Mulheres do mata cavalo
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MULHERES DO MATA CAVALO: A EDUCAÇÃO NOS CAMINHOS DA RESISTÊNCIA NEGRA
Barcelos, Silvânio Paulo de.Mestre em história
COMUNICAÇÃO ORAL – GT 15 Relações Raciais e Educação
“Eu sou quilombola, bisneta de escravos, nós, quilombolas, não somos os invasores”.
Foi com essas palavras ásperas e plenas de significados que Joana, integrante da comunidade
do Mata Cavalo de Baixo, iniciou sua fala diante das autoridades e inúmeras pessoas do
Quilombo1, em audiência pública realizada pela Comissão Federal de Combate à Violência no
Campo, na cidade de Livramento, Mato Grosso, em 15 de Setembro de 2003. A manifestação
dos remanescentes se deu, em parte, devido às ações de despejo realizadas pela Polícia Militar
em 21 de Maio de 20032, que terminou com a expulsão de trinta e cinco famílias quilombolas.
Joana, como tantas outras mulheres do Quilombo, personaliza o ideal da resistência negra à
opressão, uma voz inquieta que se destaca frente aos poderes econômicos de uma elite
fundiária acostumada a mantê-la à margem do sistema que representa os poderes constituídos
naquela região. Ao declarar que eles, os quilombolas, não eram os invasores, como foram
classificados naquela época, ela se reporta, com muita razão, à própria história da cadeia
dominial do imóvel da antiga Sesmaria Boa Vida3. Como descendentes diretos daqueles
escravos que foram beneficiados com o ato de doação das terras constituem-se,
inexoravelmente, em seus herdeiros legítimos de fato e de direito. Sua voz firme e desafiadora
revela bem mais que simples disposição de luta por ideais, no íntimo desvela toda uma
condição social moldada na têmpera de vidas forjadas pelo instinto da sobrevivência.
1 Parte do documentário Sentinelas do Tempo: Mulheres Quilombolas contido no DVD A Terra e o Tempo: Vozes do Quilombo, produzido sob a direção de Sergio Brito, em 2006, e distribuído pela Terra do Sol Filmes. 2 De acordo com reportagem veiculada pelo jornal eletrônico Mídia Independente, o ano de 2003 foi marcado pela violência e ações de despejo no Mata Cavalo. Em 21 de maio, policiais invadiram o Quilombo para cumprir o mandado judicial expedido pelos Juízes Marcos José Siqueira e Teomaro Corrêa para reintegração de posse de duas fazendas. Foram despejadas no total trinta e cinco famílias sendo que na ação um quilombola foi preso por desobediência. Segundo o jornal “Depois de toda a opressão, ‘autoridades competentes’ como a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Política da Promoção de Igualdade Racial, o governador Blairo Maggi, deputado federal Carlos Abicalil e a senadora Serys Slhessarenko, vão ao quilombo fazer vistoria e reunir-se com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos”. Disponível em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/05/255267.shtml acesso em 12 de Janeiro de 2011. 3 A história da cadeia dominial do imóvel da Sesmaria Boa Vida foi pesquisada, desenvolvida e narrada pelo autor durante todo o segundo capítulo da dissertação de mestrado denominada “Quilombo Mata Cavalo: Terra, conflito e os caminhos da identidade negra”, defendida em Março de 2011 no Programa de Pós-Graduação Mestrado em História, Universidade Federal de Mato Grosso.
Pretende-se neste artigo levantar algumas questões relacionadas à importância da
educação como fator de tomada de consciência social, econômica, política e também cultural,
para uma parte da Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata Cavalo, como verificada
no campo da pesquisa por esse autor no decurso dos trabalhos de campo junto aos
descendentes daqueles escravos, nos anos de 2008, 2009 e 2010. Esse grupo a que nos
referimos pertence à Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Mutuca, uma entre as
inúmeras associações que compõem o complexo desse Quilombo. Moldados pelas
dificuldades e constantes pressões advindas das lutas pela permanência em suas “próprias
terras” esses quilombolas souberam, com obstinada tenacidade, preservar o que havia de mais
significativo para suas vidas. Tradição e terra, memória e herança, um mundo afro-
referenciado constituído no centro convergente da diáspora negra4, uma reterritorialização de
uma pequena porção da África que habita fértil no imaginário dos povos que ajudaram a
construir, com os próprios braços, o Novo Mundo.
No movimento de resistência e das lutas pela liberação das terras quilombolas, ao longo
de quase um século e meio, destaca-se a força das mulheres negras numa mescla de coragem e
astucia, determinação e fé. Desta forma, trataremos aqui, também, da trajetória de algumas
dessas mulheres, seus sonhos e ideais, revelando para além das estruturas sociais baseadas,
via de regra, no sistema patriarcal, uma ativa e expressiva presença no seio daquela
comunidade. Como veremos no percurso deste artigo, para a comunidade do Mutuca, sem
dúvida, a construção da escola, marcou um dos momentos mais importantes dessa história
singular, sonhos de uma mulher que ousou acreditar na educação como forma de luta e
tomada de consciência. Hoje, a Escola Estadual Rosa Domingas de Jesus representa bem mais
que um local de construção de saberes, constitui-se em sua forma expressa no lócus
privilegiado de preservação da tradição quilombola, elemento crucial para a própria existência
do Quilombo, um elo importante na estrutura das lutas emancipadoras.
As mulheres quilombolas
4 Stuart Hall utiliza o conceito “diáspora negra” para explicar a experiência dos Africanos desterritorializados em função da escravidão racial. Afro-caribenho, vivendo em Londres, Hall entendeu sua condição de ser-no-mundo: conhecendo intimamente os dois lugares – a Jamaica e a Inglaterra - percebeu que na verdade não pertencia a nenhum deles, “e esta é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma chegada sempre adiada”. Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende... [et. al.]. – Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. P. 415.
No Mata Cavalo, assim como em outros quilombos brasileiros, as mulheres assumiram
seus lugares de destaque no interior das famílias e dos grupos sociais, contrariando de certa
forma uma tradição patriarcal solidamente estruturada ao longo da história. Francisca Romana
da Silva representava uma dessas mulheres. José Gregório de Almeida5, seu descendente, a
descreve como “uma nega bonita, alta, toda cheia daqueles colares no braço, no pescoço, que
aquelas escravas usavam, vestido de roda, de senzala, não sei quantas saias tinha por baixo!”.
Com a morte de seu esposo Vicente Ferreira da Silva, relata o entrevistado, ela se vê na
obrigação de assumir o comando e o destino de sua prole em um ambiente marcado pelo
estigma da instabilidade e pela hegemonia de uma sociedade predominantemente racista. Com
firmeza e ao mesmo tempo devoção maternal manteve a coesão de seu grupo familiar extenso
graças à sua capacidade de liderança. Rebuscando na memória, Almeida lembra que graças à
força daquela mulher no seu meio familiar “não existia miséria, não existia fome, porque todo
mundo tinha, era unido. Todo mundo tinha fartura, rapadura, açúcar de barro, todo mundo
tinha porque todo mundo fazia”. Num sistema onde predominava a agricultura de
subsistência, todas as necessidades materiais do grupo dependiam exclusivamente de sua
força de trabalho, um rígido controle e a presença de alguém capaz de liderá-los. Francisca
Romana da Silva “Administrava a terra, administrava os filhos, ela era uma mulher
administrativa” assevera Almeida.
Preocupada em manter a união de seu grupo familiar ela não se furtava aos deveres da
educação dos mais jovens com os rigores e a disciplina requerida naquele ambiente rude.
Quando necessário aplicava os corretivos em forma de castigos físicos, como era
característico à época, lembra Almeida. Caso algum de seus filhos, ou parentes mais novos
sob sua responsabilidade apresentasse comportamento inadequado, de imediato ela ordenava
“marra o fulano lá pra mim, aí eles pegavam podia ser irmão, podia ser quem fosse pegava e
amarrava e ela chegava a vara, assim que era” confirma o entrevistado. Preocupada em
manter sua posição de liderança perante sua gente, fazia questão de exigir para si um
tratamento baseados no respeito e consideração, desta forma “todo mundo pedia benção pra
ela, tinha gente que até ajoelhava pra pedir benção pra ela, sabe como era a educação
antigamente não é: Sim senhor! Sim senhora! Não é como hoje”, relembra Almeida. Aliando
a seriedade que sua posição exigia à docilidade do instinto maternal ela conseguiu manter sua
5 Entrevista cedida em sua residência no Bairro Ribeirão da Ponte, em Cuiabá, na data de 30 de Setembro de 2011, cuja gravação encontra-se arquivada no acervo particular deste pesquisador.
família de acordo com os padrões revelados na fala simples de Almeida. Nas ocasiões em que
a prática do muxirum era utilizada, afirma ele,
ela tava alegre, acho que tomava uns vinhos, aí ela dançava com os filhos, ficava alegre, fazia aquele rodão, ela ficava assim com os netos e tataranetos. Muito brava ela era, mas tinha os momentos de alegria de agradar também. [...] Quando ela recebia visita todo mundo tinha que comer tudo, ela punha a mesa: doce de leite, doce de mamão, lambari frito, carne com arroz, abóbora, feijão, tinha aquelas vasilhas de barro para colocar comida. Colocava a mesa, tinha que comer tudo, quem fosse lá visitar ela tinha que comer de tudo. Ela arrumava aquele mundo de refeição, era pra comer toda a comida, se não comesse ela era ignorante: ta fazendo pouco da comida? Tinha que ser bom de prato, depois agradecia ela aí ficava alegre, ela tinha gosto de tratar as pessoas.
Sendo os relatos de memórias escolhas conscientes que fazemos a partir da experiência
própria de nossas vidas, objetivando dotar de coerência uma narrativa qualquer a que se
proponha edificar, sempre levando-se em consideração o presente em que vivemos, conforme
Bourdieu afirma no seu artigo “A Ilusão Biográfica”, podemos tirar algumas conclusões das
falas de José Gregório de Almeida, na entrevista relatada acima. Para ele, como também para
tantos outros entrevistados durante nossa pesquisa de campo, como o caso de Antonio
Mulato6 e seu desabafo quanto ao pouco caso que a juventude do Mata Cavalo confere às
antigas tradições do Quilombo, o mundo ideal consiste naquele onde a vida comunal faz parte
das regras sociais do grupo. Ao rebuscar essas memórias do tempo da fartura, “onde não
existia miséria [...] onde todo tinha, porque todo mundo fazia”, ele relaciona a desdita vivida
no presente opressor pela desagregação daquele antigo modo de vida, concebendo-o como o
sistema social perfeito e fazendo dele um objetivo futuro, um devir dotado de racionalidade,
uma esperança vindoura. Notamos, também, a centralidade que uma liderança forte possui no
imaginário de Almeida quando ele se volta para o seu próprio passado. Para ele, a harmonia
daqueles dias felizes e fartos se devem em grande parte à capacidade de liderança de sua avó,
uma simetria, ao menos em algum nível, com o tipo ideal de dominação, postulado pela
sociologia weberiana, a “dominação tradicional”, legitimada pela força que a tradição possui
para aquela gente do Quilombo. Não se torna tão complicado, também, identificar o “ideal
puro”, ou o “tipo ideal” preconizado por Max Weber, aos recortes de memória do entrevistado
com relação ao meio social do qual expressa tanto saudosismo. Tendo como regularidade a
harmonia social daqueles dias vividos em função de ações sociais específicas, no caso o
6 Antonio Mulato, 105 anos de idade, patriarca honorário desta comunidade, em entrevista gravada no ano de 2011, em sua residência no Quilombo Mata Cavalo, conforme acervo documental deste pesquisador.
sistema comunal apoiado por uma liderança forte, levando-se em consideração as
características fundamentais do próprio grupo do qual se lembra, pode-se identificar aí uma
variação do tipo ideal weberiano. Ou seja, uma comunidade pautada nos valores da
reciprocidade humana e nos elos de solidariedade do grupo a partir das práticas sociais
baseadas no sistema comunal, onde o maior valor a ser preservado encontra-se na própria
união do grupo, símbolo de sua fortaleza e fé.
Hilary McD Beckles e Verene A. Shepherd, da West Indies University, na obra “Las
voces de los esclavizados, los sonidos de la libertad” publicada pelo Projeto de Escolas
Associadas da UNESCO, às páginas 72 e 73, falam da vida e da obra de Harriet Tubman.
Nascida em 1821 em Bucktown, Maryland, aos 6 anos de idade foi designada por seus
proprietários a trabalhar para uma mulher chamada Miss Susan. Pouco depois é devolvida às
lavouras que abasteciam a fazenda do seu senhor. Em 1849, quando soube que iriam vendê-la
a fazendeiros do Sul dos Estados Unidos, resolve então fugir em busca de liberdade. Ao
chegar ao seu destino mal acreditava que houvera conseguido sua independência, assevera
Tubman. De acordo com suas palavras:
Me miré las manos, para ver si yo era la misma persona ahora que era libre. Había tanta gloria, el sol brillaba como oro entre los árboles y sobre los campos, y me parecía que yo estaba em el cielo...Había cruzado la línea con la cual soñaba hacía tanto tiempo. Era libre, pero no había nadie que me diera la bienvenida a la tierra de la libertad; era una extraña en una tierra extraña, y mi hogar estaba en aquel viejo barrio, con todos mis allegados y hermanos. Pero llegué a esta solemne decisión: yo era libre y ellos también debían de serlo; les prepararía un hogar en El Norte, y con la ayuda de Dios, los traería a todos aqui.
Ao perceber que havia deixado para trás não só o tormento e os horrores da escravidão,
mas também seus familiares e irmãos que compartilhavam a mesma sorte, resolve então tomar
uma solene decisão. Nascia naquele momento uma guerreira tenaz. Tubman torna-se líder de
um dos maiores movimento secretos dos Estados Unidos, o Underground Railway, que
ajudava as pessoas escravizadas a fugirem para o Norte daquele país, como também para o
Canadá, onde a escravidão racial fora erradicada para sempre. Em suas 19 viagens ao Sul
escravista ajudou a libertar um sem número de pessoas escravizadas e entre estas sua própria
família. Harriet Tubman é apenas um pequeno exemplo da tenacidade e força de vontade das
mulheres afro-descendentes, como o caso de Tereza Conceição de Arruda, que atuou com
grande desenvoltura na função de presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais
de Mata Cavalo de Baixo, até os dias finais de sua vida em 2011. Numa entrevista gravada
por esse pesquisador em Novembro de 2009 na sua residência ela fala do sofrimento de sua
bisavó pelo lado materno:
A cabeça dela era assim: não tinha um fio de cabelo de tanto ela carregar panela quente. Não tem aquela folha de imburuçu, que dá uma folhona grande redonda e folha de Belém, não tinha pano para por, e forrava a cabeça com aquelas folhas pra levar comida pro pessoal na roça, pros escravos na roça. A folha cozinhava, queimava, sapecava, panela quente mas eles chegava lá. Caiu tudo o cabelo dela. Tinha essa mão seca dela segurar pavio. Iluminação não tinha de jeito nenhum, era as escravas que seguravam as candeias para eles jantarem. Se faziam alguma coisa errada tinham por castigo que segurar a candeia acesa a noite toda. E aí ela ficou a noite inteira com a candeia na mão, ela dormiu e o pavio queimou a sua mão toda. Pretinha, pretinha que era a mão dela.
Testemunha ativa da história de sua comunidade, muito da determinação, garra e
objetividade certamente constituiu-se a partir dessa herança familiar e comunitária de uma
vida marcada pelo instinto da preservação e sobrevivência ao meio, via de regra hostil. Sua
história, que é a história de sua família e de uma importante parte do Quilombo demonstra
com simplicidade sua ligação fecunda com os herdeiros dos antigos escravos de Anna da
Silva Tavares, fundadores do quilombo aqui referido. A minha avó Marcelina, relembra
Tereza Conceição de Arruda, ainda na mesma entrevista,
era do Mata Cavalo daqui desse pedaço, a sesmaria era todo lugar. O meu avô era da Estiva, tudo era sesmaria, só pulava o córrego. A sesmaria compunha-se de Sesmaria Boa Vida com Sesmaria Cracará, papai era da Estiva, mãe Celina, mãe de meu pai, é daqui, é povo da Mutuca, da família da Mutuca mesmo, mas tudo dentro da Sesmaria Boa Vida. Papai casando ficava lá na Estiva. Quem morava na Estiva? Era pai de papai que ficou ali na Estiva, o irmão dele Remoardo, Sabino e Marcos, tudo ficou ali na Estiva e a irmã dele Barbina. [...] Com esse negócio de expulsação saíram. A Barbina foi pra Poconé nunca voltou pra cá, mas tem o povo dela que é descendente, esse avô dela Remoardo que é bisavô dela foi pra lá ficar com o padrinho e quem ficou mesmo aqui foi o Marcos, o Mulato e o Sabino, esses que ficou aqui que não foram embora.
Em denúncia feita à Gazeta de Cuiabá a grande matriarca do Quilombo mostrou, como
sempre, sua coragem e determinação. Segundo ela em Fevereiro de 2002 os fazendeiros
cortaram o arame da cerca de sua plantação e o gado “invadiu cinco hectares e destruiu
culturas de milho, arroz, banana, mandioca, cana, abóbora. Ela estima que, pelo menos, oito
mil ha foram invadidos por posseiros, fazendeiros e agricultores. ‘Há oito anos estamos nesta
luta’, afirma a matriarca.”7 Na reunião promovida em 20 de Abril de 2004, no Mata Cavalo,
pelo CEDN – Conselho Estadual dos Direitos do Negro, contando com a participação de
membros de outros quilombos, como os de Vila Bela de Santíssima Trindade, bem como de
autoridades representando a Prefeitura Municipal de Livramento, Secretaria de Estado da
Casa Civil, Câmara Municipal de Livramento, Assembléia Legislativa do Estado, Ministério
Público Federal e Estadual, Tereza Conceição de Arruda exigiu dos órgãos governamentais
medidas mais efetivas para a resolução dos problemas no Mata Cavalo. De acordo com suas
palavras, “Queremos a posse da nossa terra que foi dos nossos antepassados. Queremos
propostas que saiam do papel. Chega de viver debaixo de barracos de lona”.8 Seguindo os
passos da grande matriarca do Mata Cavalo, destaca-se também pelo destemor, engajamento e
profundo amor à sua gente, Gonçalina Eva de Almeida, sua neta, professora, ativista em prol
da causa negra, uma autêntica representante da saga das mulheres do Quilombo. Com seu
olhar altivo ela se reporta à questão da tradição como um elemento importante que “mantém a
gente forte e vivo, porque uma pessoa que não tem história, não tem passado, não tem raízes,
e no nosso caso isso é bem forte.9” Consciente da importância da tradição para a própria
existência do grupo enquanto comunidade tradicional afro-referenciada, ela luta
constantemente pela paz entre os seus, mas, quase um paradoxo, percebe o lado positivo da
violência, pois no contexto das lutas vislumbra a possibilidade de evoluir rumo à legitimação
tão sonhada da propriedade das terras dos negros. De acordo com ela, sempre pensando nos
caminhos da paz,
sofremos bastante violência, mas acho que valeu a pena porque nós estávamos lutando por um direito que é nosso, não é? E quem não luta por seus direitos não é digno dele. E a gente conseguiu com essa luta acalmar a questão da violência. E a gente sempre fez uma luta pacífica, graças a Deus.
7 Disponível em: http://www.amazonia.org.br/fogo/noticias/print.cfm?id=8987 . Acesso em 09 de Fevereiro de 2011. 8 Disponível em: http://www.reporternews.com.br/noticia/29139/CEDN-debate-solu%E7%E3o-para-Mata-Cavalo Acesso em 09 de Fevereiro de 2011. 9 Entrevista gravada em sua atual residência na localidade conhecida como Ponte da Estiva, Fazenda Ourinhos no Mata Cavalo de Cima, em 21 de Janeiro de 2011.
Em sua visão de mundo, Gonçalina Eva de Almeida entende a escravidão como um
dos atos mais cruéis praticados contra a humanidade, mas também percebe que foi superada
pela força, determinação e vontade de vencer de sua gente, qualidades que para ela ainda são
preservadas pelos descendentes dos antigos escravos. Essa forma peculiar de entender o
mundo que a rodeia como uma constante possibilidade de superação de limitações individuais
e coletivas, certamente constitui os elementos que moldam seu caráter combativo. Com um
grande sorriso fala sobre o preconceito como uma desastrosa “burrice do ser humano, que no
fundo todo mundo é igual” afirma em sua entrevista. Sua consciência acerca dos movimentos
da história negra reflete-se quando fala da importância do 20 de Novembro, dia da
comemoração à Zumbí de Palmares, entendido por ela como uma data que foi efetivamente
criada pelos negros, uma conquista, um sonho realizado.
Rosa Domingas de Jesus e a educação quilombola.
Com a expulsão de uma boa parte dos remanescentes do Quilombo pelos fazendeiros,
a partir da segunda metade do século XX, como vimos ao longo de nossas pesquisas, aquelas
terras não ficaram totalmente abandonadas evidenciando um alto nível de resistência à
opressão por parte de muitos dos descendentes daqueles antigos escravos. Entre os que
ficaram, destacam-se pelo comportamento e atitude de obstinada tenacidade algumas de suas
mulheres mais ilustres, entre elas um símbolo, um ícone da luta dos negros do Mata Cavalo:
Rosa Domingas de Jesus. Uma mulher extraordinária que ao se ver desamparada da
segurança e da presença de seu esposo, Miguel Ferreira de Jesus, falecido em 13 de Maio de
1982, assumiu a posição de mãe e pai de seus filhos e por extensão a função nada fácil de
matriarca de sua comunidade familiar estendida, tarefa que soube realizar com desvelado
amor aos seus e à terra de seus ancestrais.
Falecida em Maio de 2005 deixou como herança aos seus dez filhos a determinação e
a coragem que sempre demonstrou em vida, mostrando que os caminhos a serem por eles
trilhados devem se pautar pela nobreza que o trabalho oferece, em comunhão com as terras
dos ancestrais, os escravos da antiga Sesmaria Boa Vida, que a ela e tantos outros foram
deixadas. Na visão de sua neta, Laura Ferreira da Silva, em entrevista gravada no dia 09 de
Fevereiro de 2011, D. Rosa “era uma guerreira”, e pelo que se percebe em sua fala, também
um símbolo de amor maternal sempre pronta a socorrer seus filhos e parentes. A terra onde,
junto com seu esposo, nasceu e morreu foi herança deixada pelo sogro Macário, descendente
de Vicente Ferreira Mendes10. Após a morte de seu sogro começa então para o casal uma dura
vida marcada pela violência em função do conflito fundiário pela propriedade de suas terras.
Miguel Ferreira de Jesus constantemente ameaçado pelos jagunços a serviço de fazendeiros
da região, passou a viver em clima de instabilidade, levando-o a redobrar as atenções para
com sua família. De acordo com a fala de Germano Ferreira de Jesus 11, um dos filhos de D.
Rosa, quando o pai ia fazer alguma atividade fora de suas terras, os seus filhos nem à roça
poderiam ir sem que estivessem acompanhados pela mãe, “porque ela tinha medo dos
fazendeiros mandarem jagunços pra fazer algum mal pra gente”. Meu pai sempre foi
perseguido, afirma Germano,
quando ela ia pra cidade ele tinha que voltar por uma outra estrada. Então foi assim, de 30 anos pra cá foi uma alegria vamos dizer assim uma alegria triste. Porque no mesmo tom que tava alegre ficava triste porque fazendeiro vinha, roça da gente fazendeiro começou a cortar. A gente fechava a roça eles iam lá pra cortar nosso arame e botava gado. Foi uma luta acirrada mesmo.
Incansável e determinado, Miguel Ferreira de Jesus lutou pela legitimação de sua propriedade
junto aos órgãos do governo sem obter nenhum resultado satisfatório. Com a saúde bastante debilitada
acaba perdendo sua vida sem ver a sua terra liberta. Começa então uma nova fase para a família de D.
Rosa. Os fazendeiros envolvidos no litígio aumentaram a pressão pela disputa daquelas terras, em
ações diárias de intimidação realizadas por seus jagunços contratados. De acordo com as próprias
palavras de Laura, “era capanga, às vezes era policial dia e noite, a gente não tinha paz com os
fazendeiros, e ela sempre à frente com sua fé, rezava, pedia aos santos pelos seus filhos, pelos
seus genros e noras”. Quando necessário, trocava as rezas e a devoção religiosa pelas armas
no confronto com seus opositores “ela ia colocava seu machado, seu facão debaixo do braço e
ficava lá enfrentando eles, e falava que não saia”. Sua determinação fazia com que defendesse
seus familiares e suas terras, se preciso, ao preço de sua própria vida. D. Rosa tinha
consciência plena de si mesmo, tanto que sempre repetia nos momentos mais graves dos
confrontos que “só morta e mesmo morta jamais iria sair daquele determinado lugar. Pra
tirarem ela dali só se matassem, mesmo assim ela ia dar muito trabalho para eles”, conclui
Laura.
10 Conforme nossa dissertação, dois anos após o ato de doação do Ribeirão Mutuca à Leopoldino Alves da Costa, o titular e sua esposa, em 18 de junho de 1896, venderam através de escritura pública, na forma da lei, a área de terra em questão a Vicente Ferreira Mendes, um ex-escravo libertado em função da assinatura da Lei Áurea em 1888.11 Entrevista gravada em sua residência na comunidade do Mutuca, em 09 de Fevereiro de 2011.
Cansados dos constantes fracassos na tentativa de expulsar D. Rosa de suas terras, os
fazendeiros mudaram suas estratégias, buscando seus objetivos através do assédio moral e da
intimidação, cortando arames das cercas de suas plantações e soltando o gado para a
destruição do que já estava plantado. Ao ver seus filhos angustiados nos momentos em que
viam o fruto dos seus trabalhos serem destruídos em questão de horas, D. Rosa simplesmente
dizia para eles que não seria dessa forma que os fazendeiros conseguiriam expulsá-los de suas
próprias terras. Com coragem e devoção dizia aos filhos que para cada hectare de plantação
destruída eles cultivariam o dobro, não se entregando jamais.
D. Rosa, ao que tudo indica, parecia haver entendido a facilidade com que seus
opositores, a maioria constituída por pessoas com certo grau de instrução e escolaridade,
lidavam com os códigos legais servindo aos seus próprios interesses. Pensando dessa forma
ela passa a cultivar um sonho, que era o de ver seus filhos, netos, genros e noras estudando.
Nas palavras simples e profundas de Laura, sua avó entendia a necessidade da educação e da
instrução como essencial à própria sobrevivência do grupo, pois
ela acreditava que toda causa daquela briga, daquela questão da terra se dava pelo fato que eles não tinham leitura, não tinham um entendimento da escrita. Por mais que eles tinham conhecimento, sabiam onde iam seus limites, terra, tudo, mas eles tinham conhecimento de outra forma, não conhecimento científico como é aplicado hoje. Então ela tinha esse sonho que todos pudessem estudar. Estudasse ali e continuasse mantendo vivo a história, a resistência, a luta aí passando de geração pra geração.
Os sonhos de D. Rosa começaram a se materializar em 2002, numa reunião no Centro
de Organização e Defesa do Adolescente, que contou com a participação de membros da
entidade não governamental Fundo do Canadá, do país de mesmo nome, ocasião em que
Laura teve a oportunidade de lhes contar a história e os sonhos de sua avó. Segundo a
entrevistada, aparentemente naquele momento os canadenses não deram muita atenção à ela.
Em uma data posterior Laura recebe uma ligação dos membros do Fundo do Canadá avisando
que eles estavam no Brasil e logo que chegassem a Mato Grosso fariam uma visita à
comunidade.
Rosa Domingas de Jesus recepciona membros do Fundo Canadá
Fotografia cedida por Laura Ferreira da Silva em 09/Fevereiro/2011.
Nesta ocasião D. Rosa relatou toda a trajetória da sua história de vida no interior da
comunidade, as dificuldades, o conflito, a resistência, os sonhos e os ideais. Ao se inteirarem
da real situação da comunidade os membros da organização Fundo do Canadá resolveram
então patrocinar a construção da Escola. Numa outra visita dos canadenses, antes da morte de
D. Rosa, eles disseram que em função do que representava a figura da grande matriarca para a
comunidade, nada poderia ser mais justo que a escola recém construída levasse o seu nome,
passando a ser denominada Escola Estadual Rosa Domingas de Jesus. Mais que um tributo,
um reconhecimento histórico ao que representou e que ainda representa a figura dessa mulher
notável para os destinos do seu grupo e, por extensão, do próprio Quilombo como um todo.
Uma simples visita a essa comunidade revela os ares de progresso que ali se respira,
tanto isso é visível que em tempos recentes a comunidade ganha na justiça o título da
propriedade de 200 hectares em processo de usucapião, constituindo-se na primeira grande
vitória de seu povo. Protagonistas de suas próprias histórias, as mulheres desta comunidade
representam, como assim o entendemos, o verdadeiro espírito do sentimento de unidade, que
os mantêm coesos em torno do que um dia foi o sonho de D. Rosa, uma visionária que com
amor e determinação mudou o destino de sua gente. De um estado conflituoso, permeado pelo
estigma da violência para outro desenhado em um cenário de promissoras perspectivas essa
gente simples mostrou o caminho da determinação em busca de um ideal. O mesmo ideal que
D. Rosa defendeu com os riscos de sua própria vida, e com desassombrado vigor
demonstrando que aquelas terras, pelas quais tanto lutou, representam bem mais que um lugar
de subsistência, para além da terra em seu sentido literal existe uma territorialidade negra,
delimitando no tempo o espaço afro-referenciado constituído na diáspora. Uma terra de
negros para negros.
BIBLIOGRAFIA:
Bourdieu, Pierre. A ilusão biográfica. In: Ferreira, Marieta de Moraes; Amado, Janaína(coords.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV 1996.
Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende... [et. al.]. – Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
Hilary McD Beckles e Verene A. Shepherd. Las voces de los esclavizados, los sonidos de la libertad. Projeto de Escolas Associadas da UNESCO, West Indies University.
Barcelos, Silvânio Paulo de. Quilombo Mata Cavalo: Terra, conflito e os caminhos da identidade negra, dissertação defendida em Março de 2011 no Programa de Pós-Graduação Mestrado em História, Universidade Federal de Mato Grosso.