“não vou mais lavar os pratos” de cristiane sobral
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IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas
Universidade Estadual do Piauí – UESPI
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O DISCURSO AFROFEMININO EM “NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS” DE CRISTIANE SOBRAL
Rita de Cássia Barros Assunção (FAI / SEMEDUC)1
RESUMO
Não vou mais lavar os pratos de Cristiane Sobral constitui-se numa coletânea de
poemas já publicados nos Cadernos Negros. A obra traz, em grande parte de seus
poemas, a combinação da construção da identidade negra feminina com um discurso da
resistência. Essa resistência é percebida, principalmente, quando a autora tematiza a
condição feminina da mulher negra nas relações de gênero e nas relações com a
sociedade. Objetivamos, nessa análise, averiguar como o eu enunciador, através de um
discurso da resistência afrofeminino, constrói a identidade da mulher negra. Para essa
análise, utilizaremos teóricos como Zygmunt Bauman (2004) Norman Fairclough
(2001), entre outros estudiosos. O método a ser utilizado na análise será o crítico-
analítico em que se tomará como suporte os conceitos de identidade de Bauman, as
considerações acerca da construção do discurso de Fairclough, as formas de resistência
negra e os problemas das relações de gênero na concepção de um eu enunciador
subversivo em “Não vou mais lavar os pratos” de Cristiane Sobral no qual a autora
busca desconstruir os modelos preconcebidos sobre a mulher negra na sociedade atual.
Palavras-Chave: Cristiane Sobral. Discurso afrofeminino. Identidade Negra.
ABSTRACT
The colletion of poems Não vou mais lavar os pratos of Cristiane Sobral what gather
poems already published in Cadernos Negros, brings, largely of your poems combine
of construction feminine black identity with the discuss of the resistance. That
resistance is realize, mainly, when the author discuss about feminine condition of the
black woman in the gender relations and in relations with society. We aims, in this
analysis, to determine like the I of the feminine black speech through of the resistance ,
like made the identity black woman. In this analysis, will use authors Zygmunt Bauman
(2004) Norman Fairclough (2001), and others. The method used in the analysis is
1Mestre em Letras pela Universidade Federal do Piauí - UFPI. Professora e Coordenadora do Núcleo de
Pesquisa, Produção e Divulgação Científica da Faculdade do Vale do Itapecuru – FAI. Coordenadora da
área de Língua Portuguesa da Secretaria Municipal de Educação de Caxias. E-mail:
ISBN: 978-85-8320-162-5
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critical and analytical based in concept of the identity of the Buman, the concept about
discuss of the Fairclough, the forms of the resistance and gender relations in the
conception subversive broadcasters subject in Não vou mais lavar os pratos of Cristiane
Sobral which author want deconstruct the conceptions about black woman.
KEYWORDS: Cristiane Sobral. Feminine black speech. Black Identity.
1 INTRODUÇÃO
Cristiane Sobral, atriz, escritora e poeta brasileira, estreou na literatura em 2000
publicando nos Cadernos Negros; possui peças teatrais, poesia e contos. No seu
percurso de formação acadêmica e literária, foi a primeira mulher negra a ganhar o
título acadêmico em Interpretação Teatral na Universidade de Brasília.
Em Não vou mais lavar os pratos (2011), primeiro livro publicado da autora, há
a consolidação de suas vertentes ideológicas e de suas políticas sociais engajadas no
qual se exprime principalmente como mulher negra. A obra, que traz no cerne do título
o caráter da negação e da resistência aos padrões socialmente e esteticamente impostos
às mulheres negras, apresenta a concepção de Sobral a respeito da necessidade de se
firmar uma identidade negra e de se fazer reconhecer como negro ou negra. Esse
compromisso assumido pela autora e transformado em bandeira de luta é manifestado
em muitos poemas do livro como “Não vou mais lavar os pratos”, “Fratricídio”,
“Pixaim Elétrico”, “Escova Progressiva”, “Cuidado”, “Lente de Contato” entre outros.
Nesses poemas, a autora discute temas relacionados ao cotidiano como a
condição da mulher, as relações de gênero e a afrodescendência direcionados
intencionalmente à problematização da raça.
A literatura de Sobral, nessa obra, apresenta-se investida, sobretudo, de
compromisso social tratando de assuntos concernentes à mulher negra, ao preconceito
com o negro, enfim, uma preocupação com a construção de uma identidade negra
autêntica e sem máscaras. Entretanto, para se compreender a necessidade de se fazer
uma literatura negra que dê visibilidade ao negro enquanto sujeito e não enquanto
objeto dos trejeitos culturais, deve-se visualizar a Literatura Brasileira como um todo
para se perceber como a mulher negra foi representada e cercada de estereotipias.
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2 A MULHER NEGRA NA LITERATURA BRASILEIRA
Quando se fala na condição ou na forma como a mulher negra é ou foi
representada na literatura, há que se pensar em duas vertentes: na mulher negra
enquanto personagem e enquanto escritora.
Enquanto personagem, em grande parte dos textos literários escritos por homens
desde os primórdios da literatura brasileira, a mulher negra, oriunda da diáspora
africana, aparece representada sob a égide de uma visão estereotipada e reificada do
homem branco de visão eurocêntrica: “branca para casar, preta para trabalhar, mulata
para fornicar”. Segundo Eduardo Assis Duarte
[essa] doxa patriarcal herdada dos tempos coloniais inscreve a figura
da mulher presente no imaginário masculino brasileiro e a repassa à
ficção e à poesia de inúmeros autores. Expressa na condição de dito
popular, a sentença ganha foros de veredicto e se recobre daquela
autoridade vinculada a um saber que parece provir diretamente da
natureza das coisas e do mundo, nunca de uma ordenação social e
cultural traduzida em discurso (2009, p. 6).
Assim, vítima dessa visão estigmatizada, a mulata, povoou o imaginário
masculino, social e literário como lasciva, erótica, sensual sendo associada à ideia de
“animal erótico por excelência, desprovida de razão ou sensibilidade mais acuradas,
confinada ao império dos sentidos e às artimanhas e trejeitos da sedução” (DUARTE,
2009, p. 6). Contudo, ao lado dessa concepção em relação à mulata, impera um
paradoxo de cunho biológico: a infertilidade. Depreende-se, nesse sentido, que ela está
disponível para o prazer carnal, mas não para a maternidade.
Assis Duarte em seu artigo “Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade”
publicado na Revista Terra Roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários (2009),
demonstra que do Barroco ao século XX a literatura canônica a marcou com o signo da
sexualidade e da esterilidade. Apesar de ganharem mais versos que as senhoras e
donzelas brancas como comprovou Assis Duarte, as mulheres de peles morenas dos
poemas de Gregório de Matos são representadas por uma “semântica erótica que fazem
cintilar as fantasias sexuais do homem branco.
Ao longo de centenas de textos, o poeta enfatiza essa redução à esfera
carnal ao vincular a mulher afrodescendente ao desregramento e à
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promiscuidade. E o faz submetendo muitas vezes tais personagens a
um vocabulário chulo, em que o corpo e a intimidade femininos
surgem inscritos no mais baixo calão. As opções verbais, próximas até
do grotesco, expressam os part pris norteadores da perspectiva
autoral, voltada para a desumanização que opõe “cor” a
“entendimento”. Sem este último, e sem um código de conduta que ao
menos a aproxime da sociabilidade ostentada pela mulher da classe
senhorial, a escrava é reduzida a signo cujo sentido permanece
prisioneiro de um discurso em que racismo e sexismo se emparelham
em definitivo e remetem a uma organização social em que o modo de
produção escravista dá o tom dos valores e comportamentos
(DUARTE, 2009, p. 7).
No século XIX, apesar de todo o romantismo de nossos poetas e romancistas, o
estereótipo da mulher negra continua, reforçado, agora, pelo tráfico negreiro e pela
chegada da Corte Portuguesa ao Brasil que trazia a supremacia da dominação branca e
europeia. Duarte menciona que em Alencar, por exemplo, permanece a visão
etnocêntrica e dicotômica que divide as mulheres em “anjos louros” e “morenas
ardentes” (2009, p. 8). Em O Cortiço de Aluísio de Azevedo, sem barreiras e sem
limites, o sensualismo da mulata surge desenfreadamente encarnado na figura de Rita
Baiana. Segundo Duarte
Eros e thanatos se associam em sua composição dramática, fazendo-a
se destacar pelos “meneios” de uma “graça irresistível, simples,
primitiva”, que dão destaque à sexualidade animalesca pela qual o
signo da serpente se inscreve na cadeia semântica da mulher (2009, p.
9).
Na representação de Rita Baiana, mulata avassaladora dos corações dos pais de
família, o autor cristaliza as imagens de erotismo e de infertilidade da mulher negra.
Isso comprova, segundo Duarte, que “O Cortiço alia o preconceito incrustado
historicamente com o pensamento hegemônico em seu tempo, que celebrava o mito da
hierarquia entre as raças” (2009, p. 10). No século XX, esse paradigma também se
repete. O pesquisador destaca as mulatas das obras de Jorge Amado como Gabriela,
cravo e canela, Teresa Batista, Tieta do Agreste entre outras e também as personagens
representadas por Guimarães Rosa no conto “a estória de Lélio e Lina” de Corpo de
Baile.
Nesse itinerário, vê-se que a construção da imagem da mulher negra resvala no
universo dicotômico e excludente da hegemonia masculina e branca. Compreende-se,
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portanto, no limiar dessas representações que a literatura considerada canônica nesses
séculos, esteve a serviço do apagamento da contribuição africana para a formação da
sociedade brasileira.
Em contraposição a esse cenário embrutecido pelas amarras sociais, lânguido e
grotesco aos olhos dos afrodescendentes, manifesta-se, ainda no século XIX, uma voz
de desconstrução desse estereótipo, Luís Gama, em Trovas burlescas de Getulino de
1859. Duarte destaca que esse autor “dá à mulher negra outra configuração, a que não
faltam beleza física, encanto e simpatia” (2009, p. 13).
Para o pesquisador, a afroidentificação do poeta leva à mulher negra a figurar no
plano lírico-amoroso isento de erotismo vulgar e estéril. Machado de Assis é outra voz
que soa contra o preconceito e o erotismo vulgar de poetas e romancistas
disseminadores desse modelo. Como cita Duarte, no poema “Sabina” e no conto “Pai
contra mãe”, Machado de Assis problematiza a situação escravagista que perdura na
sociedade e que impõe aos negros à subordinação ao senhor. Seus textos também se
apresentam livres da visão reducionista e sexista que condena a mulher negra.
Dois autores ainda podem ser citados: Lima Barreto e Solano Trindade. O
primeiro, em meados do século XX, diferentemente dos supracitados autores de visão
racista e sexista, aborda o relacionamento inter-racial de forma respeitosa e humanizada
como se pode comprovar no conto “Clara dos Anjos”. O segundo, também na esteira
dos compadecidos e incomodados com a situação e o tratamento dado às mulheres
negras, sua poesia é marcada principalmente pela crítica e denúncia social.
Toda essa representação da mulher negra fabricada e cristalizada na literatura
brasileira através da ótica masculina está sendo desconstruída através de um
compromisso sociopolítico e ideológico compartilhado por mulheres negras e escritoras.
Essa desconstrução de paradigmas e a construção de uma identidade afrofeminina
através da literatura tornam-se possíveis graças à publicação dos Cadernos Negros e à
organização do grupo Quilombhoje que dá visibilidade literária a autores e autoras
negros marginalizados dentre eles Conceição Evaristo, Mirian Alves, Lia Vieira,
Esmeralda Ribeiro, Cristiane Sobral e tantas outras mais. Essas mulheres negras, agora
sujeitos de sua própria história, agora com um olhar feminino afroidentificado e não
mais com a ótica masculina, podem problematizar, no texto literário, diversos temas que
incidem sobre a condição da mulher negra na sociedade, destacando, sobretudo, a luta e
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a resistência dela. E de forma positiva e não mais negativa, discutem a sexualidade
feminina sem tabus nem preconceitos, o prazer da maternidade tão inerente à condição
de ser mulher, as relações de gênero, o erotismo e a africanidade. Promulgam, nesse
contexto, a liberdade de expressão, a crítica e a autoafirmação. Nas palavras de Ana
Rita Santiago,
Escritores negros não apenas apropriam-se da palavra poética para
(des)contar o passado histórico de negros. Eles utilizam a LN
[Literatura Negra] também para provocar a sociedade brasileira
quanto às relações étnicorraciais; para afirmar que a lógica do
consumo, que sustenta os postulados e negócios da sociedade do
espetáculo, define a comercialização de identidades negras, a partir de
uma exposição, por vezes, unificadora e estereotipada, de elementos e
vivências culturais homogêneas, fixas e sem dinamismo, inerente aos
entrecruzamentos da vida em trânsito (2012, p. 141).
Com esse perfil de autoafirmação, de afroidentificação e da construção de um
discurso engajado com a africanidade, destacamos Cristiane Sobral com o livro Não vou
mais lavar os pratos, cuja análise, veremos a seguir.
3 O DISCURSO AFROFEMININO EM “NÃO VOU MAIS LAVAR OS
PRATOS” DE CRISTIANE SOBRAL
O discurso afrofeminino de Cristiane Sobral se consolida em muitos poemas do
livro Não vou mais lavar os pratos, entretanto, daremos enfoque à apenas alguns deles
como o poema que dá título ao livro “Não vou mais lavar os pratos”, “Lente de
Contato”, “Cuidado”, “Escova Progressiva”, “Fratricídio” e “Pixaim elétrico”.
“Não vou mais lavar os pratos” é um dos poemas mais representativos do grito
de liberdade da mulher nas relações de gênero que a autora ressalta no livro. O poema
revela a mudança de atitude da mulher em relação ao companheiro a partir do momento
em que passa a tomar consciência de seu papel na relação e na sociedade através da
leitura:
Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar as poeiras dos móveis
Sinto muito. Comecei a ler.
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira.
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
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Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos,
A estética dos traços, a ética, [...] (SOBRAL, 2011, p. 23)
A leitura, para o eu enunciador, consubstancia-se na via de libertação e de
resistência aos discursos instituídos por uma sociedade de valores falocêntricos e
brancos que destinam o espaço doméstico exclusivamente para a mulher. Tomemos nota
ainda, que o título do poema também remete, em primeira instância, a uma posição
social a que a mulher negra, durante muito tempo, esteve submetida – o trabalho
doméstico. O trabalho, que era executado mecanicamente, passa ser objeto de reflexão
filosófica quando o enunciador do discurso destaca ter percebido “a estética dos pratos,
a estética dos traços” e, por fim, “a ética”. Com essa percepção filosófica, o discurso do
texto transforma-se em um discurso da resistência e também da construção de uma
identidade de gênero, uma vez que o relacionamento com o companheiro passa a ser
questionado e a ser negado nas condições em que se apresenta.
Agora que comecei a ler, quero entender
O porquê, por quê? E o porquê
Existem coisas. Eu li, e li, e li. Eu até sorrir
E deixei o feijão queimar...
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto
Considere que os tempos agora são outros... (SOBRAL, 2011, p. 23)
Para Fairclough, a mudança envolve formas de transgressão, o cruzamento de
fronteiras, tais como a reunião de convenções existentes em novas combinações (2001,
p. 127). Nesse sentido, o eu lírico do poema subverte as convenções maritais e
domésticas com ações transgressoras como deixar o feijão queimar para se fazer
perceber pelo outro e se fazer ouvir numa tentativa de questionar os padrões pré-
estabelecidos. No trecho,
Resolvi ficar um tempo comigo
Resolvi ler sobre o que se passa conosco
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi,
Você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto
Desalfabetizou
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá para cá
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis
(SOBRAL, 2011, p. 24).
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O questionamento das relações de gênero confirma o que é dito por Fairclough,
pois o eu lírico cruza as fronteiras do seu relacionamento e busca construir uma
identidade de gênero através do discurso da negação e da resistência.
Manuel Castells em O poder da identidade (1999, p. 24) se refere a três formas e
origens da construção de identidades: a identidade legitimadora introduzida pelas
instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua
dominação como ocorre com os estereótipos; a identidade de resistência criada por
atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela
lógica da dominação construindo assim, trincheiras de resistência e de sobrevivência e a
identidade de projeto que é produzida quando os atores sociais constroem uma
identidade capaz de redefinir uma posição na sociedade como é o caso do feminismo.
Nesse poema de Sobral, pode-se perceber a ocorrência desses três tipos de
identidade: antes de ler e de pensar sobre seu papel na sociedade, o eu lírico legitimava
sua identidade como mulher presa a convenções sociais; após começar a ler, toma
consciência dessa dominação e passa a resistir através da transgressão; com um discurso
da resistência produz uma identidade de projeto quando diz:
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar
Meu tênis do seu sapato,
Minha gaveta das suas gravatas
Meu perfume do seu cheiro
Minha tela da sua moldura
Sendo assim, não lavo mais nada,
E olho a sujeira no fundo do copo.
Sempre chega o momento
De sacudir, de investir, de traduzir
Não lavo mais pratos
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo,
Em letras tamanho 18, espaço duplo (SOBRAL, 2011, p. 24).
Além do poema “Não vou mais lavar os pratos” que tematicamente trata das
relações de gênero, há no livro outros poemas que também consubstanciam um discurso
da resistência voltado mais especificamente para a construção de uma identidade de
mulher reconhecidamente negra. É o que se pode perceber nos seguintes poemas:
Lente de Contato
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[...]
Sou negra
Estou aqui diante dos seus olhos
Esperando você despir o seu preconceito,
Pra gente encontrar um jeito de ser feliz
Ah, o meu cabelo natural, isento de culpa,
Vai bem obrigada
[..] (SOBRAL , 2011, p. 71)
Cuidado
Eu vou falar do nosso cabelo
Eu vou falar de tudo o que fazem tentando o sucesso
Eu vou falar porque isso acaba com a gente
Primeiro aparecem uns pentes frágeis
Impossíveis às nossas madeixas
Depois apontam para um padrão que nunca poderemos ter
Ficamos condenados à indiferença e à exclusão (Sobral, 2011, p. 74).
[...]
Nos poemas “Lente de contato” e “Cuidado”, o eu lírico ao se assumir como
mulher negra, toma o seu cabelo, um dos principais ícones da negritude e também um
dos principais alvos de bullying e de preconceito na sociedade, como cetro, como
representação maior da reversão de valores impelidos ao cabelo do negro. Reforçando o
caráter positivo do seu cabelo como marca de identidade afrofeminina, o eu lírico critica
o padrão de beleza impelido às mulheres que não possuem cabelos lisos.
A enunciação do texto revela a postura político-identitária assumida por Sobral
em disseminar a ideia de que é preciso combater o preconceito e fugir das amarras
sociais provedoras da indiferença e da exclusão. O cabelo afro, para a autora, é símbolo
de resistência identitária e resistência cultural. A citação de Bauman, no que concerne à
construção de identidade negra da mulher, endossa o discurso afrofeminino de Sobral:
a identidade escolhida e preferida é contraposta, principalmente, às
obstinadas sobras das identidades antigas, abandonadas e abominadas,
escolhidas ou impostas no passado. As pressões de outras identidades,
maquinadas e impostas (estereótipos, estigmas, rótulos), promovidas
por forças inimigas, são enfrentadas e – caso se vença a batalha –
repelidas (2005, p. 45).
No poema “Escova progressiva”, e “Pixaim elétrico”, novamente é o cabelo o
elemento identitário. Em “Escova progressiva”, parodiando o poema “Poética” de
Manuel Bandeira, a autora solta um grito de protesto contra os processos de alisamento
químico que nada mais são do que identidades impelidas como menciona Bauman
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(2005). E, na contramão dessa pressão social, a autora reivindica para si o cabelo pixaim
como marca de enfretamento e de empoderamento da mulher negra. Com isso, reafirma
sua negritude, conforme se vê nos poemas abaixo:
Escova Progressiva
Se a raiz é agressiva
Escova progressiva
[...]
Eu tenho medo do formol
[...]
Abaixo a chapinha
No cabelo da neguinha
(SOBRAL, 2011, p. 88)
Pixaim elétrico
Naquele dia
meu pixaim elétrico gritava alto
Provocava sem alisar ninguém
Meu cabelo estava cheio de si
[...]
Soltei os grampos e segui, de cara pro vento, bem desaforada
Sem esconder volumes nem negar raízes
(SOBRAL, 2011, p. 81)
Chama à atenção que, de forma bem contemporânea, os versos sobralinos se
encontram com um universo bastante comum a todas as mulheres e jovens em formação
identitária – o universo da moda. Nesse sentido, percebemos que, de certa forma, esses
poemas podem cumprir uma função social e pedagógica ao atingir um público-leitor
considerável, principalmente se for utilizado nas escolas.
No poema abaixo, vê-se fortemente o discurso de pertencimento do eu lírico à
africanidade e, como a grande maioria daqueles que se declaram negros, também
condena a mestiçagem como forma de burlar a negritude. Nos versos “o mestiço não é
nem o sim nem o não, é o talvez / Mentira!” / “meu sangue negro corrói a hipocrisia
parda”, confirma-se o posicionamento do eu lírico em condenar essa denominação
“parda” que alguns negros tomam para si ao invés de se autoidentificarem como negros.
Fratricídio
Corrupção preta dói demais
[...]
Separe todos os matizes da negritude brasileira
Desintegre todas as identidades
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[...]
O mestiço não é nem o sim nem o não, é o talvez
Mentira!
Sou negra
Meus dentes brancos trituram qualquer
privilégio retinto
Meu sangue negro corrói a hipocrisia parda
Mela o mito da democracia racial (Sobral, 2011,
p. 72)
A problematização da questão racial nesse poema é demasiadamente interessante
porque, de um ponto de vista bem social, condena a negação da negritude ao mesmo
tempo em que nega também o mito da democracia racial disseminado por Gilberto
Freyre.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cristiane Sobral em Não vou mais lavar os pratos proclama o compromisso
sociopolítico e histórico de produzir uma literatura afrodescendente em que o eu lírico
assume a postura de pertencimento e de construção de uma identidade de mulher negra.
Na construção desse projeto, Sobral utiliza uma linguagem feminina generificada para
falar de seus desejos ou angústias de mulher e um discurso instituinte da africanidade,
principalmente empenhado na desconstrução de valores africanos estereotipados
disseminados como pejorativos pelo discurso hegemônico.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. 2. ed. Tradução de Klauss Brandini
Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
DUARTE, Eduardo Assis. Mulheres marcadas: Literatura, gênero, etnicidade. In:
CORRÊA, Alamir Aquino (org.). Terra Roxa e outras terras: Revista de Estudos
Literários. Vol. 17-A. dez- 2009. Disponível em:
httpp://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol17A/TRvol17Asum.pdf. Acesso:
27/12/2015.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de
Brasília, 2001.
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SANTIAGO, Ana Rita. Vozes Literárias de Escritoras Negras. Cruz das Almas: UFRB,
2012
SOBRAL, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. 2.ed. Coleção Oi Poema. Dulcina
Editora: Brasília, 2011.