Na Onda do Surf Adaptado
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Transcript of Na Onda do Surf Adaptado
Mariana Pedroso
Um trabalho sobre surf e inclusão social
surf adaptado
Na onda do
Atibaia, SP2011
Mariana Pedroso
surf adaptado
Na onda do
Um trabalho sobre surf e inclusão social
Sob a orientação do Prof. Ms. Elizeu do Nascimento Silva
Para toda a comunidade do surf.Aloha!
Agradecimentos
Primeiramente, quero agradecer a Deus por me proteger nos dias de chuva, e me
orientar quando tudo parecia perdido. Ao meu avô, Mauro, por ter feito parte da minha
vida e me ajudado a ser quem eu sou hoje. Ao meu pai e melhor amigo, Sergio, por me
ensinar a amar o oceano e aproveitar a vida, por seu carinho e companheirismo durante
todo este percurso. À minha mãe e melhor amiga, Suzete, por dividir comigo sua paixão
pelos livros e pela arte, por seu amor incondicional e incomensurável.
Muito obrigada também aos meus dois irmãos, Henrique e Letícia, meus grandes amigos
e companheiros de quarto, por todas as risadas, brigas, noites em claro assistindo
desenho e tudo o que faz parte da rotina vivida entre irmãos. Ao meu namorado querido,
Diogo, por me acompanhar nas viagens, rir e enlouquecer junto comigo, pelo seu amor
sem tamanho e por sua dedicação sem fim. À minha avó, Rosina, e à minha madrinha,
Aurea, por vibrarem com todas as minhas vitórias e preencherem meu coração de
carinho. Aos meus dois mais novos irmãos, meus cunhados Mayara e Henrique, por
comemorarem cada etapa vencida.
Quero agradecer também aos meus sogros, Antônio e Helena, e à minha querida
cunhada Juliana, pelo carinho e preocupação. À Manuelle Fontes Nogueira, e à
eterna equipe da BR22, Estevão Vernalha, Luiz Beltrami e Carol Serreto, pela chance que me deram
e pela amizade construída em pouco mais de um ano de trabalho. Aos amigos, tios e primos, que
acompanharam de perto a loucura da estudante que vos fala, no ano do TCC.
Obrigada aos mestres da FAAT Faculdades, Osni Dias, Giuliano Tosin, José Roberto Gonçalves, William
Araújo, Flávia Amaral e Moriti Neto, por dividirem seu conhecimento comigo nesse último ano de
curso. Ao meu querido orientador, o professor Ms. Elizeu do Nascimento Silva, pela grande ajuda
e parceria nessa empreitada. À Melina Souza, pela gentileza de me ajudar com a realização deste
trabalho.
Por último quero agradecer aos surfistas Valdemir Corrêa, Henrique Saraiva, Andre Souza, Alcino
Neto, Monique Oliveira, Octaviano Taiu Bueno, Gabriel Cristiano, Ricardo Tatuí e Robledo de Oliveira,
aos educadores físicos Francisco Araña, Eduardo da Silveira, Luana Nobre e Renato Bissolotti, aos
psicólogos Yara Pedroso, Leandro Kruszielski e Mariú Casselli, ao shaper Neco Carbone, a Miguel Jorge,
da HT Surf, a Gary Blanschke, da Disabled Surfers Association, a Ricardo Gonzalez, do Instituto “Novo
Ser”, ao jornalista Antonio Zanella, à deputada federal Mara Gabrilli, aos fotógrafos Bruno Lemos, Elza
Albuquerque, Diana Bueno, Fabio Minduim, Regina Tolomei e Felipe Tolomei, ao ilustrador Stewardt
Alex Perius, e às produtoras de “Aloha”, Paula Luana Maia e Carol Araújo, por tornarem esse sonho
meu possível.
9
Índice
Apresentação .................................................................................................................11
Nota da Autora: Eu tenho; não porto! .................................................................... 13
Prefácio ...........................................................................................................................17
Introdução: Um Breve Mergulho na História do Surf Adaptado .................... 20
Capítulo 1: Heróis ........................................................................................................ 32
Transformação.................................................................................................36
Inclusão que não Exclui .................................................................................41
Diferenças Invisíveis .......................................................................................47
Surf e Saúde .....................................................................................................56
Aspectos Psicológicos .....................................................................................59
Capítulo 2: Anjos na Praia ........................................................................................68
Surfistas e Professores ................................................................................... 73
Especialização .................................................................................................80
Surfando com ONGS e Escolas de Surf .....................................................88
Responsabilidade Social ...............................................................................95
Alunos de Ouro ...............................................................................................115
10
Capítulo 3: Guerreiros das Ondas ..........................................................................128
Vitória ............................................................................................................... 132
Prancha Adaptada ........................................................................................138
Muito Trabalho.............................................................................................. 140
Tecnologia a Favor das Ondas ................................................................... 148
Equipamentos Adaptados ...........................................................................154
Praia para Todos ............................................................................................162
Corpo Adaptado ........................................................................................... 169
Capítulo 4: Um Aloha à Inclusão .......................................................................... 180
Mais Surfe Aqui .............................................................................................183
Amizade e Parceria....................................................................................... 189
Sociedade Deficiente .................................................................................... 194
Juntos ..............................................................................................................205
Considerações Finais..................................................................................................211
Posfácio .........................................................................................................................216
Bibliografia ..................................................................................................................218
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Apresentação
Surfar.
No dicionário, o verbo originário da palavra surf, cujo significado é “rebentação das ondas”, se refere ao ato de “deslizar sobre a onda, da crista até a base , fazendo uso de uma prancha”.
Mas, para algumas pessoas, surfar é mais do que isso: representa um estilo de vida, o contato com a natureza, e principalmente, a chance de ser sentir incluído, aceito e respeitado.
Na Onda do Surf Adaptado, de Mariana Vasconcellos Pedroso, é um livro-reportagem sobre surf para pessoas com deficiência.
Baseado em entrevistas e relatos de praticantes da modalidade, surfistas profissionais, educadores físicos, psicólogos e representantes de ONGs, a obra tem o objetivo de retratar a realidade do esporte, e apresentar os benefícios físicos, emocionais e psicológicos proporcionados pelo mesmo.
Sob orientação do professor Ms. Elizeu do Nascimento Silva, este livro é parte-integrante do Projeto Experimental da aluna, requisito parcial para a formação em Jornalismo, na FAAT Faculdades.
11
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Nota da Autora:Eu tenho; não porto!
Quando comecei a escrever este livro, em maio de 2011, a minha maior
dificuldade foi encontrar o termo correto para me referir aos personagens que
ilustrariam o projeto.
Depois de muita pesquisa e leitura, me deparei com quatro possibilidades:
portadores de deficiência, deficientes, portadores de necessidades especiais e
pessoas com deficiência.
Num primeiro momento, a segunda opção não me agradou muito: o termo
soou-me segregador1 e ofensivo. Além disso, de acordo com um pequeno
manual elaborado pela Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência,
intitulado “Toque aos Jornalistas”, a palavra “deficiente” não deve ser usada
como substantivo, por passar a impressão de que a pessoa inteira é deficiente.
Já a terceira opção, “portadores de necessidades especiais” pareceu-me
excessivamente piedosa, como se desmerecesse as coisas incríveis que estas
pessoas podem fazer.
1 Aquilo ou aquele que segrega, que separa nitidamente a fim de isolar ou evitar contato.
14
Adotei então, o termo “portadores de deficiência”, que a priori, me parecia
apropriado. Entretanto, durante a finalização do texto, comecei a me
questionar se havia feito a melhor escolha e voltei a buscar respostas.
De fato, os autores que encontrei têm opiniões muito divergentes, e a maioria
construiu suas impressões com base em experiências muito pessoais.
Entretanto, o texto de Ricardo de Melo, deficiente visual e autor do blog
“Movimento Livre”, chamou a minha atenção para detalhes que eu não havia
percebido e com os quais me identifiquei de imediato.
“[...] Eu não porto minha deficiência como uma carteira ou uma
chave. Eu não tenho a opção de deixá-la em casa. Quando saio de
casa verifico se minhas chaves estão no bolso, se estou
levando meu cartão de transporte público, meus óculos escuros e
meu celular. Se eu portasse minha deficiência, eu provavelmente a
esqueceria debaixo das almofadas da sala, de propósito.”
(Melo, 2011)
15
Para a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Governo do Estado de
São Paulo, é importante ressaltar também que crer que deficiência é antônimo de
eficiência, é o mesmo que considerar as pessoas com deficiência menos capazes.
Sendo assim, resolvi adotar o termo “pessoas com deficiência”, que curiosamente,
foi citado pela maioria dos entrevistados na fase de produção do livro. Segundo
um artigo publicado no “Jornal Conversa Pessoal”, da Secretaria de Recursos
Humanos do Senado Federal, o termo adotado pelo livro, não esconde ou camufla
a deficiência. Pelo contrário: mostra com dignidade a realidade das pessoas, e
valoriza as diferenças e necessidades decorrentes da deficiência2.
Sabe-se que a discussão aqui apresentada, se arrasta desde o início dos tempos,
porque ninguém nunca soube ao certo a forma correta para se referir a uma
pessoa com deficiência. Por isso, destaco desde já que o objetivo dessa pequena
análise introdutória não é julgar o certo ou o errado, nem ditar quais termos
devem ser adotados daqui para frente, e sim, apresentar a escolha no contexto do
livro, e justificar porque eu acredito ser o termo “pessoas com deficiência” o que
melhor se adapta ao meu trabalho.
2 JORNAL CONVERSA PESSOAL. Como chamar as pessoas com deficiência? Disponível em: http://www.senado.gov.br/portaldoservidor/jornal/jornal70/utilidade_publica_pessoas_deficiencia.aspx. Acessado em: 26 de out. de 2011.
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Prefácio
Aloha! Conhecemos Mariana Pedroso no começo da produção deste livro. E quando ela nos convidou a
escrever o prefácio, foi uma honra.
Quando conhecemos o primeiro surfista adaptado e logo após, conhecemos a história do surf
adaptado, mergulhamos de cabeça na ideia. No começo, para meninas que não surfam, costumam
andar de all star e não curtem ir à praia, conhecer e trabalhar com o surf foi uma experiência bem
diferente. Mas quando se trabalha com afinco, independente dos gostos, a pessoa passa a vivê-los como
se vivenciasse tudo aquilo. O conhecer, as histórias e o surf adaptado, não nos tornaram viciadas em
praia, não nos fez aprender a surfar, mas nos trouxe tanta bagagem e experiências maravilhosas, que
só quem passou e passa algumas horas ao lado deles, sabe como é. É indescritível a sensação de poder
dizer o quão eles são impressionantes.
O que é surf adaptado? Surf adaptado é a modalidade surf, só que adaptada à necessidade de cada
um. Na verdade, é mais que isso. É um momento de união; pessoas com o mesmo propósito, deslizando
sobre a mesma onda. É amor, é paixão. Sabe aquela sensação, de ver o nascer do sol na praia,
esperando a onda crescer? É disso que estou falando. Surf é vida!
Se surf é vida, surf adaptado é superação. Ver o mundo com olhos de surfista é ver o mundo em
igualdade. Todas as pessoas são diferentes. Cada uma com a sua crença, os seus ensinamentos, os seus
18
costumes. Mas, é no mar que a liberdade se encontra. A onda sela a amizade com um belo “drop”.
Depois de todos os acontecimentos da vida, você encontra o surf e, com ele, esquece de todos os
problemas. Surfando você pode ser o Kelly Slater, o Mineirinho... Ou pode ser o Val, o Henrique,
o Taiu... mais que personagens, estrelas/autores da própria historia, que encontraram no surf, o
caminho para a superação. Vocês estão prestes a mergulhar numa onda, que cresce a cada dia. E
notarão que, nesta mesma onda, existem vários surfistas com o mesmo propósito: surfar!
Falar de surf, em geral, nos passa pela cabeça: praia, mar, sol e aquele dia perfeito; surfistas bronzeados
com suas pranchas, de diferentes tamanhos, para diferentes modalidades; curtindo o mar, a natureza,
junto com os amigos. Falar de surf é como se ao fundo, tocasse a música de Jack Johnson, com as notas
soando perfeitamente dentro de nossa mente. O surf adaptado não é muito diferente disso. Pois cada
surfista, leva sua prancha de diferentes tamanhos, para que cada um possa surfar, cada um do seu
jeito; e mesmo assim, juntos.
O livro “Na onda do Surf Adaptado” entra no mar, vai remando para dentro da história do surf e
apresenta histórias surpreendentes de surfistas adaptados. É um momento de conexão com eles, o
momento que nos sentimos junto a eles deslizando sobre as ondas, e curtindo cada momento que o
surf pode nos possibilitar. Trip com amigos. Muita música e onda boa. Isso é surf! Quem vai dizer o
que é impossível? Mahalo!
Paula Luana Maia e Carol Araújo
“Eu posso não ser totalmente perfeito, mas algumas partes de mim são realmente excelentes”.Ashleigh Brilliant
20
Um breve mergulho na história do
surf adaptado
A surfista Monique Oliveira, surfando em uma praia no Rio. Foto: Regina Tolomei
20
2121
P or volta de 1778, um capitão da marinha
britânica,chamado James Cook, desembarcou
com sua tripulação na distante Polinésia
Francesa. Em meio a praias coralinas e arquipélagos de
origem vulcânica, o capitão observou a ilha e seus habitantes,
até descobrir um curioso ritual dos pescadores locais: eles
deslizavam sobre as ondas, em pranchas feitas de madeira
tirada das árvores nativas1.
O relato dos homens que surfavam no oceano foi publicado em
“As Três Viagens ao Redor do Mundo: Diários de 1768 a 1780”,
uma edição rara de 418 páginas. No mesmo ano em que a
França perdia Jean Jaques Rosseau e Voltaire, o mundo ganhava
o surf, uma atividade ao ar livre que se consagraria no Havaí,
anos mais tarde.
1 HERÓDOTO. Brevíssima História do Surf. Disponível em: http://herodoto4.blogspot.com/2005/04/brevssima-histria-do-surf.html. Acessado em: 27 de jun. de 2011.
22
Naquela época, o costume polinésio estava fortemente atrelado a
questões religiosas e cada etapa do ritual era dedicada aos deuses.
Por isso, em 1800, a atividade praticada no mar foi interpretada como
heresia e proibida por um grupo de missionários protestantes2.
Foi só um século depois, quando o surf já era praticado no Havaí, que a
modalidade passou de costume de locais à atividade esportiva. Grande
parte dessa transformação teve participação e incentivo do nadador
olímpico Duke Paoa Kahanamoku, que venceu os Jogos Olímpicos de
Estocolmo, em 1912, e declarou ser surfista, despertando o interesse de
pessoas do mundo inteiro3.
2 HERÓDOTO. Brevíssima História do Surf. Disponível em: http://herodoto4.blogspot.com/2005/04/brevssima-histria-do-surf.html. Acessado em: 27 de jun. de 2011.3 WIKIPEDIA. Surfe. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Surfe. Acessado em: 26 de out. de 2011.
23
24
Assim, o estado do Havaí, localizado em
um arquipélago do Oceano Pacífico, ficou
mundialmente conhecido como o lar do surf4.
E de repente, na Califórnia, o esporte das ondas
virou mania entre jovens e adolescentes.
Na tentativa de arrebatar a melhor onda, homens e
mulheres se metiam no mar, carregando pranchas
de até 80 quilos. Foi só em 1934, com a criatividade
do salva-vidas Thomas Edward Blake, que a
prancha rústica de madeira foi aperfeiçoada,
ganhando leveza e um acessório: a quilha5.
Diz à lenda que Tom perguntou ao comandante de
um barco de competição para que servia o “skeg”
(quilha). O comandante, por sua vez, teria dito
que era para ajudar a estabilizar o barco durante
4 WIKIPEDIA. Duke Kahanamoku. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Duke_Kahanamoku. Acessado em: 26 de out. de 2011.5 KADGIEN, Thomas F. Oberst. A História das Quilhas. Disponível em: http://heenalu.com.br/blog/?p=24. Acessado em: 26 de out. de 2011
25
jogadas duras. De acordo com Kadgien, um dia, Tom
achou um barco abandonado na praia e não pensou duas
vezes: arrancou a quilha, modificou-a e colocou-a em sua
prancha de surf.
A criação dessa prancha inovadora aconteceu cinco
anos antes da Segunda Guerra Mundial, o conflito entre
nações que deixaria um grande número de mortos e uma
quantidade incontável de soldados com algum tipo de
deficiência6.
Enquanto a comunidade médica trabalhava para
desenvolver atividades físicas que pudessem ser
praticadas pelos homens que serviram na guerra, do
lado de fora dos hospitais, a história do surf ia sendo
construída. Thomas Riitscher Júnior, Margot Riitscher,
Osmar Gonçalves, João Roberto Suplicy Hafers e Júlio Putz
6 NOBRE, Luana Fransolino. História do Esporte Adaptado. Disponível em: http://www.adaptsurf.org.br/documentos/hist%C3%B3ria_do_surf_sdaptado.pdf. Acessado em: 30 de mar. de 2011.
26
foram um dos primeiros surfistas a pegar onda no país7.
Já Parreira, coronel da Aeronáutica reformado, foi o primeiro a
ter uma fábrica de pranchas no Brasil: a São Conrado Plásticos
Ltda, e um dos únicos a importar poliuretano, numa época em
que o planeta vivia o caos pós-guerra.
Mas, nem tudo foram flores. E se, por um lado, as pranchas
iam sendo aprimoradas para ajudar o surf a evoluir, por outro,
o esporte enfrentava a dura repressão da Igreja e da mídia.
Não era sonho de nenhum pai encontrar o filho metido no
mar com uma prancha, porque de acordo com Fortes (2008), o
esporte era erroneamente relacionado à vadiagem e ao consumo
de drogas ilícitas. Por isso, para não criar problemas com a
família, muitos surfistas da época passaram a praticar o esporte
escondidos8.
7 WIKIPEDIA. Surfe. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Surfe. Acessado em: 26 de out. de 2011.8 FORTES, Rafael. Notas sobre Surfe, Mídia e História. Niterói: Recorde: Revista de História do Esporte, v. 1, n. 2, 2008.
27
Ilustração: Stewardt Alex Perius
Entre os rebeldes que fugiam para a praia, estava Carlos
Roberto L’Astorina, também conhecido como “Mudinho”, um
garoto surdo que deixou o amor pelo mar falar mais alto. Foi
na praia do Arpoador, na cidade do Rio de Janeiro, que Carlos
desceu sua primeira onda, e se transformou no primeiro
surfista adaptado do mundo9.
Em 1985, ano em que o esporte adaptado se introduzia no
Brasil com a chegada da primeira bola de goalball10 pelas
mãos de Steven Dubner11, já era moda no país vestir bermuda
florida, tomar sucos e saborear sanduíches naturais, hábitos
que se espalharam junto com o surf. Foi nessa época também
que explodiram as sessões de cineclube, com filmes sobre o
esporte, seriados na TV, diversas novelas e programas de rádio
dedicados à modalidade12.9 NUNES, Renato. O Mestre do Estilo Clássico por Twunay. Disponível em: http://carlosmudinho.blogspot.com/. Acessado em: 13 de ago. de 2011.10 Espécie de futebol adaptado para portadores de deficiência visual, criado em 1946, pelo austríaco Hanz Lorezen e o alemão Sepp Reindle, com o objetivo de reabilitar veteranos que perderam a visão na Segunda Guerra Mundial.11 COMITÊ PARAOLÍMPICO BRASILEIRO. Goalball. Disponível em: http://www.cpb.org.br/esportes/modalidades/goalball. Acessado em: 27 de jun. de 2011.12 FORTES, Rafael. Notas sobre Surfe, Mídia e História. Niterói: Recorde:
28
Conforme o tempo foi passando, outros esportes foram
adaptados para possibilitar a prática por pessoas com
deficiência. Atividades como o basquetebol sobre rodas, o
atletismo e a natação, ganharam praticantes com deficiência
em todo o mundo.
Entretanto, alguns especialistas perceberam, tempos depois,
que a grande maioria dessas atividades acabava separando
as pessoas com deficiência das demais; um processo
segregacionista dentro da proposta de inclusão social13.
No surf, a história foi diferente. Depois do pioneirismo de
Carlos “Mudinho”, outras pessoas com diversas limitações
resolveram aprender a surfar.
Só aqui no Brasil, temos muitos surfistas com deficiência,
dos quais destacamos oito: Carlos “Mudinho”, Valdemir
Revista de História do Esporte, v. 1, n. 2, 2008.13 COSTA, Dr. Alberto Martins; SOUZA, Sônia Bertoni. Educação Física e Esporte Adaptado: História, Avanços e Retrocessos em Relação aos Princípios da Integração/Inclusão e Perspectivas para o Século XXI. Porto Alegre: Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 25, n. 3, 2004.
29
Corrêa, Robson “Careca”, Taiu Bueno, Alcino “Pirata”,
“Pauê” Agaard, Henrique Saraiva e Elias “Figue”.
Além deles, existem vários alunos matriculados em
ONGs e escolas com programas bastante específicos para
deficientes.
Organizações não-governamentais como a Adapt Surf (Rio
de Janeiro, RJ) e a Surf Especial (Santos, SP), e escolinhas
regulamentadas como a Atalaia (Itajaí, SC), a Surfistas
para Sempre (Guarujá, SP), a Escola Riviera (Bertioga,
SP), a Pirata Surf Club (Guarujá, SP) e a Escola Radical
(Santos, SP), atendem ou já atenderam pessoas com os mais
variados tipos de deficiência.
Fora do Brasil, destacam-se a Acess Surf (Havaí), a Disabled
Surfers Association (Austrália), a Life Rolls On e a Wheels 2
Water (ambas dos Estados Unidos).
3030
31
Hoje, dezenas de pessoas procuram esses espaços para aprender
a surfar e mudar o rumo da vida. Acabam desta forma,
contribuindo muito para a construção da história do esporte, que
a cada dia cresce um pouquinho.
Sem a intenção de competir ou disputar troféus, ficarem famosas
e aparecerem na TV, dezenas de vidas cruzam a areia em direção
à água, apenas pelo prazer de surfar mais uma vez.
31
Gabriel Cristiano observa as ondas da praia de Pitangueiras.Foto: Mariana Pedroso
32
Valdemir Corrêa, surfista com deficiência visual. Foto: Mariana Pedroso
32
33
´Capítulo 1
Heróis33
34
N a cidade de Santos, o sol enfeita a imensidão azul de um céu com
pouquíssimas nuvens. As quinze para as nove da manhã, já da para
ver o grupo de vinte surfistas devidamente trajados para resistir à baixa temperatura
da água. Circulam pela areia, conversando e preparando os equipamentos. Embaixo
dos guarda-sóis laranja da escola, alguns verificam se o leash1 está bem preso ao
tornozelo, porque afinal de contas, não é desejo de nenhum surfista perder a prancha
dentro d’água.
Em meio ao grupo que se prepara para entrar no oceano, um aluno movimenta os
braços com graciosidade e precisão. Valdemir Corrêa, ou Val, como é chamado pelos
colegas, alonga o corpo com a delicadeza de quem não tem pressa, e a convicção de
quem sabe o que faz.
1 Cordinha de poliuretano que prende o surfista à prancha. Item fundamental de segurança durante a sessão de surf.
35
Me aproximo do surfista, com um misto de ansiedade e confusão na boca do
estômago. Não sei se devo atrapalhá-lo agora.
Mas, como se pressentisse minha chegada, ele sorri e me estende a mão com imensa
doçura. E numa proximidade quase íntima, comum dos amigos de infância, me
explica porque é tão importante alongar o corpo daquele jeito, antes de cair na água.
“O Tai Chi me dá equilíbrio”, conta, com humildade. Antes de entrar no mar, o rapaz
que perdeu a visão aos 24 anos, repete alguns movimentos da arte marcial chinesa
para obter estabilidade.
Na areia, ao lado do longboard2 amarelo, Val conta que sempre gostou de surf, mas
que a oportunidade de aprender a surfar só veio depois da síndrome que o deixou
cego. Foi ouvindo uma entrevista do professor Francisco Araña no rádio, que ele se
sentiu motivado a tentar uma coisa nova.
2 Prancha de surf grande, com pelo menos 9 pés de comprimento. Ideal para surfistas iniciantes e para aqueles que preferem um surf mais clássico.
36
Transformação
De acordo com Francisco Araña, ou Cisco, instrutor de Val e fundador
da Escola Radical e da Cisco Surf School, em Santos, no litoral de São
Paulo, o esporte trouxe muitas vantagens para o aluno: “No caso do Val
foram duas coisas: benefícios para a saúde e para ele, como indivíduo.
Depois desse tempo todo, ele voltou a estudar por observação nossa,
conseguiu uma bolsa de 100% numa Universidade e é um dos melhores
alunos. Tudo isso estava se perdendo”, diz.
O educador que ensina surf para pessoas com deficiência há 20 anos,
acredita que o esporte não só abriu portas, como mudou a forma de
Valdemir interagir com o mundo: “Se não fosse o surf ”, explica, “ele ia
ficar dentro de casa, entre quatro paredes e ia ser eternamente cego. Aqui
ele não é cego”, conclui.
A psicóloga Yara Pedroso também acredita no poder que o esporte tem de
transformar a vida de pessoas como Val. Segundo ela, além de permitir
que a pessoa com deficiência saia de uma condição de discriminação,
37
a prática de esportes dá à ela a chance de experimentar a igualdade, a
inclusão e o respeito.
“Além disso”, ressalta, “aqueles que têm a oportunidade de trocar
experiências com um deficiente, seja no esporte, no trabalho ou
em qualquer outra atividade do dia a dia, acabam aprendendo e,
consequentemente, revendo seus conceitos a respeito do que é ser
deficiente”.
“É um aprendizado de mão dupla”, diz. “Enquanto por um lado
possibilita a inclusão do deficiente na sociedade, por outro, quebra o
preconceito por parte do grupo que o aceita”.
Esse é o caso do Valdemir, surfista, praticante de tai chi, e futuro educador
físico. Na opinião dele, o fato das pessoas o virem com uma prancha
debaixo do braço ao invés de uma bengala, contribui muito para uma
mudança radical de pensamento. “Isso abre a cabeça das outras pessoas”,
afirma. “As crianças, os pré-adolescentes e os adolescentes que treinam
comigo, por exemplo, vão crescer com outra referência na cabeça”.
38
Val, durante o bate papo na areia do Gonzaga. Foto: Mariana Pedroso
38
Os alunos do professor Cisco
finalmente abandonam os guarda-
sóis. Usando roupas de neopreme,
coladas ao corpo, e com um sorriso
enérgico capaz de iluminar todo o
canal 2, cruzam a areia na direção
do oceano.
Val, o surfista que faz as coisas
sem pressa, não os acompanha.
Fica ali, na areia, ao lado
da prancha amarela, sua
companheira de aulas e de ondas.
39
No bairro do Gonzaga , os raios de sol que nos atingem, também douram
os ombros desavisados que desfilam descobertos para lá e para cá. Ainda
é inverno, a água está um gelo, mas tem sol, motivo suficiente para a praia
estar cheia, como um fim de semana em Salvador, no mês do carnaval.
Durante o bate papo, entre uma pergunta e outra, somos surpreendidos
pela presença de um turista americano, que para ao nosso lado, e não diz
uma única palavra. Minutos se passam e o silêncio se estende. Olho para
o lado e noto a irritação do rapaz, que se mostra profundamente ofendido
por não termos lhe dado atenção.
Sem graça, tento resolver o problema. E mesmo desajeitada, me apresento,
numa tentativa constrangedora de corrigir meu descuido.
Entretanto, ele não quer falar comigo. Olha irritado para o Val, e em um
português enrolado, fala alguma coisa sobre “aluguel de pranchas”.
Estou certa de que, nessa hora, ele se pergunta por que o proprietário do
long amarelo nem se digna a olhar para ele. Concluo que é melhor agir
depressa e desfazer a confusão, para evitar que o meu novo amigo ganhe,
muito injustamente, a fama de “surfista antipático”.
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Já que não sei falar inglês, me aproprio de uma linguagem que quase sempre dá
certo: tapo os meus olhos com uma das mãos e digo para ele “procurar o Cisco”.
O garoto aponta para o Val, abre a boca e sorri; não necessariamente nessa mesma
ordem. Faz um gesto positivo, mas antes de sair, olha para o surfista, com ar de
profunda admiração.
Conto ao Val o que acaba acontecer, e ele sorri, como se isso não fosse novidade. Na
opinião do surfista, é essa surpresa que o aproxima das pessoas.
Hoje, além de ser o primeiro surfista cego do mundo, Val também tem muitos
amigos.
41
Inclusão Que Não Exclui
De acordo com as jovens Paula Luana Maia e Carol Araújo, produtoras do
documentário “Aloha1” sobre surf adaptado, o surf é uma das poucas atividades
adaptadas que promovem o contato entre pessoas com ou sem deficiência.
Elas, que conviveram com o Val durante as filmagens de “Aloha”, no ano passado,
acreditam que o surf não é igual a qualquer outro esporte adaptado, como o futebol
e o basquete para cadeirantes: “Se nós fôssemos jogar basquete, por exemplo, não
iríamos jogar com nenhum deles, porque não somos deficientes”, explicam.
1 Nome do documentário sobre surf adaptado produzido pelos alunos das Oficinas Querô (Paula Luana Maia, Carolina Araújo e Nildo Ferreira), em 2010.
42
O público atendido é muito variado, com pessoas de diferentes atividades, níveis sociais, capacidades e limitações. Essas freqüentam as mesmas aulas participando de um processo natural de inclusão e integração com seus colegas.
(BISSOLOTTI; SANTOS, 2009, pág. 11)
Para Henrique Saraiva, amigo do Val, surfista adaptado e sócio fundador
da ONG carioca Adapt Surf, a opinião é a mesma: “O surf pode ser
praticado por pessoas com e sem deficiência”, diz ele, “de todos os sexos,
idade e classes sociais. E o melhor é que eu posso estar junto dos meus
amigos, surfando de igual pra igual. Não preciso praticar apenas com
pessoas deficientes, como ocorre em outros esportes adaptados”.
42
43
Henrique Saraiva alonga o corpo antes de cair na água. Foto: Fabio Minduim
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Val compartilha da opinião do amigo, e vai ainda mais longe: na opinião
dele, o esporte é a melhor atividade adaptada existente. Para justificar
sua ideia, ele compara o surf com o goalball, uma modalidade desportiva
desenvolvida para deficientes visuais: “Esse esporte foi idealizado por pessoas
que enxergam. O interessante é que os participantes ficam de joelhos, em uma
posição de submissão”, opina. “Por isso, quando dizem que o goalball é um
esporte próprio para quem é cego, eu digo que não; que esse esporte é o surf.
Nele, você está em pé e não de joelhos, numa posição submissa, que é como a
maioria da sociedade acha que uma pessoa com deficiência tem que ficar”.
Entende-se por atividade esportiva inclusiva, toda e qualquer que, levando em considerações as potencialidades e as limitações físico-motoras, sensoriais e mentais dos seus praticantes, propicie a sua efetiva participação nas diversas atividades esportivas recreativas, e consequentemente, o desenvolvimento de todas as suas potencialidades.
(AZEVEDO; BARROS, 2004, pág. 78)
As opiniões de Paula, Carol, Henrique e Val se confirmam em dados. De
acordo com informações disponibilizados nos portais da Associação Nacional
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de Desportos para Deficientes (ANDE), da Associação Desportiva para
Deficientes (ADD), do Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB) e do Hard
Core Sitting Brasil, apenas duas modalidades de uma seleção de quinze
categorias, permitem que pessoas com as mais variadas deficiências
pratiquem esporte juntas. Atrás do surf adaptado, que não é uma
modalidade olímpica e nem possui um propósito competitivo, estão o
polybat2 e o voleibol sentado .
Já modalidades como basquetebol em cadeira de rodas, bocha para
pessoas com paralisia cerebral severa, esgrima adaptada, futebol de sete
pc3, goalball, hard core sitting (skate adaptado), judô adaptado, petra
e tênis de mesa em cadeira de rodas, foram criadas ou adaptadas para
pessoas com um tipo específico de deficiência.
Nas modalidades restantes (atletismo adaptado, ciclismo adaptado,
halterofilismo adaptado e natação adaptada), os participantes são
divididos em blocos, de acordo com o grau e tipo de debilidade.
2 Tênis de mesa lateral, criado na Inglaterra, na década de 80.3 Modalidade futebolística que se disputa nos jogos paraolímpicos, no qual participam atletas com paralisia cerebral.
Mar de Santos.Foto: Mariana Pedroso
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Acompanhando o desempenho dos surfistas, enquanto converso com Val sobre amizades,
percebo que não posso mais distinguir a turma de alunos como antes: sei que há adultos e
crianças, e também homens e mulheres no mar, mas há quinze metros de distância, com
um oceano de areia em minha frente, todos eles me parecem iguais.
Daqui onde estou, não posso dizer, por exemplo, quem é mais bonito, ou quem cuida
melhor do cabelo. Quem é mais alto ou quem é mais baixo. Quem corre mais ou quem é
mais preguiçoso.
A única coisa que tenho certeza é que todos eles gostam de surf e de praia. E de que as
diferenças, neste momento; invisíveis, são apenas detalhes.
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Diferenças Invisíveis
A maioria das pessoas que praticam surf adaptado hoje, já experimentou, no passado,
outras modalidades adaptadas. O surfista carioca Andre Souza, usuário de cadeira de
rodas devido a um acidente automobilístico em 2000, por exemplo, já foi praticante de
remo adaptado, uma modalidade criada na década de 80 pela Superintendência de
Desportos do Rio de Janeiro (SUDERJ), especialmente para pessoas com deficiência física,
(lesão medular, pólio e paralisia cerebral) mental e auditiva4.
Apesar de ter gostado da modalidade, de ter treinado nos clubes mais conceituados do
Rio (Vasco, Botafogo e Flamengo) e de até ter feito parte da Seleção Brasileira de Remo
Adaptado, Andre percebeu que o esporte não lhe proporcionava uma coisa fundamental: a
interação com pessoas que não tem deficiência.
4 COMITÊ PARAOLÍMPICO BRASILEIRO. Remo. Disponível em: http://www.cpb.org.br/esportes/modalidades/remo. Acessado em: 25 de out. de 2011.
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“O surf acrescenta o benefício do convívio social em minha vida”, diz. “Até pouco
tempo, isso não fazia parte vida de pessoas com deficiência, por causa das
dificuldades em termos de acessibilidade”.
Hoje, treinando pela ONG Adapt Surf, Andre sabe que na água, as diferenças
ficam invisíveis. “Tenho amigos com diferentes comprometimentos, físicos,
sensoriais, motores e etc, que praticam surf ”, conta.
“Cada um surfa de acordo com seu comprometimento; eu mesmo surfo
deitado”, explica. “Mesmo não surfando em pé, da forma convencional, me sinto
realizado”.Assim como Andre, Val também encontrou no surf, a oportunidade
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Andre Souza, surfando de joelhos, em uma apresentação da Adapt Surf. Foto: Felipe Tolomei
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Val remando sobre as ondas de Santos. Foto: Mariana Pedroso
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Assim como Andre, Val também encontrou no surf, a oportunidade de ser tratado
de forma igual pelas pessoas. Ele, que além de surfista, é praticante de karatê5 , conta
que nas competições marciais, o tratamento diferenciado pelo fato dele ser deficiente
visual é muito forte.
“Nas competições eles não me deixam lutar, e o único jeito de competir é executando
a sequência do kata6”, conta. “Mesmo assim, eu nunca ganhei”.
5 Arte marcial japonesa.6 Simulação de luta, muito praticada na maioria das artes marciais. O nome sofre alterações depend-endo da arte marcial.
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Intrigado com a situação, Val conta que até chegou a questionar o professor de
karatê sobre o porquê dele não conseguir vencer um único campeonato. “Ele
disse que eu nunca ganhei porque os juízes achavam uma tremenda humilhação
um faixa marrom7 ou preta perder para um faixa roxa cego”.
Para a felicidade dele, no surf, a história não parece se repetir. Em breve, Val
ingressará nas competições convencionais do esporte, disputando títulos de igual
para igual com pessoas que não tem nenhuma deficiência.
“Eu escrevi um e-mail para a Associação Brasileira de Surf Profissional
(ABRASP), questionando se eu poderia participar. Fizeram uma votação, e
liberaram minha participação nas competições”, conta. “A única coisa que eu vou
precisar é que alguém entre comigo no mar, apenas para dizer se a onda é boa. O
resto, sou eu quem devo fazer sozinho”.
7 Nas artes marciais, as faixas representam a graduação do atleta. Cada cor indica um estágio alcançado pelo aluno, e da mesma forma que acontece com as simulações de luta, a sequencia de cores e os respectivos níveis sofrem alterações dependendo da arte marcial.
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O que ainda é novidade para o Val, já é rotina para a havaiana Bethany
Hamilton. Vivendo há milhares de quilômetros de Santos, a garota de 21 anos,
que perdeu braço esquerdo depois de um ataque de tubarão, já venceu diversos
campeonatos de surf.
Sua trajetória é tão importante que, nesse ano, a TriStar Pictures e a Film District,
ambas produtoras do grupo Sony Pictures, resolveram lançar “Soul Surfer”, um
filme baseado na luta de Bethany para conseguir um lugar nas ondas. Com
direção de Sean McNamara, a obra é um ótimo recurso para divulgar o esporte, e
mostrar que as diferenças não existem dentro d’água.
54Foto e Edição: Mariana Pedroso
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Já são dez da manhã. As poucas nuvens que cobriam o céu do Gonzaga, já se dispersaram, e
tudo o que restou foi um azul tranqüilo, terno e impecável.
Sentada na areia, ao lado do meu novo amigo, escuto o chiado produzido pelas ondas,
quebrando lá no fundo. Me arrepio só de perceber que, neste exato momento, eu e ele
compartilhamos a mesma canção.
Val sempre gostou desse barulho. E a vontade de surfar também sempre existiu. Pelo o que ele
me conta agora, debaixo de sol forte, a única coisa que faltava, era uma oportunidade para
praticar o esporte. Coisa que só foi acontecer quando ele perdeu a visão.
Corajoso, hoje o surfista diz ter um estilo bastante radical no surf: gosta de fazer manobras, e
desafiar as ondas; coisas que só gente bastante experiente se atreve a fazer.
Os braços e os músculos das pernas, bem delineados, são um reflexo dos exercícios puxados
e das remadas bem trabalhadas para ficar o máximo de tempo em pé sobre a prancha.
Condicionamento que denota o esforço e a dedicação dos mais de vinte anos de ondas.
Val mal poderia imaginar que, com a perda da visão, descobriria um talento desconhecido: a
aptidão para surfar.
Hoje, cheio de saúde, e com muito mais vontade para encarar as ondas da vida, ele não pensa
em largar o esporte por nada nesse mundo.
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Surf E Saúde
O educador físico Renato Bissolotti conhece bem a rotina de
pessoas como Val, que gostam de se aventurar no meio aquático.
Aos 31 anos, ele é professor de natação na Escola de Esportes da
Associação Desportiva para Deficientes (ADD) e voluntário no
Ambulatório de Esportes Adaptados da Universidade Federal
de São Paulo (UNIFESP). Segundo ele, “o surf pode trazer
benefícios físicos aos seus praticantes, como o aumento da força
e da resistência cardiorespiratoria”.
Em se tratando de atividades desenvolvidas no meio líquido, é importante destacar que estas podem auxiliar e contribuir no desenvolvimento global dos alunos envolvidos, pelo fato de apresentarem um fator diferenciado - a água, justamente por serem desenvolvidas atividades em um ambiente diferenciado do habitual - o terrestre.
(BORGES, 2006)
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Além das melhorias citadas por Renato, há quem diga que o
esporte é um aliado poderoso para quem não dorme bem à
noite. Henrique Saraiva, o amigo do Val, por exemplo, conta
que o surf melhorou seu sono, além de aliviar dores na coluna e
incentivar uma alimentação mais saudável.
O desenvolvimento aprimorado das funções motoras e a
sensação de bem estar também estão na lista de benefícios
proporcionados pelo surf, conforme acredita o neuropsicólogo
Leandro Kruszielski. Mas, ainda que tudo isso seja verdade,
alguns cuidados são indispensáveis na hora de iniciar qualquer
pessoa, com deficiência ou não, no esporte.
O primeiro passo é descobrir quem pode praticar surf. De
acordo com o professor Eduardo da Silveira, da escola de surf
Surfistas para Sempre, no Guarujá, pessoas com problemas de
coração, alunos que usam aparelhos respiratórios e pessoas com
baixa imunidade não devem praticar surf, para não debilitarem
ainda mais sua saúde.
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Entretanto, se esse não for o caso, é dever do instrutor investigar de que forma
ele pode iniciar o aluno nas atividades. “Caso o praticante seja sedentário, é
importante iniciar a atividade de forma gradativa, saber se tem algum problema
articular ou de postura”, diz Renato Bissolotti.
Já Henrique Saraiva, surfista com deficiência desde os 18 anos, devido a um
tiro que levou na coluna durante um assalto, lembra que é importante o
acompanhamento especializado e o uso de material adequado para garantir a
segurança de cada praticante durante a sessão de surf.
Atualmente não se discute mais sobre os benefícios da atividade física, mas sim a forma mais correta de realizá-la para alcançar e/ou manter a saúde; já que a falta e o excesso de exercícios podem ser danosos ao organismo, em se tratando de pessoas portadoras de deficiência. O esporte busca nos fundamentos da atividade física, levar saúde e qualidade de vida aos praticantes que estejam orientados para a forma correta de seu emprego.
(AZEVEDO; BARROS, 2004, pág. 79)
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Aspectos Psicológicos
A saúde do corpo não é a única a receber os benefícios da prática esportiva. De
acordo com a psicóloga Yara Pedroso, o esporte também tem contribuído muito
com o aprimoramento do ser humano, enquanto ser social: “A integração que
essas atividades proporcionam representa a aceitação e o fim da exclusão”,
explica. “Dessa forma, a pessoa com deficiência passa a se sentir igual, respeitada
e compreendida pelo outro. O surf, assim como a prática de qualquer atividade
esportiva, representa para essas pessoas a oportunidade de ser visto como um ser
completo e digno”.
A psicóloga ainda acredita que o esporte é um dos maiores responsáveis por
melhorar a auto-estima da pessoa com deficiência. Para Yara, o sentimento de
pertença, geralmente proporcionado pelas atividades realizadas em conjunto,
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contribuem para que a pessoa com deficiência se dedique, cada vez
mais, à prática de atividades físicas.
“É um estímulo muito forte, que contribui com dedicação contínua aos
exercícios”, revela. “Os ganhos, por sua vez, são muito significativos em
todo o quadro físico do indivíduo”.
[...] O surf está relacionado à melhora dos aspectos emocionais e sociais, além de ser uma atividade completamente inclusiva, por fazer uso de um espaço aberto, com outros surfistas não-deficientes no mar.
(BISSOLOTTI; SANTOS, 2009, pág. 11)
Já para o neuropiscólogo Leandro Kruszielski, os efeitos do esporte
sobre o indivíduo, podem variar muito, dependendo sempre da pessoa
que está envolvida: “É possível perceber que em alguns casos, o esporte
pode significar um novo sentido na vida e, em outros, um meio de
encontrar pessoas ou um mero passatempo”, diz. “Depende muito da
história do deficiente e de seus valores”, conclui.
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Foto e Edição: Mariana Pedroso
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No caso do Andre, lá do Rio de Janeiro, o esporte significou muito mais do que um meio para
encontrar lazer. Depois de sofrer o acidente que o deixou na condição de usuário de rodas,
ele decidiu procurar o esporte voltado à pessoa com deficiência para recuperar o convívio
social. Foi aí que ele conheceu modalidades como o handebol adaptado, o basquete em
cadeira de rodas, o remo adaptado e o surf8. Os esportes devolveram a ele a possibilidade de
viver uma vida digna, com a autonomia que toda pessoa com deficiência merece.
“Moro sozinho, arrumo minha casa, passo minhas roupas. Surfo nos finais de semana e
namoro uma cadeirante que é um barato: ela não surfa, mas admira esta prática esportiva.
Vou ao cinema, teatro, restaurantes, praias e presto assessoria esportiva para uma pessoa
aqui no Rio de Janeiro. Minha vida hoje é como a de qualquer pessoa que não tem nenhuma
deficiência”.
Val também conquistou muitas coisas depois de conhecer o surf. Hoje, além de estar
matriculado em um curso superior, ele aprendeu a se impor perante as situações mais
adversas da vida.
“Geralmente, a palavra de uma pessoa cega vale muito pouco”, declara. “O surf me deu
argumentos para falar com as outras pessoas”.
8 YOUTUBE. Depoimento de André Souza para a novela “Viver a Vida”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=BHmrFhRwqvM. Acessado em: 22 de out. de 2011.
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Andre e Val têm histórias de vida muito parecidas: foi com a ajuda
do esporte, que os dois conseguiram conquistar autonomia, amigos,
e principalmente, respeito. Enquanto um voltou a trabalhar, o
outro aprendeu a se defender e conseguiu uma bolsa na faculdade.
Conquistas, antes inimagináveis; mas que o surf acabou trazendo
para perto.
Sobre a prática de atividades com propósito inclusivo e os benefícios
que elas proporcionam, Val é sincero e objetivo: “A convivência é
muito boa, e as pessoas só têm a aprender e ganhar”.
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É chegada à hora do Val me mostrar tudo o que disse saber fazer em mais
de duas horas de conversa. Apanho a prancha amarela e entrego-a para ele,
enquanto ofereço de apoio, o meu braço direito.
Juntos, nós dois caminhamos pelas areias de Santos, sob os olhares de pessoas
curiosas. Sinto que meu coração está acelerado, acometido por uma emoção
jamais sentida. E percebo, que mesmo que a nossa amizade se perca no final do
dia, sempre haverá um laço entrelaçando nossas vidas.
O tempo limpo, a ausência de banhistas e as ondas quebrando
convidativamente lá no fundo, motivam ele a se juntar aos colegas.
A água está muito mais gelada do que eu imaginava, mas nesta manhã azul e
dourada, nada mais importa.
Com o longboard amarelo nos braços, Val caminha devagar, driblando as ondas
do Gonzaga. E para a minha surpresa, consegue subir na prancha, na primeira
tentativa.
Na água, ele brilha, ao mesmo tempo em que me deixa sem fala: com habilidade
e experiência, desce todas as ondas que aparecem, quase enterrando a quilha
na areia como só os bons surfistas fazem.
66Foto e Edição: Mariana Pedroso
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“Eu quero seguir o que o meu coração está pedindo, e dar à minha alma o que ela quer.A minha alma quer surfar”.
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Vista da praia de Pitangueiras, no município do Guarujá, São Paulo. Foto: Mariana Pedroso
Capítulo 2
Anjos na Praia
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O mesmo céu azul que impera na praia do Gonzaga, em Santos, também enfeita
o bairro de Pitangueiras, no município do Guarujá, litoral de São Paulo. Aqui,
as ondas que vem de encontro à areia, também se debruçam sobre as bases do
Morro da Campina1, um paredão de terra que separa a região central do restante do município.
Diz à lenda que é exatamente aqui, neste cenário de belezas naturais que dão ao Guarujá o
título de “Pérola do Atlântico”2, que vive um pirata totalmente diferente dos contos de J. M.
Barrie3, bastante conhecido por sua garra, e muito querido por sua bondade. O único problema,
porém, é que algumas pessoas costumam dizer que, apesar da generosidade, este pirata é mal
humorado, mas eu estou disposta a tirar minhas próprias conclusões de perto.
Depois de pegar estrada e dirigir mais alguns quilômetros pelo centro do Guarujá, começo a
sentir um misto de ansiedade e medo. Afinal de contas, não é todo dia que uma estudante de
jornalismo sai da cidade onde vive para encontrar um dos primos do “Capitão Gancho”.
Mesmo assim, estaciono o carro e me preparo para o confronto. Apanho minha arma de
combate, uma câmera digital Casio EX-Z80, tranco tudo, e vou à luta.
1 Ponto turístico do Guarujá, também conhecido como “Morro do Maluf ”.2 Apelido concedido ao município, devido às suas belas praias e belezas naturais.3 James Mathew Barrie foi um escritor e dramaturgo britânico, autor do clássico infantil “Peter Pan”.
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O termômetro do Guarujá marca vinte e oito graus. Mesmo assim, só percebo o quanto
está quente quando saio do carro. Com o corpo envolvido pela massa de calor, vestindo
a boa e velha calça jeans, me sinto igual a um extraterrestre que acaba de desembarcar
na Terra. E tenho certeza de que todas as pessoas que passam por mim, de bermuda e
chinelo de dedo, sabem que eu vim de São Paulo.
Atravesso a avenida, na direção da Pirata Surf Club, tentando não pensar nas terríveis
pranchas pelas quais os piratas arremessavam os inimigos ao oceano. Nessa hora,
penso nas reais possibilidades de virar comida de tubarão, caso a entrevista não dê
certo, mas desconsidero tudo, no momento em que me encontro com ele:
Alcino Pirata, surfista amputado desde os 15 anos, está na varanda, rodeado de
amigos, emanando bondade e simpatia. Ao notar a minha presença, ele abre as portas
de pequena escolinha, onde ensina surf para alunos a partir dos cinco anos de idade.
Carismático e extrovertido, o pirata me convida a fazer uma viagem pela história do
surf. Através de jornais antigos e retratos envelhecidos pelo tempo, Alcino me mostra
um pouco da trajetória como surfista e o trabalho especial de professor.
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Surfistas E Professores
“A ideia de abrir uma escola de surf surgiu da vontade de amparar pessoas
que precisavam de ajuda”, conta Alcino. Depois de superar o acidente que
ocasionou a amputação da perna esquerda, e de desenvolver uma técnica
que lhe permitiu retornar às ondas, ele decidiu abraçar mais um desafio: o
de ser professor.
“No começo, eu queria que as pessoas descobrissem seus potenciais e
superassem seus próprios limites. Hoje, a escola tem 22 anos de existência, e
já recebeu mais de vinte mil alunos”.
Além de administrar a escola, Alcino Pirata também é parceiro do
programa “Surfing for All”, um projeto desenvolvido junto com a Associação
Internacional de Surf (ISA), com o objetivo principal de oferecer treinamento
às entidades que almejam trabalhar com surf adaptado.
Da união entre o surfista brasileiro e a associação californiana, nasceu um
DVD que reúne informações sobre o esporte, além de técnicas e metodologias
para trabalhar com pessoas com deficiência, dentro d’água.
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Para a associação, Alcino não é só uma inspiração para
pessoas com deficiência, mas para toda a comunidade do
surf. “Ele encarna o espírito da missão ISA perfeitamente”.
Pirata também mantém um trabalho com os soldados
do exército americano há três anos. No ano passado, por
exemplo, lá no estado da Califórnia, ele ensinou vários
soldados com deficiência a surfar.
Enquanto Pirata dá aulas de surf no Guarujá e fora do
Brasil, Henrique Saraiva também deixa a sua marca na
história destes novos campeões. No Rio de Janeiro, durante
as aulas da Adapt Surf, o surfista dá dicas para os iniciantes
e chega a descer várias ondas com os alunos. Mesmo não
liderando a turma, ele ajuda no que for preciso, e faz de
tudo para garantir a segurança e o bem estar de cada
surfista.
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E quando o assunto é aula, Henrique é cuidadoso, e defende
que para ser um bom instrutor, é preciso, ser apaixonado
por ondas e conhecer os limites do corpo. “Ser surfista é
importante”, diz “mas conhecer o mar, as ondas e o corpo, é
essencial para garantir o máximo de segurança aos alunos”.
Paula e Carol, produtoras do documentário Aloha, acham
que atitudes como a do Pirata e do Henrique são bastante
louváveis. Além disso, elas acreditam que o fato deles terem
uma deficiência, ajuda a estabelecer o contato com os
alunos.
“Quando a gente chega em algum lugar para tentar ajudar
alguém que é deficiente, ou quando a gente vai falar sobre
surf adaptado; geralmente a pessoa não acredita”, contam.
“Ela costuma se irritar e responder que a gente não sabe da
dificuldade dela”. “Mas, se é uma pessoa deficiente que vai
falar com ela, ela escuta mais, e toma de exemplo”.
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Entretanto, dar aulas de surf adaptado não é uma opção
exclusiva para aqueles que têm algum tipo de deficiência.
O professor Cisco Araña, por exemplo, instrutor de surf
do Val, lá em Santos, compartilha com Henrique e Alcino
o mesmo amor pelas ondas, e possui opiniões diferentes
sobre o ofício especial de ser professor.
De acordo com ele, uma dica importante para aqueles
que intencionam dar aulas de surf para pessoas com
deficiência é procurar não enfatizar as limitações dos
alunos. Segundo o professor, essa preocupação excessiva
com o problema pode não permitir que a pessoa com
deficiência crie autonomia, além de reforçar ainda mais
suas limitações.
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“Quando nós observamos as qualidades do outro,
conseguimos melhorar a qualidade de vida. Quando
nós enfatizamos o problema, inspiramos um cuidado
excessivo das outras pessoas, que só reforça a deficiência e
a diferença”, defende.
Cisco ainda revela que, no começo, muitos de seus
professores tinham receio de dar aulas para pessoas com
deficiência, e que por esse motivo, foi preciso aconselhá-
los a deixarem os livros de lado, e arregaçarem as
mangas. “Eu disse para esquecerem o que estava escrito, e
abraçarem a causa com amor”, diz. “É o amor que faz essa
transformação”.
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Pirata em uma sessão de surf na praia de Pipeline, no Havaí.Foto: Bruno Lemos
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Bondade e simpatia não são as únicas qualidades do Pirata. O
surfista do Guarujá também é um professor muito dedicado.
Todos os dias, ele abre a escolinha com sede na praia de
Pitangueiras, onde dá aulas de surf até às cinco da tarde.
Preocupado, conta com a ajuda de uma equipe especializada,
com os melhores preparadores físicos, psicológicos, nutricionistas
e fisioterapeutas.
Mas, além da aptidão para ensinar, o professor também exibe,
no currículo, uma técnica perfeita para encarar as ondas. Tal
empenho já lhe permitiu surfar nas praias mais perigosas do
mundo, tanto na cidade de Padang, na Indonésia, como em
Pipeline, no North Shore, Havaí.
Anos de prática fazem do guarujaense, mais do que um
visionário de idéias possíveis: um especialista das águas salgadas.
Prestígio que ele mostra merecer com humildade, todos os dias,
quando ensina alguém ou quando vai surfar.
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Especialização
Além de técnica, paixão e força de vontade, outro fator há ser
considerado por quem deseja dar aulas de surf adaptado é a
especialização. Algumas pessoas, como o professor Eduardo da
escola Surfistas para Sempre, no Guarujá, julgam ser necessário a
formação em áreas específicas, como resgate aquático, primeiros
socorros e cursos nas áreas de atividade física para pessoas com
deficiência. “Além da graduação em educação física”, opina, “é
importante ter uma especialização em saúde e atividade adaptada”.
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Pirata exibindo agilidade e perfeição na execução das manobras.Foto: Bruno Lemos
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Já Henrique Saraiva, lá do Rio de Janeiro, defende a graduação em
fisioterapia, ciência aplicada à prevenção e tratamento da saúde, por meio
de recursos físicos. “É importante que o instrutor seja um fisioterapeuta com
bom conhecimento das ondas”, opina, “já que não existe uma especialização
acadêmica para dar aula de surf adaptado”.
O fator psicológico também não fica de fora da questão. Para a psicóloga
Mariú Casselli, é muito interessante o instrutor ter o conhecimento
da personalidade dos alunos, suas emoções, auto-estima, ansiedade
e mecanismos de defesa. Mairú também ressalta a importância de se
aprofundar na questão das diferenças individuais dos futuros surfistas, para
otimizar ensino e aprendizado.
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Henrique Saraiva tem razão quando diz que não há nenhum curso no Brasil
específico para aqueles que intencionam ser professores de surf adaptado.
Entretanto, algumas faculdades do país já oferecem cursos de extensão em
atividade adaptada e saúde. A Universidade Gama Filho, com sede em vários
estados do Brasil, oferece o curso com carga horária de 360h. Seu público-alvo
são pessoas graduadas em educação física, fisioterapia, terapia ocupacional
e enfermagem, e as disciplinas são dividas em módulos, de acordo com cada
tipo de deficiência4.
4 UNIVERSIDADE GAMA FILHO. Atividade Física Adaptada e Saúde. Disponível em: http://www.posugf.com.br/cursos/curso-atividade-fisica-adaptada-e-saude. Acessado em: 20 de out. de 2011.
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A Faculdade de Educação Física da Unicamp (FEF) também promove a
especialização na área, por meio da pós-graduação. Entre as disciplinas,
podemos destacar Adaptações dos Sistemas Orgânicos ao Treinamento Físico,
Atividade Física e Adaptação, e Processos de Avaliação Motora Em Educação
Física Adaptada, dentro de um leque de quatorze matérias5.
Em Rio Claro, é o Programa de Atividade Física Adaptada da Universidade
do Estado de São Paulo (UNESP) que dá as cartas. O projeto é um dos únicos
a possibilitar que alunos com deficiência sejam também educadores6. Seu
objetivo é desenvolver e adaptar atividades, individualizadas ou em grupos,
que incluam habilidades motoras básicas, aptidão física, habilidades da vida
diária e competências em relacionamentos sociais7.
5 FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA DA UNICAMP. Pós-Graduação: Atividade Física Adaptada. Disponível em: http://www.fef.unicamp.br/. Acessado: em 20 de out. de 2011.6 UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO. Programa de Atividade Física Adaptada. PROEFA Inclusão. Disponível em: http://www.rc.unesp.br/ib/efisica/def2011/extensao/EXT%20eliane.htm. Acessado em: 20 de out. de 2011.7 UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO. Programa de Atividade Física Adaptada. PROEFA Inclusão. Disponível em: http://www.rc.unesp.br/ib/efisica/def2011/extensao/EXT%20eliane.htm. Acessado em: 20 de out. de 2011.
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Já o curso de graduação em Educação física - Bacharelado8, promovido pela
Universidade Positivo, em Curitiba, no estado do Paraná, permite que, quando
formado, o profissional atue diretamente na área de educação física adaptada
e paradesporto9.
Além dos cursos mencionados, é possível localizar na internet, diversas opções
de cursos à distância ou grupos de pesquisa. Com um leque diversificado de
opções, a dinâmica nas instituições que promovem o surf adaptado tende a
melhorar, cada vez mais.
8 UNIVERSIDADE POSITIVO. Matriz Curricular. Disponível em: http://educacaofisica.up.com.br/painelgpa/uploads/imagens/files/EducFisica/educa%C3%A7%C3%A3o%20f%C3%ADsica%20bacharelado%20manh%C3%A3_11s.pdf. Acessado em: 20 de out. de 2011.9 UNIVERSIDADE POSITIVO. Matriz Curricular. Disponível em: http://educacaofisica.up.com.br/painelgpa/uploads/imagens/files/EducFisica/educa%C3%A7%C3%A3o%20f%C3%ADsica%20bacharelado%20manh%C3%A3_11s.pdf. Acessado em: 20 de out. de 2011.
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A Pirata Surf Club fica em uma simpática casinha, construída com
madeira e feixes de sapê. Ao invés de paredes espessas de alvenaria,
vitrines, por onde o visitante consegue ter um pequeno vislumbre dos
tesouros que ela guarda.
Nela, réplicas de pranchas antigas e pilhas de equipamentos novos,
retratos envelhecidos pela ação do tempo e recortes de jornais com as
últimas matérias publicadas da escola, forram as paredes do cômodo
com um pouco menos de trinta e seis metros quadrados.
Além de centro de treinamento de dezenas de pessoas, com e sem
deficiência, é nessa casa que funciona o Museu do Surf da cidade,
lugar onde relíquias da história do esporte dividem o espaço com uma
preciosidade ainda mais rara: a bondade de alguém que transformou
suas limitações em motivação para ajudar os outros.
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Surfando Com Ongs E Escolas De Surf
Para a psicóloga Mariú Casselli, lugares como a Pirata Surf
Club desempenham um papel muito importante na vida das
pessoas com deficiência. De acordo com ela, organizações e
escolas de surf adaptado, por exemplo, reúnem pessoas com o
mesmo interesse, e otimizam as ações voltadas para a questão.
[...] Escolas regulares, que possuam tal orientação inclusiva, constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias, criando-se comunidades acolhedoras, e construindo uma sociedade inclusiva [...].
(MACIEL, 2000, pág. 51)
Mariú ressalta também que a atividade esportiva
proporcionada por essas instituições permitem à pessoa com
deficiência experimentar a superação de seus limites e melhorar
sua auto-estima. “Dessa forma”, diz, “a pessoa é incluída em
diversos tipos de atividades, e passa a evitar o isolamento”.
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89
Além da Pirata Surf Club existem, no Brasil, dezenas
de outras escolas e ONGs, que trabalham, todos os dias,
para tornar o surf uma realidade na vida das pessoas
com deficiência. Na praia do Pernambuco, ainda no
município do Guarujá, encontramos a escolinha Surfistas
para Sempre, comandada pelo professor e educador físico
Eduardo da Silveira.
No verão, a escola da Rua das Acácias costuma receber
alunos com diversos graus e tipos de deficiência. “Já tive
a oportunidade de trabalhar com surdos, portadores de
sindrome de down, alunos amputados e com paralisia
cerebral”, diz o professor Eduardo. Em um projeto na
Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP), com campus
também no Guarujá, o professor também já teve a
oportunidade trabalhar com autistas.
Para o professor, tanto a Surfistas Para Sempre, como as
demais escolinhas de surf espalhadas por todo o país,
estimulam as pessoas a saírem de casa para mostrar à Professor Eduardo e o aluno Toninho.Foto: Arquivo Surfistas para Sempre
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sociedade que também são importantes. Além disso, ele acredita que o ambiente
em que o esporte é praticado faz bem para qualquer pessoa, porque promove a
alegria, o contato com o sol e com a água do mar. “Nosso ambiente é repleto de
energia”, diz ele. “Essa atmosfera é muito empolgante para todos nós”.
Na cidade de Itajaí, em Santa Catarina, a Associação Escola de Surf e Amigos
Atalaia tem um programa especial, destinado a pessoas com deficiência visual.
Já no Rio de Janeiro, a dona da vez é a ONG Adapt Surf, que há cinco anos, vem
transformando a vida de pessoas com deficiência. Com sede na Lagoa, há mais
de 535 quilômetros da escola do professor Eduardo, lá no Guarujá, a ONG carioca
oferece, atualmente, aulas de surf gratuitas para mais de 40 alunos.
91
“A ideia de fundar uma instituição com esse propósito surgiu em 2006, durante
a faculdade de Educação Física”, explica Luana Fransolino Monteiro Nobre,
membro do Conselho Diretor da instituição. “Realizei uma pesquisa sobre surf
adaptado, entrevistei o surfista Henrique Saraiva, que já era meu amigo há
muitos anos, e a partir daí, inspirados pela experiência dele, e principalmente
pela vontade de oferecer essa experiência a mais pessoas, eu, meu marido, Luiz
Phelipe, o Henrique e mais alguns amigos, fundamos a ONG”.
O projeto entre amigos deu certo. Hoje, ao lado do amigo Henrique e do marido
Luiz Phelipe Monteiro Nobre, Luana trabalha para incluir e integrar pessoas
com os mais diversos tipos de deficiência. A dedicação é tanta, que, em outubro
desse ano, a Adapt Surf foi vencedora do “Prêmio Folha Social Empreendedor
do Futuro”, uma pequena prova de reconhecimento da sociedade diante de um
trabalho tão bonito.
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Com a inclusão do deficiente físico no esporte nota-se uma integração que poderia ser favorecida, por meio de atividades que resgatassem nos portadores de deficiência física sentimentos positivos de dignidade e amor próprio. Desta forma a prática da ativ idade física constitui um momento privilegiado de estimulação e percepção das potencialidades do ser humano portador de deficiência. (ANDRADE; BRANDT, 2008)
Fora do país, as coisas parecem funcionar do mesmo jeito. Gary
Blaschke, presidente e fundador da Disabled Surfers Association (do
inglês, Associação dos Surfistas Deficientes), por exemplo, conta que a
ONG luta há 26 anos para incluir pessoas com os mais variados tipos
de deficiência lá na Austrália: “Asmáticos, amputados, portadores de
paralisia cerebral, síndrome de Down, paraplégicos, tetraplégicos”, diz
Gary. Tudo é acompanhado de perto, de modo que cada surfista possa
aproveitar o mar, de maneira segura.
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Para Gary, o segredo do sucesso está em tratar as pessoas sem
diferença: “Surfar é um estilo de vida, é formar amizades, tratar as
pessoas como iguais e aceitar qualquer deficiência”.
Além da Disabled Surfers Association, as pessoas com deficiência
podem contar também com a Acess Surf (no estado do Havaí),
a Life Rolls On e a Wheels 2 Water (ambas da Califórnia).
Trabalhando em lugares diferentes, mas pelo propósito, essas
instituições acabam atuando diretamente na construção de uma
sociedade diferente, mais justa e menos discriminatória.
“A falta de entendimento associa o portador de deficiência à
incapacidade”, opina a psicóloga Mariú, sobre a oportunidade
oferecida por esses lugares. De acordo com ela, a atividade esportiva
proporcionada pelas ONGs, possibilita que a sociedade passe a
enxergar a pessoa com deficiência com um novo olhar.
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A dedicação gratuita a quem precisa, torna o trabalho do Pirata ainda
mais honroso. E é por causa de pessoas como ele, que não têm medo de
trabalhar em prol da comunidade, que a vida de muitas pessoas vem
sendo transformada.
Se hoje, pessoas com deficiência, tantas vezes desacreditas ou excluídas,
têm a oportunidade de surfar, é graças a três coisas: o amor voluntário, a
vontade de mudar o mundo e a certeza de que as coisas sempre podem
melhorar.
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Responsabilidade Social
As pessoas que treinam na Pirata Surf Club, na Surfistas Para Sempre, na
Adapt Surf ou até na Disabled Surfers Association, lá na Austrália, têm
uma coisa em comum, além da paixão pelo esporte: todas elas dependem
do trabalho voluntário de cidadãos comprometidos com a causa e, quase
sempre, dispostos a trabalhar sem cobrar nada10.
De acordo com Faria (2007) , as ONGs constituem uma forma de suprimir
as falhas do governo, com relação à assistência e resolução dos problemas
sociais, ambientais e até mesmo, econômicos. Em outras palavras, essas
instituições existem para trabalhar nas áreas nas quais o governo não
consegue atuar (Marés, 2011) , transformando-se em um elemento de
importância vital na sociedade.
10 SUPERINTERESSANTE. Para que servem as ONGs? Disponível em: http://super.abril.com.br/superarquivo/2004/conteudo_124472.shtml. Acessado em: 22 de out. de 2011.
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A Adapt Surf, uma das principais instituições brasileiras de surf adaptado,
foi fundada para atender uma das áreas em que as ações do governo
não chegam: a da inclusão de pessoas com deficiência. Afinal, segundo
estimativas da Organização Mundial de Saúde e do Censo realizado em
2000, 14,5% da população brasileira apresenta alguma deficiência física,
mental, ou dificuldade visual, de audição ou locomoção11.
De acordo com a professora Luana, foi pensando nas necessidades do
outro e no quanto o surf poderia ajudar as pessoas, que a ONG recebeu
a motivação que precisava para ser criada em 2007. “Nós tínhamos,
principalmente, vontade em oferecer essa experiência para mais pessoas”.
Hoje, a ONG já contabiliza mais de 2 mil aulas de surf adaptado12, desde a
fundação.
11 ADAPT SURF. Justificativa. Disponível em: http://www.adaptsurf.org.br/quem_somos_justificativa.html. Acessado em: 23 de out. de 2011.12 ADAPT SURF. Apresentação. Disponível em: http://www.adaptsurf.org.br/quem_somos_apresentacao.html. Acessado em: 23 de out. de 2011.
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A surfista Monique e a professora Luana.Foto: Felipe Tolomei
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As escolinhas de surf brasileiras, também se apresentam
cada vez mais preocupadas com a inclusão das pessoas
com deficiência no esporte. Apesar de oferecerem aulas
particulares, tanto a Pirata Surf Club quanto a escola do
professor Cisco, promovem aulas gratuitas de surf.
“1% das pessoas que vem na escola tem algum tipo
de necessidade especial”, revela Cisco. O professor de
Santos diz que, além de pessoas com deficiência física,
ele também atende em torno de 50 escolas do projeto
“Omelca”, desenvolvido pela Secretaria da Educação
de Santos: “Recebemos grupos de mais ou menos vinte
crianças, das quais pelo menos duas têm déficit de
atenção, síndrome de down ou autismo”, conta. “Mas a
gente não separa as crianças, a gente inclui; porque isso
que é salutar para eles”.
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Durante o verão, a Surfistas para Sempre, do professor
Eduardo, também recebe alunos com deficiência. Mas
o trabalho do professor não é de agora; vem desde a
época da faculdade, dedicação que já lhe rendeu cinco
certificados importantes de Responsabilidade Social e
Ações Voluntárias13.
Já na Riviera de São Lourenço, no município de
Bertioga, é a Escola Riviera uma das principais
apoiadoras da questão. Em 2010, a escola, já
proporcionou muitas tardes de surf às pessoas com
deficiência, por meio de parcerias firmadas com a
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).
“Independente do caso, mais uma vez ficou
comprovado que o surf não possui qualquer
13 SURFISTAS PARA SEMPRE. A Escola. Disponível em: http://surfistasparasempre.com/new/static.php?page=aescola. Acessado em: 23 de out. de 2011.
100
limitação podendo ser usado como uma excelente ferramenta de inclusão social,
melhorando a autoestima e proporcionando o bem estar entre seus praticantes”.
(Nota da Escola Riviera, 2010)”.
O Instituto Novo Ser também leva surf de graça e outros esportes praticados na
praia, para a realidade das pessoas com deficiência. Tudo por meio do projeto
Praia para Todos, realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Turismo e
instituições do setor privado.
“O projeto teve origem numa idéia nascida durante sessões de fisioterapia em que paciente (Ricardo Gonzalez Rocha Souza) e terapeuta (Alexandre Pinto Reis) discutiam as dificuldades e possibilidades para um deficiente físico, em especial cadeirante, exercer seu direito à cidadania. Surgiu da vontade criativa desses dois entusiastas o primeiro esboço do projeto, cujo ideal e objetivo era desenvolver, mediante parceria entre os setores público e privado, uma infraestrutura acessível para as pessoas com deficiência em pelo menos um posto de cada praia da cidade do Rio de Janeiro”.
(Praia para Todos, 2011)
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A partir de dezembro desse ano, além de atividades esportivas adaptadas, como
frescobol, peteca e vôlei sentado, as pessoas com deficiência que estiverem no
Rio de Janeiro, poderão também aprender a surfar com Rico de Souza, surfista e
empresário brasileiro.
Mas, apesar de todas essas ações, é importante lembrar que as pessoas com
deficiência não são as únicas a receber atenção e dedicação dessas instituições. Se
para Fortes (2008), houve um tempo em que o surf estava fortemente relacionado
à vadiagem e ao consumo de drogas ilícitas, hoje, o esporte é um dos principais
agentes de reabilitação social, tanto no âmbito que se refere à inclusão, por meio
do surf adaptado, quanto por meio de programas destinados a comunidades
carentes, idosos e preservação do planeta.
O Instituto Tatuí, com sede em Niterói, no Rio de Janeiro, é um exemplo disso.
Fundado em 1998, pelo surfista Ricardo Tatuí, atende crianças de todas as idades,
desde que estejam matriculadas na rede municipal ou estadual de ensino.
A surfista carioca Monique Oliveira.Foto: Felipe Tolomei
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Ao fazer a inscrição, o aluno recebe o uniforme do projeto e têm acesso gratuito e todo o material necessário: pranchas, parafina e cordinhas. Como cair na água abre o apetite, antes e depois das aulas os alunos fazem um lanche composto de suco, leite, frutas e biscoitos. Além das aulas práticas de surf, precedidas de uma boa sessão de alongamento, os alunos aprendem a respeitar o meio ambiente, a conhecer o direcionamento dos ventos e a remar. Ganham ainda noções de biologia marinha.
(Apresentação - Instituto Tatuí)
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Ao lado de Ricardo Tatuí, também estão os surfistas Peterson
Rosa e Jojó de Olivença, que mantém projetos voltados à criança,
em Matinhos, litoral do Paraná, e no Guarujá, litoral de São Paulo,
respectivamente.
O programa “Surf na Escola”, comandado por Peterson, promove
aulas de surf, palestras e educação ambiental de segunda a
sexta, nos períodos da manhã e da tarde . Em entrevista à revista
“Fluir”, de outubro de 2011, o fundador conta que para participar
das atividades oferecidas pela instituição, é preciso ter bom
comportamento e estar com médias e frequências boas na escola.
“É uma forma de fazer com que eles dêem ainda mais importância para os estudos. No começo do ano teve o caso de cinco crianças que queriam participar, só que eles estavam com as notas baixas. Então, eu falei, ‘a vaga de vocês vai ficar reservada, assim que melhorarem na escola vocês começam’. Em menos de um mês, elas já estavam participando das aulas”. (Peterson Rosa para a edição de outubro da “FLUIR”, 2011)
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Já o projeto “Ondas”, do surfista baiano Jojó de Olivença, oferece
programas voltados à alfabetização, aulas de surf, geografia,
português, matemática e educação ambiental, além de oficinas de
hip-hop, música e grafite14.
O programa que hoje atende cerca de 60 crianças passou por
algumas mudanças para atender à comunidade carente.
Com o fim do verão, a cidade ficou vazia e a escola perdeu muitos alunos. Jojó decidiu então utilizar o material para dar aulas a crianças carentes que estavam na praia recolhendo latinhas [...] Além disso, a prefeitura pediu para que trabalhassem com a comunidade Vila Baiana, na época uma das mais violentas e problemáticas do Guarujá.
(FLUIR, 2011)
14 FLUIR. Edição Especial de 28 anos. Heróis da Resistência. Outubro de 2011
105
Hoje, há mais de 20 anos a frente do projeto, Jojó atribui ao
esporte um papel importante.
Aplicamos os elementos que compõem o esporte, como a prancha, o mar, as ondas e o meio ambiente, nas aulas de geografia, matemática e português. Nosso objetivo não é formar bons surfistas, mas pessoas que surfarão com excelência as ondas da vida”.
(FLUIR, 2011)
Bertioga também está entre as cidades com projetos dedicados
à cidadania através do surf. Seu destaque é a Escola Riviera,
idealizadora do projeto “Surf para Todos”, destinado à
população carente do município15.
15 ESCOLA RIVIERA. Responsabilidade Social: Apresentação. Disponível em: http://www.escolariviera.com.br/responsabilidade-social/apresentacao-resp-social/. Acessado em: 25 de out. de 2011.
106
Nela, as crianças participam de aulas de surf gratuitas o ano inteiro,
além de terem acesso a uma série de outras atividades, como oficinas
de pipas, pintura e colagem, e palestras sobre higiene bucal, nutrição e
saúde.
Os alunos matriculados também recebem equipamentos e pranchas
gratuitamente, e têm um dia especial para confraternizar com os pais e
familiares16.
No “Instituto Povo do Mar”, em Fortaleza, o destaque é a inclusão digital.
Sediado em um dos lugares mais pobres do Ceará, a instituição oferece
aulas de surf, reforço escolar, inglês, atendimento psicológico para
as famílias, educação sexual, música, artes plásticas, ioga e aulas de
informática, que só enriquecem o aprendizado dos alunos.
Já no projeto “Onda Educacional”, em Ubatuba, é o surfista José Carlos
Rennó quem faz bonito.
16 ESCOLA RIVIERA. Responsabilidade Social: Atividades. Disponível em: http://www.escolariviera.com.br/responsabilidade-social/atividades/. Acessado em: 25 de out. de 2011.
107
Eles (os alunos) não tinham nem ouvido falar de surf. [...] A maioria (das crianças) não frequentava o colégio e os pais não estavam nem aí. Então, eu mesmo ia lá e matriculava a criança. [...] Nas reuniões de pais e mestres, eu era chamado. E quando os pais tinham algum problema médico, eles me pediam ajuda. Aí vi que o buraco era mais embaixo”.
( José Carlos Rennó para a edição de outubro da “FLUIR”, 2011)
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Idosos também podem conquistar um espaço nas ondas, através de
projetos como o da Escola Radical, em Santos17. Já o meio ambiente e a
conservação das praias, é preocupação de quase todas as instituições
que trabalham com o esporte, realidade que coloca o surfista como ator
principal no processo de construção de uma sociedade sustentável.
A equipe aposta na conscientização ambiental como primeiro passo para construir um cidadão melhor.“Quando aprendermos a respeitar o meio ambiente estaremos dando o primeiro passo para uma convivência saudável e harmoniosa.
(O Instituto – Instituto Tatuí)
17 CLICK LITORAL. Notícia: Surf para Terceira Idade retoma atividades em Santos. Disponível em: http://www.clicklitoral.com.br/05753.html. Acessado em: 25 de out. de 2011
A equipe da Adapt Surf reunida na praia.Foto: Felipe Tolomei
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A Adapt Surf, mais uma vez, é uma das entidades que apóiam a causa.
Fundada há quatro anos, a instituição costuma realizar mutirões de
limpeza nas praias do Rio. Também é ela a responsável por organizar
eventos educativos, desenvolver material informativo e fazer uma vistoria
permanente das condições ambientais das praias cariocas18.
Em Itanhaém, no litoral sul de São Paulo, a Ecosurf também se destaca
por ser uma instituição preocupada como meio ambiente. Fundada por
surfistas comprometidos com a justiça socioambiental19, a ONG possui
projetos de gestão de recursos hídricos, planos de desenvolvimento
de turismo ecológico e rural, além de campanhas de limpeza, como a
“Onda e Água Limpa”; realizada em parceria com a rádio Jovem Pam, e
“Vamos Limpar o Mundo”; que engloba palestras, oficinas e mutirões de
limpeza20.
18 ADAPT SURF. Projetos: Preservação da Natureza. Disponível em: http://www.adaptsurf.org.br/projetos_preservacao_da_natureza.html. Acessado em: 25 de out. de 2011.19 ECOSURFI. Sobre a Ecosurfi. Disponível em: http://www.ecosurfi.org/. Acessado em: 25 de out. de 2011.20 ECOSURFI. Projetos. Disponível em: http://www.ecosurfi.org/. Acessado em: 25 de out. de 2011.
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Já o projeto S.O.S. Praias Brasil, fundado em 1999 pelo paulista
Marcelo Marinello, atua em toda a costa litorânea brasileira,
promovendo atividades de conscientização ambiental, teatro de
praia, reciclagem de lixo e encaminhamento de resíduos para
usinas de reciclagem21.
Se no passado, a imprensa fazia campanha contra o surf (Fortes,
2008), hoje, ela ajuda a divulgar o que o esporte tem de bom
para oferecer. Essa transformação tem refletido diretamente no
número de pessoas que aderiram ao esporte, nos últimos anos.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Shapers e com a
International Surfing Association (ISA), pelo menos 25 milhões
de pessoas, em mais de 100 países, são surfistas22.
21 FLUIR. Heróis da Resistência.22 SOCIEDADE BRASILEIRA DE SHAPERS. Olimpíadas. Disponível em: http://www.sbs-shapers.com/olimpiadas.html. Acessado em: 25 de out. de 2011.
111
Apesar da força de vontade dessas instituições, não é tão fácil
mantê-las quanto parece. Para abrir uma ONG, ou até mesmo
implantar um projeto social, as instituições precisam de recursos
específicos23. Segundo o shaper e surfista Neco Carbone, esse é
um dos maiores impasses. “Você precisa registrá-la, contratar um
contador e aí as coisas começam a ficar difíceis”.
Além da parte burocrática, as instituições também precisam se
preocupar com o serviço. Os alunos necessitam de equipamentos de
qualidade e, principalmente, estrutura, e é nessa hora, que entram
as parcerias com instituições do setor privado, um recurso muito
utilizado por ONGs e projetos sociais para receber pranchas, pés de
pato e demais equipamentos utilizados na prática do esporte.
Projetos assim também precisam de voluntários, ou seja, gente
engajada e disposta a trabalhar sem cobrar nada por isso.
23 LEANDRO, Evelyne. Como montar um Projeto Social. Disponível em: http://evelyneleandro.wordpress.com/2008/01/31/como-montar-um-projeto-social/. Acessado em: 23 de out. de 2011.
112
Sem falar nas doações, que também ajudam as ONGs a dar
continuidade em suas atividades.
Com essa ajuda, fica um pouco mais fácil para as instituições
oferecer uma estrutura que melhore a vida de centenas de
pessoas com deficiência, enquanto o governo não consegue
suprir totalmente essa necessidade24.
De acordo Mara Gabrilli, tetraplégica e deputada federal, ainda
não há nenhuma política pública de incentivo ao surf para
pessoas com deficiência, apenas um projeto que é executado
pelos governos municipais: “Não conheço projetos do Governo
Federal que incentivem esta prática, diz. “O que existe é o
projeto Praia para Todos, que tem o apoio das prefeituras”.
24 PRAIA PARA TODOS. Comunicado à Imprensa. Disponível em: http://www.praiaparatodos.com.br/docs/release_2011.pdf. Acessado em: 24 de out. de 2011.
112
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Da sacada da escola, Pirata acompanha o desempenho dos alunos. Com
o olhar experiente, de quem entende do assunto, observa os surfistas
cruzarem a areia, na direção do oceano. Essa é a rotina de alguém que
acorda, todos os dias, para ajudar as pessoas. Como recompensa, recebe
carinho, respeito, e o sentimento de dever cumprido.
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Gabriel Cristiano e sua companheira de ondas.Foto: Mariana Pedroso
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Alunos De Ouro
Se no passado, a vontade de ajudar as pessoas motivou o professor do
Guarujá, hoje, o incentivo para fazer um trabalho cada vez melhor,
vem também dos alunos.
Gabriel Cristiano é um dos garotos que freqüentam a Pirata Surf
Club. Aplicado, vai à aula todos os dias, apenas para curtir o prazer
de deslizar sobre as ondas. É o tipo de garoto que sorri o tempo
inteiro; o tipo de pessoa que faz a gente acreditar que a vida vale a
pena.
Nas areias esbranquiçadas do Guarujá, ele conta que começou a
surfar graças ao incentivo dos amigos: “Os meninos da minha rua
falavam muito no Pirata, que não tem uma perna e ajuda as pessoas
deficientes”, revela. “No começo eu não queria ir, porque a escola fica
longe de casa, mas eles me incentivaram, e eu decidi conhecer”.
116Foto: Mariana Pedroso
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Esse apoio dos amigos fez com que o Gabriel se transformasse num
atleta completo. Hoje, além do surf, o garoto também nada, joga bola e
é ciclista. Do distrito de Vicente de Carvalho, onde mora com a família,
até a praia de Pitangueiras, onde treina, são mais ou menos cinco
minutos de pedalada, trecho que Gabriel cumpre com tranquilidade.
“Para me adaptar a tudo, foi questão de tempo”, diz ele. “Comecei a
fazer fisioterapia e treinei bastante. Isso melhorou a minha postura”.
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Outra aluna bastante empenhada é a
surfista e modelo Monique Oliveira, que
treina pela ONG Adapt Surf há um ano
e nove meses. Dona de beleza e simpatia
cativantes, ela, que é portadora de
paralisia cerebral, teve sua vida totalmente
transformada pelo esporte, e assim como
Gabriel, se surpreendeu ao descobrir que
poderia aprender a surfar.
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Monique Oliveira curte as ondas do Rio.Foto: Regina Tolomei
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“Fui para a praia com uma amiga e lá, me deparei com um
surfista usuário de cadeira de rodas. A princípio, achei que fosse
um surfista machucado, mas depois percebi que não”.
Intrigada com a situação daquele atleta, ela procurou a ONG
carioca para obter mais informações. E uma semana depois, já
estava matriculada, pronta para dar um novo rumo à sua vida.
“Hoje”, diz, “sou mais indepentende, feliz, e tenho mais
confiança, coragem e força para continuar a viver, e passar por
cima de qualquer obstáculo, como faço nas ondas”.
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121Foto: Felipe Tolomei
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Andre, em dia de apresentação da Adapt Surf.Foto: Regina Tolomei
122
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O cadeirante que Monique encontrou na praia, por
sua vez, o surfista Andre Souza, também reconhece as
mudanças que o surf trouxe para a sua vida. Ele que
praticava remo, conheceu a proposta da ONG Adapt
Surf na internet. Depois de ter experimento outras
modalidades adaptadas, Andre não pensa em largar o
surf por nada, e costuma dizer que o esporte se destaca
por possibilitar a interação social em espaço totalmente
público.
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“A praia é um ambiente de lazer frequentado por pessoas de todos os meios e formações. É um lugar excelente para trabalhar a inclusão”.
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Muito surf no Rio de Janeiro.Foto: Felipe Tolomei
125125
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Depois de uma manhã inteira cuidando dos interesses da
escolinha, Alcino apanha a pranchinha bicuda e sai em
direção à praia. Sem a perna mecânica, ele atravessa a faixa
de areia, e chega à beira do mar em poucos instantes.
Corro atrás dele, com a máquina fotográfica nas mãos, mas
me falta a agilidade que ele tem para conseguir alcançá-lo.
Numa questão de segundos, depois de inúmeras tentativas,
já não consigo mais enxergá-lo na imensidão azul.
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Quase sem fôlego, subo a ladeira, contorno a praia, e
finalmente consigo localizar o Pirata, entre os surfistas
locais. Para o meu êxtase, chego na hora exata, e assisto de
camarote, o surfista e professor descer a única onda do dia,
com ginga e graciosidade surpreendentes.
Nessa hora, até esqueço da câmera, mas não importa. Tenho
certeza, de que este momento, ficará registrado na minha
memória, enquanto eu viver.
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Uma big prancha para um grande surfista.Foto: Mariana Pedroso
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Capítulo 3
Guerreiros das Ondas
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P or volta das duas da tarde, quando o sol está lá no alto,
os banhistas recolhem os guarda-sóis e saem para almoçar.
Vão à caça dos restaurantes e dos quiosques super lotados
de Pitangueiras, para saborear petiscos e matar fome.
A faixa de areia, agora mais vazia, recebe o calor dos raios, que lá de cima,
projetam sombras na praia. E lá, do outro lado da Avenida Marechal
Deodoro, onde os condomínios se enfileiram majestosamente, um homem
pilota uma cadeira de rodas com um controle remoto na altura do queixo.
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Sentada em um banco, na companhia do shaper1 Neco Carbone e do filho
dele, Pedro, me emociono ao ver Taiu Bueno dirigir a cadeira até onde
estamos. O brasileiro pioneiro do surf de ondas grandes, ídolo do meu pai,
desde que eu era pequena, é dono de uma luz e alegria que impressionam.
Animado, ele atravessa a rua, passa pelos turistas que transitam por ali,
mexe com os cachorros que passeiam pelo calçadão. E, com um sorriso
grande no rosto, desses de quem tem orgulho da própria história, pergunta
se já vimos sua prancha:
“Ter ela parada ali” (no condomínio onde mora), diz ele, “é a melhor coisa”.
1 Profissional que modela e dá forma à prancha.
132
Vitória
Quem vê Taiu assim, tão contente, não imagina o quanto foi difícil para ele
chegar até aqui. Ele, que era uma das grandes promessas do surf na década
de 80, campeão brasileiro em 84 e campeão paulista, em 86, sofreu um
acidente, vinte anos atrás, enquanto descia uma onda na praia de Paúba,
em São Sebastião. O fato interrompeu a carreira de surfista, deixando-o
na condição de usuário de cadeira de rodas. Entretanto, não foi motivo
suficiente para pôr um fim na relação de Taiu com o mar.
Mesmo tendo traumatizado a coluna, e perdido a mobilidade do ombro
para baixo, Taiu fez questão de acompanhar o esporte pelos bastidores,
participando de campeonatos de surf como locutor e comentarista, e
escrevendo colunas em jornais e revistas.
Taiu também tentou voltar a surfar com a ajuda do amigo Neco Carbone.
133
Juntos, eles desenharam uma prancha especial, com todas as adaptações
necessárias para o guerreiro surfar com segurança. Mas com o passar do
tempo, a prancha acabou esquecida no galpão de Neco, cheia de etapas
para serem concluídas.
No ano passado, porém, uma surpresa acabou mudando o rumo dessa
história. As jovens Paula Luana Maia e Carol Araújo, estudantes de cinema
das Oficinas Querô, procuraram o surfista para fazer um filme sobre surf
adaptado. A ideia era reunir praticantes da modalidade no mesmo espaço,
para surfar e falar sobre o esporte.
“Eu falei que não poderia participar porque, até então, eu não surfava”,
explica Taiu. Entretanto, o surfista acabou se recordando, dias depois, do
projeto de prancha que tinha desenvolvido com o amigo Neco Carbone, e
encontrando nele, uma oportunidade de transformar sonho em realidade.
“Foi o ‘Aloha’ que deu o empurrão”, explica Neco. “Nós sonhávamos com
isso há muito tempo, e o filme acelerou tudo”.
134
135
Hoje, a prancha que teve a fabricação acelerada para aparecer nas
filmagens de “Aloha”, já proporcionou que Taiu pegasse muitas
ondas. E até mesmo a deputada federal Mara Gabrilli, cadeirante
desde 1994 devido a um acidente automobilístico, já teve a
oportunidade de experimentar o equipamento arrojado. “Foi uma
experiência maravilhosa e emocionante”, conta Mara. “Senti uma
energia incrível, pois adoro me exercitar e amo água. Unir as duas
coisas foi sensacional”.
A deputada diz ainda não ter sentido medo nem desconforto no
cockpit da prancha. “O que eu senti foi adrenalina e ansiedade. Foi a
coisa mais louca que eu já fiz”, conclui.
A experiência da prancha deu tão certo que Taiu não parou mais
de se mexer. De alma lavada, o surfista planeja agora abrir uma
ONG e uma base de surf na praia das Astúrias, para dar aquele
empurrãozinho na história de outros surfistas.
136
“A ideia é disponibilizar equipamentos e instrutores,
que possam dar suporte à galera que vá surfar”, revela
Neco, o amigo de Taiu. Se tudo correr bem, a futura
base contará com aulas de surf gratuitas, e pranchas à
disposição de surfistas com e sem deficiência.
Outra novidade do surfista é a candidatura pelo
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no ano que vem.
Na política, o guerreiro pretende lutar pelos direitos
das pessoas com deficiência e melhorias no âmbito da
acessibilidade.
137
A amizade de Taiu e Neco é o elo forte dessa história.
Juntos, os dois não só construíram uma prancha, como
também encontraram um novo rumo para as suas vidas.
Foi a iniciativa da dupla que permitiu a Neco ter de volta
a companhia do amigo dentro d’água. E que devolveu a
Taiu, a oportunidade de fazer aquilo que ele mais gosta,
desde o dia em que surfou pela primeira vez.
Com amizade e parceria, a dupla venceu desafios, deu
um novo começo à uma história que parecia terminada, e
o mais importante: criou novas esperanças para pessoas
do mundo inteiro.
138
Prancha Adaptada
Antigamente, ver uma pessoa com deficiência surfar era algo improvável. As pranchas eram
pesadas, não haviam ferramentas adequadas e nem tecnologia suficiente para construir um
equipamento tão complexo. Hoje, graças ao uso de suportes inteligentes, o cenário mudou de
figura: a prancha de Taiu Bueno é um exemplo dessa evolução.
Ela é bastante diferente dos modelos convencionais: tem 14 pés de comprimento (o equivalente a
5 metros), e espaço para três pessoas. No equipamento, também há uma espécie de cockpit , onde
foi instalada uma cadeira, com revestimento de tapeçaria naval. Entretanto, seu maior diferencial
não está propriamente no design arrojado, mas na funcionalidade, que permite a prática do
esporte por pessoas que tiveram a mobilidade do corpo quase que totalmente comprometida.
De acordo com Neco Carbone, o modelo que Taiu usa para surfar hoje, deve passar por
modificações em breve, para melhorar o desempenho nas ondas. “Estamos estudando alternativas
para tirar a cadeira de lá, porque ela é muito pesada”, explica.
Outro problema é com relação à estabilidade, já que a cadeira é alta: “A idéia é fazer alguma coisa
no nível do cockpit, porque com um centro de gravidade mais baixo, a possibilidade de virar é
menor”.
A prancha de Taiu Bueno não é a única a ter adaptações. O surfista Andre Melo de Souza, do Rio
139
de Janeiro, surfa com uma prancha com duas alças de apoio acopladas. Já a colega de ondas, a
surfista Monique Oliveira, dá show nas praias do Rio em um bodyboard especial, também com
alças de apoio, que dão mais segurança à ela durante as manobras.
Em Santos, o surfista Val surfa com um longboard amarelo com 9’10 pés de comprimento,
desenvolvido especialmente para deficientes visuais. O professor Cisco Araña, responsável
pelo projeto, conta que o modelo levou mais ou menos dez anos para ser construído: “São dez
adaptações seguras, que foram desenvolvidas depois de muita observação”.
A prancha do Val não é lisa como a maioria: há uma espécie de textura na parte superior do
equipamento que dispensa o uso de parafina2.
Além disso, há também ondulações para o suporte dos pés, frisos em alto relevo, bordas para as
mãos, velcro para posicionamento e guizos instalados no bico e na rabeta3. A quilha, por sua vez,
é revestida com espuma EVA, para evitar que o próprio Val, ou outros banhistas, se machuquem
caso ele caia da prancha.
“A prancha hoje é um facilitador”, explica Cisco. “porque encurta o tempo de aprendizado”. Na
opinião de Val, o longboard possibilita também que ele explore manobras, e não fique preso
somente à condição de descer a onda. “Ela me permite ir além”, conclui.
2 Produto derivado do petróleo, com propriedades termoplásticas e repelência à água. No surf, a parafina é usada com o propósito de impedir que o surfista escorregue da prancha.3 Parte de trás da prancha.
140140
Muito Trabalho
Quem vê o longboard amarelo ou a prancha
de Taiu Bueno. nem imagina o quanto foi
difícil produzí-las. Porque, além da observação
mencionada pelo professor Cisco, o processo
costuma envolver uma engenharia delicada,
que faz ou já fez parte da rotina de shapers do
mundo inteiro.
Seja ela adaptada ou não, fabricar uma pran-
cha nunca foi tarefa fácil. A produção desse
tipo de equipamento requer atenção a uma
série de detalhes muito sutis, porque qualquer
erro ou mudança pode alterar totalmente o
desempenho do mesmo4.
4 Guia de Pranchas da revista “Fluir”. Outubro de 2003.
141
Muito surf na praia das Astúrias.Foto: Diana Bueno
141
142
Na fabricação de uma prancha pelo método convencional (ou seja, sem a
ajuda de softwares ou máquinas), por exemplo, o processo é iniciado em um
bloco bruto de poliuretano. É nesse bloco, que shapers como Neco Carbone,
dão forma e modelam o equipamento, adaptando-o às necessidades do
surfista.
Essa etapa é muito importante, porque é exatamente aí que se descobre as
futuras finalidades da prancha. Cabe ao shaper levantar informações sobre
como será usado o equipamento, o tamanho das ondas que serão surfadas e
as características físicas do surfista, afinal, a altura e o peso do atleta são os
fatores de maior influência durante a performance.
No equipamento, também é importante prestar atenção em um ponto
conhecido por wide point5, que influencia diretamente no desempenho da
prancha. Wide point localizado a três polegadas atrás do centro, resulta em
manobras mais suaves. No meio, proporciona um equilíbrio entre manobra e
direção. Na frente, a três polegadas da área central, resulta em manobras mais
abertas e radicais6.
5 Ponto de largura máxima da prancha.6 Guia de Pranchas da revista “Fluir”. Outubro de 2003.
143
Bico7, curva de fundo8 e rabeta9 são sempre feitos de acordo com as condições
das ondas. A rabeta do tipo squah, por exemplo, pode ser aplicada a qualquer
tipo de prancha. Já a pin tail, é usada em pranchas acima de sete pés de
comprimento, para surfar ondas grandes, ocas e rápidas. A variante round
pin é mais adequada para ondas de tamanho médio ou tubulares, como as
do Havaí e da Indonésia. O tipo smallow é aconselhável para ondas gordas
e cheias. E, por último, a variante wings, é usada em pranchas pequenas e
largas.
O shaper ainda tem que ficar atento às configurações do fundo10 e à
distribuição do volume. E até o jeito do atleta surfar deve ser levado em
conta, porque dependendo do estilo, o shaper fará a distribuição correta da
densidade. Se o surfista em questão é mais hábil, e coloca muita força na parte
de trás da prancha, por exemplo, a espessura da rabeta tem que ser maior
do que no bico. Mas, se o surfista em questão tem pouca habilidade, e coloca
muita força na parte da frente da prancha, tem que haver uma distribuição
equilibrada na rabeta e no bico, para ajudá-lo nas remadas.
7 Parte frontal da prancha, que controla o fluxo de água.8 Curva que controla o fluxo de água. Quanto mais acentuada, menor o fluxo e manobra mais rápida.9 Parte de trás da prancha.10 É a configuração da parte de baixo da prancha em sentido transversal.
144
Bordas11 também estão diretamente conectadas ao processo construtivo e exigem
cuidado. As grossas evitam que a água suba ao deck da prancha. Já as finas, permitem
que a prancha penetre na água, proporcionando maior sensibilidade.
O shaper também é o responsável por instalar as quilhas na prancha, um acessório que
absorve a energia do fluxo de água, agrega pressão e velocidade, além de direcionar o
equipamento. Basicamente, existem quatro tipos e suas respectivas situações de uso: a
monoquilha (uma quilha apenas) é recomendada para longboards, por proporcionar
manobras mais clássicas. Biquilhas (duas quilhas), que são usadas em ondas pequenas.
Triquilhas (três quilhas), que por sua vez, estão em quase todas as pranchas, graças a sua
versatilidade. E as quadriquilhas (quatro quilhas), para um surf de velocidade.
Esse processo complexo e demorado não é novidade para Neco Carbone. Durante
anos de profissão, o shaper já produziu pranchas dos mais variados tipos, inclusive
equipamentos para pessoas com deficiência: “Pranchinhas, longboards, fishes,
funboards”, conta. “O meu trabalho é adaptar pranchas de acordo com a sua finalidade.
E no caso da prancha para pessoas com deficiência, é um equipamento que também
precisa ser estudado”, explica. “Conversando com o atleta e descobrindo a técnica
utilizada, eu desenvolvo o equipamento adequado”.
11 Laterais das pranchas.144
145Foto: Diana Bueno
145
146
Ainda de acordo com Neco, a diferença entre um equipamento
convencional e um equipamento adaptado só aparece mesmo quando o
surfista necessita de acessórios extras, como as alças de apoio instaladas
na prancha de Andre Souza, ou a superfície tátil na prancha do Val.
Fora isso, o processo de fabricação de uma prancha convencional e de
uma prancha adaptada é igual.
147
Taiu começou a surfar aos 11 anos de idade, nessa mesma praia onde conversamos
agora, com uma prancha de isopor.
Foi no mar de Pitangueiras, onde as ondas quebram com força, que o garoto local
do Guarujá aprendeu a amar e respeitar o oceano.
De lá para cá, o sol já nasceu e se pôs muitas vezes, e inúmeros modelos diferentes
passaram pelas mãos do surfista, na trajetória que o consagrou como um dos
melhores big riders12 brasileiros.
Nas praias do Havaí, por exemplo, onde viveu por anos, Taiu já surfou nas
pranchinhas mais velozes do mundo, e impressionou fãs, colegas de profissão e
imprensa.
Entretanto, de todas as pranchas que ele já teve, é o protótipo desenvolvido pelo
amigo Neco Carbone, o favorito.
Afinal de contas, depois de 20 anos sem descer uma única onda, foi o
equipamento pouco convencional que devolveu a ele a oportunidade de fazer o
que mais gosta: surfar.
12 Surfistas de ondas grandes.
148
Tecnologia A Favor Das Ondas
Se ainda vivêssemos na época do Duke Kahanamoku, a
prancha que Taiu tanto adora, não existiria. Simplesmente
porque, naquela época, tudo era feito com toras de árvore de
até 80 quilos, lascas de pedra e pedaços de corais: ferramentas
muito precárias para construir um equipamento tão rico em
detalhes.
Mas, com a tecnologia, tudo ficou mais fácil: e hoje, já existem
softwares e máquinas inteligentes para colocar um fim na dor
de cabeça dos fabricantes.
Um dos softwares mais usados é o “Shape3D”. Desenvolvido
na França, o programa profissional dá suporte ao shaper,
desde a fase do desenho até a fabricação do produto, uma vez
que funciona em qualquer máquina de shape por comando
numérico computadorizado13.
Com o software, todo aquele processo detalhado de preparo 13 Máquina desenvolvida para cortar shapes sozinha, seguindo as orientações de um software inteligente de computador.
149
do bloco, definição de ponto máximo de largura, cálculo
do volume, acabamento no bico e na rabeta, retoque nas
bordas e implatação das quilhas, é substituído por um único
“click”: o programa permite o corte completo das bordas e da
longarina, além de oferecer precisão nas medidas.
Além disso, a visão de cada shape é tridimensional, com
zoom digital e iluminação de qualquer ângulo, o que facilita
a correção de erros antes do desenho ser enviado para a
máquina14.
Mas, para quem pensa que é só lá fora que encontramos
tecnologia de ponta, um outro programa, de finalidade
semelhante, vem para mostrar o contrário. O “Surfcad”,
desenvolvido pelo shaper brasileiro Luciano Leão, é muito
parecido com o Shape3D, e possibilita que o designer
trabalhe no computador e deixe a parte braçal para a
máquina.
14 WAVES. Notícia: Shape 3D chega ao Brasil. Disponível em: http://waves.terra.com.br/surf/noticia/shape3d-chega-ao-brasil/34118. Acessado em: 21 de out. de 2011.
149
150
A prancha do guerreiro.Foto: Mariana Pedroso
150
151
De acordo com Miguel Jorge, da HTSurf, empresa que comercializa matérias-primas, ferramentas,
máquinas e outros equipamentos para shapers, a utilização desse tipo de recurso proporciona
inúmeras vantagens. “A máquina e o software auxiliam e aumentam a qualidade e a produtividade”,
diz. “Por meio de comando numérico, a máquina realiza a usinagem das pranchas, tanto de
poliuretano quanto de EPS (isopor)”, explica.
Ainda de acordo com Miguel, o tempo de produção pelo novo método é mais curto: “O trabalho que
antes era realizado manualmente, em aproximadamente duas horas, hoje é feito em quinze minutos,
com extrema precisão”.
A inovação tecnológica recebe o apoio do shaper Neco Carbone. Ele, que fez uso do Shape 3D e de uma
máquina de comando numérico computadorizado para construir a big prancha de Taiu, acha que com
esses softwares, a fabricação ficou mais fácil. “Hoje em dia a gente tem a tecnologia a nosso favor”, diz.
“Você faz o projeto e a máquina corta o que foi projetado. Além disso, o programa te dá o volume da
prancha em litros, te ajuda a equalizar o peso da pessoa e te orienta a fazer a distribuição do volume
para a prancha não virar”.
No caso da prancha do Taiu, um modelo completamente diferente dos convencionais, o software deu
uma ajuda ainda maior: “A prancha dele é para três pessoas, e por isso, foi feita considerando o peso
de três adultos”, conta. “O software também orientou o melhor lugar para o Taiu ficar”, finaliza Neco,
lembrando que o cockpit não está exatamente instalado no meio.
152
Além do Shape3D e do Surfcad, os surfistas do Brasil e do mundo também podem contar com os
programas APS3000, Aku Shaper e BoardCAD, ambos para o desenvolvimento de pranchas de surf.
Fábricas especializadas daqui também comercializam máquinas para a fabricação dos pré-shapes. De
acordo com Miguel Jorge, esse tipo de equipamento é recomendado para empresas grandes, e seu preço
varia de acordo com os dispositivos e programas que constituem seu sistema: “O preço de venda é de
aproximadamente 180 mil reais, dependendo da configuração da máquina”.
Se na época do Duke, a ideia de uma pessoa com deficiência surfar era surreal, por causa da falta de
estrutura no equipamento, hoje, graças à tecnologia, a história mudou.
A prancha do Taiu é, atualmente, a prova de que o surf se reestruturou, ao longo dos anos, para receber
todas as pessoas que queiram surfar, independentemente da condição física.
No processo de inclusão, que exige transformações profundas, a sociedade se adapta para atender às necessidades das pessoas com deficiência e, com isso, se torna mais atenta às necessidades de todos. Já no de inserção, que se contenta com transformações superficiais, são as pessoas com deficiência se adaptam às necessidades dos modelos que já existem na sociedade, que faz apenas ajustes.
(Toque aos Jornalistas, Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Governo do Estado de São Paulo).
153
Distantes das ondas que quebram sem pausa, vendedores passam por nós,
guiando carrinhos de picolé. Pedro, o filho do Neco, é uma das crianças
que se aproximam do “homem do sorvete”, ansioso para ganhar uma
sobremesa.
“O trato é o seguinte”, propõe ele a Taiu, “vou tomar o sorvete e depois
apostamos uma corrida”. Minutos depois, com a embalagem em frangalhos
e o palito vazio entre os dedos, o garoto dispara pela calçada, seguido pelo
surfista de cadeira de rodas.
Posso ouvir a risada dos dois, enquanto eles tomam distância. E me divirto
com o resultado final da disputa, que classifica tanto Taiu quanto Pedro em
primeiro lugar.
Entre os turistas que aproveitam a tarde do domingo, localizo a dupla,
retornando até nós. E penso que uma corrida tão divertida, não seria
possível se não fosse a rampa acessível recém instalada no calçadão de
Pitangueiras.
É graças a ela que Taiu, e outras pessoas com deficiência, podem atravessar
a rua com segurança e curtir tudo o que a praia tem para oferecer.
153
154
Equipamentos Adaptados
Que uma prancha adaptada às necessidades do
surfista é indispensável para a prática segura do
surf, todo mundo já sabe. Entretanto, para vencer
os obstáculos da areia e chegar ao oceano, a pessoa
com deficiência costuma fazer uso de outros de
equipamentos adaptados, tão importantes quanto à
prancha especial.
A rampa acessível é um destaque entre os ítens.
Por meio dela, as pessoas com deficiência têm sua
locomoção facilitada, evitando escadas tanto nas vias
públicas, como em lugares fechados.
Para construí-la, em casa ou locais de acesso público
(praças, parques, praias e etc.), é preciso seguir uma
série de exigências criadas justamente para garantir a
segurança, o conforto e principalmente, a autonomia
da pessoa com deficiência.
155
Entre as regras, podemos citar os padrões pré-
estabelecidos de inclinação (geralmente 8,33%), a largura
mínima de 1 metro e 20 centímetros e a exigência de
corrimão em ambos os lados. Todas esses regras fazem
parte da Norma Brasileira Regulamentadora 9050 (NBR
9050), criada pela Promotoria de Justiça de Defesa do
Idoso e do Portador de Deficiência (PRODIDE), e pelo
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
(MPDFT).
Outro equipamento interessante é o elevador acessível,
instalado nos transportes coletivos. No Guarujá, por
exemplo, toda vez que Taiu sente vontade de surfar, o jeito
é ir para a praia de ônibus. “O Taiu anda mais de ônibus
do que de carro”, conta Neco Carbone.
O companheiro de ondas de Neco explica o porquê: “O
ônibus para e eles abaixam o elevador”, revela Taiu. “É
mais fácil e demora apenas um minuto”.
156
Para implantar o elevador no transporte público, também exige-se o
cumprimento de uma série de normas técnicas. Ele, que nada mais é do que
uma rampa motorizada, deve permitir, por exemplo, que tanto a pessoa com
deficiência em cadeira de rodas, como a pessoa com mobilidade reduzida
em pé, tenham acesso ao interior do veículo. É importante também que essa
rampa elevatória tenha uma largura mínima útil de 800 mm, e que esteja
totalmente fixa ao veículo, sem nenhum vão entre o ônibus que exceda 15mm
quando em posição de operação ou transporte.
Na opinião de Neco e Taiu, os elevadores nos ônibus do Guarujá deixam tudo
mais prático. “Eu posso ir para lá e para cá o dia inteiro, e ainda economizo
bateria”, brinca Taiu, falando da própria cadeira de rodas.
Brincadeiras à parte, na areia, a preocupação com o acesso continua. Tudo
porque as rodas da cadeira de Taiu não foram feitas para transitar em
uma superfície tão grossa e disforme. É nessa hora que dois equipamentos
adaptados chegam para cumprir funções muito especiais e tornar a praia um
pouco mais acessível. São eles: a esteira de acesso e a cadeira anfíbia.
157
Geralmente confeccionada em plástico ou bambu, a esteira foi criada para
facilitar o trânsito de pessoas nas faixas de areia. Curiosamente, ela não só
ajuda as pessoas com deficiência, como também pessoas com mobilidade
reduzida, idosos, crianças, gestantes e mães com carrinhos de bebê. De
acordo com o Guia de Acessibilidade das Praias, desenvolvido pela ONG
Adapt Surf, essas esteiras melhoram a circulação das pessoas, além de
proporcionarem maior autonomia.
Se na areia, a esteira é uma mão na roda, na água é a cadeira anfíbia que
melhora a mobilidade das pessoas com deficiência. “A cadeira é a única
maneira dos usuários de cadeira de rodas entrarem no mar com autonomia
e segurança, sem a necessidade de serem carregados”, explica Ricardo
Gonzalez, do Instituto Novo Ser, no Rio de Janeiro. De acordo com ele, este
equipamento, em particular, possibilita que a pessoa com deficiência usufrua
e aproveite com dignidade, o lazer proporcionado pela praia.
158
Muito parecida com uma cadeira comum, o
tipo anfíbia possui assento reclinável e apoios
de pés ajustáveis em várias posições. Mas seu
principal diferencial está nas rodas, especialmente
desenvolvidas para andar na areia e flutuar na água.
Segundo a professora Luana Nobre, da ONG Adapt
Surf, o valor do equipamento varia de acordo com a
quantidade de rodas: a cadeira com quatro rodas,
chega a custar em torno de 4 mil e 500 reais, a com
três; 2 mil e 500, e a mais simples, com duas rodas
apenas, pode ser comprada por 1 mil e 500 reais.
“O custo final do equipamento sempre foi muito
caro”, opina Ricardo. De acordo com ele, o governo
não dá subsídios e nem oferece esse tipo de
tecnologia a quem precisa. Além disso, ele acredita
que o número de cadeiras anfíbias de uso gratuito, é
insuficientemente compatível com a quantidade de
pessoas que tem alguma deficiência no Brasil. “Essa
159
ferramenta está ainda muito longe de quem precisa,
se pensarmos na extensão litorãnea de quase 9 mil
quilômetros do país”.
Enquanto a costa brasileira não é totalmente
beneficiada com a chegada do equipamento, as pessoas
com deficiência podem adquirir a cadeira em lojas
especializadas ou pela internet. A professora Luana
recomenda sempre o modelo com quatro rodas, que
proporciona maiores benefícios. “Ele é o mais indicado,
pois facilita a locomoção e a flutuabilidade, além de
proporcionar maior conforto para o usuário”.
Outra opção é frequentar a praia do Leblon aos
domingos, e participar das atividades gratuitas da ONG
Adapt Surf. “A prefeitura do Rio cedeu por meio de
convênio estabelecido, em 2008, duas cadeiras anfíbias
para a ONG desenvolver as atividades gratuitamente.
Para utilizá-las é só frequentar praia do Leblon, em
frente ao posto 11, todos os domingos das 10 às 16 horas.”
160
Acessibilidade e oportunidade são responsáveis pela diminuta participação de pessoas deficientes na sociedade. Essas dificuldades ficam claras quando observamos que tudo é elaborado para os ditos “normais”. Como exemplo, um simples degrau ou uma porta com largura inferior ao de uma cadeira de roda, em um banheiro, pode impossibilitar a passagem. (ANDRADE; BRANDT, 2008)
Na água, com exceção das pranchas adaptadas, os equipamentos utilizados
pelas pessoas com deficiência não diferem muito dos utilizados pelos surfistas
iniciantes. Algumas pessoas que surfam de bodyboard, por exemplo, fazem
uso do pé de pato, um acessório para ajudar no nado e na prática de esportes
aquáticos. Há também os que se protegem por meio do uso do coletes salva
vidas, como a surfista carioca Monique Oliveira e o próprio Taiu Bueno. Eles, que
tiveram a coordenação motora e os movimentos do corpo comprometidos, em
tipos e graus diferentes, se sentem mais seguros ao fazer o uso do equipamento.
Além do colete, Taiu usa também uma bóia no pescoço, ítem indispensável no
caso dele, que não tem os movimentos do ombro para baixo. No caso da prancha
virar, como já aconteceu, é o equipamento que traz Taiu para a superfície, mesmo
quando ele e os amigos estão surfando no fundo.
161
É exatamente nesse horário, quando o céu se pinta com
a cor alaranjada das castanhas, que Taiu costuma sair do
condomínio onde vive para dar uma volta. Comandando a
cadeira motorizada com o queixo, o surfista passeia pelo calçadão
acinzentado e rodeado de coqueiros, desenhando, ainda que sem
saber, fragmentos de um novo retrato social. Sua autonomia é
uma das maiores provas de que, apesar dos desafios, a sociedade
está se transformando. E de que, muito em breve, viveremos em
um mundo acessível a todos.
162
Praia Para Todos
O processo é demorado, mas com a ajuda de instituições
engajadas, as transformações começam a aparecer. De acordo com o
Guia de Acessibilidade nas Praias, elaborado pela ONG Adapt Surf, em
2010, só no Rio de Janeiro existem sete praias com um nível médio de
acessibilidade para pessoas com deficiência. São elas: Leme, Copacabana,
Arpoador, Ipanema, Leblon, São Conrado e Barra da Tijuca. Isso significa
que a maioria das praias citadas oferece uma parte das adaptações básicas
necessárias para a prática do surf adaptado e do turismo acessível.
163
Para classificá-las a ONG elegeu cinco itens: rampas de acesso à faixa de
areia, esteiras para circulação, cadeira de rodas anfíbia, equipe especializada
e infra-estrutura (com postos de salvamento, chuveiros e banheiros
adaptados, faixa de pedestres com sinal sonoro, vagas de estacionamento,
piso tátil, guias rebaixadas e rampas de acesso).
Apenas três praias cariocas estão no nível regular (Diabo, Recreio e
Macumba) e quatro no nível ruim ( Joatinga, Reserva, Prainha e Grumari).
164
Pitangueiras, Guarujá.Foto: Mariana Pedroso
164
165
Em São Paulo, o projeto de praia acessível também já aconteceu,
especialmente nos municípios de Santos e Guarujá. A cidade onde Taiu mora
com a esposa, por exemplo, recebeu no ano passado, 12 cadeiras anfíbias15,
segundo informações do Governo do Estado de São Paulo.
“Aqui no Guarujá eles fizeram a praia acessível acontecer durante o verão, e
todo mundo ficou empolgado”, revela Taiu. Mesmo não sabendo se o projeto
terá novas edições, o surfista antecipa o apoio. Para ele, essa foi uma iniciativa
bastante interessante da prefeitura.
15 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Notícia: Governo entrega 12 cadeiras anfíbias para o município do Guarujá. Disponível em: http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=209008. Acessado em: 20 de out. de 2011.
165
166
O que aconteceu no Guarujá é bastante semelhante ao Praia para Todos,
realizado pelo Instituto Novo Ser, lá no Rio de Janeiro, e o Praia Acessível,
que acontece em Portugal.
A iniciativa européia partiu de três instituições: o Instituto Nacional para
a Reabilitação, o Instituto da Água e o Instituto do Emprego e Formação
Profissional, em parceria com o turismo de Portugal, e o objetivo é
o mesmo: oferecer uma estrutura que possibilite o acesso a todas as
pessoas, independente das condições físicas de cada uma.
167
Com este projecto, e na sequência do que se encontra previsto para a orla costeira e atendendo também à legislação sobre acessibilidade, designadamente o que dispõe o Decreto-Lei nº 163/2006, de 8 de Agosto, pretende-se que as zonas balneares, designadas como tal no âmbito do Artigo 51º do Decreto-Lei nº 236/98, de 1 de Agosto, reúnam um conjunto de condições que permitam o seu uso por todas as pessoas, sem que se ponha em causa a idade e as dificuldades de locomoção ou mobilidade. (Praia Acessível, Instituto Nacional para a Reabilitação)
168
Certa vez, a prancha de Taiu Bueno virou durante uma sessão de
surf. O amigo Neco Carbone, e os outros surfistas que estavam na
praia, ficaram muito preocupados.
Em meio à correria, Taiu foi o único a manter a calma. E
tranqüilizou os amigos, passando orientações do que deveria ser
feito.
Na beira da praia, livre do perigo, o surfista esperou a adrenalina
baixar e fez um pedido: disse às pessoas que queria voltar ao mar.
Admirados e intrigados com sua coragem, eles apanharam a
prancha e retornaram às águas do Guarujá para fazer a vontade
do amigo.
Hoje, sentado ao meu lado, Taiu demonstra ter muito mais do
que paixão pelo esporte: existe uma sintonia mágica entre ele e a
praia.
E é essa conexão, quase surreral, que faz de Taiu um expert das
ondas, e permite a ele saber a hora e o momento certo de entrar
na água.
168
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Corpo Adaptado
Se existem aqueles que precisam de equipamentos especiais para
enfrentar as ondas, também existem aqueles que fazem do próprio
corpo, uma arma de combate para encarar o oceano. Alcino Pirata é
um deles. Por causa da deficiência, ele desenvolveu um estilo próprio
de surfar, que consiste em utilizar as mãos e o joelho.
“Depois do acidente, ele quis voltar a surfar de bodyboard16”, explica
Neco Carbone, compadre e amigo de Alcino. No entanto, de acordo
com o shaper, o surfista não gostou de surfar deitado, e resolveu pegar
uma prancha emprestada, dias depois, para tentar surfar novamente
de pé. “Foi aí que ele criou esse estilo de surfar com um pé direito atrás
e a mão esquerda na frente”, diz ele. “Hoje ele surfa com uma prancha
normal, sem nenhuma adaptação”.
Sobre a técnica desenvolvida, Alcino Pirata é objetivo: “descobri o
centro de gravidade perfeito e me sinto totalmente seguro”.
16 Prancha em que se surfa deitado.
170170
171
Alcino PirataFoto: Bruno Lemos
171
172
O aluno Gabriel parece seguir os mesmos passos do professor,
e aperfeiçoa a cada dia, a execução dos movimentos em cima
da prancha. Com muito treino e força de vontade, ele também
descobriu sozinho o melhor jeito de se equilibrar para se manter
sobre as ondas.
Gabriel conta que no começo caiu muitas vezes da pranchinha
bicuda, mas que nunca pensou em desistir. De acordo com
ele, coragem e persistência foram os ingredientes especiais da
receita, enquanto o apoio dos mestres, o tempero essencial.
“Os professores me ajudaram muito”, diz ele, sobre a fase de
aprendizado. “O pessoal da escola é bem legal”.
173
Gabriel CristianoFoto: Mariana Pedroso
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O sufista Henrique SaraivaFoto: Fabio Minduim
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Adaptar o próprio corpo também foi uma opção para o surfista Henrique
Saraiva, lá do Rio de Janeiro. Apesar de não ser considerado como uma
modalidade do surf adaptado, o “kneeboard,” ou surf de joelhos, foi o jeito
que ele encontrou de aproveitar as ondas. “Antes de surfar de kneeboard,
tentei surfar de bodyboard”, diz Henrique, “mas tive muitas dores de
coluna”. Hoje, surfando em alto estilo, as dores passaram e o surfista
mudou sua perspectiva. “O surf pra mim é mais do que um esporte,
tornou-se um estilo de vida”.
[...] Então não tem essa diferença: se o cara é profissional, se o cara não manda bem ou se ele vai reto, ele está surfando do mesmo jeito. Mesmo que o cara tenha algumas dificuldades ou debilidades, ele ainda está surfando.
( Jair de Oliveira para o documentário Aloha, 2010)
176
Aprender a controlar a mente e o corpo não é uma tarefa fácil. Para chegar
onde estão hoje, Pirata, Gabriel e Henrique, tiveram que cair várias vezes e
engolir muita água. O psicólogo Leandro Kruszielski consegue explicar porque
equilibrar-se em uma prancha é tão difícil. Segundo ele, o que torna a atividade
tão complexa é o equilíbrio dinâmico exigido pelo esporte, exatamente o mesmo
que a pessoa tem que ter quando vai andar de skate ou bicicleta.
“O atleta precisa manter-se de pé enquanto desloca-se na água (assim como o
ciclista precisa pedalar para poder continuar em equilíbrio)”, explica. “Essa é uma
característica interessante do surf ”.
177
Leandro também compara o surf com uma teoria famosa de Jean Piaget17,
conhecida como equilibração. Resumidamente, essa teoria consiste em
compreender o conhecimento humano partindo do princípio de que todo ser
humano procura manter um estado de equilíbrio (adaptação) com o meio. “O
desenvolvimento cognitivo (em outras palavras, o modo como a gente se percebe
ou interpreta) não é um crescente linear, mas uma espécie de espiral que prevê
certos avanços e retrocessos nas estruturas mentais”, explica Leandro. Isso quer
dizer que, assim como no surf, nem sempre é possível ter sucesso e se equilibrar às
mais adversas situações da vida.
17 Foi um epistemólogo suíço, considerado como um dos mais importantes pensadores do século XX. Defendeu uma abordagem interdisciplinar para a investigação epistemológica e fundou a Epistemologia Genética, teoria do conhecimento com base no estudo da gênese psicológica do pensamento humano.
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A brisa fria que vem do mar finalmente vence os turistas que transitam sem camisa.
Ainda dá para ver o sol, misturado entre as nuvens, mas alguma coisa nas horas diz
que já é tarde, e convida todos a ir para a casa.
Rostos queimados e sacolas de vime seguem na direção dos condomínios, em mais
uma tarde de domingo que se acaba.
Devagar, as areias de Pitangueiras se descobrem vazias e solitárias, sobrando apenas
os buracos deixados pelos guarda-sóis.
179
Taiu Bueno se despede de nós. E depois de atravessar a rampa de acesso, e andar
alguns metros, some no condomínio.
Nesse fim de tarde, não teremos surf, e uma parte de mim está frustrada: por um
momento, sinto-me como um jogador de futebol, na final de um campeonato, que
mesmo com a vitória, lamenta um gol perdido.
Entretanto, a luz do surfista é tão forte, que de repente, me sinto confortada de novo.
E entendo que não foi preciso ver o surf acontecer para me sentir incrível.
É chegada a hora da alma guerreira descansar, com o coração preenchido de duas
certezas: amanhã o sol vai nascer de novo. E quando nascer, as ondas estarão
esperando por ele, mais uma vez.
180
Foto: Arquivo “Aloha”
180
181181
Capítulo 4
Um Aloha àInclusão
182
O único shopping do Guarujá fica na praia de Pitangueiras,
em frente a dezenas de condomínios residenciais. Seja de
manhã ou à tarde, é que aqui que as pessoas costumam se
reunir para fazer compras, tomar um café ou simplesmente, zanzar pelos
corredores estreitos.
Pelo La Plage passam, diariamente, turistas e moradores que procuram,
dentre outras coisas, fugir da água do mar e do calor da areia. Ponto de
encontro entre casais e amigos, o shopping é também, um refúgio para
uma dupla carismática e divertida, que não dropa1 nas ondas e nem gosta
de praia, mas entende muito de surf adaptado.
Elas mal se formaram do colégio e já são cineastas. Paula Luana Maia e
Carol Araújo, vencedoras da 9ª edição do “Curta Santos”, contam que a
ideia de fazer um filme sobre surf adaptado nasceu de repente, durante
uma aula de produção de roteiro nas Oficinas Querô. Junto do amigo
Nildo Ferreira, as duas meninas escreveram o projeto que, futuramente,
seria exibido em São Paulo, Rio de Janeiro e Portugal.
1 Descer a onda da crista até a base.
183
Mais Surfe Aqui
O documentário produzido por Paula e Carol não é o único a tratar de surf
adaptado. Em 2008, o jornalista Antonio Zanella, produziu o documentário
“Uma Luz no Fim do Tubo”, que conta a história do surfista catarinense
Elias Figue Diel. O objetivo era mostrar ao público a trajetória do atleta
considerado como uma promessa do surf na década de 80, o acidente que o
deixou cego, e o retorno de Figue às ondas.
Apresentado como um dos pré-requisitos para a graduação em Jornalismo,
na Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina, o trabalho de Zanella já
recebeu diversos prêmios, como o 2º lugar no Prêmio Unimed-SC Categoria
TV, em 2009. Além disso, ficou entre os finalistas em uma série de festivais
(Mostra Puc-Rio; Mostra Paralela Gramado Cine Vídeo; Festival Brasileiro
de Filmes de Aventura, Turismo e Sustentabilidade; Festival Aruanda;
Festival Um Novo Olhar e Festival Entretodos). Na internet, onde Zanella
disponibilizou o documentário2, o filme atingiu mais de 9 mil exibições.
2 ZANELLA, Antonio. Uma Luz no Fim do Tubo. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=zNJAtRpUY7c. Acessado em: 20 de jun. de 2011
184
Mas a maior felicidade para este jovem jornalista é saber que o seu
trabalho ajudou na divulgação do esporte, e que as coisas mudaram muito
desde a época que começou a pesquisar sobre o assunto.
“Assisti a um campeonato no Arpoador em que nos intervalos das finais
entravam baterias de exibição com deficientes. Fiquei emocionado, porque
há quatro anos, quando comecei a pesquisar sobre o assunto, era difícil
achar alguma coisa relacionada”, conta. “Se isso tem alguma relação ou
não, não importa. Tenho certeza que fiz minha parte e agradeço todos os
dias, por ter conhecido pessoas tão especiais como o Figue”.
Para o jornalista, as obras intelectuais, de um modo geral, contribuem
para promover o esporte, e romper preconceitos ainda fortemente
presentes em nossa sociedade.
“Muita gente relaciona o surf com esporte perigoso e impossível de ser
praticado por deficientes; coisa de maconheiro ou vagabundo”, diz. “É hora
de mostrar o outro lado, com exemplos de reabilitações sociais”.
185
186
Recentemente, duas produtoras americanas do grupo Sony Pictures,
resolveram roteirizar a trajetória de Bethany Hamilton, outra surfista
com deficiência. O resultado foi o filme “Soul Surfer”, que já estreou
nos Estados Unidos, mas ainda não tem data para chegar ao Brasil.
O longa-metragem tem 106 minutos, e retrata o início da carreira de
Bethany, o ataque de tubarão que a deixou deficiente e a luta da atleta
para voltar ao mar.
“O Passo de Um Vencedor”, que está sendo produzido pela Um Mais
Um – Comunicação e Imagem, segue a mesma onda dos filmes de
surfistas com bonitas histórias de vida. Trazendo como personagem
principal o surfista Paulo Eduardo Chieffi Aagaard, o “Pauê”, a obra
187
tem o objetivo de retratar a vida do atleta de São Vicente, que perdeu
parte das duas pernas quando mais jovem, depois de um acidente de
trem.
O filme contará com a participação do maestro João Carlos
Martins, que também é citado na autobiografia do surfista, o livro
“Caminhando com as Próprias Pernas”.
E por falar em livros, a modalidade também recebeu a contribuição
de Octaviano Taiu Bueno, que lançou “Alma Guerreira”, em 1999. O
livro contém a trajetória do surfista que inspirou gerações, crônicas de
viagens, relatos de momentos do acidente e o depoimento sincero de
como ele superou tudo.
188
A união das jovens produtoras de Aloha foi fundamental para que a dupla
conseguisse produzir o filme, em 2010. Afinal, se não fosse a parceria e o espírito de
cooperatividade, o curta-metragem teria muito menos chances de dar certo.
Hoje, caminhando pelos corredores do La Plage, com a praia de Pitangueiras ao
fundo, elas relembram do quanto a amizade é importante quando o assunto é
inclusão. E se emocionam ao recordar da equipe entrosada, durante o período de
gravação do filme.
Se, descer uma onda, em dia de mar clássico, já é muito bom; melhor ainda é surfar
essa mesma onda, ao lado de um amigo.
189
Amizade e Parceria
O oceano também é o lugar dos encontros. Entre uma série3 e outra,
histórias se cruzam e se intercalam. Como a amizade de Taiu e Robson
Careca, surfista que ficou paraplégico depois de sofrer um acidente
automobilístico: Paula e Carol, que estiveram com a dupla no ano passado,
durante as filmagens de “Aloha”, contam que os dois já eram grandes
amigos antes de se tornarem deficientes.
“O Robson foi visitar o Taiu no hospital quando ele se acidentou”, contam
elas. Anos depois, foi Taiu quem teve de visitar o amigo, para retribuir o
apoio e dar força.
“As coisas vão melhorando. Não adianta ficar estatelado em uma cama,
achando que a vida acabou, porque ela não acabou” (Taiu, para uma
entrevista do SBT Repórter, em outubro de 2010).
3 Sequência de ondas.
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Hoje, tanto Taiu quanto Robson voltaram a surfar. Mas, quando
o assunto é quem tem o maior número de amigos surfando a
mesma onda, é Taiu quem sai frente, por ter uma prancha que o
permite surfar com mais duas pessoas. Neco Carbone é uma das
pessoas que costumam acompanhar Taiu nas longas sessões de
surf.
Quando o mar está clássico, lá na praia das Astúrias, é ele quem
faz questão de levar o amigo para curtir as ondas. “Eu tenho
medo quando ele vai surfar com alguém e eu não estou junto”,
diz ele. Além disso, há o carinho e o cuidado de amigo, que
incentivam Neco a estar sempre por perto.
Um pedaço do coração do shaper também está com Alcino
Pirata, amigo de longa data e padrinho de Pedro, filho do Neco.
Eles, que cresceram juntos, encontraram no surf a oportunidade
de transformar o laço de amizade em um sentimento muito mais
forte, que só se perpetua com o passar dos anos. “A primeira
prancha do Pirata, era minha”, relembra Neco. “Eu vendi-a
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para ele, e foi com ela que ele começou a entrar em
campeonatos”.
De acordo com Neco, a amizade que nasceu antes da
deficiência de Alcino, continua forte: Pirata ainda
encomenda pranchas de surf, e ajuda o shaper a
desenvolver equipamentos para pessoas com deficiência
física.
“Com o Pirata, eu tive a oportunidade de desenvolver
muitas pranchas adaptadas, porque ele tem uma visão
muito boa para criar a técnica para cada deficiência”,
explica. “Muito do que eu aprendi sobre prancha
adaptada, foi na convivência com ele”.
Viajando no balanço das ondas, os encontros continuam
a acontecer. Voltando à experiência vivenciada pelas
garotas de “Aloha”, descobre-se que os personagens
do filme foram muito mais do que colegas de elenco,
durante as gravações.
192
“Existia muita amizade. O Henrique Saraiva, por exemplo,
trouxe o fisioterapeuta dele (o educador Luiz Phelipe), e ele
acabou ajudando o Careca, o Taiu e o Val”, contam.
“Parece que, por serem deficientes, eles são mais unidos do que
tudo. Isto é muito bonito”.
Foi o Aloha também que uniu as histórias de Val e Taiu. “Eu
ainda não surfava nas primeiras tomadas do filme”, conta Taiu,
“mas eu fui para a praia do Pernambuco ver o pessoal surfar.
Estava muito frio”, lembra, “começou a anoitecer e todo mundo
foi para a calçada. O Val continuou de sunga, todo feliz”.
Taiu ficou impressionado com a vontade de viver do colega:
“Pensei ‘ele não enxerga, mas pegou onda. Olha a felicidade
desse cara!’“
193
Os amigos Taiu e Neco.Foto: Diana Bueno
193
194
Sociedade Deficiente
Embora exista união e gente interessada em fazer as coisas darem certo, ainda
há muito o que ser feito para que todas as pessoas tenham acesso ao esporte.
Oportunidade é a palavra de ordem. Apesar do trabalho já existente de algumas ONGs
no Brasil e no mundo, ainda faltam postos de atendimento, equipes com profissionais
preparados e equipamentos em bom estado à disposição das pessoas. Neco Carbone
é uma das pessoas que levantam essa bandeira. Por acompanhar de perto a rotina
do amigo Taiu Bueno, Neco sabe mais do que ninguém, o quanto é difícil enfrentar a
falta de acesso nas praias e a inexistência de pessoas preparadas para darem o devido
suporte.
“O Taiu não pode surfar o quanto ele gostaria, por falta da disponibilidade de uma
equipe”, declara. “Às vezes, o dia que está bom para ele, eu estou enroscado no
trabalho, e fica difícil conciliar os horários”.
Taiu pensa a mesma coisa que o amigo, e por essa razão, alimenta o sonho de fundar
uma ONG. A ideia do surfista é ter um posto na praia das Astúrias, onde o surf
é menos perigoso, que disponha de fisioterapeutas, instrutores, cadeiras anfíbias,
195
esteiras para circulação em faixas de areia e demais equipamentos. E o mais importante
é que, se tudo sair de acordo com os planos de Taiu, todos os serviços serão prestados
gratuitamente, para ampliar ainda mais o número de possíveis praticantes.
“Isso não tem preço”, afirma Neco. “É um serviço que não tem que ser cobrado”.
Enquanto os recursos para abrir a ONG não vêm, o jeito é esperar pelas ações do
governo, e acompanhar as parcerias que já deram certo. Um modelo a ser seguido é
o projeto da Escola Radical, em Santos, que leva surf de graça para idosos, crianças,
adolescentes e pessoas com deficiência. No comando da escola, está o professor Cisco
Araña, surfista desde 1968 que enxerga no surf, uma proposta viável de lazer e inclusão
social. Para ele, que possui um projeto em comunhão com o governo há 20 anos, a união
entre empresas e primeiro setor, tem grandes chances de dar certo.
“O poder público e o poder privado podem andar juntos”, opina Cisco. “E tanto o
político quanto a empresa devem doar aquilo que é necessário para desenvolver essa, e
outras questões”.
A psicóloga Mariú Casselli concorda com o professor em relação ao apoio político, e
aposta também na atenção à criança. Para a psicóloga, é cuidando da base que a gente
196
otimiza as questões sociais.
E por falar em criança, escolinhas de surf adaptado podem contribuir, e muito, com
o desenvolvimento e a divulgação da modalidade. Na opinião do surfista carioca
Robledo de Oliveira, é só através da implantação de lugares assim, que essas questões
receberão a devida atenção. “Precisamos acreditar nessas escolas”, diz ele “e expandi-
las mundo afora, para que todos tenham uma chance de serem felizes”.
A divulgação também é importante. Apesar das matérias na imprensa, das biografias
publicadas e das produções audiovisuais, ainda há quem desconheça a existência do
surf adaptado. Para a surfista Monique Oliveira, muitas pessoas, principalmente as
que têm deficiência, precisam saber que a oportunidade de surfar existe, e que se trata
de uma prática segura, acompanhada por profissionais que entendem do assunto.
Já o surfista Val, acredita que outra coisa que precisa ser repensada é a maneira
como as instituições voltadas à pessoas com deficiência atuam. De acordo com ele,
principalmente as entidades destinadas a pessoas com deficiência visual, querem
determinar o que cada pessoa precisa fazer.
197
“Ainda querem que a gente pratique esportes clássicos para quem é cego, como o
goalball”, diz. “Uma pessoa cega hoje é tratada do mesmo jeito que era tratada anos
atrás, não evoluímos nada”.
Os autores Boas, Bim e Barian reafirmam essa ideia: “Sabe-se que a prática de
uma atividade adaptada é pouco difundida, além de pouco diversificada - quando
existe”.
Mas, mesmo que se criem espaços para a prática do surf inclusivo, que nasçam
parcerias entre governo e setor e privado, que as instituições que lidam com pessoas
com deficiência revejam seus conceitos e que haja maior participação da mídia
na divulgação do esporte, nenhuma dessas ações irá funcionar se as praias não
dispuserem de uma arquitetura compatível com as necessidades das pessoas, com
todos os itens básicos de acessibilidade, como rampas de acesso à faixa de areia,
esteiras para circulação, cadeira de rodas anfíbia, equipe especializada e infra-
estrutura (com postos de salvamento, chuveiros e banheiros adaptados, faixa de
pedestres com sinal sonoro, vagas de estacionamento, piso tátil, guias rebaixadas e
rampas de acesso).
198
199
Pelo menos, é o que pensa Ricardo Gonzalez, do Instituto Novo Ser. “Ainda falta
acessibilidade física (rampas, banheiros acessíveis, rebaixamentos de calçada,
esteiras para passagem de cadeira de rodas na areia, sinalização sonora e
acessibilidade tátil), além de tecnologias assistivas como as cadeiras anfíbias, que
garantiriam o benefício do contato com a praia para todas as pessoas”, diz. “Por
isso, a infraestrutura da praia e seu entorno precisam ser melhorados. Essa pasta
tem que ser trabalhada com mais seriedade e continuidade pelos governantes”.
[...] Estas dificuldades resultantes da pouca estrutura para os deficientes físicos, acabam excluindo-os da vida socializada, afinal o portador de deficiência tem as mesmas necessidades de qualquer outro individuo, ou seja, necessita ser valorizado e participar do grupo familiar e social.
(ANDRADE; BRANDT, 2008)
A questão a qual Ricardo se refere é tão séria que até no Guarujá, por onde o
projeto Praia Acessível já passou, ainda há muito o que ser feito.
As produtoras de “Aloha” contam que, no ano passado, precisaram de uma cadeira
anfíbia para prosseguir com as gravações do filme, e que se surpreenderam ao
descobrir que não teriam acesso ao equipamento.
200
“Quando eu procurei as prefeituras das cidades da baixada para usar a
cadeira anfíbia”, conta Carol, “não encontrei nenhum responsável pelo
equipamento. A possibilidade de usarmos a cadeira simplesmente nos foi
vetada”.
A sorte das garotas foi que o Henrique Saraiva, lá do Rio de Janeiro, levou
uma cadeira anfíbia para as gravações.
Ainda de acordo com as meninas, o problema não foi só com relação às
cadeiras anfíbias, mas também com o uso de esteiras para circulação
em faixa de areia. Como dois dos personagens do documentário eram
cadeirantes, a produção precisava do equipamento para facilitar a locomoção,
durante as filmagens.
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201
“As esteiras eram enormes e tiveram que vir de Santos”, contam.
“Infelizmente, o sistema é bem falho, e esses equipamentos só são usados
em projetos como o do Pirata no Guarujá, ou da Adapt Surf, no Rio”, reforça
Carol.
A dupla lembra também que grande parte da estrutura acessível do
município não veio por meio de iniciativas públicas.
“A acessibilidade que existe no shopping e na praia toda, quem conseguiu foi
o Taiu. Antes ele não podia nem subir na calçada para passear na praia”.
202
Mara Gabrilli também levanta a bandeira da arquitetura acessível. “As
pessoas precisam ter saúde para praticarem esporte, mas também precisam
ter calçada em boas condições e transporte adaptado para poderem,
primeiramente, sair de casa”, diz. “É o conjunto de serviços bem executados
que determinam o acesso da pessoa com deficiência ao esporte”.
Uma cidade é um projeto de vida. É um plano de vida e um espaço de vida. Para o indivíduo, para a família, para a sociedade, para a biodiversidade e, quer a habitemos, desfrutemos ou compartilhemos, devemos desenvolvê-la como em um sonho, em uma utopia que algum dia alcançaremos. Quando, não o sabemos. Mas temos de alcançá-lo. (RUIZ, Seminário Internacional Esporte e Sociedade)
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Mara surfando na big prancha de Taiu.Foto: Elza Albuquerque
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Mara divide as ondas com os surfistas locais e faz a inclusão acontecer.Foto: Elza Albuquerque
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Juntos
À medida que o tempo passa, fica mais evidente que o surf adaptado é
muito mais do que um esporte para pessoas com deficiência. O estilo livre e a
inexistência do fator competitivo permitem uma interação maior, possibilitando
que as pessoas pratiquem o esporte todas juntas, em qualquer praia do mundo.
Porque, mais importante do que promover o contato entre pessoas com
deficiência, é fazer a inclusão social chegar às vias de fato. Isso significa romper
com o antigo costume de achar que projetos isolados, voltados somente a pessoas
com deficiência, podem realmente, incluí-las na sociedade.
[...] Será possível pensar na criação de um esporte no qual todos participassem juntos, deficientes ou não? Será possível uma educação física inclusiva? Não temos respostas para muitas questões, mas entendemos que este é o momento de reflexões e quem sabe descobertas. Podemos afirmar que conviver com a diferença e a diversidade humanas é possível, mas teremos que superar valores e princípios estigmatizantes ainda tão presentes nas relações sociais entre os homens.
(COSTA; SOUZA, 2004)
206
O surf tem se apresentado como uma janela para o novo. E não é à toa que a
modalidade recebe o apoio de quem já tem muitos anos de ondas nas costas.
O surfista Robledo de Oliveira, por exemplo, é um veterano no ambiente salgado.
São 25 anos surfando e compartilhando a paixão pelo esporte, algo que o torna
praticamente um PhD no assunto.
Apesar do prestígio e dos inúmeros campeonatos disputados, o surfista de
Saquarema, conhecida como a Capital Nacional do Surf, não perde a humildade.
Robledo admira o surf adaptado, e acredita que a modalidade é o melhor jeito da
pessoa com deficiência mostrar sua garra e valor: “É um ato de superação muito
forte, que mostra para todo o mundo, o quanto o ser humano pode se superar”.
Ainda na opinião do surfista, a modalidade em si, possui algumas vantagens sobre
as demais atividades adaptadas, porque além do propósito esportivo, representa
também o encontro do ser humano com ele mesmo. “O surf adaptado”, diz “é
completo em todos os sentidos, por preencher todos os espaços vazios do corpo, da
mente, e da alma”.
207
Diz-se que a cidade deve ser construída para todos. Isso pode ser visto em todas as campanhas políticas, “a cidade para todos”, “o país para todos”, eu mesmo vi muitos anúncios desse tipo aqui. Mas atrevo-me a dizer que não, que se deve construir a cidade e o país com todos, não para todos. Porque sempre aprendemos dos outros e com outros, porque os outros são a melhor possibilidade, porque só é possível realizar nossos sonhos quando nos encontramos com os sonhos de outros. Porque para construir um projeto de vida pessoal, familiar e social, é necessário acreditar em si mesmo e partilhar com todos.
(RUIZ)
Em Niterói, conhecida como Cidade Sorriso, outra lenda viva do esporte também
apóia a inclusão social nas ondas. Ricardo Tatuí tem 31 anos de surf, muitos
títulos e grande admiração pelas pessoas com deficiência que se aventuram no
oceano.
“É super legal ver alguém se esforçar para surfar, mesmo com alguma
dificuldade”, diz. “Eu acho o surf adaptado muito bom”.
Ele, que fundou uma ONG em 1998 com o propósito de ensinar surf para
crianças e adolescentes, é uma das pessoas que mais acreditam no surf como
proposta de inclusão social. Para Ricardo, além de tudo o que já está sendo feito
em prol da categoria, seria também muito interessante inserir a modalidade de
vez nos eventos de surf: “É uma excelente oportunidade de inserção”, diz ele.
208
A ideia do Ricardo é boa, e já foi abraçada por alguns dos principais campeonatos
de surf do mundo. Em outubro desse ano, o “Quiksilver Brazil Open of Surfing”,
realizado na praia do Arpoador, no Rio de Janeiro, contou com a exibição dos alunos
da Adapt Surf; que caíram na água para mostrar do que são capazes.
E por falar na ONG carioca, é importante lembrar que, durante todo o ano, a
instituição realiza demonstrações de surf adaptado. É por meio dessas exibições que
as pessoas podem conferir o trabalho da instituição de perto, e aprender um pouco
mais sobre o esporte.
Já na Austrália, do outro lado do globo, é a Disabled Surfers Association a responsável
por ações semelhantes. O presidente da instituição revela que, atualmente, é ela quem
detém o maior evento de surf adapto do mundo: “São mais de 160 participantes com
deficiências graves”, diz Gary.
Na América do Norte, o “Extremity Games” também está entre os destaques. Como o
próprio nome sugere, são jogos organizados pela Athletes with Disabilities Network
209
(ADN), com o objetivo principal de promover qualidade de vida para as pessoas com
deficiência, através do esporte.
Em Portugal, mais especificamente na Costa da Caparica, a bola da vez é o “Surf for
All”. Trata-se um evento gratuito, destinado a pessoas com deficiência, organizado
pela Duckdive – Bodyboard & Surf School & Camp, juntamente com a Associação
Salvador, o Estado Liquido.org e a Federação Portuguesa de Desporto Para Pessoas
com Deficiência.
Por último, em Peniche, no distrito de Leiria, é no “Rip Curl Pro Portugal” que os
surfistas com deficiência se encontram para curtir as ondas. A Federação Nacional
de Cooperativas de Solidariedade Social (Fenacerci) é a entidade responsável por
coordenar a participação dos surfistas adaptados no evento.
As sessões irão permitir que Organizações Associadas da FENACERCI (CERCI’S) possam usufruir de uma experiência de surf única e inesquecível, bem como contactar com um evento de grande prestígio Internacional e impacto mediático que decorre em Peniche.
(Nota de Imprensa – Fenacerci)
210
Aos poucos, a modalidade vai ganhando o espaço e o prestígio que merece. E pessoas
com deficiência, que sofreram discriminação e preconceito em outras modalidades
esportivas, vão recebendo a chance de realizar no surf, o sonho da inclusão social.
Como o Val, que no ano que vem, vai disputar o seu primeiro campeonato. Ou como
alunos da Adapt Surf, que durante o Quiksilver Brazil Open of Surfing, no Arpoador,
foram aplaudidos de pé por gente que fez do amor pelas ondas, sua profissão.
Talvez, em um futuro não muito distante, quando o surf for transformado em um
esporte olímpico, veremos atletas como Val, Henrique Saraiva, Alcino Pirata, Gabriel
Cristiano, Andre Souza, Monique Oliveira, Taiu Beuno e tantos outros, subirem ao
pódio.
Porque é ali, no patamar mais alto do esporte, em um degrau mais perto das estrelas,
que esses talentosos guerreiros, sempre mereceram estar.
211
Considerações Finais
Em uma rua qualquer do Guarujá, com a vista privilegiada do mirante, observo os
surfistas que estão dentro d’água.
Daqui onde estou, há mais ou menos quinze metros de distância da água, consigo
apenas distinguir o contorno de seus corpos e a sombra borrada de suas pranchas,
que remexem inquietas sobre a rebentação.
Cada um, à sua maneira, rema quando uma série boa entra, na tentativa de arrebatar
a melhor onda do dia, e encerrar a tarde com glória e prestígio.
Entre sucessos e tropeços, alguns conseguem ser mais rápidos que o oceano, e exibem
experiência e equilíbrio, do fundo até a beira.
A essa altura do chão, o mar é infinitamente maior. E mesmo que haja uma tentativa,
não dá para saber com precisão, o real volume de água, ou ter uma ideia de quantas
espécies marinhas partilham o mesmo ecossistema: visto de cima, o oceano é a coisa
mais homogênea que existe.
212
Volto a olhar os surfistas. Sem querer, acabo pensando nas mil e uma particularidades
de cada um. Tantos gostos diferentes, defeitos e complexidades. Coisas que agora, se
mostram tão borradas quanto reflexo na água.
Daqui, onde o mar é muito mais azul, sob a luz alaranjada do poente, não faz diferença
se sou homem ou mulher. Velho ou criança. Se não enxergo ou se não sei falar. Se não
posso andar ou correr.
Porque no momento em que eu cair na água, tenha eu ou não dificuldades, a única
coisa que vai importar, é se eu quero surfar. E se eu tenho força de vontade e coragem
para ir atrás dos meus sonhos.
Surfar essa onda foi mais do que realizar um trabalho. Mais do que mergulhar no
esporte. Mais do que ouvir histórias. Através deste projeto, eu pude perceber que por
mais que os problemas sociais existam, e por mais que algumas dificuldades sejam
grandes, nada é maior do que o mundo em que a gente vive, nossa fé e força.
É claro que para este universo ficar ainda melhor, e mais pessoas poderem vivenciar
o que vi acontecer, de perto, faltam políticas públicas, atenção especial do governo,
estrutura e incentivo. Mesmo assim, é muito bom saber que existem no mundo, pessoas
tentando escrever uma nova história, e gente trabalhando para que isso aconteça.
213
Se, durante muitos anos, o surf esteve relacionado a questões que não condizem
em nada com a sua realidade, hoje, o esporte é um dos maiores exemplos de que a
inclusão é um processo possível e imensamente vantajoso, não só para as pessoas que
têm deficiência, como também para toda a sociedade.
Por tudo o que vi e vivenciei, e por todas as histórias que compartilharam comigo, na
areia da praia, afirmo sem medo: o surf é o esporte mais completo.
Aloha, e até uma próxima onda!
214
215
“E amanhã, quando o dia surgir e o sol sorrir no horizonte, olhe para o mar, e lá estaremos descendo lindas montanhas azuis”.Sergio Pedroso
216
Posfácio
De perto, todos são iguais
Mariana tem muita história para contar. Ela desceu a serra e foi ver o mar. Descobriu, entre os
incontáveis personagens litorâneos, habilidosos surfistas deslizando sobre as ondas do Guarujá, SP.
Vistos da areia, são todos iguais. Fazem evoluções mágicas na água, desafiam as ondas, escalam
paredões líquidos, enfiam-se em tubos d’água que duram apenas alguns segundos. Vistos à distância,
parecem executar passos de uma dança estranha em par com seus longboards de dimensões variadas.
Mariana os viu de perto e constatou que de fato são todos iguais. Há quem tenha deficiência visual,
há quem tenha perdido membros, há pessoas com má formação congênita, há quem tenha perdido
funções cerebrais, há quem tenha perdido tudo. Há, também, quem é reconhecido pela sociedade como
“normal”. Mas são todos iguais.
Mariana descobriu que os esportes adaptados podem ser excludentes. Que o surf, ao contrário, é
agregador. Tendo ou não deficiência, os praticantes dividem os mesmos espaços na areia, investem
contra as mesmas ondas, compartilham a mesma paixão pelo esporte e pela vida.
As histórias que Mariana tem para contar resultam de vivência e por isso são transmitidas de forma
tão convincente. Seguindo as diretrizes do bom jornalismo, ela muniu-se previamente de conhecimento
217
teórico e na sequência foi conferir in loco se o recorte de realidade sobre o qual decidiu se debruçar
correspondia ao que os livros diziam. Ao longo do 2º semestre de 2011, conheceu pessoas, entrevistou,
fotografou e observou – mais que tudo, observou – ao ponto de impressionar-se e poder contar as
singularidades deste microcosmo da grande teia social na qual vivemos.
Realizado no contexto do Projeto Experimental do curso de Comunicação Social – habilitação
em Jornalismo – da FAAT Faculdades, o livro “Na onda do surf adaptado” tem dupla finalidade:
demonstrar as habilidades e competências adquiridas pela aluna Mariana Pedroso ao longo do curso
e, principalmente, contribuir para os debates sobre esportes adaptados e inclusão social.
Vida longa ao livro “Na onda do surf adaptado”. Que ele renda muitas outras histórias à sua autora,
Mariana Pedroso.
Aloha!
Prof. Ms. Elizeu do Nascimento Silva
218
Bibliografia
Artigos
ANDRADE, Dr. Alexando; BRANDT, Ricardo. A psicologia do esporte aplicada a atletas portadores
de necessidades especiais: reflexões epistemológicas, filosóficas e práticas. Buenos Aires: EFdeportes,
Revista Digital, ano 13, n. 121, 2008.
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