Narrativa versus escritura na restinga de Maricá

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    Comum - Rio de Janeiro - v.7 - n 19 - p. 112 a 148 - ago./dez. 2002

    1. Introduo

    A antropologia conta entre os seus clssicos um considervel nmerode obras concebidas e publicadas na segunda metade do sculo XIX. Nessecontexto, acodem memria os nomes de J.J. Bachofen, Henry SummerMaine, John F. Mc Lennan, Fustel de Coulanges, Lewis Henry Morgan,Edward Burnet Tylor e James George Frazer, entre outros.

    Os trabalhos desses pais fundadores proporcionaram disciplinano s um repertrio de referenciais etnogrficos, mas tambm um elen-co paradigmtico de temas e questes, alm dos primeiros modoscannicos de tratamento dos mesmos. A propsito da religio e da magia;do casamento, da famlia e do parentesco; da descendncia, da afiliao edos demais modos de constituio e reproduo dos grupos sociais; dopatrimnio e da sucesso; entretanto, todos esses autores ocuparam-se,em maior ou menor grau, do fenmeno jurdico, isto , do domnio singu-lar configurado pelo conjunto dos direitos e obrigaes que fundam elegitimam toda e qualquer ordem social e moral.

    Para compreender a preeminncia desse tipo de preocupao, bastariainvocar as circunstncias scio-histricas que provocaram e serviram depano-de-fundo a todas essas reflexes.

    SirHenry Maine, Fustel de Coulanges e Lewis Henry Morgan, paramencionar apenas trs dentre os nomes mais conhecidos, buscaram ana-lisar e compreender as grandes transformaes que, na Inglaterra, na Frana(e em toda a Europa Continental), na ndia e nos Estados Unidos, condu-

    NARRATIVAVERSUSESCRITURA

    NA RESTINGA DE MARIC:

    segundos pensamentos sobre o fenmeno jurdico e oconflito das formas na vindicao dos direitos

    Marco Antonio da Silva MelloArno Vogel

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    ziram desagregao das antigas formas de organizao social e, paraalm dela, ao advento da sociedade moderna. Nesse quadro, deram parti-cular nfase progressiva eroso das formas antigas do patrimnio e suaacelerada converso na propriedade individual. Processo tanto mais no-tvel, quanto nele se aliava rpida transformao do antigo direito dascoisas, o igualmente avassalador florescimento de uma nova concepojurdica, que, inspirada em Beutham, pretendia substitu-lo por uma novacodificao escrita, com base num suposto direito natural.

    Ao fazer tabula rasado velho direito, relegando-o, juntamente com suasformas, s supostamente incertas, qui irracionais, dimenses, da me-mria oral e do costume, tal concepo reivindicava, para a forma escri-ta, contratual, o privilgio exclusivo da legitimidade no estabelecimento

    dos direitos e obrigaes jurdico-morais.Em face da violncia e radicalidade que tal ponto de vista implicava,

    nas relaes sociais dessa poca, compreende-se melhor a importnciae a repercusso de Ancient Law(1861). Com essa obra e os posterioresdesdobramentos do seu projeto, Maine vem situar-se no foco de umalinha de pensamento inaugurada, no campo do direito, por FrederichKarl von Savigny.

    De acordo com ela, o direito no pode reivindicar bases naturais ou

    racionais, fundamentando-se, ao contrrio, nos padres da vida dospovos, isto , nos seus costumes, entre eles, os atos simblicos atravsdos quais direitos e deveres eram criados ou extintos.

    Com essa perspectiva, o fenmeno jurdico no podia limitar-se sformas escriturrias da codificao legal, tendo de incorporar s suasconsideraes o costume e, com ele, as formas de sua manifestao,registro e transmisso, ou seja, aos ritos consagrados de criao e extinode direitos e obrigaes, e s narrativas destinadas a conservar sua me-

    mria e validade.Retomando o fio dessa tradio queremos submeter ao leitor um caso

    exemplar desse conflito da forma escriturria e da forma narrativa, talcomo pudemos registr-lo, na restinga de Maric, a propsito de uma ques-to em torno da propriedade e da posse de um lugar.

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    2. A histria de Juca Toms

    Como tantas outras, a histria de Juca Toms comea antes do advento deseu personagem principal. Seu impreciso incio remonta s primeiras dcadasdo sculo XIX. Com data desconhecida, realizou-se, ento, no povoado dapraia de Zacarias, em Maric, o casamento de trs irmos com trs irms.

    Os trs matrimnios tiveram sorte desigual. O de Delfino e Ochicapermaneceu estril. Saturnino e Mariana tiveram filhos e filhas. TomsVelho e Rita, tambm. Seis ao todo trs homens, trs mulheres: Simplcio,Juca Toms e Maneco Toms; Arminda, Regina e Lilica.

    Como os irmos e as irms, Juca Toms se casou. diferena dos de-mais, entretanto, f-lo seis vezes. Tomou, sucessivamente, seis mulheres,

    com as quais constituiu famlia e cujas casas logrou manter, todas ao mes-mo tempo. Sua prole, conhecida e reconhecida, perfaz 31 filhos e filhas.

    O velho tinha cavalo bom, o que se diz, ainda hoje, na Zacarias.Para passar um dia com cada uma dessas mulheres, era preciso percorrera restinga, de um povoado para outro, com os jacs da montaria abarro-tados de gneros. Ter mulheres qualquer um podia. T-las com respon-sabilidade, isto , mant-las, no era coisa simples. Requeria provises,presena e providncia, em cada uma das casas.

    Juca Toms dava conta de tudo isso, porque era um empreendedor bemsucedido. Tinha um armazm a casa grande, a partir do qual abasteciavrios povoados da restinga. E, enquanto foi prspero, esse emprio garan-tia-lhe, alm de slido prestgio, os recursos para assistir cada uma de suasfamlias, atribuindo-lhes um patrimnio bsico, constitudo por casa, ca-noa, redes e remos. Com isso, cada qual garantia seu sustento e, todas jun-tas, asseguravam o fluxo constante de pescado que o armazm transforma-va em gneros variados, para alimentar seu comrcio.

    A pesca fornecia pois ao armazm o seu capital de giro. Nos perodosde vacas magras, tratava-se de vender as redes, para manter a casa gran-de, enquanto mulheres e crianas teciam novas redes, espera do retor-no da estao propcia, quando a abundncia de pescado permitiria le-vantar, outra vez, os negcios.

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    Aps o esplendor vivido pelo armazm, em Guaratiba, a pela viradado sculo, talvez at dcada de vinte, veio o declnio, cuja periodizaoaproximativa o situa a partir do final dos anos 20. No incio da dcada detrinta, j operava de porta s avessas. Com mais ou menos oitenta anos (eum nmero ainda maior de netos), Juca Toms pressentiu o seu fim. De-dicou-se, ento, a um ltimo e grande esforo na ordenao dos seus ne-gcios terrenos. Convocou casa grande de Guaratiba, alguns mem-bros de sua parentela. Serviu-se dessa reunio para comunicar pequenaassemblia suas disposies finais relativas ao patrimnio, prestes a trans-formar-se no legado de seus herdeiros. Fizeram-se presentes, cerimnia,Hilrio, Tobias e Carmelita (Milita); Assis e Erotides Marques (Joca);alm de Joo Gomes, Irineo (Henrique) e Capitulino (Moozinho).

    Hilrio era o primognito de Juca Toms com Emilia Rosa, matrim-nio do qual eram filhos, tambm, Tobias e Milita. Moozinho era oprimognito da unio com Josefina. Henrique, por sua vez, era o maisvelho do casamento com Antonica. Assis e Joca eram casados comChambinha (Leonor) e Ernestina, igualmente filhas de Emilia Rosa, e,portanto, irms de Hilrio, Tobias e Milita. Tanto Assis quanto Erotides,eram filhos de um irmo de Juca Toms Maneco Toms, sendo pois,no s genros, mas tambm sobrinhos do velho. Casado com Bibi

    (Bibiana), filha deste com Emilia Rosa, Joo Gomes era, como Joca eAssis, genro de Juca Toms.

    Como, no entanto, as ausncias podem ser to significativas quanto aspresenas, prudente indic-las de imediato. Da reunio no fazia partenenhum dos filhos de Maricota, que tinha deixado Maric, levada peloseu mais velho, indo morar em Niteri, para onde tinham-na seguido, umaps outro, os demais filhos, deixando a casa de Guaratiba para trs. deassinalar, ainda, a falta de Aristeu (Arsti), filho de Juca Toms com a

    moa de Ponta Negra, a qual como Rla, no se encontrava mais nopoder do velho. Quanto aos presentes, verifica-se que eram, entre si, ouirmos, ou primos, ou cunhados e concunhados. Representavam trs ramosdistintos dos descendentes de Juca Toms, alm de um ramo colateral dosMarins o do seu irmo mais novo, Maneco Toms. Chama logo ateno

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    o predomnio dos filhos de Emilia Rosa, seja diretamente, com Hilrio,Tobias e Milita, seja por representao, como no caso de Chambinha,Ernestina e Bibi. Todos estes eram, por oposio a Moozinho eHenrique, irmos de casa, categoria usada para distinguir os diferentes gru-pos de irmos uterinos, que compunham a descendncia de Juca Toms.

    In articulo mortis, este ltimo manifesta, diante dessas pessoas, a suavontade quanto destinao do patrimnio, que, apesar da prolongadadecadncia do armazm, no era pequeno. Com ele, no entanto, era pre-ciso aquinhoar as numerosas famlias que deixava. E foi este o propsitodo codiciloque Juca Toms ditou aos participantes do ato.

    Para Hilrio ficava a casa grande, com o que restava do seu comr-cio, e mais canoas, redes, remos, cavalos e criao, alm do encargo de

    testamenteiro. Cabia-lhe pois, a sucesso no ncleo fundador do patrimnioque seu pai havia constitudo com o auxilio de Toms Velho, de quemHilrio era afilhado e penhor de sua aliana com Emilia Rosa, essa coma-dre e primeira nora, a quem tambm devolveu a quantia destinada porJuca Toms para saldar o emprstimo que lhe fora feito pelo pai, com afinalidade de abrir o armazm em Guaratiba.

    Para Fininha deixava a casa onde esta vivia com os filhos, na Zacarias,bem como canoa, remos e redes de pesca. Moozinho, que a represen-

    tava e aos irmos, tinha sido, durante muito tempo, o brao direito doemprio, seu principal caixeiro. Por isso, recebera a ajuda do pai, sendo, poca, comerciante no seu povoado natal. Na diviso, foi contempladocom um cavalo.

    Antonica, que tinha vindo da Zacarias para cuidar de Juca Toms,quando este j estava bastante enfermo, e era representada por Henrique,teria direito no s casa em que morava, mas tambm pescaria(canoa,remos e quatro peas de rede de gancho), capaz de assegurar-lhe e aos

    filhos o necessrio sustento.Tobias e Milita, que eram solteiros e moravam com o pai, teriam

    uma casa na Zacarias. Para Assis Marques, que, junto com seu irmoErotides, tinha comrcio, nesse mesmo povoado, ficava uma canoa, con-tribuio ao provimento das filhas.

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    A prognie de Maria, embora sem representao no evento, foi con-templada com a casa adquirida por Juca Toms aos herdeiros de um jfalecido Juvenal, na Zacarias. Nessa casa morava Carlinda (Lilina), anica do matrimnio com Maricota que permanecera em Maric. Eque tinha ido viver na Zacarias, quando, separada do seu primeiro mari-do, do qual tinha trs filhos, engravidara de outro homem. Para seu netoAlcino, filho do casamento desfeito dessa Lilina com Leopoldo, e quetinha sido criado na casa grande, o velho deixava uma tarrafa.

    Finalmente, os recursos apurados com a venda de um de seus cavalosseriam destinados a saldar um dbito com um negociante da Vila- Jacin-to Caetano, o mesmo que, de solitrio atravessador de aves e ovos, viria atransformar-se num bem sucedido empresrio de transportes, dono da

    Viao N.S. do Amparo, em Maric.Essa declarao testamentria foi seguida de uma exortao, em que

    Juca Toms encarecia aos presentes, o valor da conciliao, recomendan-do-lhes que permanecessem unidos. Assim, pretendia cuidar desse outrolegado seu que era o patronmico Marins, recebido de Toms Velho, e queestava em vias de devolver descendncia deste, notavelmente acresci-do, pouco depois de ter formulado sua vontade derradeira.

    Num dia 22 de agosto, de um ano que pode ter sido o de 1936, Juca

    Toms faleceu na casa grande. O fretro foi conduzido numa canoaguarnecida por Sizenando (Baque) e Alcebades (Ginho), filhos deSimplcio, seu irmo mais velho. Na sua esteira seguiu um longo cortejofnebre. As embarcaes, para mais de cem canoas, que se haviamjuntado ao longo do caminho, aportaram no Saco da Lama. De l, o ata-de foi carregado em procisso at igreja. Na matriz de Nossa Senhorado Amparo, realizaram-se os ritos de encomenda. Depois, Juca Toms foienterrado no cemitrio de Maric.

    Aps dias de recolhimento e jejum, a enlutada casa dos Marins sofreria oprimeiro grande abalo consecutivo morte de seu heri epnimo. Contam osfilhos de Antonica que Hilrio, escudado na condio de primognito e sob aalegao de que morto no fala, tomara o partido de silenciar a vontade mani-festa do pai no que dizia respeito partilha dos bens dos quais era inventariante.

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    Decidira, por exemplo, que a canoa, os remos e a rede-de-gancho, des-tinadas a Antonica, ficariam com seu primo e cunhado Erotides Mar-ques, o Joca. Isso prejudicava os herdeiros de Antonica, sobretudo oprimognito Henrique, que o falecimento de Juca Toms transformavaem arrimo de famlia. Do mesmo modo, ficaram sem rede e canoa osfilhos de Josefina. E Moozinho ... no teve o seu cavalo!

    As partes lesadas no quiseram empenhar-se num conflito. No fize-ram questo, desistindo, pois, de sua parte na herana. Assim, prevale-ceu a palavra de Hilrio e, com ela, sua estratgia: consolidar a alianacom os filhos de Maneco Toms, homem de confiana de seu pai naZacarias. O preo desses recursos adicionais bens de capital e benssimblicos foram as tenses que passaram a existir no relacionamento

    de Hilrio seus primos e cunhados com os irmos, filhos de Josefina,ou de Antonica. Em contrapartida, reforava-se a posio da progniede Emlia Rosa, na Zacarias.

    Curiosamente, essas disposies do primognito de Emlia tiveramtambm elas, um aspecto testamentrio. Seu autor pouco sobreviveu aopai. Sua morte ps em movimento Tobias e Milita, que liquidaram oarmazm e fecharam, definitivamente, as portas da casa grande, paraviver na Zacarias. Levaram consigo os filhos de Hilrio e Qussa, cria-

    dos no armazm, desde o incndio ateado por sua me, que lhes custara acasa que fora de Maricota e que motivara a separao do casal, almda volta de Hilrio casa paterna.

    Assim, quando sua prole veio buscar amparo na aldeia de seus avs JucaToms e Emlia Rosa, pde esta contar com as irms uterinas do pai, casadascom primos irmos deste, filhos de um tio-av que, alm de irmo uterinodo av paterno, tinha sido seu grande aliado na Zacarias. No lhes foi difcil,portanto, encontrar acolhida e condies de sobrevivncia no lugar.

    Alm da descendncia de Fininha e Antonica, sediadas na locali-dade desde o incio, foram para a Zacarias no apenas os filhos e netos deEmlia Rosa. Antes da chegada de Tobias e Milita, com os sobrinhos,Lilina, filha de Juca Toms e Maricota, j morava no povoado. Lilinachegara a morar com seus filhos na casa grande, quando Juca Toms

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    ainda era vivo, pois a casa de Maricota, qual teria tido direito, sucum-bira ao desatino de Qussa. Talvez fosse esse o motivo pelo qual JucaToms lhe destinara a casa adquirida ao esplio de Juvenal, para ressarciros filhos de Maricota. A presena de Lilina no povoado terminou poratrair Benjamin (Beco), um de seus filhos, atravs do qual a linhagemde Maricota deitaria tambm suas razes na Praia de Zacarias.

    Pode-se dizer que o destino sorriu ainda uma vez, embora post mortem,ao empreendedor Juca Toms. Com habilidade e diligncia este fora, emvida, tramando uma famlia extensa, administrando tenses e fomentan-do lealdades. Seu patrimnio diluiu-se com sua morte. A casa grandede Guaratiba foi desmanchada. Com o material, quatro outras casas pude-ram ser construdas. E ainda sobraram telhas... Tambm na Zacarias ti-

    nha existido uma casa grande, onde Juca Toms pousava, quando desuas permanncias no povoado. L as crianas tinham aula; eram apre-sentados teatros de bonecos e troupesde saltimbancos; e realizadas asfestas, com msica, dana, comida e bebida. Tambm ela veio abaixo eseus materiais, dispersos, incorporaram-se a outras construes.

    Coisa bem diversa sucedeu, no entanto, ao patronmico. Dispersos pelasaldeias da restinga, os Marins envolveram, uns com os outros, os povoa-dos de Zacarias, Barra de Maric, Guaratiba e Ponta Negra. Ao invs de

    se dilurem, rarefazendo-se, criaram um centro de gravidade na Zacarias,onde se tornaram, to disseminados que no se cansam de repetir ao fo-rasteiro: aqui tudo uma famlia s.

    * * *

    Pode parecer pretensioso usar, a propsito da histria de Juca Toms,o termo saga. E, no entanto, essa palavra se impe, evocada, talvez, pelo

    tratamento que Victor Turner deu Islendinga Saga, representando-a comouma seqncia de dramas sociais, como aqueles que, entre os ndembudeZmbia, tinham sido a sua principal fonte de dados micro-histricos, en-cadeando eventos ao longo de um determinado tempo1.

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    Ao considerar a saga como forma simples, Jolles2 adverte para a utiliza-o reducionista da categoria saga, na qual esta se contrape ao dadohistrico, como a fantasia realidade3. De sua parte, prefere dar-lhe umsentido positivo, excluindo a idia, seja de uma representao de acon-tecimentos a que faltasse o aval da Histria, seja de uma criao livreda imaginao popular ligada a acontecimentos importantes da histria.Com a palavra prefere, ao invs, designar, um produto acabado e tang-vel, que tem coerncia e validade internas4.

    Turner lembra o hbito de se apontar, na saga, para uma vida singular,com os seus mistrios, dilemas e destino, mas acredita que essa nfasedeva ser complementada por um estudo das posies sociais ocupadaspelos indivduos nas estruturas de parentesco, territorial e poltica, e nos

    papis por eles desempenhados no que os antroplogos chamam de con-textos de ao5.

    Esse preceito vem ao encontro do que o prprio Jolles j propusera,em 1930, quando tratava de compreender o fenmeno especfico da sagaislandesa, enquanto paradigma de um gnero narrativo:

    Se pensarmos em termos de histria, poder-se- ter a im-presso de que as sgurrealizam de fato, o histrico ou a cr-

    nica de uma famlia; se procurarmos, porm, entend-las sempreconceito, elas mostram a histria existente apenas comoevento na histria de uma famlia e de uma famlia queescreve a histria6.

    Diante disso, revela-se pertinente a compreenso de Victor Turnerpara quem as Sagas se lem como registros e dirios etnogrficos, excepci-onalmente bem fornidos, escritos por um estro literrio incomparvel7.

    No entanto, ser que se poderia dizer o mesmo da histria de Juca Toms? certo que o relato da vida e peripcias desse personagem no

    encontrou, at hoje, um artista capaz de dar-lhe uma forma acabada, emprosa ou verso. No conseguiu, pois, superar, at o momento, o estgiodas atualizaes orais. Estas, no entanto, no excluem certos cuidados

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    com o ornamento literrio, o andamento e a modulao emocional danarrativa. Podem ser mais curtas ou mais extensas, segundo a economiados detalhes. s vezes tm uma tonalidade jocosa, mas podem aparecer,igualmente, no registro grave do drama, onde ressurgem as paixes dasvelhas feridas e dos rancores persistentes. Em determinadas circunstn-cias, sobrepe-se s demais uma veia de puro memorialismo, exerccioldico da lembrana, para fins contemplativos, tanto dos que viram, quantodos que apenas ouviram dizer. Assim, dado aos ltimos conhecer a na-tureza de suas relaes atuais, tal como emergem dessa histria comum.

    Quanto ao enredo, no constitui nenhum exagero adotar, com todas asletras, o que afirma Jolles dos heris da Islendinga Saga: As relaes entreos diversos personagens dessa saga so em primeiro lugar, relaes entre

    pai e filho, entre av e neto, entre irmos, entre irmo e irm, entre mari-do e mulher8.

    No caso dos Marins, seria necessrio acrescentar, ainda, entre tios esobrinhos, e, sobretudo, entre primos, os quais podem vir a ser marido emulher, cunhados e cunhadas, e, no caso dos homens, eventualmente,companheiros de pescaria.

    Alm disso, no entanto, a histria de Juca Toms permite falar da His-tria. Graas ao seu modo de ligar a trajetria do personagem principal s

    vicissitudes locais e regionais, faz como a saga, que relata em termos depersonalidades, a histria de uma sociedade9. Alcana na verdade, at apoca dos viajantes naturalistas, alguns dos quais, como Darwin, Luccocke Saint-Hilaire, atravessaram a regio, quando Toms Velho e seus ir-mos j viviam beira da Lagoa de Maric.

    A histria de Juca Toms, a histria da sociedade dos povoados dalagoa, do ponto de vista de Zacarias. E, assim, permite vislumbrar todoum modo de vida, ordenando-o segundo determinados valores; em pri-

    meiro lugar, a prpria noo de famlia, base da sua construo interna,como o , tambm, da Islendinga Saga.

    Nascida da disposio mental vinculada famlia, ao cl, aos laosde sangue, ela construiu todo um universo a partir de uma rvoregenealgica...10. Exatamente o que acontece com a saga de Juca Toms,

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    tambm ela marcada pelos conflitos em torno da soberania, das mulhe-res e do patrimnio. Basta considerar os seus vrios dramas, a comearpor aquele que resultou da sucesso de Juca Toms.

    Hilrio, testamenteiro infiel, vale-se de uma dessas unidades elemen-tares em que a saga se cristaliza11, isto , de um ato verbal morto nofala para anular o ato verbal precedente de Juca Toms, sua repartioequnime da herana. Com isso, fere a noo de famlia, pois gera no seiodesta o dio, o rancor e, seno a vingana, pelo menos o desejo desta,manifestado na crena de que Hilrio tivera morte pronta e ruim por cau-sa dessa traio.

    O conflito de Juca Toms com seu irmo Simplcio tambm se d emtorno de um motivo clssico da saga o rapto de uma mulher, neste

    caso, Antonica. Consta que Juca Toms a teria levado para a casa-grande, ao seu servio. L comeara a seduzi-la, segundo parece, ensi-nando-lhe a pilar caf... Quando, no entanto, Antonica apareceu naZacarias, grvida de Henrique, Simplcio fez duras crticas ao irmo,tomando o partido do sogro (Saturnino) e fazendo coro s ameaas in-dignadas deste, comportamento que levou Maneco Toms a intervir nabriga em favor de Juca Toms.

    Esta atitude de Maneco Toms, por sua vez, ilustra a primazia da

    solidariedade interna do grupo de siblings, enquanto Simplcio opta pelaaliana de parentesco com seus afins, que so, no evento, seus tios esogros, primos e cunhados. Juca Toms foi pressionado para assumirresponsabilidade em relao a Antonica. Chegou-se a falar em dar partedo acontecido s autoridades. Diante disso, a crise se aprofundou. JucaToms ameaou expulsar a famlia de Saturnino da casa onde vivia,alegando que era propriedade sua. Maneco Toms tratou, ento, de pon-derar com o irmo mais velho (Simplcio) que, no sendo o pai da moa,

    no lhe cabia meter-se no assunto. Deveria, ao contrrio, esperar, confi-ando na capacidade de Juca Toms para encontrar uma soluo adequa-da, nos termos do costume.

    No faltam, assim, saga de Juca Toms, nem as querelas em torno dopatrimnio e das mulheres, nem as do adultrio, nem tampouco o sangue

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    derramado, ou misturado de forma problemtica, nas relaes incestuo-sas. Bastaria, neste sentido, recordar as acusaes veladas que pesavamsobre a ligao de Tobias e Milita, irmos que viviam como marido emulher, embora no tivessem como filhos seno os sobrinhos. Dizer queno mantinham relaes sexuais, soa como a busca de uma atenuante,para uma situao nada menos do que ambgua.

    A prpria questo j mencionada da soberania no est ausente.Quando Hilrio alega ter sido perfilhado por Juca Toms, invoca sua legi-timidade como primognito, como que atribuindo aos demais a condiode bastardia. E, desse modo, emerge o tema do adultrio, pecha que pesa-ria sobre todas as unies, menos aquela com Emlia Rosa. Assim, o quese procura estabelecer uma diferenciao de direitos entre a casa dos

    Marins de Emlia e as demais casas de Marins. Operao que, por suavez, repousava sobre o desconhecimento da prtica de Juca Toms, quandoem vida, isto , do seu esforo para proporcionar s diversas ramificaesde sua estirpe igual atendimento. Disposio manifesta no gesto verbaljusto de Juca Toms, ao deixar para cada uma de suas linhagens um qui-nho completo de casa, canoas, remos e redes, visando garantir sua autono-mia e posio de mtua equivalncia. Quando Hilrio nega uma partedesse quinho aos seus irmos, filhos de Antonica, no apenas se arro-

    ga uma soberania sobre o patrimnio do pai, mas tambm obriga essesirmos a, por sua vez, aceitarem subordinar-se a outro irmoMoozinho, primognito de Josefina, seu aliado, junto com ele, princi-pal caixeiro do armazm de Guaratiba e depois, como ele, dono de co-mrcio e pescarias, no seu povoado natal.

    Se verdade, no entanto, que as sagas tm na famlia o seu princpioconstrutivo principal, no menos verdade que as famlias em torno dasquais gira o seu entrecho, so sempre grupos cuja singularidade deriva, no

    s dos laos de sangue, mas tambm de uma inscrio prpria no espao.Se considerarmos, como Jolles, os personagens da saga islandesa no

    como noruegueses expatriados, nem tampouco como irlandeses, mascomo gente que habita tal colina ou tal enseada, no formando nem umimprio, nem uma nao, nem um Estado...12, veremos que o mesmo se

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    poder dizer desses pescadores que vivem no entorno da Lagoa de Maric.E embora os Marins no estejam apenas na Zacarias, e no sejam a nicafamlia do assentamento, pode-se dizer que constituem o seu mais densoncleo de parentesco, transformando-o, desse modo, no centro de gravi-dade dessa gente das areias.

    A histria de Juca Toms mostra como tudo isso aconteceu a partir dapoltica de casamentos de seu protagonista. Ao reconstruir a genealogiadeste, vai associando cada casa, ou famlia, a umlugar, configurando-se,pois, como narrativa de espao, graas qual se define o que ser, a partirdela, o teatro de aesdos Marins, em particular, Zacarias, povoado ao qualoriginariamente pertenciam e que passou a lhes pertencer, at os diasatuais; como stio apropriado13.

    3. Zacarias: um lugar bom para conviver

    Zacarias? Zacarias era o nome cristo de um ndio que morava aqui.Assim contavam os antigos. E assim se conta ao estrangeiro para exibiro conhecimento sobre as origens do lugar. Dessas origens, descobre ele,faz parte ainda a Fazenda de So Bento, em cujas terras havia-se consti-tudo o assentamento da Praia de Zacarias.

    Essa fazenda remontava, em suas origens, sesmaria concedida peloGoverno Rodrigo de Miranda Henriques aos beneditinos, em 31 de outu-bro de 1635. Desde ento, no fizera mais que crescer, sendo, j no finaldo sculo dezoito, uma das maiores da regio, embora o relatrio de MiguelAntunes Ferreira ao Marqus do Lavradio (1778), omita sua existncia,em virtude, talvez, das rixas entre aquele senhor de engenho e os frades14.

    Meio sculo depois vamos encontr-la a caminho do apogeu sob aadministrao de Frei Joo de S. Jos Paiva, ou Frei Joo Carapeba, como

    se tornou conhecido. Na segunda metade do sculo dezenove, tem parti-cipao destacada na grandeza rural de Maric, que chegou a contar qua-tro boas dezenas de fazendas15, a maioria de caf16.

    Durante sua poca urea, a Fazenda de So Bento, possua capela,engenho, senzalas, habitadas por algumas dezenas de escravos17, roas e

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    pastagens. Contava, alm disso, com algumas boas vivendas e, em seuscurrais, arrebanhava cerca de nove mil cabeas de gado. Seus hortos deaclimao eram famosos, incluindo canela, cravo da ndia, pimenta doReino e da Jamaica, noz moscada, baunilha, ch e sene, alm de outrasessncias preciosas, exticas e nacionais18.

    A vida parece ter sido farta, durante todo esse perodo no grande esta-belecimento rural, que compreendia 1.750 alqueires geomtricos, os quais,incluindo brejos e lagoas, abrangiam toda a faixa litornea de Maric, doAlto Moiro, em Itaipuau, at Ponta Negra, antiga Mariatiba, ao longode uma extenso de 36 quilmetros de praia19.

    Habitavam-no centenas de agregados e foreiros; muitos deles sitiantestradicionais (que mesma Fazenda pagavam seus arrendamentos)20,

    outros comerciantes, de armazm montado, outros, ainda, pescadores,no mar ou na lagoa.

    Com a morte de Frei Joo, comeou a decadncia. A responsabilidadedesta pode, em alguma medida, ser imputada inpcia dos administrado-res que lhe sucederam. O fator principal, no entanto, foi antes a crise daagricultura fluminense, motivada, sobretudo, pela abolio da escravatu-ra, cujos efeitos a proclamao da Repblica tratou de agravar.

    Antes disso, porm, a Fazenda passou para Dona Jordina Maria da

    Conceio, que obteve o domnio tilda mesma, em 1881, por aforamento,da Abadia de N.S. de MontSerrat do Rio de Janeiro.

    Em 1903, esse domnio foi adquirido pelo Cel. Joaquim Mariano l-vares de Castro Junior e Izabel Frana lvarez de Castro, sua mulher.Estes lograram transformar o domnio til emdomnio pleno, poucos anosdepois, em 27 de setembro de 1909. Com isso, os lvares de Castro, quej possuam a Fazenda do Flamengo e a Fazenda do Rio Fundo, torna-ram-se os maiores proprietrios de terras em Maric.

    Esse quinho veio ter s mos de seu herdeiro, o Doutor JoaquimMariano de Azevedo e Castro, pelo formal de partilha dos bens paternos,em 1936, ou seja, mais ou menos na mesma poca em que Juca Tomsfalecia, na casa grande de Guaratiba21.

    Pouco tempo mais permaneceu a Fazenda de So Bento da Lagoa em

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    poder desse herdeiro da aristocracia rural fluminense. Em 18 de novem-bro de 1943 era vendida Companhia Vidreira do Brasil (Covibra),estabelecida no Municpio de So Gonalo. Entre seus representantes natransao, como scio majoritrio, encontramos, finalmente, Lcio ThomFeteira, a quem, pouco depois, caberia a Fazenda como parte da massafalida dessa empresa, que durante esses anos extrara, dos antigos dom-nios do Mosteiro de So Bento, madeira para seus altos-fornos22.

    De todos os elos dessa sucesso, h registro na memria dos pescado-res da Praia da Zacarias. As reminiscncias da relao com a Fazendarecuam ao tempo dos beneditinos, tempo de muitas histrias, entre asquais destacamos a que segue, apoiada em narrativas ouvidas de antigosmoradores do lugar.

    Os mais velhos contavam isso. Quando queriam fazer umacasa, para um filho, ou uma filha, que estivessem casando,eles iam l na Fazenda, em trs ou quatro. Botavam roupa dedomingo. Iam de chapu, embaixo do sol forte, pela subidado caminho-das-tropas, esse que sai ali da Ponta do Capim.Cada um levava o seu basto, para ajudar na caminhada. svezes, era preciso espantar algum bicho ou matar uma cobra.

    Na Fazenda, os padres vinham perguntar - Por que vocsvm com esses paus? A o pessoal explicava. Os padres, en-to mandavam entrar, mas sem o bordo! Diziam, para dei-xar encostado na parede, do lado de fora. Depois, davam odescanso; comida, gua... coisa assim. Queriam saber comoiam as coisas. A conversa adiantava. No fim, o pessoal che-gava e perguntava se podia fazer uma casinha para o filho, oua filha, morar. Eles, ento, falavam que podia, mas que tinha

    que dar alguma coisa que fosse, um almoo de peixe, cadatanto. O pessoal prometia dar. Ento voltava para c, masficava indo l, levar a pescaria do sbado, para os padres. Eras isso a obrigao dos pescadores. Juca Toms, j no! Comotinha comrcio, pagava algum dinheiro aos padres, igual a

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    todo mundo que tinha venda na terra deles.Com Jordina continuou a mesma coisa. De primeiro ela mo-rava l com o padre. Depois ficou tudo para ela, no mesmosistema. Ela foi amigada com o Castro, parece, depois da mortedo padre. E foi ela que passou a Fazenda para ele, mais tarde.No tempo do Castro, o pessoal continuava indo l pedir li-cena para fazer as suas casas. Ele deixava, mas dizia sempreque tinha que dar alguma coisa para ele, porque ele pagava osimpostos por aquilo tudo. O pessoal, ento, concordava. Nopagavam com dinheiro, que ningum tinha, quase nunca, maslevavam peixe. E assim foi indo...Contam que certa vez o filho do Castro, o Joaquinzinho, veio

    pela restinga e no pde passar, porque encontrou o piquepara a abertura das guas. Genono, que era da Barra, ento,atravessou ele de canoa. Do outro lado, o Joaquinzinho per-guntou: - Quanto o seu trabalho? O Genono respondeu. -Seu Joaquim, o meu trabalho no custa nada. meu dever;dever nosso, atravessar. O filho do Castro ficou satisfeito,falou: - Pois de hoje em diante, se precisar de alguma coisa s mandar dizer l na Fazenda.

    Tempos depois, um tal de Hilrio-padeiro, morador da Barra,procurou Genono, porque queria fazer uma casa. Genono,ento, escreveu uma mensagem e disse a Hilrio: - Vai l noConvento e entrega essa carta, mas espera a resposta e me trazela. Hilrio fez tudo conforme o combinado e trouxe mensa-gem de volta. Genono leu e falou que ele podia fazer a casa...Por volta de 1939, a Vidreira comeou a andar por aqui23.Depois o Joaquinzinho veio e disse que ia vender para eles,

    mas que no tinha problema. Ele falou que a gente podiaficar, porque a Companhia s tinha interesse em cortar lenhapara a fbrica dela. Isso j era na poca da guerra. Depois oFeteira apareceu com a companheira dele, a cavalo... E disse

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    que era o novo dono. Mais adiante veio uma turma - oQueiroga, portugus, capataz da Companhia; Nilton, empre-gado do Feteira; o Doutor Francisco, advogado deles; o pre-sidente da Colnia [de pescadores], Francisco Sabino; e oChico Nogueira, que era fiscal da Prefeitura.Eles pararam na casa de comrcio de Moozinho. Falaramcom ele. Disseram que, ningum precisava ter medo. S iamabrir uma estrada, acompanhando o combro da lagoa, semmexer com os pescadores. Henrique , Incio, Domingos eEvaristo estavam l e ouviram a conversa. Mas, depois, veioo trator com o Queiroga na frente, comandando o traado. Acomearam os problemas...24

    Nessa histria, alude-se, pois, a todo o processo, durante o qual a Com-panhia se configurou como a grande ameaa continuidade do povoado,s casas e, para alm delas, parentela, enraizada no lugar.

    4. A casa dos Marins

    Tambm na Zacarias verifica-se uma dupla dimenso da casa. Ela exis-

    te, em primeiro lugar, sob a espcie do patrimnio stricto sensu. Significa,neste caso, o conjunto de bens materiais, agrupados em torno da edificaoque surge como a matriz de um determinado grupo domstico.

    Em segundo lugar, no entanto, designa as pessoas que constituem essegrupo, o qual se nutre e se reproduz graas a uma determinada forma demanejo desse patrimnio.

    Casano apenas engloba os dois significados, como ainda os articula entresi, enquanto associao de corpose bens. Quando uma casa consegue realizar

    plenamente essa complementaridade de patrimnioe descendncia, costuma ad-quirir uma inrcia. Comea a crescer, a multiplicar-se. Ao faz-lo vai absor-vendo outras casas, que no souberam ou no puderam imit-la.

    Essa inrcia d casa seu princpio dinmico. Fazendo-a expandir-se.Seu avano, porm, desperta sentimentos ambguos. Suas vtimas vem-

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    no com reservas, seno com ressentimento. Surgem as acusaes. E oconflito segue ao p.

    Ao mesmo tempo, o mpeto expansionista percebido como uma de-corrncia inelutvel do prprio ideal da fertilidade, cultivado por todos.E, desse modo, as eventuais resistncias ficam enfraquecidas.

    Assim, enquanto uns crescem, outros fenecem. O destino de cada grupodomstico, porm, a resultante de pelo menos trs variveis: cacife,sorte e habilidade. Seu xito depende, pois, do quinho recebido em he-rana, das vicissitudes de sua histria, bem como de sua melhor ou piorparticipao no jogo, isto , das estratgias que usa para aumentar seuprprio cacife.

    A prpria histria de Juca Toms permite exemplificar esse ponto. O

    ato notarial de que resultou o testamento de Jos Antonio Pinto deMarins (Juca Toms) significativo, antes de mais nada, pela sua concep-o inequvoca do patrimnio stricto sensu. Este abrange, no s a casaenquanto edificao, mas tambm canoas, redes e remos, isto , a pescaria.

    Ao destinar casae pescariaa cada um dos ramos de sua descendncia,Juca Toms lhes atribuiu seus respectivos quinhes. Deu, a cada um de-les, os bens imprescindveis vida e reproduo social.

    A idia da continuidade ocupara um lugar privilegiado nas preocupa-

    es derradeiras do patriarca. A prova disso est no que poderia ser ocoroamento e a sntese da expresso final de sua vontade: a recomenda-o aos seus herdeiros de que no brigassem entre si. De que valeriam,com efeito, casas, canoas, redes, remos... sem a correspondente fora pararesguard-los e, se possvel, multiplic-los? Um patrimnio no pode sub-sistir se no h quem o defenda, como observa Germaine Tillion, em suaanlise da sociedade mediterrnea25.

    Para haver guardies preciso, no entanto, que haja descendncia. E

    descendncia prole, que se faz, por sua vez, com alianas. Uma casa ,sobretudo, fecundidade. Fecundidade e poltica, como o prprio JucaToms se encarregara de demonstrar, no excluindo, pois, nem o casa-mento, nem a disputa, mas supondo ambos, como parte de suas estratgi-as de ampliao.

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    J se afirmou que a aliana matrimonial dos homens transforma uminimigo ou rival em parceiro, mantido distncia como um perigosoenvenenador26. No testamentode Juca Toms encontram-se, igualmente, addiva e o veneno, pois, afora os bens, deixa aos seus descendentes umarede de relaes, atuais e potenciais. Com ela, transmite-lhes a duplavirtualidade da aliana e do conflito. Deixa coisas, mas acrescenta-lhes oshomens, que ho de tomar conta delas. Estes, no entanto, podem, muitobem, entrar em competio, e mesmo provvel que o faam, seguindoditames inerentes ao sistema de relaes.

    Expanso e florescimento de uns, recuo e esterilidade de outros. Osprprios Marins so o melhor exemplo disso. Surgiram, como vimos, nomomento inaugural de sua futura pujana, do casamento de trs irmos,

    que viviam na Zacarias Delfino, Saturnino e Toms Velho, com trsirms - Ochica, Mariana e Rita, da Praia dos Neves, em So Jos doImbassa. Dois desses matrimnios redundaram em prole, enquanto o ter-ceiro permaneceu infecundo. Assim, o ramo de Delfino veio a extinguir-se, na medida em que os de Saturnino e Toms Velho prosperavam, numanova gerao.

    Um membro desta, entretanto, investiu na fecundidade e na polticamais que os outros. Foi precisamente Juca Toms, que desposou vrias

    mulheres, com as quais teve casa e filhos. Acrescentou, pois, ao patrimniodos Marins, bens e descendncia, multiplicando seu prprio cacife emface dos irmos e dos primos.

    Dois fatos merecem, neste sentido, ateno particular. O primeiro de-les o casamento com Antonica, filha de seus tios Saturnino e Mariana,e, portanto sua prima-irm. Nisso, alis, no fez seno seguir o exemplodo seu irmo mais velho, Simplcio, que se casara com Ins, irm deAntonica. Como na gerao anterior, um par de irmos casado com um

    par de irms. diferena daquela, no entanto, temos agora, a unir oscnjuges, no s o matrimnio, ou seja, o parentesco por afinidade, mas,tambm, os laos consangneos prximos, entre primos-irmos.

    O segundo fato importante surge quando Juca Toms compra a casa deseu tio Delfino, que no deixara herdeiros. Nela estabeleceu Josefina (Fini-

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    nha) com os filhos. Essa compra resolvera dois problemas, de uma s vez.Um deles de poltica, no seio da famlia, desfazendo a contigidade das casasde Fininha e Antonica, inoportuna, pois, as duas se hostilizavam cons-tantemente. O outro de ordem patrimonial. A casa de seu tio Delfino erapatrimnio dos Marins da gerao ascendente, recuperado para esses mes-mos Marins, como quinho de uma gerao descendente, embora colateral.

    O valor dessa casa, entretanto, no se reduzia sua condio de ativopatrimonial. Alm disso, pesava sobre ela o fato de ser uma das casasmais antigas do povoado. Delfino parece ter sido um homem prspero,pois chegara a ter dois escravos. E sua casa remontava primeira metadedo sculo dezenove, j existindo, ao que tudo indica, quando Darwinpercorreu a restinga de Maric.

    Em 1978, era habitada por Alcina, viva de Lcio Jos Marins, filhode Juca Toms com Josefina. O corpo original da casa sofrera acrscimos,mas continuava reconhecvel, atestando sua antigidade.

    Antiga era tambm a casa de Lilina. Henrique costumava apontar ocopiar da casa, segundo ele, talhado a canivete, por Juvenal, quando esteiniciara sua construo. Considerando seus acrscimos, um aps o outro,o velho pescador recordava a ocasio em que haviam sido feitos. De acordocom seus clculos, a edificao tinha-se originado h quase um sculo.

    No ano de 78, Lilina ainda era viva, e a casa continuava a mesma dostempos em que tinha sido comprada, por Juca Toms.

    Estas no eram, porm, as nicas casas antigas da Praia da Zacarias,nessa poca. Havia ainda a de Nia, que pertencera a Erotides Mar-ques, filho de Maneco Toms, casado com Ernestina Emilia Rosa, filhade Emilia Rosa com Juca Toms, outro Marins. Havia a de Miolo, Marinspelo seu pai Hilrio, e que fora de Lilica, irm de Juca Toms, e de cujasmos havia passado para Tobias e Milita, que a deixaram para Bibi,

    como eles, irm de Hilrio, e, portanto, tia de Miolo.Mximo Jos de Marins, alis Incio, filho de Simplcio e Ins,

    prima-irm deste, habitava, tambm, uma casa antiga. Antigas eramigualmente, as casas dos irmos de Incio: Candinha, Sizenando(Baque) Alcebades (Ginho), casado com Binha, sua prima-irm,

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    filha de Juca Toms com Fininha. Sildo Breve Marins, neto deArminda, irm de Juca Toms, era tambm proprietrio de uma dascasas antigas da Praia de Zacarias.

    Todas essas casas eram referidas e, sempre que possvel,indicadas ao etngrafo, que podia, portanto, acompanhar com osprprios olhos, cada passagem da leitura do espao construdo,quando este era invocado como testemunho.

    Alm delas, havia casas cuja ancestralidade se expressava at mesmoem seu modo de existncia, que era, a propriamente falar, espectral. Osmais velhos falavam delas. Apontavam lugares no espao e descreviam asconstrues. Falavam, naturalmente, do destino de cada uma. Quem ashavia construdo, quem as tinha habitado. Recapitulavam trajetrias, su-

    cesses, vicissitudes. Conheciam, caso a caso, no s o motivo de seudesaparecimento, como, ainda, a destinao dos seus restos27.

    Neste sentido, destacavam sempre os materiais que, oriundos de suademolio, tinham sido incorporados a outras casas. Talvez, por isso, pre-ferissem o termo desmanchar. Com efeito, mais do que destrudas, as casaseramdesfeitas, reduzindo-se aos seus componentes. Estes, por sua vez,eram reaproveitados, de acordo com os quinhes estabelecidos em cadaprocesso sucessrio. Uma casa podia, ento, transformar-se em vrias

    outras, ou em partes destas. A nova edificao, entretanto, incorporava,com os materiais, a memria da provenincia deles, apossando-se, parspro toto, da antiga vivenda e do vnculo genealgico nela fundado.

    Era como se no fosse possvel falar das famlias sem falar das casas, evice-versa, j que, para alm de si prprias, as casas corporificam e abran-gem um patrimnio mais amplo. Este, por sua vez, se reproduz, no tempoe no espao, como atesta o progressivo desdobramento das edificaes.

    Desse modo, surgem autnticos compounds agrupamentos domsti-

    cos em cujo recinto territorial residem, num determinado momento, vri-as famlias conjugais, resultantes da expanso de uma famlia. Um casalconvive a com filhos casados, eles mesmos j com prole. Algum filho ouirmo celibatrio pode, igualmente, fazer parte desse grupo; ou algumsobrinho ou afilhado, casado ou no.

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    Num mesmo recinto encontram-se, pois, de acordo com o desenvol-vimento do ciclo domstico, pais e filhos, irmos e irms, cunhados ecunhadas, tios e sobrinhos, sogro e sogra, com genros e noras. Todoseles tm parte no trabalho de aquisio, consolidao e expanso dopatrimnio, e, portanto, o direito de desfrut-lo. As decises de consu-mo no podem, por isso mesmo, restringir-se esfera dos indivduos oudas famlias conjugais, sendo, ao contrrio, em grande parte, o resultadode um processo de alocao e re-alocao de recursos, que envolve ogrupo domstico na sua totalidade.

    A economia desse grupo dedica-se, pois, a reproduzir e fazer frutifi-car essas duas formas distintas, porm complementares da casa: os bens eos corpos28. Assim, se a casa compreende o patrimnio, isto , um con-

    junto de bens materiais e simblicos, compreende, ao mesmo tempo, ocorpo, individual e coletivo, graas a cujo desenvolvimento o grupo ad-quire pertinncia, no tempo e no espao.

    A casa tem, neste sentido amplo, uma dupla dimenso. o lugar pr-prio do grupo, seu patrimnio, e o prprio grupo, enquanto princpiocoletivo de gesto desse patrimnio. A articulao dos seus membros gerasua durao pela fecundidade e o seu espao, atravs dos movimentosque executa no quotidiano para apropriar-se do meio onde vive. Co-resi-

    dncia e gesto coletiva so, portanto, seus princpios estruturais.A associao da famlia com o patrimnio no s inequvoca,

    como necessria. Isto no significa, porm, que esses grupos domsti-cos ampliados se comportem como mnadas. Vemos, ao contrrio, quea despeito de sua relativa autarquia e autonomia, encontram-se inseri-dos numa complexa rede de parentesco. E no seio desta que cadafamlia traa sua poltica de alianas.

    Para alcanar as peculiaridades dessa poltica, no entanto, preciso ter

    em mente, uma vez mais, a histria dos Marins. Ao consider-la sob esseaspecto, v-se que o casamento de trs irmos com trs irms deu origema uma gerao de primos paralelos. O casamento entre primos-irmos jse registra a, em dois casos, o de Simplcio e o de Juca Toms, que secasaram com duas irms, suas primas paralelas. A quantidade de primos-

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    irmos multiplicou-se, a partir dessa segunda gerao. E, na terceira, ocasamento entre primos paralelos continua freqente, acrescido, agora,em grande nmero, de matrimnios entre primos em segundo grau.

    Cada grupo de co-residentes surge, pois, como fruto dessa poltica dealianas, que confere ao recorte dos primos um valor privilegiado comouniverso das escolhas matrimoniais. divisibilidade do patrimnio pelaherana, opem-se, dessa forma, uma estratgia de reagrupamento dosbens pela refuso das linhas de descendncia, e/ou recuperao por com-pra do patrimnio alienado ou ameaado de alienao, como aconteceucom a casa de Delfino, por exemplo.

    Nem todos so igualmente bem sucedidos no desenvolvimento dessaestratgia. Alguns porque no se casam. Outros porque se casam, mas

    no tm filhos, ou perdem-nos, em virtude do matrimnio, para outrasfamlias, de outros assentamentos.

    A maioria, entretanto, casa-se, no s no prprio povoado, mas den-tro da grade genealgica dos Marins, tratando, dessa maneira, demaximizar um cacife material e simblico, gerado, mantido e multipli-cado no seio dessa famlia.

    No sempre que se consegue a mesma combinao feliz de patrimnioe fecundidade que foi a marca registrada de Juca Toms. Nesse jogo exis-

    tem perdedores e ganhadores. Talvez seja mesmo necessrio que um ramodos Marins se estiole, para que outro possa frutificar. Isso no impede,porm, que o patrimnio mais amplo do grupo seja acrescido.

    Basta olhar mais de perto a sociedade constituda por esses grupos do-msticos ampliados. V-se, ento, que feita, no s de pais e filhos; avse netos; sogros, genros e noras; tios e sobrinhos; irmos e irms; mas ainda,e sobretudo, por uma srie infindvel de filhos de irmos e primos, pass-veis de se associarem de mltiplas formas, pelos laos do parentesco.

    Esses primos, em vrios graus, podem ser esposos, cunhados econcunhados; compadres e comadres; sobrinhos dos mesmos tios e tiosdos mesmos sobrinhos; avs dos mesmos netos e netos dos mesmos avs.

    O povoado desenvolveu-se, pois, sombra de uma casa antiga a casados Marins, com seu patrimnio. Mas o que vem a ser esse patrimnio

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    seno o lugar chamado Zacarias, ao qual se associa o patrimnio comum, esua consagrao na histria/saga de Juca Toms? E no so, por acaso, estepatronmico e esta saga fontes de pretenses legtimas, de alianas e confli-tos? E no , portanto, o legado que Juca Toms soube representar de for-ma superlativa, que d a esse grupo sua configurao sociolgica peculiar?

    Diante dela, no entanto, como no evocar Le Play, fazendo referncia categoria tipolgica da famlia-tronco29? No seriam esses Marins aflorescncia de uma de suas possveis atualizaes? Nessa direo levam-nos alguns dos seus aspectos notveis:

    - o reconhecimento de um princpio de co-residncia, quepreside a formao dos grupos domsticos ampliados;

    - a estreita associao entre famlia e patrimnio, encontran-do-se este centrado na casasobretudo quando antiga;- uma economia que vincula casa e trabalho, conferindo-lheuma certa autarquia e autonomia;- seno a indivisibilidade do patrimnio, a tendncia a mant-lo e recomp-lo, absorvendo, sempre que possvel, os qui-nhes ancestrais ou colaterais que a esterilidade genealgicaameaa de alienao;

    - finalmente, o fato de serem os direitos, as obrigaes e osquinhes derivados do grupo domstico enquanto princpiode gesto coletiva desse patrimnio, transformando-o emncleo e fonte de uma ordem consuetudinria.

    Cada casacompreenderia, neste sentido, no s um determinado cacife,mas uma dinmica que visa conserv-lo, multiplic-lo e redistribu-lo,aumentado, aos descendentes. Alm disso, teria de contar com a sorte; e

    no apenas com esta, mas, tambm, com a habilidade daqueles que aencabeam, responsveis pelo delineamento de suas estratgias de multi-plicao dos corpos e dos bens.

    Quanto aos primeiros, contam, sobretudo, os movimentos no tabuleiro dagenealogia. E o que se verifica, nesse caso, o predomnio, no s do casa-

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    mento entre nativos do povoado, como tambm a preferncia pela alianacom primos. Aliana tanto mais forte quanto mais prximos os aliados.

    Talvez advenha da a inclinao para considerar o grupo, em seu con-junto, como uma sociedade de primos, maneira do que j se fez para aspopulaes ribeirinhas do Mediterrneo europeu30. Nesse rumo apontamfatos tais como:

    - a constatada endogamia familiar, com base na freqnciados casamentos entre primos, em graus muito prximos;- a endogamia territorial, com cerca de 70% das unies entrenativos do lugar31;- a tendncia a evitar, o mais possvel, qualquer diminuio

    do patrimnio;- por fim, o predomnio da administrao sobre a posse dopatrimnio, como se o titular deste fosse, apenas, uma esp-cie de fidei comisso.

    Em sntese, temos ento a um sistema de relaes de parentesco quefavorece a fuso das linhas colaterais atravs de suas estratgias de alian-a matrimonial e, por intermdio dessa fuso, ou do resgate por compra,

    favorece tambm sucessivos reagrupamentos do patrimnio.No de somenos importncia a constatao de que se tratava, na

    maioria dessas alianas pelo casamento, de casos interditos pela ordemlegal. O direito cannico, por exemplo, proibia, no s o casamento emlinha reta, at o infinito, mas, tambm, na linha lateral, at o terceiro grauinclusive. Isto , primos-irmos estavam impedidos de contrair matrim-nio; primos em segundo grau, da mesma forma.

    O parentesco por afinidade, na Zacarias, entretanto, desconsiderava

    tais proibies. Incorria, alm disso, em vnculos onde se verificavamultiplicidade de impedimento, como no caso de se casarem dois irmoscom duas irms, e dois primos com duas primas, ou, ainda, quando ospais de uma das partes so primos entre si, sendo tambm, primos os quese pretendem casar32.

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    O decreto n. 181 de 24 de janeiro de 1890, com o qual a Repblicainstaura o estatuto do casamento civil, no acompanhou as disposiesda legislao cannica quanto aos impedimentos. Foi muito menosrestritivo, proibindo, apenas, por parentesco, o casamento entre ascen-dentes e descendentes, e entre irmos. S impedia, portanto, o matrim-nio entre aqueles graus aos quais a igreja catlica no concedia dispensaem caso algum33.

    As causas cannicas em funo das quais o casamento entre grauscolaterais prximos era permitido, compreendiam, entre outras, a angustialoci. Esta, em sua forma absoluta ou relativa, ocorrida quando:no lugarde origem ou ainda de domiclio, (...) o parentesco da mulher est propa-gado de tal sorte, que lhe no possvel encontrar outrem (de igual con-

    dio quanto gerao, famlia e costumes) com quem se case, senoconsangneo ou afim, e lhe por demais penoso abandonar a ptria34.

    Com esse argumento, e com a nova ordem jurdica republicana, tor-nou-se possvel, no s resolver a angstia do desterro, mas dar coberturalegal a uma poltica de casamentos preocupada, desde antes, com ques-tes de patrimnio, pois no provvel que as estratgias matrimoniaisvigentes fossem ditadas, exclusivamente, pelo isolamento. Os matrim-nios contrados entre nativos de Zacarias e gente de outros assentamen-

    tos, localizados nos arredores, parecem infirmar esta hiptese.V-se, ao contrrio, que a famlia, enquanto, princpio de gesto cole-

    tiva do patrimnio, toma corpo, na sua extenso mxima a dos Marins quando se defronta, por assim dizer, com o estrangeiro. Este constituiuma ameaa, sempre que o celibato, o matrimnio estril, ou a decisoindividual, abrem a possibilidade de alienao de bens at ento manti-dos no seio da famlia.

    Em seu aspecto mais abrangente, esse patrimnio o prprio povoa-

    do. A equao entre a casa dos Marins e o assentamento da Praia daZacarias, revela-se, sem deixar margem a dvidas, na oposio dos Marins Companhia, quando esta tenta desloc-los do lugar. nesse momentoque Zacarias surge como aldeia de irredutveis, isto , locusprprio daquelesque no admitem a reduo de seu patrimnio.

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    E no precisamente isso que a Companhia intenta, quando pressionaos pescadores, seja pela intimidao pura e simples, seja pela seduo, nosentido de abandonarem suas casas e o lugar, em troca de um ttulo depropriedade na Vila dos Pescadores?

    Compreende-se, ento, melhor do que nunca, a hierarquia moralestabelecida entre os que se renderam, os que se venderam, e os que luta-ram. O que estes ltimos reprovam nos anteriores , seja a passividade,seja a aliana com o estrangeiro (gente de fora). Tanto uma quanto aoutra abrem claros no tecido da sociedade de primos.

    Para os que se renderam, vale o princpio de que no existe quanti-dade social e politicamente neutra, no seio de uma comunidade. Os quese venderam, no entanto, so vistos como traidores, pois trocaram sua

    afiliao e posio no povoado, como se fossem bens possudos a ttuloindividual, isto , mercadorias passveis de uma troca vantajosa.

    Seja como for, em qualquer dos casos, tal comportamento dupla-mente ameaador, pois ao mesmo tempo em que avilta os valores funda-mentais do grupo, cria perigosas lacunas no plano da morfologia social.Lacunas territoriais, demogrficas e genealgicas.

    Os claros abertos no espao do assentamento so enclaves da Compa-nhia. Constituem, pois, uma ameaa ao patrimnio dos Marins em sua

    dimenso fsica. Subtraem-lhe terrenos e casas. E se tornam virtuais ca-beas-de-ponte para uma futura ocupao por esse temvel adversrio.

    Ao mesmo tempo, esgaram a rede de parentesco, no somente por-que a ciso de que resultam semeia a discrdia, mas porque rarefazem amassa da parentela, roubando-lhe parte considervel de suas foras e al-ternativas de aliana. Com isso, fica afetada a densidade demogrfica,genealgica e moral do grupo, que perde capacidade de retaliao e vposta em dvida a sua legitimidade como sede da casa antigados Marins.

    J no final dos anos cinqenta, o conflito A luta do Tosto con-tra o Milho entre Zacarias e o empreendimento imobilirio era de-clarado. Os problemas vinham de antes. O relatrio de Lejeune deOliveira registrava, desde 1955, a expulso de pescadores de seus tra-dicionais assentamentos35.

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    Duas dcadas mais foram necessrias, entretanto, para que os mora-dores da Praia de Zacarias recorressem a uma ao coletiva no campo daordem legal. Houve processos isolados, como o de Lcio Jos de Marinse de Assis Marques, anteriores a essa poca. S em 1979, porm, umgrupo de trinta e sete pessoas, entre homens e mulheres, impetrou ummandato proibitriocontra a SEAI - Sociedade de Exploraes Agrcolas eIndustriais, S.A., solicitando garantias contra a turbao e/ou esbulhopossessrio, que julgavam iminentes dada a ao da Companhia, cujoscio majoritrio era Lucio Thom Feteira.

    Dos impetrantes, dezoito (18) tm o sobrenome Marins, oito (8) assi-nam da Costa, dois (2) Marques, os demais: Correia (1), Baptista (1), daRocha(1), da Rosa(1), dos Anjos(2), Cordeiro(1), do Amparo(1) e Gonalves

    (1). Os dois Marques so, na verdade, Marins, descendentes de ManecoToms, por seu filho Erotides (Joca). Correia Marins por parte de me,(Benjamin Beco), filho de Lilina. Cordeiro casada com um Marins(Henrique), primognito de Juca Toms com Antonica. Baptista nomede casada de uma Marins, neta de Antonica, atravs de seu filhoPrelidiano (Mucinho). Os da Costaso ligados aos Marins, por laos deafinidade, em vrios casos.

    O sobrenome do Amparo de Altina, casada com Joo Pedro da Costa.

    Suas filhas Nga e Lioca, contraram matrimnio com dois Marins:Nga com Mucinho, filho de Juca Toms e Antonica; e Liocacom Baque, filho de Simplcio e Ins, estes, primos paralelos bilaterais,j que filhos de dois irmos (Toms Velho e Saturnino) que se casaramcom duas irms (Rita e Mariana de Jesus). A outra filha de Saturnino Jona (ngela), era casada com Sarico (Agrpio Luis da Costa), filhode Manuel Lus da Costa e Arminda, sendo esta irm de Juca Toms, umaMarins, portanto.

    O da Rochapertence a Oscarino, filho de Norvia, irm de Lcio, sen-do, pois, filha de Juca Toms com Fininha. Oscarino, entretanto, ca-sado com Dilma, que irm de Pu (o caputda ao judicial), e, tam-bm, de Tuguesa (Dilce), mulher de Cia, o qual era filho de Hilrioe Qussa; de Cenira36; de Ari; de Damio, casado com Ldia, filha de

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    Beco (Correia), e neta de Lilina; e de Gracinha, casada com Fran-cisco (Gonalves) - um nordestino.

    Esses trinta e sete alegam sua condio de pescadores e/ou famliasde pescadores, ameaadas na tranqilidade da sua posse, exercida animusdomini, h muitos anos, pelo projeto de urbanizao da Cidade de SoBento da Lagoa: A ameaa se concretiza pela colocao de tratores naderrubada de elevaes prximas, abertura de caminhos entre as casas aliconstrudas, em evidente tentativa de esbulh-los de sua posse37.

    O arrazoado qualifica as aes da SEAI de arroubos megalmanos,acusando-a de, com a expulso intentada, impossibilitar o exerccio pro-fissional dos impetrantes.

    A Contestao da impetrada afirma poder documentar sua proprieda-

    de, mediante ttulos que, sem soluo de continuidade, vo at o sculoXVII, ainda ao tempo de D. Joo VI (sic)38. Quanto aos habitantes, alegater-se ocupado dos aspectos sociais e humanos dos verdadeiros pesca-dores que trabalhavam em Zacarias, oferecendo-lhes 46 casas(construdas com todos os requisitos) com ttulos de propriedade (in-teiramente de graa), na Vila dos Pescadores39. Ao mesmo tempo, afir-ma uma distino entre antigos arrendatrios ou moradores e pessoasque considera intrusas na propriedade, preocupadas com impedir a legi-

    tima urbanizao da rea, em prejuzo no s dos interesses da S.E.A.I,mas de todo o Municpio de Maric40.

    Quanto posse invocada pelos Autores da ao, desqualifica-a, emtermos contundentes:

    So alegaes desacompanhadas de um simples documento(...) proclamam-se os Autores possuidores de lotes de terra.Que lotes? Que medidas? Que confrontaes? Tudo vago

    como o infinito.Aludem a uma entidade imaginria que intitulam Colniade Pesca Artesanal da Praia de Zacarias. Qual a sua perso-nalidade jurdica? Dir-se-ia um disco voador querendo Inter-dito Proibitrio para aterrissar em terreno particular e alheio41.

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    Outro argumento de peso invoca, em apoio do que chama a posseconsciente e responsvel sobre toda rea da Fazenda [de So Bento daLagoa], o fato de ter a Companhia investido, sem interrupo,vultosssimos capitais em obras voltadas para o saneamento, o urbanismoe o progressoda regio42.

    Finalmente, apela-se para o prprio projeto da Cidade de So Bentoda Lagoa, bem como para a legitimidade de seu principal mentor, avalistada excelncia dessa... grande obra que dar ao Municpio de Maric oprivilgio de um recanto primoroso, talvez uma Miami em miniatura, conce-bido pela exmia arquiteta - urbanista Maria Elisa Costa sob a supervisodo professor Lcio Costa43.

    Os laudos periciais que representam, respectivamente, o Juzo e a R,

    parecem coincidir neste ponto, tanto quanto nos demais. De acordo coma perspectiva de seus autores, ambos engenheiros44, a situao que seconfigura a seguinte:

    1. Os pescadores no possuem quaisquer ttulos capazes de lhes asse-gurar, seja a posse seja a propriedade dos seus terrenos;

    2. No podem sequer reivindicar as benfeitorias, feitas sem autoriza-o do legtimo proprietrio Lucio Thom Feteira45;

    3. O projeto da Cidade de So Bento da Lagoa abrange a rea de Zacarias,

    e sua execuo implica, necessariamente, na retirada dos imveis;4. As rsticas casas deveriam ceder lugar a um hotel de luxo, fruto

    do esprito de empreendimento de um homem com muita f, humano ecorajoso, que se dispusera a investir em regio to adversa;

    5. Os moradores dessas casas s teriam a ganhar com isso, obtendo, deuma s vez, lotes urbanizados, casas de alvenaria, escritura quitada e luzeltrica, tudo que no tinham e deveriam, em s conscincia, prezar. E auma distncia de 500 metros dali, ou seja, na Vila dos Pescadores.

    Diante disso, a persistncia de no quererem mudar-se para melhorsituao como legtimos proprietrios de suas casas e terras, no podeparecer aos olhos do perito, seno o capricho de alguns, tanto mais irraci-onal, quando contrastado com a atitude dos sensatos: bem verdadeque muitos aceitaram e hoje vivem felizes [na Vila dos Pescadores], no

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    entanto outros, ou por equvoco, ou porque se acham enganados, estoimpedindo o progresso e a melhoria das condies de vida dos seus fi-lhos, dando-lhes outras opes de trabalho46.

    Esta ltima parte do argumento , talvez, a mais insidiosa. Acusa deretrgrados todos aqueles que no aceitam deslocar-se para as casas novas.Ao mesmo tempo, pretende caracteriz-los como insolidrios para com aprpria descendncia, comprometendo, desse modo, o futuro de seus su-cessores. Finalmente, semeia a ciznia, jogando os contemporneos unscontra os outros. Sua maior arma, neste sentido, o progressocomo tlosabrangente e inquestionvel, encarnado, para todos os efeitos, pela cida-de e por tudo que com ela se relaciona.

    Tudo que se ope a essas convices adquire, ipso facto, o carter de insen-

    satez. Com efeito, como pode algum se opor melhoria das condies devida, preferindo permanecer na estagnao e no subdesenvolvimento?

    4. Concluses: sobre a memria, a histria oral e a vindicao

    de direitos

    A etnografia que configura nosso caso exemplar, gira em torno da his-tria de uma famlia que, com seus dramas e conflitos, internos e exter-

    nos, ao longo de seis geraes, participa da histria local, construindo-se,no apenas com suas aes, mas tambm com as narrativas que seentretecem em sua memria.

    Como toda e qualquer saga, a de Juca Toms e dos Marins compreen-de uma srie de episdios em cujo centro se encontram questes relativasao patrimnio. A forma, no entanto, pela qual tais episdios so docu-mentados essencialmente oral e consiste na sua elaborao e recorda-o por meio de narrativas.

    Essas narrativas se referem gnese, transmisso e eventual cessao dedireitos com suas correspondentes obrigaes. Neste sentido, todas as narra-tivas apresentadas dizem respeito a um ou mais desses pontos e o fazem comum propsito que ultrapassa o simples registro de carter memorialista.

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    nosso ponto de vista que todas essas narrativas tm um cartervindicatrio, quer dizer, relatam os embates criados em torno do patrimniopor ameaas, endgenas ou exgenas, ao mesmo.

    Um exemplo das primeiras encontra-se no que, com certa improprie-dade, chamamos de ato notarial, em que Juca Toms dispe, in articulomortis, dos bens sob sua guarda. Ao contar a histria de Hilrio, caracte-rizando-o como testamenteiro infiel, um dos ramos de sua famlia assina-la o esbulho de que se considera vtima. Atravs da referncia desqualificao das palavras do moribundo (morto no fala) exige o(re-)conhecimento de um direito. Assim, reivindica a validade do ditoe,com ela, a legitimidade de suas pretenses, desistindo embora de haveros bens em questo pela via da ao judicial, talvez em virtude de um

    clculo onde os custos sociais de tal intento adquirem um peso conside-rvel, com a provvel ciso da parentela.

    A histria dos trs Marins casados com trs irms, tal como a histriade Juca Toms e suas seis mulheres, tambm elas ultrapassam o nvel dasimples memria genealgica. Servem para atestar, seja a antigidade dafamlia, seja sua preeminncia na Praia da Zacarias.

    O relato de Baque e Ginho, remontando s narrativas de Incio(Mximo), sobre as idas Fazenda de So Bento, para obter dos padres

    a autorizao de construir casas para seus descendentes, quando estes secasavam, tem igualmente aspecto de vindicao. Para convencer-se dis-to, basta considerar como a se historia e legitima a ocupao do lugar,dando conta da aquisio do direito de moradia e das obrigaes corres-pondentes devidas aos proprietrios da Fazenda, fosse a Ordem de SoBento, a viva Jordina ou a famlia Alvares de Castro. Que esta ltimaseguiu a prtica de autorizar a moradia, revela a histria da gratido dojovem Castro para com Genono, conferindo-lhe o privilgio de intercessor.

    Finalmente, a histria da primeira visita de Lcio Thom Feteira restinga e ao povoado, por sua vez, registra a palavra empenhada peloempresrio, diante de testemunhas, de que os pescadores podiam conti-nuar morando no local. Com a narrativa reivindica-se, pois, a legitimida-

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    de da permanncia na Praia da Zacarias, ao mesmo tempo em que sereclama a validade do pronunciamento de Feteira.

    Em todas as narrativas se do a conhecer direitos, rememorando amaneira pela qual foram adquiridos, para justific-los, defend-los e plei-tear sua manuteno.

    Contra isso invoca-se o documento escrito ou a ausncia dele. Dessemodo, os advogados representantes da Companhia, reivindicam para adocumentao lavrada em cartrio o privilgio exclusivo da evidncialegal, descartando o que chamamos de narrativas vindicatriascomo pre-tenses to infundadas quanto bizarras (Dir-se-ia um disco voador querendoInterdito Proibitrio para aterrissar em terreno particular e alheio.).

    Marcel Mauss, entretanto, assinalava que no h oposio necessria

    entre direito escrito e direito costumeiro, pois este ltimo no deixa de tersuas frmulas, sejam eles provrbios, adgios, mximas ou etiquetas.Pretender que tudo se codifique e/ou deduza das codificaes racional-mente constitudas ingenuidade ou arrogncia, ou as duas coisas.

    Da sua concluso Il faudra donc chercher le droit un peu partout47. Con-cluso que fazemos tambm nossa, com o pressuposto fundamentado deque as narrativas coletadas na etnografia da Zacarias devem ser entendi-das como o registro (e, portanto, documento) oral de gestos verbais

    instauradores e legitimadores de direitos, com plena validade para atestare fundamentar a reivindicao dos mesmos.

    Notas1. Turner, 1985:74. An Antropological Approach of the Icelandic Saga, originalmente inBeidelman,1971.2. Formas Simples, 1976:60-82.3. Cf. idem, ibidem: 61.4. Idem, ibidem: 62.

    5. Cf. Turner, 1985: 83.6. Jolles, 1976: 68.7. Cf. Turner, 1985: 91.8. Jolles, 1976: 68.9. Cf. Turner, 1985: 90.10. Cf. Jolles, 1976: 76.11. Cf. Jolles, 1976: 74.

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    12. Cf. Jolles, 1976: 68.13. Para o papel fundacional das narrativas de espao, ver Jolles, 1976: 68.14. Cf. Figueiredo, 1952: 41. O relatrio faz referncia, apenas, existncia de 5 engenhos reais.15. Figueiredo, idem: 47.16. Havia ainda, 13 engenhos de acar e aguardente.

    17. Cf. Figueiredo, 1952: 62. Em 1833 j trabalhavam na fazenda 41 escravos.18. Cf. Figueiredo, idem: 63.19. Cf. Figueiredo, idem: 62.20. Figueiredo, idem, ibidem.21. O Formal de partilhaest datado de 27/04/1936, quatro meses antes da morte de Juca Toms,portanto.22. As informaes sobre a cadeia sucessria constam da escritura de compra e venda da Fazenda deSo Bento lavrada no cartrio de So Gonalo em 8/11/1943.23. Em 1942 chegou a correr um arrendamento da Fazenda a Joaquim Martins (portugus,solteiro, maior, industrial, que cedeu os seus direitos Covibra, por ocasio da venda efetuada em

    1943.24. Depoimento de Prelidiano Jos de Marins (Mucinho) e Alcebiades Jos de Marins (Ginho),em 19/09/1992 e 02/10/1992, respectivamente. (G/N).25. Cf. Tillion, [1966] 1967: 92.26. Cf. Heusch, 1978: 208.27. Cf. Vogel & Mello, 1984.28. Certeau, 1980:116.29. Le Play apudBarreto, R. & Willems, E. (1940:61-66). Flandrin, J-L.. (1976: cap. II); Goody, J./et al. (1978: 84-85).30. Tillion [1966]1967.31. Em 1985, dos 37 matrimnios estabelecidos na Zacarias, 25 eram de pessoas nascidas e criadas

    ali mesmo.32. Cf. Concilium Plenarium Brasiliense. 1939: 218 (art.9), 220, 223 e 225.33. Cf. Macedo Soares, 1909: 21.34. Cf. Concilium Plenarium Brasiliense, 1939: 255.35. A propsito, ver Oliveira, 1955: 214.36. As irms Dilce e Cenira tiveram suas casas postas abaixo por injuno da Companhia, emepisdios marcados pela violncia, amplamente divulgados pelos jornais.37. Cf. fols. 5 do mandado proibitrio de 10 de maio de 1979. Os fatos em causa foram confirmadospelo perito do Juzo, s fls. 26 do seu relatrio de 25/05/80.38. Contestao fls. 3. (10.08.79).

    39. 34 pescadores, com as respectivas famlias, ter-se-iam mudado para l, segundo a Contestao.40. Cf. fls. 5, da Contestao.41. Cf. fls. 2 e 3 da Contestao.42. So estas as categorias explcitas utilizadas na Contestao. (fls. 4).43. Cf. fls. 4 da Contestao (grifo nosso).44. Srgio Antonio Abunahman (CREA Nr. 1445-D/RJ) e Adolfo Almeida de Aguiar (CREA Nr.4022-D/RJ). Os laudos so datados de 25/05/80 e 03/06/80.

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    45. A percia estabelece que a rea em questo, Zacarias, no pertence S.E.A.I, mas ao seu sciomajoritrio.46. Cf. laudo do perito da R, s fls. 3.47. Mauss,1947: 113.

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    ResumoTomando como ponto de partida a histria de Juca Toms, espcie de

    heri epnimo da praia de Zacarias, e a memria oral dos habitantes des-se assentamento de pescadores da Lagoa Grande de Maric, pretende-serefletir sobre as implicaes da convivncia problemtica de formas defundamentao e transmisso de direitos, explicitadas no antagonismoentre as narrativas vindicatrias e a tradio cartorial, advinda das for-mas escriturrias.

    Palavras-chaveFundamentao de direitos, transmisso de patrimnio, oralidade e

    escritura, memria e narrativa.

    AbstractThe history of Juca Toms eponymous heroe of Zacarias beach as

    well as the oral memories of the fishing settlement in the Lagoa Grandede Maric provide a reflection on the implications of the complex intimacybetween fundamentation and transmission of rights, which arise from thevindictive narrative and the notary public tradition.

    Key-wordsFundamentation of rights, transmission of property, orality and write,

    memory and narrative.