NA CONTRAMÃO DA LUSOFOBIA: AS SEXTILHAS DE FREI...
Transcript of NA CONTRAMÃO DA LUSOFOBIA: AS SEXTILHAS DE FREI...
1
X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
NA CONTRAMÃO DA LUSOFOBIA: AS SEXTILHAS DE FREI ANTÃO COMO ÍNDICE DE
RECONHECIMENTO DE UMA IDENTIDADE BRASILEIRA E AMERICANA PLURAL
Maurílio Mendes da Silva (Mestrando – UNESP/Assis – CAPES)
RESUMO: As Sextilhas de Frei Antão sempre representaram para a fortuna crítica de Gonçalves Dias (1823-1864) um desafio aparte, na medida em que dentro de um contexto de lusofobia reinante do período romântico, ela mais engrandece e aproxima a literatura portuguesa do que propriamente a repudia, fato comum a diversos poetas e escritores do romantismo brasileiro, e verificável até mesmo em outros momentos da obra de Gonçalves Dias. Publicadas juntamente com o volume dos Segundos Cantos (1848), as Sextilhas de Frei Antão, narrativa em versos constituída de cinco poemas, recupera elementos do medievo português, adotando formas e um estilo arcaico de escrita. Gonçalves Dias atribuiu, por ocasião da primeira edição dos Segundos Cantos, a autoria das sextilhas a um frade de São Domingo, que supostamente teria vivido e escrito os versos na primeira metade do século XVII. Esta comunicação pretende apresentar a narrativa em versos das Sextilhas, tentando, ao considerar outros aspectos da obra de Gonçalves Dias, reconhecê-la como índice da consciência do poeta, que segundo procuraremos demonstrar, concebia o povo, a nação, e por conseqüência a literatura brasileira como produto da síntese de raças e de culturas, reconhecendo assim no homem brasileiro e americano uma identidade miscigenada e plural.
PALAVRAS- CHAVE: Gonçalves Dias; Identidade Nacional; Americanidade.
Introdução
Como fugir do clichê, quando a matéria sobre a qual se falará já está tão impregnada
de pré-juízos na alma e na mentalidade de um povo. Como sequer introduzir questões sobre a
obra de Gonçalves Dias (1823-1864), sem ser pego pelas armadilhas de valores e juízos
carcomidos que devido ao uso excessivo e reiterado através dos tempos nada mais dizem. Fato
é que a figura de Gonçalves Dias dispensa apresentações. Se, contudo, me for permitido
construir uma aparente contradição, sem medo de me equivocar, ouso afirmar que Gonçalves
Dias é, ao mesmo tempo, o mais célebre e o menos conhecido dos poetas brasileiros. Alguns o
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
2
consideram o pai da literatura nacional. Para muitos é o maior poeta do Brasil. Sua obra desde
seu surgimento foi recebida com grande entusiasmo pela crítica e logo ganhou o aval do povo. A
despeito, contudo, da popularidade de sua obra, e longe, do que possa parecer, muitos são os
aspectos ignorados de seu pensamento e que só recentemente começaram a ser estudados,
como é o caso do poema em prosa, Meditação que mereceu a atenção do professor Wilton José
Marques em seu livro Gonçalves Dias: o poeta na contramão (Literatura e Escravidão no
Romantismo Brasileiro).
Vítima de sua própria popularidade, Gonçalves Dias, dono de uma extensa produção
poética e de considerável produção intelectual e científica, é conhecido por muitos apenas pelo
aspecto indigenista de sua obra. Sofrendo pelo conhecimento limitado de sua obra, sérias
mutilações e limitações.
A identidade nacional estaria representada na obra de Gonçalves Dias, apenas pela
utilização do indígena como matéria poética? Seria a nacionalidade o único aspecto a ser
depreendido da poética de Gonçalves Dias, ou pode-se encontrar nela elementos de expressão
de um sentimento de americanidade latente? O processo programático romântico de
nacionalização da literatura brasileira, do qual Gonçalves Dias participou e contribuiu com sua
obra, está circunscrito as fronteiras nacionais ou é possível falar já neste momento de diluição de
fronteiras, onde América e Brasil figuram como símiles que se confundem? Talvez, seja
equivocado falar em diluição de fronteiras, quando a própria idéia de nação ainda estava em vias
de construção. Se, todavia, por um lado, o horizonte histórico nega a idéia de diluição de
fronteiras; por outro, ele corrobora a idéia de fronteiras flexíveis que não inviabilizam, do ponto
de vista lingüístico e ideológico a permutação de significados dos signos “América” e “Brasil”.
Ao lado do tão ignorado Meditação poder-se-ia ajuntar ao conjunto das facetas
desconhecidas da obra gonçalvina, sua obra dramática ou ainda o longo poema narrativo,
intitulado Sextilhas de Frei Antão, que bem pouca atenção recebeu da crítica, no sentido de
acomodá-lo dentro da esfera de construção da identidade nacional que muito norteou o trabalho
dos românticos brasileiros. As Sextilhas de Frei Antão, publicadas juntamente com o volume dos
Segundos Cantos (1848) é uma longa narrativa em versos constituída de cinco poemas, que
recupera elementos do medievo português, adotando formas e um estilo arcaico de escrita.
Gonçalves Dias atribuiu, por ocasião da primeira edição dos Segundos Cantos, a autoria das
sextilhas a um frade de São Domingo, que supostamente teria vivido e escrito os versos na
primeira metade do século XVII.
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
3
Ignorar algumas obras de Gonçalves Dias é negar ao poeta romântico a unidade de
pensamento acerca da identidade nacional, que sempre norteou sua produção poética e
intelectual. Ao nos debruçarmos sobre as Sextilhas de Frei Antão, inserindo-as no contexto
romântico de construção de identidade literária brasileira estaremos acima de tudo, refletindo
sobre a concepção pessoal e a maneira particular com que Gonçalves Dias tratou a questão da
construção identitária do homem brasileiro.
1. Identidade nacional e lusofobia
É durante o período Romântico que se processa uma guinada de pensamento na
crítica literária nacional, onde identificamos como elementos norteadores da crítica a idéia de
construção de nacionalidade e o desenvolvimento do conceito de “cor local”. Ao investigar a
crítica do período, em sua Obra A Crítica Literária no Brasil, Wilson Martins além de explicitar o
processo de seleção e composição das coletâneas tendo como requisito para a inserção do
poeta o caráter nacional brasileiro de sua poesia, ainda reconstrói o contexto de mudanças e
efervescências no pensamento nacional.
Assim, o Romantismo de escola já não achava suficientemente românticas as heroínas idealizada do Arcadismo, assim como a violenta colisão entre Gonçalves de Magalhães e José de Alencar a propósito do mito indianista marcaria entre nós a avançada definitiva da nova literatura ( e, por conseqüência, das novas concepções crítica). (MARTINS, 2002, p. 117)
O Ensaio de Machado de Assis, intitulado – Instinto de Nacionalidade há muito se
tornou um texto canônico no estudo de literatura brasileira. Nele Machado discute diversos dos
principais tópicos que dominariam muitas das investigações acerca da nacionalidade da
literatura brasileira, tais como “cor local”, “localismo”, “cosmopolitismo”. Machado questiona o
valor da “cor local” como critério avaliativo. Uma obra seria nacional apenas se se constituísse
pela palheta das cores locais? Ao questionar-se a esse respeito utiliza justamente a figura de
Gonçalves Dias. Afina de conta, a nacionalidade de Gonçalves Dias reside apenas no elemento
indiano de seus poemas. Se fosse de Gonçalves Dias extirpada esta faceta de sua obra,
negaríamos a ele o valor nacional que possui? Machado vai mais além, e questiona-se se ao
classificar a Gonçalves Dias como grande poeta nacional, não estaríamos negando-lhe a
universalidade de sua obra? Pois, para Machado até o mais indianista, nacional e americano dos
poemas de Gonçalves Dias está carregado de valores universalista. Em se tratando, contudo do
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
4
poema As sextilhas de Frei Antão, Machado é bastante categórico em descartá-la da literatura
brasileira. Atribuindo-a, pelo tema e estrutura que apresenta a literatura portuguesa.
Gonçalves Dias por exemplo, com poesias próprias, seria admitido no panteão nacional; se excetuarmos Os Timbiras, os outros poemas americanos e certo número de composições, pertencem os seus versos pelo assunto a toda a mais humanidade, cujas aspirações, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente cantam; e excluo daí as belas Sextilhas de Frei Antão, que essas pertencem unicamente à literatura portuguesa, não só pelo assunto que o poeta extraiu dos historiadores lusitanos, mas até pelo estilo que ele habilmente fez antiquado. (ASSIS, 1994, p. XX)
Se por um lado, Machado é bastante sagaz nos questionamentos acerca da
circunscrição da identidade nacional atrelada único e exclusivamente a idéia de “cor local”; por
outro lado, sentencia sem maiores ponderações as Sextilhas, ao degredo, ao exílio, ou a
expatriação. Haveria, no entanto, a possibilidade, de chegar a outro veredicto, diferentemente do
sentenciado por Machado? Ainda que incipiente, a crítica parece apontar para uma resposta
afirmativa. E ao longo das páginas seguintes, procuraremos demonstrar a validade destes
julgamentos.
Junto às discussões acerca da identidade nacional é necessário ter em mente o
sentimento de lusofobia que reinava no período. Recém libertado do julgo colonial a
Independência imprimira no espírito do povo o sentimento de dano sofrido, que deu origem a
atitude de repúdio para com o europeu de modo geral; e em particular, para com o português.
Lusofobia e Identidade Nacional compõem o quadro espiritual do brasileiro do período
romântico. Quadro espiritual esse que nos ajuda a compor o contexto de rejeição que pode ter
dado origem ao esquecimento de uma obra tão bem construída como as Sextilhas de Frei Antão.
2. As sextilhas de Frei Antão
A narrativa das Sextilhas de Frei Antão é formada por cinco longos poemas,
organizados na seguinte ordem: “Loa da Princesa Santa”, “Gulnaré e Mustaphá”, “Lenda de São
Gonçalo”, “Soláo do Senhor Rey Dom João Segundo” e “Soláo de Gonçalo Hermiguez”. O
número de sextilhas varia em cada um dos poemas. As 500 estrofes são constituídas, cada uma
delas, como o titulo aponta, por seis versos perfazendo um total de 3000 versos.
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
5
POEMA
ESTROFES (SEXTILHAS)
VERSOS
Loa da Princesa Santa
83
498
Gulnaré e Mustaphá
160
960
Lenda de São Gonçalo
95
570
Solau do Senhor Rey Dom João Segundo
66
396
Solau de Gonçalo Hermiguez
96
576
Total
500
3000
As sextilhas são heptassilábicas de rimas simples e ritmo variado que obedecem ao
esquema a / b / c / b / d / b.
Quando faz publicar pela primeira vez em 1848 as Sextilhas de Frei Antão, Gonçalves
Dias afirmava, no prefácio dos Segundos Cantos, ter tido o impulso de publicá-las com o
pseudônimo do próprio Frei Antão de Santa Maria de Neiva, um frade que teria vivido em São
Domingo. Intuito que não chegou a concluir, mas que conservou o título, já que é a própria figura
do autor narrador (Frei Antão) que dá unidade narrativa ao conjunto das Sextilhas. Ainda que
não seja possível afirmar que haja nas Sextilhas uma narrativa suficientemente acabada, a figura
de Frei Antão, narrador, e suposto autor das Sextilhas, além de outras figuras como é o caso de
Dona Joana, a Princesa Santa do título do primeiro poema, a ainda a recorrência a temas e
situações que são retomadas em mais de um poema são elementos suficientes, para conferir
uma unidade.
A “Loa da Princesa Santa” instaura já de início o tom e a atmosfera comum a todos os
poemas. Diversas são as acepções para o conceito de “loa”, que pode significar tanto um
prólogo de uma composição dramática, como um discurso elogioso em que se enaltece a figura
de alguém, ou ainda um cântico de louvor as virtudes de um santo ou uma virgem, uma toada de
tom melancólico, ou mesmo mentira e fanfarronice. Gonçalves Dias, pode de fato ter pensado
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
6
em apenas uma dessas acepções, mas o fato é que a própria estrutura, a matéria narrada nesta
primeira parte, em que enaltece a figura de Dona Joana, ou mesmo o contexto de criação do
poema abre interpretações para todas essas acepções.
Bom tempo foi o d’outrora Quando o reino era cristão, Quando nas guerras de mouros Era o rei nosso pendão, Quando as donas consumiam Seus teres em devação
Dava o rei uma batalha, Deus lhe acudia do céu; Quantas terras que ganhava, Dava o Senhor que lhas deu, E só em fazer mosteiros Gastava muito do seu.1
O conteúdo da narrativa está inteiramente marcado pelo tom saudosista, não somente
pela escolha de Gonçalves Dias que retoma o século XVII como matéria poética, mas também,
no próprio discurso do Frei Antão que remonta um passado ainda mais remoto que o momento
da aparente escritura; jogo de passados que se sobrepõem e acabam por ressaltar na
configuração temporal da narrativa o elemento saudosista.
Outro elemento de destaque na composição é a influência do discurso bíblico. Fato
que não surpreende, Visto que a poesia de Gonçalves Dias sofre está intimamente marcada pelo
discurso religioso. A poética de Gonçalves Dias seja ela de manifestação épica, dramática ou
lírica; seja ela, de configuração americana, amorosa ou elegíaca, exala toda ela, uma aura
religiosa de viés católico cristão. Todavia, além do tom religioso próprio do discurso gonçalvino,
nota-se nas Sextilhas um uso excessivo de citações e reminiscências a personagens e
passagens da Bíblia. Elemento que vem ressaltar o caráter verossímil da narrativa, visto que ela
tem como narrador a figura de um frade.
Vieram aqueles feios Netos d’Agar, inda mal! Traçando vastas roupagens À maneira Oriental;
1 Todas as citações das Sextilhas de Frei Antão, com exceção àquelas que fazem parte do poema “A lenda de São Gonçalo”, foram retiradas da edição das Obras Completas, da Editora Nova Aguilar. Assim procedemos por preferir fazer uso de uma edição que passou pelo processo de atualização ortográfica. Em relação à “A lenda de São Gonçalo”, infelizmente não foi possível, pelo fato de que, por razões que desconhecemos, esse poema não figura na edição da Nova Aguilar. Para as citações desse poema nos utilizamos da primeira edição de 1848, e, portanto, sem atualizações ortográficas.
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
7
Larga faixa na cintura, Na faixa largo punhal
-----------
Lançado no covil de feras Foi o santo Daniel, Fui eu no covil lançado Daquela gente infiel; Era ele esperto em tais lutas, Eu em tais lutas novel.
------------
Naquele ensejo apertado De Santo ardil me vali; Lembrou-me o exemplo sagrado Da forte hebréia Judit! Ser isso influxo divino Sabendo fiquei dali.
No primeiro poema, “Loa da Princesa Santa”, Frei Antão após rápida apresentação de
si, passa a narrar à festa de chagada da comitiva de Afonso Quinto, que em regresso de suas
campanhas na África, trazia como escravos um turba de mouros. Chama a atenção do frade as
belezas de uma jovem e específica mourisca, por quem devotará uma paixão, que confessa
como pecado no segundo poema “Gulnaré e Mustaphá”. Apesar do longo preâmbulo, a maior
parte desta loa dedica-se ao enaltecimento da figura de Dona Joana, suas belezas e suas obras
de devoção e grandiosidade de espírito.
Em “Gulnaré e Mustaphá” dois são os núcleos narrativos, que se sobrepõem. O
primeiro centra-se na figura do próprio frei Antão que retomando a figura daquela moça escrava
que a princípio vira chegar à Portugal junto com a comitiva de Afonso Quinto, confessa-se
apaixonado por ela. Neste momento, o frade carcomido por um sentimento que pelo hábito e
pelo voto não deveria sentir, descreve o sofrimento de uma mente conturbada, pelo crime,
momento que instaura na narrativa ares de confessionário, em que o pecador, após a confissão
e a penitência, se vê expurgado de seus pecados e crimes. O segundo, ainda que tenha uma
importância significativa, funciona na trama como matéria e de intensificação dramática, visto
que ao centrar-se na relação amorosa de Mustaphá e Gulnaré, esta última, a moça por quem o
frei se confessa apaixonado, acaba por configurar uma trama imbricada e de difícil resolução.
Como já fiz penitência, Ora farei confissão; Tal será, qual foi o escand’lo
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
8
De que fui ocasião: Não me tomem por modelo, Mas tomem de mi lição.
Não é pêra honra minha, Mas pela honra dos céus, Que eu direi publicamente Os feios pecados meus; Toda a vergonha foi minha, Toda a honra cabe a Deus.
A perspectiva saudosista a todo tempo é recuperada pelo uso constante de um verso
que por diversas vezes se repete “Bons tempos foi o d’outrora”. E é nessa perspectiva de
retomada que ele inicia a terceira parte das Sextilhas. Em “A Lenda de São Gonçalo” Frei Antão
passa a narrar o encontro místico de São Gonçalo com a Voz de Deus, a posterior peregrinação
por catorze anos, e os acontecimentos que se processaram no momento do seu regresso ao lar.
Em perspectiva comparativa, contrapõe a abnegação com que São Gonçalo levou a vida e a
degeneração dos homens de seu tempo. Encerrando o poema como um momento de exortação
a virtude e ao caminho em retidão.
Bom tempo foy o d’outrora! Não lhe quero outra resão: Criava a terra gigante, Havia Sanctos então, Havia paz e liança Nous reys do reyno christão
------------
O homem que for prudente Só pelos frades se reja; Creia no Papa e nas Bulhas, E na sancta Madre Igreja: O mais he coiza de fumo, Não sei de quem valor seja. Que reze o sancto rozairo, Dou de conselho tambem; Que assi viverá na glória, E vive-se lá mui bem, Cantando hozanans eternos Por tempos sem fim: amen.
Os dois últimos poemas, “Solau do Senhor Rei Dom João” e “Solau de Gonçalo
Hermigues, se presta cada um deles ao enaltecimentos dos feitos dos dois homenageados dos
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
9
títulos. No primeiro deles destaca as virtudes e benevolência, e no segundo, a honra e
hombridez de fidalgo de cavaleiro.
A crítica literária brasileira tem se esquivado, intencionalmente ou não, a analises mais
aprofundadas das Sextilhas de Frei Antão. Fato compreensivo, quando se pensa na aparente
contradição que leituras enviesadas desta narrativa podem imprimir no pensamento de
Gonçalves Dias e no ideário romântico de construção da identidade literária brasileira. Exceção a
esse esquema é a obra de Lucia Miguel Pereira, A vida de Gonçalves Dias, que não somente
não fugiu à leitura das Sextilhas, como presta importante trabalho de esclarecimento ao fazer,
como também é nosso objetivo, uma leitura integrativa, em que antes que apontar incoerências
busque acomodar as Sextilhas no contexto geral da obra gonçalvina.
No Prólogo ao volume dos Segundos Cantos, Gonçalves Dias qualifica as Sextilhas de
“ensaio philológico”, dedicando especial espaço nele, a explicação das gêneses de tão aparente
incoerente composição: “são sextilhas, em que adoptei por meos a frase e o pensamento antigo,
procurando tornar o estylo liso e facil que não desagradasse aos ouvidos de hoje”. (DIAS, 1848,
p. V-VI) Gonçalves Dias explicita que o objetivo de sua composição era estreitar, se possível
fosse os laços da literatura Brasileira e a Portuguesa.
Gonçalves Dias, ainda alude a possíveis desgostos, por parte do público, e
incompreensões, por parte da crítica:
Sei que ao maior numero dos meus leitores não agradará esta segunda parte [Sextilhas de Frei Antão]: era essa a minha convicção, então quando escrevia, e agora que a vou publicar. Escrevi-a comtudo, porque acceito a inspiração quando e dode quer que Ella me venha; - da imaginação ou da reflexão, - da natureza ou do estudo, - de um argueiro ou de uma chronica é-me indifferente: publico-as, se me agradão, rasgo-as, se me desprazem. (DIAS, 1848, p. VI)
À aqueles críticos porem que se comprazem com o nascimento de um auctor, que o seguem passo à passo durante a sua vida litteraria – animando-o pelo que nelle vêem de bom, reprovando o que lhes parece máo, [...] – para estes, digo, todo o volume é significativo – toda a obra caracteristica – todo o trabalho proveitoso. (DIAS, 1848, p. VI)
Da continuação da defesa das Sextilhas, é possível inferir das palavras de Gonçalves
Dias a idéia de que, ao voltar-se para a literatura lusitana, contrariando preceitos programáticos
da estética romântica brasileira, que pregava o distanciamento e a negação dos valores e dos
modos de pensar da metrópole, antes que negar o ideário programático de constituição da
identidade literária nacional, as Sextilhas representam aprofundamento de pensamento, na
medida em que dá um passo além da lusofobia ingênua romântica, e reconhece na identidade
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
10
nacional uma formação miscigenada, na qual o português representante um importante elemento
constitutivo.
A obra supracitada de Lucia Miguel Pereira representa uma importante página da
Fortuna Crítica de Gonaçlves Dias. Nela, a autora introduz as discussões em torno das Sextilhas,
recuperando um outro importante estudioso do poeta, Antônio Henriques Leal, biógrafo, amigo
pessoal do poeta, e o organizador de sua obra póstuma.
Segundo Leal, ao ser recusada pelo Conservatório Dramático a Beatriz Cenci, descobriram-lhe os censores galicismos e erros de estilo; espicaçado, querendo provar que o conhecia a língua, ter-se-ia o poeta afundado nessa reconstituição do português arcaico, e em quinze dias, levado a cabo a empresa. (PEREIRA, 1943, p.116)
Ainda que certa verdade possa ser reconhecida, no comentário de Antonio Henriques
Leal sobre os impulsos criativos que levaram Gonçalves Dias a criação das Sextilhas, já que no
prólogo dos Segundos Cantos, o próprio Gonçalves Dias, como vimos acima, nomeia-as de
“ensaio philológico”. Certo é que não poderemos encará-las meramente como um produto de
considerações filológicas. É a própria Lucia Miguel Pereira quem desarticula a anedota de Leal,
ao rastrear na correspondência do Poeta o processo de elaboração dos versos das Sextilhas,
que teria lhe ocupado pelo menos sete meses de trabalho. Lucia Miguel aponta ainda, elementos
estruturais e temáticos das Sextilhas que as aproximam do restante da produção poética de
Gonçalves Dias. Como por exemplo, o medievalismo coimbrão e as influências da obra de
Garret.
O teor aparentemente paradoxal da inserção das Sextilhas de Frei Antão é abordado
por Lúcia Miguel Pereira, que não deixa de considerá-las, como faceta particular do nacionalismo
gonçalvino. “Afinal de contas, quer os amasse quer não, os portugueses eram parte importante
na formação brasileira. Exaltá-los era exaltar o Brasil”. (PEREIRA, 1943, p. 118). Para Lúcia
Miguel Pereira as Sextilhas de Frei Antão, ultrapassam as esferas do mero ensaio filológico, se
“entrosando” completamente a obra de Gonçalves Dias, que sem estas, estaria incompleta.
Conclusão: singularidades e pluralidades no trato da identidade nacional
As particularidades que singularizam a Gonçalves Dias no trato com a Nacionalidade a
muito vêm sendo apontadas pela crítica. Para Hélio Lopes, a Gonçalves Dias, cabe o papel de
primeira grande voz da nacionalidade brasileira. Segundo Hélio Lopes, as belezas da nação
sempre foram cantadas desde os poetas coloniais, a novidade trazida pela poesia de Gonçalves
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
11
Dias, é o caráter de lar que este imprime na terra que canta. É a partir de Gonçalves Dias que a
relação de pertença entre homem e terra é invertida. Antes deles, era a terra que pertencia ao
homem, depois é o homem que pertence a terra. Já em 1860, Macedo Soares, crítico
contemporâneo do poeta, apontava as singularidades do elemento indianista da poética de
Gonçalves Dias, que para o crítico figurava como uma espécie de recordação e memória de uma
época, na qual o brasileiro não viveu nem dela participou, e dela sabe, apenas por ter ouvido
falar.
No capítulo “Gonçalves Dias e o Indianismo”, de A Literatura no Brasil, organizado por
Afrânio Coutinho, Cassiano Ricardo aborda a obra de Gonçalves Dias, levantando nela aspectos
de inovações e encarando-a, em síntese, como uma obra moderna. Cassiano Ricardo
apresentando a pluralidade de expressão na obra poética de Gonçalves Dias destaca nela
elementos líricos, épicos e dramáticos. O poema em prosa Meditação é considerado por ele
como o primeiro passo dado pela poética nacional em vias de desenvolvimento do verso livre. Já
sobre as Sextilhas de Frei Antão, em síntese, as qualifica como produto do mais alto labor
poético e de linguagem altamente sugestiva.
Ao retomar a sentença de Machado, que categoricamente excluiu as Sextilhas de Frei
Antão da Literatura Brasileira, Cassiano Ricardo em conclusão oposta a do escritor, afirma que
talvez seja justamente nelas que Gonçalves Dias revela sua face mais brasileira.Cassiano
Ricardo propõe ainda uma leitura das Sextilhas, tendo como horizontes culturais, o trovadorismo
sertanejo nordestino e a deglutição dos arcaísmos medievais portugueses pelo linguajar inculto
do Brasil. Retirando das Sextilhas o teor de obra reacionária do movimento romântico.
Necessário seria um trabalho mais criterioso para tirar quaisquer conclusões mais
elaboradas sobre a gênese e a constituição de uma obra tão extensa quanto as Sextilhas de Frei
Antão. Todavia, ainda que não possuamos argumentos bem articulados e bem construídos, seja
necessário agora, um momento de ousadia, na afirmação final. Desarticulando as fronteiras
rígidas que durante tanto tempo têm mantido a nacionalidade romântica, e em particular aquela
desenvolvida por Gonçalves Dias presa a esfera indianista, damos por encerrado nosso trabalho,
na medida em que com ele, abrimos um espaço de desarticulação da idéia de nacionalidade da
literatura, para discuti-la, para além das fronteiras do localismo que ainda se sustenta.
Encerrando sem dar por finalizadas as discussões aqui propostas, que fique dessa conversa, a
proposta e o esboço do problema para uma resolução futura. E que fique aqui, o registro da
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
12
tentativa de releitura, re-significação, e re-territorialização da idéia cristalizada de identidade
nacional ligada ao tema do índio, e circunscrito dentro do universo da idéia de “cor local”.
Referências bibliográficas
ACKERMANN, Fritz. A obra poética de Gonçalves Dias. Tradução de Egon Schaden. Coleção Ensaio, n. 32. Conselho Estadual de Cultura. Comissão de Literatura. São Paulo: Impressa Oficial do Estado, 1964.
ASSIS, Machado de. Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de Nacionalidade. In: Obras completas. v 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
BANDEIRA, Manuel. Gonçalves Dias: Esboço Biográfico. Rio de Janeiro: Irmão Pongetti Editores, 1952.
______. Poesia e vida de Gonçalves Dias. Coleção Poesia e Vida. São Paulo: Editora das Américas, 1962.
______. Gonçalves Dias: Poesia. Coleção Nossos Clássicos, n.18. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1958.
BRAIT, Beth. Gonçalves Dias. Coleção Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1982.
DIAS, Antônio Gonçalves. Poesia e prosa completas. (org.) Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.
LOPES, Hélio. Letras de Minas e outros ensaios. São Paulo-SP: Edusp, 1997.
MARTINS, Wilson. A crítica Literária no Brasil. v.1. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002.
PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1943.
RICARDO, Cassiano. Gonçalves Dias e o Indianismo. In: COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. v. III. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF-Universidade Federal Fluminense, 1986.
SOARES, A. J. Macedo. Ensaios de Análise Literária – Bittencourt Sampaio. In: CASTELO, José Aderaldo. Textos que interessam a história do Romantismo, v. 2. Revistas da Época Romântica. Conselho Estadual de Cultura. Comissão de Literatura. São Paulo: Impressa Oficial do Estado, 1963.