MORAES, MC Educar Na Biologia Do Amor

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pág. 1 E E d d u u c c a a r r n n a a b b i i o o l l o o g g i i a a d d o o A A m m o o r r Maria Cândida Moraes Sob o ponto de vista autopoiético, o que é educar? O que é aprender? Qual é o papel dos professores? Qual é a missão da escola? O que queremos com a educação? Sob o olhar autopoiético, educar é um fenômeno biológico fundamental que envolve todas as dimensões do viver humano, em total integração do corpo com o espírito, lembrando que quando isto não ocorre se produz alienação e perda do sentido social e individual no viver (Maturana e Nisis 1997). Educar é enriquecer a capacidade de ação e de reflexão do ser aprendente; é desenvolver-se em parceria com outros seres; desenvolver-se na biologia do amor que nos mostra que “o ser vivo é uma unidade dinâmica do SER e o FAZER” (Maturana e Nisis 1997:49). Assim, a educação é, para esses autores, um processo de transformação na convivência, onde o aprendiz se transforma junto com os professores e com os demais companheiros com os quais convive em seu espaço educacional, tanto no que se refere às transformações na dimensão explícita ou consciente, como na dimensão implícita ou inconsciente. É a partir da convivência que as dimensões do SER e do FAZER vão se modulando mutuamente, junto com o emocionar e, a cada momento, influenciam as ações, os comportamentos e as condutas dos aprendentes. São as emoções, segundo Maturana (1999), que modelam o operar da inteligência e abrem e fecham os caminhos para possíveis consensos a serem estabelecidos em nossa vida cotidiana. Ele exemplifica, dizendo que a inveja, o medo, a ambição e a competição restringem a conduta inteligente porque estreitam a visão e a atenção. Para ele, somente o amor amplia a visão na aceitação de si mesmo e do outro, a partir das condições em que se vive e expande as possibilidades de um operar mais inteligente. É no processo de transformação na convivência que o ser humano se conserva, ou não, em sua humanidade. O mesmo ocorre durante o processo educacional, onde nos transformamos espontaneamente, congruentes com a transformação do outro no espaço de convivência. E o que nos faz humanos, segundo esta teoria, é o nosso viver como seres “linguajantes”, cooperativos e amorosos, com consciência de si mesmo e com consciência social, no respeito por si mesmo e pelos outros. Para Maturana e Nisis (1997), a nossa humanidade não estaria associada apenas à nossa dimensão constitucional, mas também à nossa maneira de viver/conviver, à nossa maneira de ser, cujo desenvolvimento depende da formação recebida durante a infância, das relações desenvolvidas no período de formação com os adultos e com as outras crianças. O educar ocorre de maneira recíproca e continuamente. Surge a partir da transformação de nossas estruturas contingentes com o viver/conviver. É isto que determinaria, em grande parte, o nosso caminhar presente e futuro. Por esta razão, Maturana (1999) compreende que a educação é um processo de transformação na convivência, através do qual o ser aprendente se conserva em sua humanidade ou se perde no devir da história, a partir de sua formação.

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Reflexión sobre el concepto de Humberto Maturana de Amor como fenómeno que funda la convivencia y hace emerger el aprendizaje.

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MMaarriiaa CCâânnddiiddaa MMoorraaeess

Sob o ponto de vista autopoiético, o que é educar? O que é aprender? Qual é o papel

dos professores? Qual é a missão da escola? O que queremos com a educação?

Sob o olhar autopoiético, educar é um fenômeno biológico fundamental que envolve

todas as dimensões do viver humano, em total integração do corpo com o espírito, lembrando

que quando isto não ocorre se produz alienação e perda do sentido social e individual no viver

(Maturana e Nisis 1997). Educar é enriquecer a capacidade de ação e de reflexão do ser

aprendente; é desenvolver-se em parceria com outros seres; desenvolver-se na biologia do

amor que nos mostra que “o ser vivo é uma unidade dinâmica do SER e o FAZER” (Maturana e

Nisis 1997:49). Assim, a educação é, para esses autores, um processo de transformação na

convivência, onde o aprendiz se transforma junto com os professores e com os demais

companheiros com os quais convive em seu espaço educacional, tanto no que se refere às

transformações na dimensão explícita ou consciente, como na dimensão implícita ou

inconsciente.

É a partir da convivência que as dimensões do SER e do FAZER vão se modulando

mutuamente, junto com o emocionar e, a cada momento, influenciam as ações, os

comportamentos e as condutas dos aprendentes. São as emoções, segundo Maturana (1999),

que modelam o operar da inteligência e abrem e fecham os caminhos para possíveis

consensos a serem estabelecidos em nossa vida cotidiana. Ele exemplifica, dizendo que a

inveja, o medo, a ambição e a competição restringem a conduta inteligente porque estreitam a

visão e a atenção. Para ele, somente o amor amplia a visão na aceitação de si mesmo e do

outro, a partir das condições em que se vive e expande as possibilidades de um operar mais

inteligente.

É no processo de transformação na convivência que o ser humano se conserva, ou não,

em sua humanidade. O mesmo ocorre durante o processo educacional, onde nos

transformamos espontaneamente, congruentes com a transformação do outro no espaço de

convivência. E o que nos faz humanos, segundo esta teoria, é o nosso viver como seres

“linguajantes”, cooperativos e amorosos, com consciência de si mesmo e com consciência

social, no respeito por si mesmo e pelos outros. Para Maturana e Nisis (1997), a nossa

humanidade não estaria associada apenas à nossa dimensão constitucional, mas também à

nossa maneira de viver/conviver, à nossa maneira de ser, cujo desenvolvimento depende da

formação recebida durante a infância, das relações desenvolvidas no período de formação

com os adultos e com as outras crianças. O educar ocorre de maneira recíproca e

continuamente. Surge a partir da transformação de nossas estruturas contingentes com o

viver/conviver. É isto que determinaria, em grande parte, o nosso caminhar presente e futuro.

Por esta razão, Maturana (1999) compreende que a educação é um processo de

transformação na convivência, através do qual o ser aprendente se conserva em sua

humanidade ou se perde no devir da história, a partir de sua formação.

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Autopoiese significa autocriação, autoconstrução. A teoria Autopoiética de Maturana e Varela explica a dinâmica da autocriação, da auto-organização, que constitui a organização do ser vivo. Autopoiese é a condição necessária e suficiente para que um sistema seja considerado vivo.

Sob o olhar autopoiético, o aprender implica em transformar-se em coerência com o

emocionar. Resulta de uma história de interações recorrentes, onde dois ou mais sistemas

interagem. Sabemos que um indivíduo aprendeu algo quando percebe que a sua conduta é

outra, mudou com o mundo ao criar o seu mundo e, ao mesmo tempo, em que mantém a sua

organização.

É unicamente através da biologia do amor, mediante a qual aceitamos a legitimidade

do outro, que a tarefa educativa deva realizar-se e como tal, priorizar a formação do SER,

tendo como foco principal uma maior atenção ao seu FAZER. Assim, a educação deveria

corrigir mais o FAZER e não diretamente o SER, convidando o aprendiz, sempre que possível, à

reflexão, para que ele possa desenvolver sua autonomia, sua criatividade e criticidade. Ao

procedermos assim, estaríamos abrindo um espaço sem fronteiras e acolhendo o ser

aprendente em sua legitimidade.

Ao corrigir o SER, ao dizer como o indivíduo deveria SER ou DEIXAR DE SER,

estaríamos, segundo Maturana (1999), negando o outro, destruindo a aceitação de si mesmo e

diminuindo a sua auto-estima. . Para este autor (1999), toda correção do SER do outro, o

nega. Ao negar o outro, ao minar a sua auto-estima e o respeito que tem por si mesmo, ao

desvalorizar suas condutas, seus comportamentos e realizações, com críticas, controle

contínuo, desconfianças e exigências cegas, restringimos sua inteligência a partir de nossa falta

de sensibilidade e de inteligência no operar em nosso viver/conviver. O aluno, sendo criado

num ambiente de negação, de destruição, poderá, em sua fase adulta, apresentar maiores

dificuldades para viver na biologia do amor e na intimidade básica, aspectos fundamentais

para uma convivência social e familiar mais saudável. É vivendo/convivendo na biologia do

amor que o indivíduo desenvolve o respeito a si mesmo e aos demais, além de uma maior

consciência social. É através do amor, da aceitação do outro, que se amplia o desenvolvimento

das inteligências e a expansão do pensamento. E para que o espaço educacional seja um

espaço da ampliação das inteligências, do pensamento e da criatividade recomenda-se que se

faça a avaliação do seu FAZER, já que este implica o SER. Isto, de certa forma, nos indica que o

espaço educacional deva ser acolhedor, amoroso e não competitivo, um ambiente onde se

avalia e se corrija o FAZER, em continuo diálogo com o SER. Ao corrigir o FAZER, estaremos,

indiretamente, modificando também o SER, a partir da dinâmica estrutural existente entre

essas duas dimensões, já que o aprendiz é um ser vivo e constitui uma unidade dinâmica

relacional entre o SER e o FAZER ( Maturana 1999).

Desta forma, a tarefa escolar, sob o ponto de vista autopoiético, “é criar as condições

que levem o aprendiz a ampliar sua capacidade de ação e reflexão no mundo em que vive, de

modo a contribuir para a sua conservação e transformação de maneira responsável, em

coerência com a comunidade e o entorno natural a que pertence” (Maturana e Nisis 1997:18).

Para tanto, os ambientes educacionais devem se constituir em espaços de ação e reflexão,

ambas fundadas na emoção, lembrando que a reflexão se constitui também em um ato de

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desapego ao se admitir que aquilo que pensamos, desejamos, opinamos, analisamos e

fazemos pode ser pensando, analisado, observado, refutado ou construído de maneira

diferente, a partir de um olhar mais reflexivo (Maturana e Nisis 1997). É importante lembrar

que, através do enfoque reflexivo na prática pedagógica, mudamos estruturalmente em nossa

corporalidade, segundo o curso das nossas emoções, dos nossos pensamentos e dos

conteúdos conversacionais desenvolvidos em nossas reflexões. E assim, os processos de

comunicação vão se estabelecendo, conformando os diferentes domínios de nossa

coexistência. E todas essas transformações estruturais, segundo esse autor (ibid.), dependem

de nossos valores, desejos e aspirações.

Cabe, portanto, aos professores preparar o espaço escolar ou os ambientes de

aprendizagem como espaço de ação/reflexão e de convivência que possibilitem o FAZER e o

CONVIVER, para que alunos e professores possam VIR-A-SER, a partir de uma educação

fundada na biologia do amor e como tal “no encanto do ver, do ouvir, do cheirar, do tocar e do

refletir, descobrindo o que há na mirada que abarca o seu entorno e o situa de maneira

adequada” (Maturana e Nisis 1997:22).

Assim, coerente com a sua proposta, Maturana (1999) assinala que não devemos

“ensinar valores”, mas vivê-los desde a biologia do amor, cultivá-los em nossa corporalidade, a

partir do respeito a si mesmo que surge no viver/conviver no respeito mútuo. Da mesma

forma, não deveríamos nos preocupar em desenvolver indivíduos úteis à sua comunidade,

indivíduos responsáveis e preparados para o futuro do trabalho, já que esses aspectos

deveriam resultar, naturalmente, de sua própria formação. Isto é importante e merece uma

reflexão mais profunda de cada um de nós.

De acordo com esta teoria, compete aos docentes criar as condições operacionais

necessárias para que os aprendizes fluam na biologia do amor, eduquem-se mutuamente,

aceitem sua corporalidade, pois, para Maturana e Nisis (1997:50), “negar o corpo é negar a

alma e o contato com a alma do outro, é contato com o corpo, mesmo que este pareça ser

abstrato”. Para tanto, é necessário uma convivência harmoniosa e sadia, capaz de ampliar ou

mudar sua capacidade de ação e reflexão de maneira a que ele possa tomar consciência de

seu emocionar, sem perder o respeito por si mesmo e pelos demais. Sem a aceitação e o

respeito por si mesmo, é impossível aceitar e respeitar o outro e sem aceitar o outro em seu

legítimo outro na convivência, não há convivência social.

Inspirada nesta teoria, cabe, então, algumas perguntas: Como poderei aceitar-me e

respeitar-me se não aprendi a respeitar os meus erros e a tratá-los como legítimas

oportunidades de crescimento e de mudanças? Como posso respeitar-me se sou punida,

castigada ao equivocar-me? Como posso respeitar-me se o valor do que faço está sendo

medido pela referência do que faz o outro em competição comigo? Como posso respeitar-me

se o que faço não é avaliado pela seriedade, compromisso e responsabilidade com que realizo

o que faço?

Estas devem ser algumas das questões e preocupações da ação docente sob o ponto

de vista autopoiético, nos indicando que a tarefa docente é a formação humana dos

aprendizes, onde os conteúdos são apenas veículos relacionais para a sua consecução. O mais

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importante é que a educação seja capaz de criar condições que permita a cada um ser

cidadão/ã sério, responsável e, sobretudo, feliz.

Podemos, então, observar que, para esta teoria, educar não é um ato transmissivo,

mas criativo, construtivo e transformador como nos afirma Torre (1998). Isto requer um

modelo de formação integral que nos leva a sentirpensar*, já que a razão está fundada na

emoção, e ambas estão intrinsecamente implicadas.

Desta forma, acreditamos que uma nova proposta educacional deva ir além de uma

proposta reflexiva voltada para a ação-reflexão, devendo também incluir a dimensão que

envolve o coração, o sentipensamento citado por Torre (1998). É a integração entre o sentir e

o pensar que permitirá ao professor educar visando a restauração da inteireza no sentido de

colaborar para a construção do ser humano como templo da inteireza, onde pensamento,

emoções e sentimentos estão em constante diálogos. E o ser que se apresenta por inteiro é

belo, é justo, é saudável e é sagrado. Educar para o sentipensar é educar no caminho do amor,

da inteireza e da sabedoria. É educar o outro na justiça e na solidariedade.

Educar para sentirpensar é tentar formar na unicidade; é educar na biologia do amor,

reconhecendo que a emoção é a base da razão, como nos afirma Maturana (1999). É educar,

não somente para o desenvolvimento das inteligências e do pensamento, mas sobretudo para

a evolução da consciência e do espírito. É educar sem reprimir ou negar a experiência da

comunhão, a experiência do coração, a experiência do espírito e a experiência do sagrado,

reprimidos durante séculos em nome de algo que no mundo moderno chamamos de ciência.

Acreditamos que educar para o sentirpensar é que ajudará a refazer a aliança entre o

racional e a natureza sintética da inteligência intuitiva, contemplativa e unitiva do cérebro

direito, ao mesmo tempo, em que colaborará para o desenvolvimento do pensamento inter e

transdisciplinar. É ajudar a religar a sensação à intuição, o sentimento ao pensamento, o

intelecto ao espírito, favorecendo, assim, a evolução do pensamento, das inteligências e da

consciência, de uma maneira sempre recursiva e estruturalmente acoplados e

interdependentes.

É o sentirpensar que produzirá a prática da integralidade e da integridade, da escuta

inclusiva e da ênfase no cuidar do SER, a partir de um FAZER mais coerente com o pensamento

e o sentimento. É através do sentirpensar que estaremos desenvolvendo as competências

necessárias e a formação em torno de uma antropologia holística, cada dia mais necessária.

Educar para a formação do ser integral é ajudar o indivíduo a encontrar o seu centro, a

descobrir a virtude que, segundo Buda, está no centro (Crema 1997). Educar, sob o ponto de

vista holístico, é a forma de nós educadores fazermos justiça ao TODO que somos nós e nos

lembrarmos de que necessitamos, mais do que nunca, conspirar a favor da inteireza humana

para que possamos ser felizes em nossa humanidade.

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BBiibblliiooggrraaffiiaa

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