MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e...
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MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS NA
MUSEOLOGIA BRASILEIRA
Jislaine Santana dos Santos1
“As contas desse colar
Hoje a raça está formada
Nossa aventura, plantada
Nossa cultura é raiz”.
(Bahia de todas as contas, Gilberto Gil, 1983)
O interesse deste capítulo é visualizar como as populações negras vêm sendo
representadas em alguns museus sobre a temática afro-brasileira. Para tanto,
apresentaremos uma revisão bibliográfica destacando alguns autores no campo da
Museologia no Brasil que problematizaram as aproximações entre exposições
museológicas e memórias afro-diaspóricas.
Mario Chagas (2011) em seu texto “Memória e Poder: dois movimentos”
desempenhou uma análise tendo como foco os museus, visando compreender a relação
entre memória e poder. O autor problematiza dois movimentos que discutem a relação
entre memória e poder em instituições voltadas para a preservação do patrimônio
cultural nos séculos XVIII e XIX e nos dias atuais.
A idéia que a Revolução de 1789 possa ter sido provocada pela memória
acumulada reluz como o grande estopim para tal acontecimento, podendo assim dizer
que o pesquisador possui razão quando menciona que existe um momento de memória
que segue em rumo ao passado e chegando ao seu destino se “cristaliza”, como
veneração saudosa, reminiscência que aliena e ladeia o individuo de si e seu próprio
período temporal, “lembrança que reificada e saturada de si mesma e por isso sem
possibilidade de criação e inovação” existe ainda um momento de memória que se
rasteja em direção ao presente. É a batida entre esses movimentos, sendo que o segundo
leva a vantagem mesmo que por pouco tempo, que cria a possibilidade da memória ser
1 Graduada em Museologia (Bacharelado) pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail:
um enorme disparador de modificações e alterações particulares e sociais (CHAGAS,
2002, p.5).
Por esse caminho, compreende-se que ao admitir que a memória
acumulada possa ter sido o dispositivo detonador da Revolução de
1789, está aberta a vereda para a compreensão de que no seio da
memória acumulada (solução saturada), uma contramemória pode
operar e pode desembocar no poder de agir. Avançando um pouco
mais. Se de um lado a memória explode na Revolução, de outro a
Revolução inaugura novas articulações de memória. Uma nova e
moderna rede (de pode e memória) é construída, uma rede por onde
passam novas relações de classe, novas relações com o corpo, com a
religião, com as instituições públicas e privadas (CHAGAS, 2002,
p.5)
Apresentando discussões sobre as aproximações entre memória e poder nos dias
atuais, tendo como fio condutor os museus, foi possível perceber a função do museu
enquanto local para salvaguardar o patrimônio. O autor conceitua o museu como “[...]
um campo onde encontram-se os dois movimentos de memória e que desde o
nascedouro está marcado com os germes da contradição e do jogo das múltiplas
oposições” (CHAGAS, 2002, p. 16).
As instituições museológicas são vistas como locais para se comemorar a
memória do poder ou ainda aparelhamento com interesse em trabalhar com o poder da
memória. A memória é construída no presente, localiza-se na extensão relacional entre
os seres e entre os indivíduos e os fatos:
Com todos esses ingredientes, o pesquisador está habilitado para o
entendimento de que a constituição dos museus celebrativos da
memória do poder decorre da vontade política de indivíduos e grupos
e representa a concretização de determinados interesses. Os museus
celebrativos da memória do poder- ainda que tenham tido origem, em
termos de modelo, nos séculos XVIII e XIX - continuaram
sobrevivendo e multiplicaram-se durante todo o século XX. Aqui não
se está falando de instituições perdidas na poeira do tempo; ao
contrário, a referência incide em modelos museológicos que,
superando as previsões apocalípticas de alguns especialistas,
sobrevivem e continuam deitando regras. Para estes museus, a
celebração do passado (recente ou remoto) é a pedra de toque. O culto
à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles
tendem a se constituir em espaços pouco democráticos onde prevalece
o argumento de autoridade, onde o que importa é celebrar o poder ou
o predomínio de um grupo social, étnico, religioso ou econômico
sobre os outros grupos. Os objetos (seres e coisas), para os que
alimentam estes modelos museais, são coágulos de poder e
indicadores de prestígio social. O poder, por seu turno, nestas
instituições, é concebido como alguma coisa que tem locus próprio,
vida independente e está concentrado em indivíduos, instituições ou
grupos sociais (CHAGAS, 2002, p. 16-17).
Essas orientações de Mario Chagas (2002) são fundamentais quando analisamos
os patrimônios e as exposições museológicas relacionadas às diásporas negras. Ao
longo deste capítulo, visualizaremos as problematizações comuns relacionadas a essa
temática visando inventariar, de algum modo, como as populações e culturas negras
foram e são comumente representadas nos museus. Para tanto, realizaremos uma breve
revisão de algumas pesquisas sobre as intersecções entre as diásporas negras e o campo
museológico brasileiro.
1.1 Problematizando a regra: silêncios, subrepresentações e estereótipos
O museu é definido pelo Conselho Internacional de Museus - ICOM como “uma
instituição permanente sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu
desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe
o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de
educação, estudo e deleite”. Como espaço de saber e de poder, torna-se emblemático
para a compreensão de diversas práticas sociais. Aqui nosso interesse se voltará para a
representação das diásporas negras.
Dão-se alguns sentidos ao termo diáspora. De modo geral, relaciona-se a
dispersão de um povo em decorrência de perseguição política, religiosa ou étnica,
segundo Marilise Reis:
A definição do conceito diáspora, segundo o Dicionário de relações
étnicas e raciais (Cashmore, 1996), vem dos antigos termosgregos dia
(através, por meio de) espeirõ (dispersão, disseminarou dispersar) e
está associada às ideias de migração e colonização da Ásia Menor e do
Mediterrâneo (800 a 600 a.C). De acordo com Cashmore (1996), na
tradução grega do Deuteronômio, a palavradesigna, também,
maldição, visto sua referência à dispersão dos judeus exilados da
Palestina depois da conquista babilônica. Por isso, a conotação
inicialmente positiva das sociedades que se disseminavam por meio e
entre diferentes geografias políticas e culturais transformou a diáspora
num termo de opressão e de vitimização. É justamente por isso que,
no sentido clássico, a noção de diáspora corresponde a exílio forçado,
dor e sofrimento (REIS, 2010, p. 39).
A diáspora ainda é vista como algo que envolve o experimento junto à
intelectualidade e a “consciência identitária”, assim, podemos conceituá-la como uma
zona de conflito, onde se deve perder ou obter através da experiência com os indivíduos
em diáspora. Desse modo, conseguimos experimentar o lado positivo, apontando a
procedência da história, ou mesmo a parte negativa, com o experimento de
desvalorização e de eliminação (REIS, 2010, p. 40).
Segundo esta autora, a diáspora africana teve maior intensidade entre os séculos
XVI e XVIII, graças ao procedimento de retirada por meio da força brutal dos negros
africanos para lugares como as Américas, Europa e Ásia, fato consolidado em virtude
da escravidão e também pelo tráfico negreiro através do Atlântico.
Quando observamos museus dedicados à temática das culturas negras na diáspora
de imediato visualizamos essas questões em sua expografia2. Segundo Marcelo Cunha
(2006), “entendemos exposições como estratégias comunicacionais com lógicas e
sentidos próprios, relacionados com o processo de produção de fatos, eventos e bens
sociais, reconhecidos pela materialidade, revelando redes de relações entre
acontecimentos, idéias e indivíduos” (p. 14).
Mas o que seria expor? Podemos dizer que esse fazer pode ser realizado a partir
da revelação, de representar aspectos de um determinado momento da história, de
montar uma proposta estética e política etc. Assim, concordamos com o pensamento
deste autor quando diz :
Expor é revelar, comungar, evidenciar elementos que politicamente
precisam se explicados, em uma perspectiva relacionada a um
momento histórico, uma produção estética, um ideal político. A
exposição deve ser percebida como “obra aberta”, alimentada e
realimentada permanentemente, articulada e articulando-se com outros
elementos do sistema de conhecimento. Expor é propor, daí seu
caráter de abertura a debates e outros objetos [...]. Exposições
caracterizam-se como um discurso, uma estratégia informacional, em
um contexto de comunicação, com narrativas realizadas com o
objetivo de transmitir/ou reforçar idéias, em uma proposta conceitual,
ao tempo que compõem, no caso de exposições museológicas, um
projeto de preservação de referências políticas, históricas e de
dinâmicas culturais e patrimoniais. Nesse sentido, as exposições
museológicas devem ser pensadas considerando-se suas inserções em
2Área da Museografia que “se ocupa da definição da linguagem e do design da exposição museológica,
englobando a criação de circuitos, suportes expositivos, recursos multimeios e projeto gráfico, incluindo
programação visual, diagramação de textos explicativos, imagens, legendas, além de outros recursos
comunicacionais” (FRANCO, 2008, p. 61).
cenários panorâmicos, o das políticas e ações culturais públicas como
resultado de processos históricos e transformações sociais [...]. Não
pode ser entendida como o fim de um processo, mas como outros
elementos e signos do sistema de conhecimento e de poderes
instituídos, um meio para a comunicação e transmissão de conteúdos
valorizados e trabalhados pela instituição museu (CUNHA, 2006, p.
15-16).
Em uma exposição seleciona-se o que será exposto. Dessa forma, coloca-se tudo
aquilo que seu organizador acredita ser favorável à construção de seu argumento, sendo
silenciados muitas vezes conteúdos de grande significância. Outro fator seria
esquecimento de um objeto ou memória de maneira proposital, provocada por quem
está à frente da montagem da expografia. Visto sob essa perspectiva o museu pode se
transformar em um ambiente institucional dedicado a apresentação das diversas
culturas. Entretanto, também pode se transformar em espaço que oculta, exclui e
esconde, subrepresenta ou estereotipa práticas culturais.
Conforme destacou Marcelo Cunha (2006), quando se fala da cultura africana ou
mesmo do negro nos museus, naturaliza-se e resume-se, muitas vezes, à representação
da religião, da capoeira e do trabalho forçado no período escravocrata, com destaque
para os instrumentos de tortura usados nos mesmos. Entretanto, sabemos que as práticas
culturais da população negra não se resumem a esses aspectos.
Esse traçar da cultura afro, na maioria das vezes, não condiz com o que são as
heranças de matrizes africanas, com as diferentes contribuições para a cultura brasileira,
por exemplo. Os museus, em regra, difundem um discurso doloroso aos olhos do
público, evidenciando uma visão negativa e por vezes racista que ganhou força no
século XIX e que chega até nossos dias. Ideal forjado no período escravocrata, em que
eram apontados como seres não civilizados, tratados como animais domesticados,
servindo como moeda para trocas comerciais e simbólicas.
Além disso, as religiões de matriz africanas são abordadas em diversas exposições
museológicas de maneira teatral, onde se dá ênfase ao “sincretismo religioso” e ao olhar
do colonizador. Sendo que os terreiros são poucos mencionados e valorizados, no
decorrer das diásporas, mesmo sendo um local de resistência e lutas. Outro aspecto é
que muitas vezes não se dá espaço aos lideres que estão vivos. Além disso, as culturas
das populações negras são tratadas em expografias de modo recorrente como
“populares” e “folclóricas”
As práticas institucionais do Brasil revelam esforço permanente em
negar traços étnico-culturais que ponham em risco desejos de
‘modernidade’, ‘progresso’ e ‘desenvolvimento’ nacional, baseado em
referências culturais ditas ‘ilustradas’. Os museus sempre estiveram a
serviço deste projeto, exibindo objetos testemunhos das culturas ditas
superiores, modelos para a formação de um caráter e personalidades
que comportem modos e maneiras ‘elegantes e civilizados’. Objetos
de culturas de negros [...] geralmente são apresentados pelo viés do
exotismo e da variação/deturpação dos padrões superiores a serem
seguidos, moldando-se, para tal, conceitos como cultura e
religiosidade popular, folclore, objeto etnográfico e manifestação de
cultura tradicional [...]. A religiosidade fica limitada à apresentação de
informações com ênfase no sincretismo. As religiões afro-brasileiras
são apresentadas como homogêneas, confundindo, inclusive, nas
imagens apresentadas, elementos que pertencem a estruturas religiosas
e simbólicas diferenciadas, padronizando as representações sobre as
diversas práticas religiosas africanas no Brasil [...]. Quanto às
lideranças religiosas, a abordagem vem envolta em tom memorialista,
com referencias a pais e mães-de-santo já falecidos, normalmente os
fundadores das diversas comunidades religiosas, sem menções às
gerações recentes de líderes com suas novas formas de atuação e
busca de atualização de suas práticas [...]. É pouco mencionada e
valorizada a importância dos terreiros, ao longo da história das
diásporas, como centro de resistências e lutas, como espaços que
possibilitaram a manutenção, preservação e transmissão atualizada de
elementos das culturas africanas de geração a geração. A
religião/divindades é um dos temas mais explorados de forma
teatralizada, sendo um dos que apresenta maior possibilidade na
elaboração de cenários e dioramas. [...]. As religiões afro-brasileiras
aparecem, na maioria das instituições pesquisadas, na perspectiva do
sincretismo, com o desenvolvimento de discursos que atrelam o
imaginário afro-brasileiro ao universo religioso católico [...]. No
Memorial das Baianas de Acarajé e Vendedoras de Mingaus, em
Salvador, encontramos imagens de Santa Bárbara relacionada à Iansã,
orixá que está ligada à produção, venda e consumo do acarajé, uma
das iguarias a ela destinada. Neste caso, a imagem traduz, de forma
bastante forte, a permanência do sincretismo em uma determinada
prática cultural afro-brasileira, não mais na perspectiva de ferramenta
para escamotear práticas religiosas proibidas (CUNHA, 2006, p. 68-
85)
A maioria dos museus brasileiros ao apresentar e representar em exposições a
temática das culturas negras ainda a resume à religião, sob a luz do sincretismo, ou a
objetos relacionados aos castigos que o negro escravizado foi submetido, possuindo
ainda imagens que representam as cenas de negras limpando as casas grandes, dos
homens carregando liteiras (também conhecidas como cadeira de arruar), trabalhando
nas lavouras, nas sapatarias sendo castigados com palmatórias contendo lâminas ou
pregos etc.
Deborah Silva Santos (2014) no texto Apontamentos sobre as culturas negras nos
museus no século XIX analisou o modo como o “outro” africano e seus descendentes
foram construídos historicamente, levando em conta povos de origem asiática, indígena
ou americana. Destaca que do século XVI ao XIX a África se despoja dos elementos do
reino animal, vegetal, mineral e em grande quantidade homens e mulheres. Entretanto, a
partir do século XVII os ditos gabinetes de curiosidade começam a se transformar, vão
abandonando a característica de possuírem inúmeros objetos, visando outras formas de
apresentação daquilo que existia em locais longes e desconhecidos. Assim, nota-se que
era necessário não somente obter o objeto, mas investigá-lo, estudá-lo e organizá-lo por
classificação, buscando explanar o “mistério” da criação, interpretar os “outros”.
A pesquisadora informa que no século XVIII são construídos os museus como
instituições nacionais européias e responsáveis por abrigar as coleções da monarquia e
franquear o acesso ao público. Este século edifica a instituição museal, porém é o século
XIX que molda como são apresentados atualmente, chegando a atingir outras partes do
mundo. Nesse mesmo período são criados os museus de artes, o museu de história
natural e museu etnográfico:
O século XVIII criou o museu como instituição, mas foi o século XIX
que o moldou como hoje conhecemos e o proliferou para todas as
partes do mundo, como instituição de caráter enciclopédico, instalada
em grandes edifícios, com procedimentos científicos em relação à
pesquisa, à salvaguarda, à exposição, a preocupação com a educação e
a relação com o público, a especialização dos seus trabalhos e a
segmentação por áreas de conhecimento: artes, história natural e
tecnologia. Os museus de arte mantiveram a procura pelo ‘belo’
estético e por obras clássicas e introduziram o espaço para o ensino
através das escolas de belas artes, dando incentivo ao estudo e a
produção, através das cópias dos artistas. O desenvolvimento
industrial e tecnológico do período criou a tipologia dos museus de
artes tecnológicas, que tiveram nas Exposições Universais, a partir da
segunda metade do século XIX, o seu maior incentivo, ao trazer para a
expografia questões referentes às exposições temporárias. Durante o
século XIX os museus de história natural investiram na formação dos
acervos, para isso organizaram expedições cientificas de coleta de
acervo que percorreram os territórios colonizados, com o objetivo de
estudar seus recursos naturais e seus habitantes, formando coleções
referentes à botânica, à zoologia, à mineralogia, à etnografia e à
arqueologia que foram enviados para os principais museus europeus.
(SANTOS, 2014, p.95-96).
Nesses termos a autora, relembra que em meados do século XIX os seres humanos
eram explicados de acordo com teorias pautadas nos determinismos biológico e
geográfico, que confirmavam a distinção biológica entre os homens devido à atribuição
racial. Nesse patamar estavam inclusos os museus etnográficos, onde os elementos
africanos eram um dos acervos privilegiados. Destaca essas questões no caso brasileiro,
com a criação do Museu Nacional no início do século XIX, chegando ao final do
referido século com as destacadas presenças do Museu Paraense Emilio Goeldi e do
Museu Paulista, instituições difusoras dessas teorias no Brasil. Essas instituições tinham
por anseio organizar o conhecimento humano e um saber “evoluído”, fazendo a
classificação da coleção e influenciando no debates nacionais indicativos ao
desenvolvimento do povo brasileiro (SANTOS, 2014, p. 99). Segundo Deborah Santos
(2014), os museus, cada um deles ao seu modo, deram sua contribuição para a
divulgação no Brasil das teorias raciais no século XIX.
Ainda no rol dos estudos sobre a representação das culturas afro-diaspóricas nas
exposições museológicas, Raul Lody (2005) na obra O negro no museu brasileiro:
construindo identidades apresenta duas linhas de força voltadas para a atualidade: as
instituições museais e sua relação com a tradição e a gama de aspectos do negro na
cultura e no imaginário brasileiro.
O pesquisador investigou festas e coleções relativas às diásporas negras em
diversos estados brasileiros, com destaque para a Bahia, Pernambuco, Sergipe e
Alagoas3. Dessa maneira, ressalta que os objetos que adentram as instituições
museológicas são frutos de um procedimento de “feitura”, de utilidade e significações.
Nesse sentido, destaca que grande parte destes artefatos vem de uma longa jornada
como “[...] rescaldo de apreensões policiais, outros doados por intelectuais, outros
doados pelos próprios usuários ou por pessoas delas próximas” (LODY, 2005, p. 16-
17).
A partir disso podemos estudar o estilo e as procedências das coleções. Esses são
elementos que poderão articular a apreciação, o estudo, fixar relações, para classificar
grupos e pode se auto-reconhecer, para definir regiões e idéias contribuindo para
redefinir as relações entre a África e o nosso país. Entretanto, Raul Lody chama a
atenção para que se modifique o modo de apresentar esses fatos:
3 Raul Lody (2005) estudou inúmeras instituições museais, coleções e cidade, a exemplo da
Coleção Perseverança de Alagoas, Xangô pernambucano no Museu do Estado, Candomblé de Salvador:
Coleção do Instituto Geográfico da Bahia, Um museu inspirado em Gilberto Freyre, Coleção afro –
pernambucana no Museu do Homem do Nordeste, Arte africana no Museu Nacional de Belas-Artes, Arte
dos povos bantu no Museu Paraense Emílio Goldi, Coleção afro-maranhenses: Patrimônios dos terreiros
mina-jeje e mina-nagô e das festas de São Luís, Coleção da Fundação Freyre, Museu Théo Brandão e o
xangô das Alagoas, Museu Arthur Ramos, Museu Câmara Cascudo, Coleção angola de Luís da Câmara
Cascudo, Museu do Ilê Axé Opô Afonjá, Coleção do Museu Nacional (UFRJ), Instituto Feminino da
Bahia, Museu Afro-Brasileiro de Laranjeiras, Sergipe, Pencas de balangandãs no Museu Carlos Costa
Pinto, Bahia, Museu Afro-Brasileiro (UFBA), Coleções afro-brasileiras no Museu de Folclore Edison
Carneiro. .
Ao mesmo tempo, vejo uma necessidade urgente de rever esse olhar
museológico perante o que se consagrou exclusivamente etnográfico.
As comunidades afrodescendentes reclamam e exigem suas
representações nos museus e também querem retomar testemunhos
materiais de suas histórias, sociedades, para retomar assim os objetos
e suas funções, desempenhando seus papéis, assumindo os verdadeiros
significados (LODY, 2005, p. 18).
O pesquisador ainda destaca que mesmo depois do regime escravocrata, tanto a
memória quanto os objetos que representam práticas relacionadas ao negro no Brasil se
tornaram alvos da polícia e do meio político:
Também nas cidades de Salvador, Recife, Rio de Janeiro e outras
durante o Estado Novo (1937), foram registrados abusos de autoridade
policial, resultado em invasões de terreiros e apreensão de objetos,
levados, então, para delegacias policiais, hospitais psiquiátricos e,
posteriormente, utilizados como documentos de marginalidade e
loucura, resultantes da danosa mistura de raças. Cinqüenta anos após
perseguições institucionalizadas, uma geral e aberta absorção social
toma e retoma matrizes próximas de um ideário africano/afro-
brasileiro numa também estética do ser negro, porém as causas
transpõem a virtude do esteta e atingem fundamentação econômica,
política e social. Daí concepções e representações materiais sustentam
patamares de uma reafricanização, de um purismo africano ou ainda
de uma busca dos símbolos culturais de uma plural ação civilizatória
africana. Também dessa ação resultados próprios e assim afro-
brasileirados geram motivações para artistas plásticos, músicos,
grupos de afoxé, blocos afro, escolas de samba, artesãos de terreiros,
lideranças políticas, além de um amplo processo educativo sobre
questões de uma historiografia de fundo social em vez da épica e
heróica história oficial de feitos e fatos de figuras notáveis e, quase
exclusivamente, agentes do poder e da dominação. Das relações
internacionais redefinidas após a descolonização acelerada da África
na década de 1960 e de movimentos ideológicos em busca das
identidades africanas e em sua diáspora, destacam-se a negritude e a
Africanness, que estimularam e apoiaram ideologicamente o
surgimento de grupos organizados de negros e também de não-negros
mobilizados pela causa da liberdade em seus patamares econômico,
cultural e social(LODY, 2005, p.24-25).
Ainda destacando alguns trabalhos representativos no campo da Museologia e das
diásporas negras, o trabalho de Myrian Sepúlveda Santos (2004) analisa as
representações dos negros em algumas coleções e museus brasileiros. O argumento
inicial da pesquisadora é que os museus afro-brasileiros situados em Salvador e São
Paulo são pequenas portas abertas para extensas modificações. Esses têm por objetivo
expressar uma inovação na questão das representações sobre o povo negro para um
amplo público.
No entanto, destaca que muitos museus ainda reproduzem discursos que abrigam
um conteúdo que vai contra o mencionado acima. Myriam Sepúlveda faz uma análise
dos conflitos e disputas que aconteceram nas distintas representações de negros que
estão presentes em determinados museus brasileiros, que, em ampla parte, são
instituições oficiais responsáveis pela salvaguarda da memória nacional. Para tanto,
examinou o poder na edificação dos diálogos sobre o passado, que significados são
lembrados e esquecidos e qual a afinidade dessas narrativas com métodos que induzem
a desigualdades raciais e as aproximações entre raça, memória e nação (SANTOS,
2004, p. 3).
Evidenciando o Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro destaca que
existe um silêncio em relação aos artistas negros, pois não se divulgam informações
sobre os produtores das obras. Diante disso, podemos dizer que as mesmas são
apresentadas, mas a história dos autores, sua raça, simplesmente deixa de ser exposta e
inclusa no contexto:
O silêncio sobre raça pode representar a predominância de um
imaginário coletivo, comum, capaz de se impor ao conjunto de
cidadãos, independentemente de cor, etnia ou raça. Cabe a nós,
entretanto, investigar este imaginário comum e perceber em que
medida ele traz hierarquia de valores e elege padrões estéticos e
produções culturais de um segmento populacional em detrimento de
outro. O que encontramos no Museu Nacional de Belas Artes não é
apenas o silencio sobre a natureza racial dos autores das obras de arte.
Os curadores dessa coleção não só silenciaram sobre a identidade de
autores negros, como também, ao logo da história, ignoraram muitos
deles, excluindo-os do seleto grupo que representa a arte e
intelectualidade brasileira. (SANTOS, 2004, p. 6).
Para a autora, na maioria das exposições, além do silêncio e da exclusão, o negro
é enaltecido em práticas como samba, carnaval e futebol, sendo esses aspectos mais
citados nos museus brasileiros:
O estereótipo criado de que os negros são bons em música e esportes
caminha junto com o de que eles são ineficientes como políticos,
empresários, industriais, advogados, médicos, engenheiros e demais
profissões de prestígio. Samba, carnaval e futebol fazem parte,
portanto, de uma memória da nação que não é freqüentemente
reiterada nos museus, mas em práticas populares. Ainda assim, no
Museu da República, os curadores da exposição ‘A Ventura
Republicana’, Gisela Magalhães e Joel Rufino dos Santos, procuraram
inovar as exposições museológicas, agregando ao acervo tradicional
encontrado no museu, praticamente todo ele relacionado aos
representantes das elites políticas e econômicas, objetos que fizessem
jus à contribuição dos excluídos: indígenas, sertanejos, e o povo das
ruas. É no módulo denominado ‘a rua’ que encontramos a frase de
Gilberto Freyre ‘O brasileiro é negro nas suas expressões sinceras’. A
exposição traz para dentro do museu a negritude do brasileiro que se
configura no domínio da rua em uma tentativa declarada de
popularizar o discurso lá encontrado e atrair mais público (SANTOS,
2004, p. 6-7).
A maioria dos museus brasileiros produz diálogos que possuem como
característica o silêncio sobre como o negro deu sua contribuição de maneira positiva
para a edificação do nosso país ou uma memória ativada a partir da escravidão. Assim
podemos a partir dos apontamentos da autora ressaltar algumas exposições que narram o
negro escravizado, submisso, submetido à dor, aos castigos severos vividos a longo
período de escravidão:
O Museu Imperial, por exemplo, que foi criado em 1940, durante o
Estado Novo, com a proposta de recolher, ordenar e expor objetos de
valor histórico ou artístico referente a fatos e vultos dos reinados de D.
Pedro I e, de D. Pedro II, trás pouquíssimos indícios da presença do
negro na vida do Império. Já o Museu Chácara do Céu, antiga
residência de Raymundo Ottoni de Castro Maya, transformado em
museu em 1972, reúne uma rica coleção de obras de arte, entre elas
desenhos e gravuras de viajantes europeus que documentam o Rio de
Janeiro no século XIX, como Debret e Rugendas. Na página eletrônica
deste precioso Museu, encontramos duas imagens que bem
representam o negro brasileiro: escravos sendo castigados. O Museu
Histórico Nacional, instituição que procura retratar fatos e momentos
relevantes a história do país ao longo dos séculos, traz imagens do
negro que fazem com que ninguém queira com ele se identificar. Há
na exposição ‘Colonização e Dependência’ uma narrativa evolutiva de
um processo econômico que se estende desde as grandes navegações,
comércio colonial, ciclos da cana de açúcar, do café e da mineração
até a abertura dos portos e imigração. Quando chegamos no trecho
relativo às plantações de cana de açúcar encontramos uma grande
maquete de um engenho, onde vemos negros escravos trabalhado e ao
lado a figura de um negro com uma gargalheira. Em frente às vitrines
dois troncos imensos sinalizam que negros eram colocados ali por
castigo. No ambiente neutro em que são mostrados estes objetos, eles
tendem a cumprir a função de banalizar os açoites, as chicotadas, o
trabalho forçado, a separação de famílias, o aviltamento a que foram
submetidos os escravos (SANTOS, 2004, p. 11).
Ainda sobre a representação dos negros nos museus brasileiros, Joana Angélica
Flores Silva (2015) faz uma análise destacando a perspectiva de gênero nos museus de
Salvador. Seu trabalho destaca como as mulheres negras vêm sendo representadas nos
museus de tipologia histórica em Salvador4. Dessa forma foi analisada metade da
expografia de longa duração, do Museu do Traje e do Têxtil do Instituto Feminino da
Bahia, que narra o universo feminino no argumento da moda, no século XIX.
A pesquisadora reconhece que o Museu do Traje e do Têxtil produz uma
ideologia representativa que não favorece as igualdades de gênero e racial. Assim
afirma que exposição museológica contribui para a discriminação de raça. As mulheres
negras representadas nos museus históricos de Salvador são apresentadas no contexto
expositivo com eliminação de “cenários construídos, vividos e vivenciados", edificando
a representação de um conhecimento que dá ênfase a desvalorização que elas ainda
enfrentam (SILVA, 2015, p. 5).
[...] Utilizando-se do recorte da exposição do Museu do Traje e do
Têxtil, podemos aferir onde o universo feminino se destaca pelas
roupas e modos de convivência no cotidiano das mulheres desse
período. No espaço expositivo, as manequins de cor branco abrigados
em vitrines, se encontram dispostas em ambientes, donde vê-se a
dinâmica dos passeios, das festas, das relações maternais etc. em
contraponto com as peças que ilustram a única vitrine composta por
manequins na cor preta, cujos trajes representam as mulheres
escravizadas, não evidenciando uma proposta de visibilizar a também
participação das Mulheres Negras na construção política, econômica e
social do país. A disposição espacial dos suportes escolhidos pelo
Museu incentiva à prática de uma leitura, cujo contraste social retira
dos objetos históricos (os trajes), a sua gama de informação que vai
além do simbólico e que podem influenciar na omissão de fatos
históricos, silenciados-quando não modificados à revelia pela
historiografia oficial - o que deixa o público visitante à mercê da
história dos grupos sociais que formaram a sociedade brasileira e
baiana do século XIX, apresentada de forma fragmentada e parcial.
Nesse contexto, é que o contraponto do diálogo em branco e preto,
toma o lugar de enunciado na exposição: de um lado, a somente
existência de brancas, economicamente bem sucedidas, do outro,
negras que viveram desprovidas, economicamente. A exposição não
contempla nos seus discursos as questões políticas, econômicas,
sociais e também afetivas que fizeram parte dos cotidianos desses
indivíduos, naquela sociedade. São as cores, em meio ao universo da
moda, que o branco e o preto por si só, demarca e historiciza o
universo das Mulheres Negras nessa exposição. (SILVA, 2015, p. 5-
6).
4 Sobre esse artigo usando como referência bibliográfica podemos dizer que Joana Angélica Flores
Silva (2004) estudou museus de tipologia histórica em Salvador, buscando identificar como as mulheres
negras estão sendo retratadas nesses espaços museais com destaque para a expografia de longa duração do
Museu do Traje e do Têxtil, do Instituto Feminino da Bahia, ressaltando a moda feminina no século XIX.
As instituições museológicas, em grande parte, produzem amostras de mulheres
negras como servas da comunidade, em todos os séculos. A negra é associada, como diz
Joana Silva, a “[...] uma figura simbólica, alusiva à imagem de mulher forte, cuidadora
dos (as) frágeis e desprotegidos (as), legitimando o imaginário cultural coletivo que
atribui a essas mulheres, o papel único de impossibilitada de pensar” (SILVA, 2015, p. 7).
O negro ainda possui destaque através do seu corpo, que foi utilizado artisticamente e
também usado por muitas instituições museais para com o mesmo fim, contribuindo
para um discurso sexual e racista:
Numa abordagem que discorre sobre a participação do museu como
espaço de representação e poder, podemos afirmar que a exposição
construída a partir das narrativas artísticas que caminham dos
manequins aos textos, do início ao final do circuito expositivo, onde
em meio ao universo da moda a carta de Carlos Gomes à Princesa
Isabel dá o toque final para o lugar que ali está a Mulher Negra, nele é
demarcado e legitimado a sua condição também nos dias atuais,
quando os seus trajes se contrapõem às vestes da mulher branca que
supostamente lhe deu a liberdade (SILVA, 2015, p. 8).
Resta-se a dúvida de que se foi representada a moda do século XIX na exposição
do Museu ou se a partir dali se forma outra expografia, onde as negras seriam vistas de
maneira inferior, pois usavam roupas fabricadas com tecidos considerados inferiores aos
das mulheres brancas. Nesse aspecto, quando não são silenciadas, muitas vezes, são
sub-representadas nas exposições museológicas.
As pesquisas aqui apresentadas consistem em indícios de como os museus
brasileiros, salvo raras exceções, têm representado às culturas afro-diaspóricas.
Analisando a representação dos povos negros e das diásporas nos museus observamos a
existência de tensões que no passado e presente marcaram impossibilidades e
imprecisões em meio à confrontação entre narrativas e idéias culturalmente diferentes.
As exposições em museus brasileiros, ao edificarem simbologias acerca das culturas
afro-diaspóricas, apresentam, em grande parte, um discurso onde à predominância
referencial e o capital simbólico está ligado a uma visualização de mundo ajustadas ao
ocidente branco.
Podemos afirmar que no século XIX as culturas dos povos negros estavam
formadas nas ações de salvaguarda e análise dos museus, como “os outros”, o diferente
e o estranho. As instituições daquela época, ao apresentarem características
enciclopédicas, apresentavam uma cultura material da população africana relacionando-
a aos determinismos biológico e geógrafico. Todavia, ainda hoje o negro é silenciado
quando representado na maioria dos museus brasileiros. Quando ganha um destaque é
por meio da religião, apontada como parte da resistência do negro, constantemente
perseguida, sendo esta uma forma de luta para que tivesse seu espaço, o real
reconhecimento, a valorização e, principalmente o respeito que merece.
As pesquisas aqui apresentadas destacam que na maioria das exposições o negro
é resumido à religião, a capoeira, ao samba, ao futebol, sendo ainda representado na
expografia museal como submisso, reforçando uma narrativa que apresenta o domínio
do branco sobre os mesmos. Além disso, o lado artístico, a literatura, a política, entre
outros, são aspectos que envolvem o negro, mas que são excluídos, esquecidos,
silenciados muitas vezes nesses espaços de poder e representação.
Entretanto é preciso ressaltar que muitos museus não abarcam as questões
políticas e sociais que podem ser recuperadas a partir de seus acervos. Eles ainda
reforçam os símbolos da escravidão, por exemplo. As narrativas reafirmam a
desigualdade, que assola não somente o espaço de interação entre homens e mulheres
negras representados na exposição, contribuindo para que suas culturas sejam
difundidas de maneira preconceituosa.
1.2 A exceção como enfrentamento: outros itinerários possíveis
Mesmo com tantas instituições museológicas que tentam representar o negro (a)
em suas expografias se conclui que falta muito para observarmos uma representação
igualitária e respeitosa. A partir da conscientização de que o povo africano contribuiu
para com a construção da identidade cultural brasileira poderemos notar as iniciais
mudanças no campo das exposições, pois não são somente os indivíduos que as
observam precisam mudar seu ponto de vista, mas quem as fabrica, eliminando um
olhar preconceituoso que formula memórias seletivas que desfavorecem uma raça e
silencia práticas culturais tão importantes. Nesse aspecto, algumas experiências vêm
sendo realizadas em diversos museus brasileiros visando construir itinerários
alternativos de representação das diásporas negras.
Seguindo esse entendimento, convêm observarmos as discussões de Joseania
Miranda Freitas e Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha (2014) na análise da
exposição de curta duração “Exu: outras faces”, no Museu Afro-Brasileiro de Salvador,
realizada no ano de 2013. Visando problematizar os bens afrobrasileiros na cidade de
Salvador/BA, realizam um estudo a partir da exposição apontando os aspectos
considerados por ela eficazes e de extrema valia para desmistificar algumas ideias
preconcebidas sobre esse orixá. Essa expografia tinha como propósito inovar o olhar do
público, como também fazer com que as pessoas pudessem se auto-identificar com a sua
cultura, além de produzir a diversidade das faces dos Orixás sem ocasionar desconforto
ou mesmo atitude voltada para o preconceito.
Não muito diferente de outras cidades, Salvador mesmo possuindo muitos
adeptos e simpatizantes das religiões afro-brasileiras ainda se torna palco para
manifestações de intolerância religiosa e discriminação racial:
A cidade de Salvador é conhecida por sua forte herança africana,
traduzida em grande parte por representações relacionadas às matrizes
religiosas. Ainda assim, a cidade, como outras partes do mundo, tem
passado por um forte processo de intolerância religiosa. Nas últimas
décadas tem crescido o número de organizações neopentecostais, com
diversas denominações e filiações, que dão continuidade aos apelos
preconceituosos do cristianismo, observados ao longo da história, em
relação às religiões de matriz africana. Ainda que grande parte dos
adeptos convertidos a estas novas igrejas seja de afrodescendentes,
práticas relativas às religiões de matriz africana têm sido vistas como
expressões satânicas. Estas ideias têm se difundido através de pais e
educadores que repetem para seus filhos e alunos imagens que
demonizam divindades e práticas do candomblé, elaboradas a partir
dos discursos de suas lideranças religiosas, realizados nas igrejas e
meios de comunicação, marcados por atitudes de perseguição moral,
que imprimem nos fiéis a intolerância que, semelhante à antiga
perseguição policial aos terreiros de candomblé, que durou até o
terceiro quartel do século XX no Brasil, impedem o acesso ao
conhecimento da diversidade cultural da sociedade (FREITAS,
CUNHA, 2014, p 193)
A exposição aderiu a escolha do Orixá Exu para iniciar novas expografias que
dialoguem, mostrando inúmeros olhares em relação às heranças deixadas pelos negros
africanos, expostas no desenvolvimento religioso e reveladas em muitas línguas. Aqui é
importante destacar como os curadores organizaram a exposição sobre Exu e suas
respectivas faces:
Corpo - A energia de Exu permite ao corpo humano vivenciar
descobertas e aprendizagens. Esta energia promove o despertar da
alegria, do desafio, do prazer e das escolhas que marcam os destinos
de cada pessoa. Línguas - Exu possui o conhecimento de todos os
idiomas conhecidos, desconhecidos, desaparecidos ou pouco
utilizados, característica que aproxima pessoas, constrói ideias e tudo
que envolve o falar. Artes - O fazer artístico no mundo material é uma
das possibilidades de manifestação de Exu. A sua forte energia
impulsiona processos artísticos, tais como: música, canto, dança,
pintura, escultura, arquitetura, teatro, poesia, literatura e
cinema.Escrita - A comunicação, oral ou escrita, é a característica
principal de Exu. A transmissão de informações em diversificados
modos constitui-se num campo de possibilidades de manifestação de
Exu. Tecnologia - Tudo que é relacionado à tecnologia e ao
movimento está também na essência de Exu, pois ele é o intermediário
para a criação de artefatos tecnológicos. Caminhos e Continuidade -
Exu apresenta as possibilidades de recomeço ou de renovação, para
que a vida possa ter continuidade. Exu é impulso da vida em sua
complexidade. É energia vibrante que estimula as pessoas a
perceberem a importância da vida, valorizando os momentos vividos
em plenitude. Exu, em suas diferentes faces, direciona o ser humano a
experienciar a vida com intensidade (FREITAS, CUNHA, 2014,
p.198)
Segundo os pesquisadores essa exposição de curta duração “por suas
características de implicação com a realidade social de intolerância às religiões de
matriz africana, representou uma atitude política ao defender os direitos constitucionais
de liberdade religiosa” (FREITAS, CUNHA, 2014, p. 205).
Ainda destacando outra iniciativa no Museu Afro-Brasileiro de Salvador é
possível registrar as ações museológicas em torno das coleções sobre a capoeira.
Joseania Miranda Freitas, José Joaquim de Araújo Filho e Jean Herbert Batista Brito
(2013) analisam no texto “A capoeira dos mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no
acervo do Museu Afro-Brasileiro da UFBA”a coleção voltada para esses mestres da
Bahia que atuaram no século XX, sendo este um período onde a capoeira era vista como
um ato marginal.
O Mestre Pastinha ressaltava sua vontade em ver a capoeira reconhecida como
parte do patrimônio cultural do Brasil, além de se ter o devido cuidado com as atitudes
para preservar a mesma, para que não fosse silenciada, perdida no decorrer do tempo. A
capoeira é um dos legados culturais da diáspora negra, reúne informações musicais, os
instrumentos, a voz, o movimento do corpo dos indivíduos em roda, que alguns
denominam como dança, luta.
A coleção do Museu Afro-Brasileiro reúne elementos que testemunharam a
capoeira jogada no século XX na Bahia, através dos Mestres Pastinha (Vicente Joaquim
Ferreira Pastinha), Bimba (Manoel dos Reis Machado) e Cobrinha Verde (Rafael Alves
França). É dada ênfase a dois feitios considerados de grande importância na construção
dos agrupamentos dos elementos dos mestres. A princípio, os próprios líderes da
capoeira estavam atentos e guardavam documentos, fotografias, carteiras das academias,
registros feito por alunos, livros, papéis, entre outros. Já o segundo aspecto encontra-se
na preservação das peças, sendo os herdeiros os responsáveis por confiar e entregar os
objetos a uma instituição museológica entre os anos de 1983 e 1984 (FREITAS,
FILHO, BRITO, 2013,).
A atuação dos pesquisadores nessa coleção contribuiu para que fosse possível
criar contextos que dessem direção ao entendimento dos inúmeros assuntos vivenciados
por Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde, por exemplo, de maneira que revelasse coisas
sobre a existência dos seus objetos antes da transferência para o espaço museológico:
O estudo das peças da coleção exigiu o estabelecimento de nexos
entre os artefatos - produtos da cultura material, sua vida anterior e
sua transformação em objetos museológicos - e as diversas memórias,
registradas ou não, sobre a vida de cada mestre, sobre a formação das
coleções por cada família e suas diversas histórias, individuais e
coletivas. Ao final do processo a coleção passou a ter um caráter
autobiográfico, apresentando uma série de dados que levaram à
identificação de cada mestre, com a explicitação de suas diferentes
formas de praticar e registrar a capoeira, sendo necessário, portanto,
subdividi-la, com seus nomes [...] (FREITAS, FILHO, BRITO, 2013,
p. 179).
Os três Mestres negros lutaram contra o racismo, o preconceito e demonstrou o
quanto a capoeira tinha extenso significado para quem a conhecia e sabia seu valor
histórico cultural. O estudo dos objetos dos Mestres foi um meio de gerar uma via de
comunicação. Nesse sentido, as duas exposições apresentadas, embora dialoguem com
temáticas tradicionalmente associadas ao universo afro-brasileiro não apresentam uma
visão estereotipada, estimulando, desde a sua inauguração em 1982, leituras críticas que
possibilitam reconhecer as diferentes contribuições dos povos descendentes das
diásporas negras.
Ao continuar a narrar o contexto sobre contribuições em expografias em museus
pode-se dizer que Emanoel Araújo teve a satisfação em pode ir à frente realizando seus
trabalhos e produzir uma mostra cultural conhecida como “Vozes da Diáspora” no ano
de 1992, quando ele se tornou diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo. A
expografia seria entorno dos objetos africanos e referentes aos pintores negros que
viveram no século XIX.
Outro exemplo significativo consiste na atuação do Museu Afro Brasil,
inaugurado em 2004 na cidade de São Paulo sob a curadoria do artista plástico baiano
Emanoel Araújo. O local se tornou uma referência, pois desenvolveu exposições que
abarcavam a cultura negra, como por exemplo, a expografia “A mão afro-brasileira:
significado da contribuição artística e histórica” que se tornou muito conhecida e
utilizada como referência:
A obra enfatiza as artes visuais sem descurar de outras expressões
artísticas a exemplo do Teatro Experimental do Negro abordado por
Abdias Nascimento. A entidade não apenas instaurou um novo ponto
de vista no que concerne a representação dos afro-brasileiros como
também se dedicou a um trabalho de base visando letramento e
qualificação profissional da população negra. O TEN, como ficou
conhecido, possuía uma dimensão estética e política sem precedentes
na história da cultura brasileira no que concerne a afirmação de uma
identidade negra construída a partir do próprio segmento em oposição
às identidades a ele atribuídas (SILVA, 2013, p.41)
No Museu Afro Brasil trabalha-se com as nações Ketu, Jejê e Angola, além de
ressaltar o culto de Babá Egun. A curadoria quis provocar o olhar do visitante expondo
no local as múltiplas faces das religiões afro-brasileiras. O Museu Afro Brasil pode ser
considerado um lugar que valoriza a cultura afro-brasileira. Nesse sentido, se as ações
em debates não modificam o quadro da mobilidade da sociedade, provocam
interferência na construção simbólica, na medida em que colocam em discussão
nacional aspectos que historicamente foram silenciados (SILVA, 2013).
Diante dos diversos exemplos apresentados neste capítulo concluímos que as
populações afro-brasileiras precisam ter voz ativa e que essa voz adquira ressonância
nos museus brasileiros. Suas práticas culturais devem ser evidenciadas e suas obras e
legados apreciados. Nesse sentido, a presença dos herdeiros e das heranças das
diásporas negras não deve figurar apenas como tema das exposições. Acreditamos que
os próprios agentes representados devem se tornar protagonistas nos processos
museológicos, configuração que só recentemente começa a modificar. Para tanto,
visualizaremos nos próximos capítulos a poética e a política em torno dessas
problematizações tendo como estudo de caso o Museu Afro-Brasileiro de Laranjeiras-
SE.
REFERÊNCIAS
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Lusófona de Humanidades e Tecnologias estudos Avançados de Museologia, 2002.
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Doutorado em História- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC/SP, 2006.
FRANCO, Maria Ignez Mantovani. Processos e métodos de planejamento e
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organização de exposições, 2008.
FREITAS, Joseania Miranda; CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Reflexões
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do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS Unirio |
MAST - vol. 7 nº 1 – 2014.
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SANTOS. Myrian Sepúlveda dos. Entre troncos e Atabaques: Raça e Memória
Nacional. Colóquio Internacional Projeto Unesco 50 anos depois. Salvador, 2004.
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Brasília – UnB Instituto de Artes - IdA Programa de Pós-Graduação em Arte. Brasília
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