba, v.10, n.2, p. 39-57, jul/dez 2018 5 Idem, p.44 6 Idem, p.43
exceção pode vir a aceitar como regra depois de uma reapropriação da mensagem.7
Além disso, é perceptível um discurso que tenta amenizar a exploração
portuguesa nas colônias, principalmente na colônia brasileira, sem fazer um
debate acerca das colônias de exploração e colônias de povoamento. A
respeito da discussão José Jobson de Andrade Arruda afirma:
Trata-se, isso sim, de uma colônia de exploração, universo histórico privilegiado na produção de superlucros destinados a alimentar o crescimento e o desenvolvimento da metrópole europeia, por meio da tríade latifúndio-monocultura-escravidão ou do regime de exclusivo aplicado aos núcleos mineradores. Ser de povoamento ou de exploração não significa, contudo, excludência absoluta. Na colônia de povoamento a exploração se fazia presente: na de exploração, a presença populacional era inescapável. A diferença se explicita na ênfase, no elemento que detém a primazia no estabelecimento da explicação e que integra, certamente, outras dimensões.8
As discussões historiográficas são deixadas de lado e os comentários
apresentados possuem um caráter senso comum que visa naturalizar a
escravidão, inclusive buscando apontar que a escravidão praticada no Brasil
pouco se diferenciava daquela que já era praticada em países do continente
africano antes da chegada dos portugueses lá, o que evidencia mais uma vez
as análises anacrônicas e pouco aprofundadas nas discussões feitas sobre o
assunto. Tais problemáticas da “série documental” produzida refletem os
motivos políticos por trás da realização dos projetos do Brasil Paralelo,
podendo ser evidenciados em outros vídeos como por exemplo em “1964 – O
Brasil entre armas e livros”9, também disponível no YouTube.
Negacionismo sobre a ditadura militar
Assim como os discursos negacionista sobre a escravidão no Brasil,
tem-se cada vez mais um discurso que ora nega o período ditatorial, as mortes,
as torturas e as prisões arbitrárias, ora busca exaltar os generais, o exército, as
7 Idem, p.45 8 ARRUDA, José Jobson de Andrade. O sentido da colônia. Revisitando a crise do antigo
sistema colonial no brasil (1780-1830). IN: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal.
Pp. 169-187
9 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIg
mortes e prisões, discurso esse que vem acompanhado da “defesa da moral e
dos bons costumes” e que vem ganhando o espaço da internet e encontrou em
canais como o Brasil Paralelo meios para florescer e alcançar um público ainda
maior.
O filme começa com comentários de supostos professores e alunos que
tentaram exibir o documentário em diversos lugares, como universidades e
cinemas, e foram impossibilitados, fazendo com que o Brasil Paralelo alegue
que foram censurados por “fugiram da pauta da esquerda”. O narrador aponta
que esse é o motivo da existência do canal, assim como os idealizadores são
responsáveis por levar informações a inúmeras pessoas. Ressalta que tiveram
colaboração de especialistas para “navegar” pela documentação e bibliografia
do Brasil, Estados Unidos, Polônia Berlim e República Tcheca.
Numa tentativa de reconstruir o passado, o documentário apresenta
imagens de jornais, fotografias e gravações de acontecimentos da época, além
de entrevistas que visam corroborar com aquilo que é mostrado nas imagens.
Os primeiros momentos do filme abordam questões da Guerra Fria, menos
como objeto de contextualização e mais como um ataque ao comunismo e
como uma justificativa para o golpe militar que ocorreu em 1964 no Brasil,
assim como em outros países da América Latina nos anos seguintes.
Curiosamente, o vídeo aponta que a União Soviética foi responsável por
uma “política pública da mentira”, divulgando propagando mentirosas e
desinformação, entretanto não são apresentados documentos que possibilite
saber como foi possível chegar a esta conclusão. Contraditoriamente, enquanto
apontam que o “inimigo” mente, Buzalaf identificou dois momentos específicos
em que são apresentados informação equivocadas e até mesmo
completamente erradas:
1. A utilização de imagens de Sebastião Salgado. Quando aparece a primeira imagem do fotógrafo brasileiro, do livro Terra, que contém textos de José Saramago e um CD com músicas de Chico Buarque, o locutor anuncia que “Em 1962, já se sabia da existência de pelo menos oito campos de treinamento das Ligas Camponesas. Essa foi a semente que mais tarde
seria o MST”. Porém, a imagem é de 1997, mais de dez anos depois da formação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra). A segunda imagem de Sebastião Salgado menciona a Guerrilha do Araguaia (1967-1974) ao exibir uma foto feita em 1986, no garimpo de Serra Pelada, configurando o abuso de imagens para ilustrar uma narrativa coerente, porém historicamente manipuladas. 2. A localização de Antonio Gramsci na historiografia. O título do filme faz referência ao fato de que, segundo a narrativa construída, a esquerda teria deixado de lado as armas para atuar nos livros – ou seja, nas universidades e meios de comunicação. Porém, Gramsci aparece em um momento impossível da história. Com imagens que aparentam ser dos anos 1960, o narrador aborda Maio de 1968, e alega que foi quando “o fundador do Partido Comunista italiano passa a escrever Os Cadernos do Cárcere”, apesar de Gramsci ter morrido em 1937. 10
Assim, em concordância com a autora, é possível perceber uma
tentativa de manipular a narrativa ali apresentada, bem como a deturpação de
documentos históricos. Da mesma maneira que ocorre em “Brasil – A Última
Cruzada: A Vila Rica”, os diálogos com a historiografia clássica sobre o
assunto, ou mesmo as novas discussões não são trazidos à tona.
O filme busca apontar que o golpe militar ocorreu como consequência de
supostas intervenções da URSS no Brasil, como consequência da influência
comunista no país, desconsidera alguns pontos essenciais, como a relação das
Forças Armadas e a política brasileira. Segundo Borges, as Forças Armadas
brasileiras nunca estiveram alheias à política no país, no entanto sua atuação
até 1964 se dava por meio de intervenções políticas para reestabelecer a
ordem institucional e deixar a condução do Estado nas mãos dos civis, algo
que mudou drasticamente a partir de 1964, quando os militares passaram a
intervir e conduzir o Estado, colocando os civis como simples coadjuvantes,
para que o regime passasse uma imagem democrática e legítima. 11
Os comentaristas do filme seguem apontando discussões desconexas
das discussões historiográficas, como quando apontam que a ditadura militar
se tratava de uma “meia ditadura” ou a tentativa de relativizar e diminuir a ação
10 BUZALAF, Marcia Neme. Revisionismo ou Negacionismo? A Ditadura Civil-militar no Filme “1964- o Brasil entre armas e livros (2019). IN: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 42, 2019, Belém. 11 BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os militares. p. 16. IN: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs). O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. pp. 15-42.
da censura no período, no comentário sobre a censura feito por Bernado
Kuster:
É engraçado porque as pessoas falam em regime militar, e da ditadura e da censura, mas a primeira coisa: todas as publicações da Teologia da Libertação foram feitas durante o regime militar. Por que ela surge durante os anos 70, fora do Brasil, escorre para todo Brasil e para as comunidades eclesiais de base durante os anos 70, pós-AI-5, contamina o Brasil inteiro e nada acontece? Que ditadura é essa? (...) Eu digo: que ditadura é essa, cara? Então, não há essa censura como se fosse uma censura geral.12
Entretanto, o historiador Carlos Fico aponta que a censura durante a
ditadura militar brasileira funcionava de duas maneiras distintas: a censura de
imprensa e a de diversões públicas.13
Não houve uma censura durante o regime militar, mas duas. A censura da imprensa distinguia-se muito da censura de diversões públicas. A primeira era “revolucionária”, ou seja, não regulamentada por normas ostensivas. Objetivava, sobretudo, os temas políticos stricto sensu. Era praticada de maneira acobertada, através de bilhetinhos ou telefonemas que as redações recebiam. A segunda era antiga e legalizada, existindo desde 1945 e sendo familiar aos produtores de teatro, de cinema, aos músicos e a outros artistas. Era praticada por funcionários especialistas (os censores) e por eles defendida com orgulho. Amparava-se em longa e ainda viva tradição de defesa da moral e dos bons costumes, cara a diversos setores da sociedade brasileira.
O filme segue na tentativa de desmoralizar a própria academia e todos
aqueles que participaram de movimentos de resistência contra a ditadura. Sem
trazer discussões historiográficas, a produção não discute de fato esse assunto
que possui um vasto campo de trabalhos no Brasil, além de menosprezar todos
aqueles que tiveram suas vidas interrompidas e profundamente marcadas pela
ditadura militar no Brasil.
Conclusões
Em ambos os documentários produzidos, é perceptível a falta da
cientificidade e historicidade em um trabalho que se diz “importante para a
compreensão de nossa história”, mas que revela seu verdadeiro objetivo:
12 1964 – o Brasil entre armas e livros. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIg 13 FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.24, nº 47, p. 26-60. Jul. 2004
disseminar informações que julgam pertinentes para corroborar sua visão de
mundo, seus interesses políticos e a manutenção da sociedade de uma
maneira que favoreça aqueles que estão no poder.
Esse processo de negacionismo está ligado também com a relação de
memória sobre os acontecimentos históricos, no caso da ditadura militar o
historiador Marcos Napolitano aponta:
No caso do Brasil, o processo de superação da ditadura seguiu outro caminho. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que os militares brasileiros tiveram maior controle da sua retirada política do coração do Estado, negociando os termos da anistia oficial e bloqueando qualquer política de “verdade-justiça”, com apoio dos grupos liberais moderados. Mesmo uma boa parte da esquerda, com possibilidade concreta de reorganização partidária e disputa política dentro das instituições no contexto do final dos anos 1970, não insistiu nesta agenda, preferindo reorientar suas ações e estratégias na construção do futuro. Os movimentos de Direitos Humanos e de familiares de vítimas da violência do Estado, ainda que respeitados por todos que lutavam por democracia, na prática ficaram politicamente isolados no processo de transição.14
Ou seja, as ações que foram tomadas no momento pós ditadura foram
ações que não visaram culpar aqueles que deveriam ser culpados pelas
infrações aos direitos humanos e nem estabelecer uma política de memória
consistente em prol daqueles que lutaram para reestabelecermos a democracia
no país.
A problemática da escravidão e da memória pode ser compreendida
pelo fato de que a abolição ficou marcada na consciência coletiva brasileira
como a resolução de todos os problemas relacionados a escravidão, ignorando
os fatores de desigualdade social que o sistema escravocrata gerou para todos
aqueles que foram libertos mas não tinham os meios viverem naquela
sociedade.
É preciso pensar em meios de combater as desinformações que
circulam pela internet, seja tornando o conhecimento produzido pela academia
mais acessível, seja produzindo conteúdos que dialoguem com a ciência e a
14 NAPOLITANO, Marcos. Desafios para a História nas encruzilhadas da memória: entre traumas e tabus. História: Questões & Debates, Curitiba, v. 68, n. 01, p. 18-56, jan./jun., 2020.
historiografia e que busque aguçar a consciência crítica do público receptor,
cito aqui de exemplo alguns canais da internet que buscam fazer esse trabalho:
o canal Leitura ObrigaHISTÓRIA no YouTube15, o canal de podcast da Anpuh-
Brasil16, o canal de podcast A Trivialista17, o canal História no Cast18, História
FM19, entre muitos outros que buscam discutir questões históricas embasadas
em leituras e apontamentos da própria historiografia de maneira acessível.
15: https://www.youtube.com/channel/UCtMjnvODdK1Gwy8psW3dzrg 16 https://open.spotify.com/show/4FpViIpc95B46GeuF3RH0y?si=qNwMoQQgQsqe6HC4P-7TNg 17 https://open.spotify.com/show/5IjFZceNOtMClVm05pgKOK?si=mv0SkOg9QUil-MTUA6psMQ 18 https://open.spotify.com/show/3lRM9QTViqng5MxJNlb2rS?si=NvlkbUhESIG1-DfHQjiikg 19 https://open.spotify.com/show/4d1lnERMnFpGTdJiu403pg?si=UhARBfJ5SX6e_J0u4WI8gQ
Referências
ARRUDA, José Jobson de Andrade. O sentido da colônia. Revisitando a crise
do antigo sistema colonial no brasil (1780-1830). IN: TENGARRINHA, José
(org.). História de Portugal. Bauru: Edusc., 2000, pp- 169-187
BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os militares. p. 16. IN:
FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs). O Brasil
republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais
em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. pp. 15-42.
BRAUDEL, Fernand. História e Ciências. Sociais. Revista de História. Ano XVI,
N° 62, abril-junho, 1965, Vol. XXX.
BUZALAF, Marcia Neme. Revisionismo ou Negacionismo? A Ditadura Civil-
militar no Filme “1964- o Brasil entre armas e livros (2019). IN: Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação, 42, 2019, Belém.
CAPÍTULO 2: A Vila Rica | Brasil – A Última Cruzada. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=svViHH8IBVg&list=PL3yv1E7IiXySpilepZSp
HnrWGWbmryk9j&index=2. Acesso em: 5 ago 2020
CARVALHO, Roldão Pires. ROVIDA, Mara. Escravidão e racismo: análise
sobre uma das abordagens dos grupos conservadores-liberais. REGIT, Fatec-
Itaquaquecetuba, v.10, n.2, p. 39-57, jul/dez 2018
FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v.24, nº 47, p. 26-60. Jul. 2004
FRAGOSO, João. Modelos explicativos da chamada economia colonial e a
ideia de Monarquia Pluricontinental: notas de um ensaio. História (São Paulo)
v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012
NAPOLITANO, Marcos. Desafios para a História nas encruzilhadas da
memória: entre traumas e tabus. História: Questões & Debates, Curitiba, v.
68, n. 01, p. 18-56, jan./jun., 2020.