Modelo de monografia - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/335174/1/... ·...
Transcript of Modelo de monografia - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/335174/1/... ·...
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
DÉBORA CRISTINA DO NASCIMENTO FERREIRA
LETRAMENTOS, PRÁTICA DOCENTE E ENSINO DE
LEITURA E DE ESCRITA: TENSÕES E RESISTÊNCIAS EM
UMA ESCOLA PÚBLICA DA PERIFERIA DE BELÉM (PA)
CAMPINAS,
2019
DÉBORA CRISTINA DO NASCIMENTO FERREIRA
LETRAMENTOS, PRÁTICA DOCENTE E
ENSINO DE LEITURA E DE ESCRITA:
TENSÕES E RESISTÊNCIAS EM UMA ESCOLA PÚBLICA DA PERIFERIA
DE BELÉM (PA)
Tese de doutorado apresentada ao Departamento
de Linguística Aplicada IEL/UNICAMP, como
parte dos requisitos exigidos para a obtenção do
título de Doutora em Linguística Aplicada, área de
concentração em Linguagem e Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Márcia Rodrigues de Souza Mendonça
Coorientadora: Profa. Dra. Raquel Salek Fiad
Este exemplar corresponde à versão final da tese defendida pela aluna Débora Cristina do
Nascimento Ferreira, orientada pela Profa. Dra. Márcia Rodrigues de Souza Mendonça e
coorientada pela Profa. Dra. Raquel Salek Fiad.
CAMPINAS,
2019
Dedico este trabalho às mulheres negras que resistem, em
especial, para Vó Ciça (in memoriam), para minha mãe Neuza Cardoso Nascimento e
para a professora e companheira de luta Lília Melo.
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq pela bolsa de estudos concedida para o desenvolvimento desta pesquisa (Processo:
159616/2015-8).
Aos professores do curso de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, em especial, à
orientadora deste trabalho Profa. Dra. Márcia Mendonça e à coorientadora Profa. Dra. Raquel
Salek Fiad pelo apoio, generosidade e responsabilidade necessária à construção do curso e
desta investigação.
Aos companheiros de curso por todo o apoio ao longo destes anos, em especial, a Rosivaldo
Gomes, Renata Frank, João Pires, Aline Ruiz, Ana Sá, Sônia Coutinho, Marília Dias, Carol
Moura, Keila Grando, Denise Hibarino.
Aos professores da escola Brigadeiro Fontenelle e a toda comunidade escolar, em especial, a
Lília Melo por toda sua luta pela educação pública nas periferias de Belém-PA e por toda a
singular contribuição para a construção do banco de dados da pesquisa.
Ao grupo de pesquisa MELP por todas as contribuições direcionadas ao processo de
elaboração desta pesquisa.
Ao grupo de pesquisa GELPEA, em especial, aos professores José Anchieta Bentes, Rita
Bentes, Tatiana Maia, Sueli Pinheiro, Maria Helena Chaves, Sandoval Nonato Gomes Santos,
Samuel Campos por tudo que me ensinaram sobre a vida e a academia.
Às amigas Isabel Rodrigues, Eliete Bezerra, Neilce Santos, Marília Freitas. Manuela Ferraz,
Gicele Cristo, Suellen Cristo, Valéria Correia e aos amigos João Batista Santiago, Márcio
Maués, Antônio Bittencourt, Vando Batista por todos os anos de amizade, fraternidade,
acolhimento, carinho, companheirismo, solidariedade e afeto.
À amiga e companheira de luta na vida e na academia, Jane Miranda Alves, por todas as vezes
que abriu as portas da sua casa em Belém e no Rio de Janeiro para me acolher, aconselhar,
incentivar, alegrar com suas palavras de luz. Para além de tudo isso, sou muito grata pelas
leituras atenciosas e significativas contribuições à tessitura desta tese.
Aos meus pais, José Orlando Ferreira, Neuza Nascimento, Manoela Nascimento, aos meus
irmãos - Daniel, Davi, Diogo, Denilson Ferreira-, às minhas cunhadas (Maria Izadora Ferreira,
Daniella Antunes), à minha afilhada Brenda Souza por sempre estarem ao meu lado,
incentivando de todas as maneiras e, em especial, por todas as vezes que cuidaram do meu
filho - sempre com muito amor, carinho e paciência- para que eu pudesse trabalhar as tantas
horas necessárias à confecção deste trabalho.
Ao meu marido Jair Mendes e ao nosso amado filho Agnaldo Cordeiro, meus heróis da resistência, meu alicerce de amor, de paciência, de compreensão, de força, para que eu possa
seguir avante sempre.
A toda energia divina e aos santos, em especial a São Jorge, Nazaré e Perpétuo Socorro, por
terem me livrado, protegido e conduzido até aqui.
RESUMO
O objetivo da pesquisa foi investigar as práticas de letramento construídas por uma professora
de Língua Portuguesa para o ensino de leitura e de produção textual em uma escola pública, de
Ensino Médio, de Belém-PA, considerando as demandas formativas locais e as finalidades de
formação do nível de ensino. Para a concretização da investigação, foi efetivada pesquisa de
cunho etnográfico (VÓVIO E SOUZA, 2005; MOITA-LOPES, 2013; GARCEZ E SCHULZ,
2015; ANDRÉ, 1995) em uma escola da rede estadual, durante o ano letivo de 2016. O
referencial teórico convocado compreende: as concepções de escrita e de letramento como
manifestação sócio-histórica, ancorada e ressignificada em diferentes contextos socioculturais
(STREET, 1984, 1990, 2010, 2014; ZAVALA, NIÑO-MURCIA E AMES, 2004; KLEIMAN,
1995, 2016; BARTON E HAMILTON, 1998; JANKS, 2010, 2012, 2016; FREIRE, 2011;
ROCHA E MACIEL, 2013); o debate promovido no âmbito da Educação e da Linguística
Aplicada acerca do Ensino Médio no Brasil e de prática de ensino de Português, levando em
consideração as disputas sociais e de poder que o inscrevem como profícuo e pertinente campo
de pesquisa teórica e aplicada (BUNZEN E MENDONÇA, 2006, 2013; SILVA, 2012, 2015;
KRAWCZYK, 2009; FRIGOTTO, 2005). A análise dos dados sinalizou para as seguintes
configurações do trabalho docente: (i) no primeiro semestre de trabalho, uma prática docente
mais voltada ao ensino de leitura, com foco para a discussão de temas sociais, a partir de textos
vernaculares, a fim de tentar engajá-los não só para atividades escolares (pesquisa, seminário,
leitura e análise de textos), mas também a um engajamento social, próximo a uma educação
crítica, participativa, politizada, que teria como fim a construção e a realização de uma ação
social: uma caminhada pelas ruas do bairro; (ii) no segundo semestre de trabalho, uma prática
docente mais voltada para o ensino de escrita de uma redação, desenvolvida, basicamente, a
partir da discussão de temas sociais, leitura de textos ligados a uma esfera mais didática e
formal e apresentação de um modelo de escrita. Nesse sentido, percebe-se que a prática
docente busca atender a diferentes necessidades que se refletem no campo da re (construção)
da práxis curricular do Ensino Médio. Por um lado, a valorização, o reconhecimento e a
visibilidade de um contexto local/vernacular, a fim de problematizar acerca da realidade
circundante, tentando colocar o sujeito como protagonista da uma formação cidadã, letrada.
Por outro lado, as ações didáticas estão voltadas a atender a uma demanda escolar, no sentido
de socializar um saber legitimado, que contribuiria para encaminhar este sujeito ao ensino
superior. A conjugação do atendimento a esta demanda constitui um trabalho de ensino de
leitura e de escrita voltado à resistência e a sobrevivência destas populações, em um contexto
de extrema vulnerabilidade social, situado em uma das metrópoles da Amazônia.
Palavras-chave: Ensino médio. Trabalho docente. Letramentos. Língua Portuguesa.
Resistência. Sobrevivência.
ABSTRACT
The aim of the research was to investigate the literacy practices constructed by a Portuguese
Language teacher for the teaching of reading and textual production in a public high school in
Belém-PA, considering the local training demands and the training purposes of the level of
education. In order to carry out the research, an ethnographic research was carried out in a
state school during the 2016 school year. The research was carried out in an ethnographic
fashion (VÓVIO E SOUZA, 2005; MOITA-LOPES, 2013; GARCEZ and SCHULZ, 2015; the
theoretical referential convened includes: conceptions of writing and literacy as a
sociohistorical manifestation, anchored and re-signified in different sociocultural contexts
(KLEIMAN, 1995, 2016; BARTON AND HAMILTON, 1998; JANKS, 2010, 2012, 2016;
FREIRE, 2011; ROCHA AND MACIEL, 2013); the debate promoted in the field of Education
and Applied Linguistics about High School in Brazil and the practice of teaching Portuguese,
taking into account the social and power disputes that inscribe it as a profitable and pertinent
field of theoretical and applied research (BUNZEN E MENDONÇA, 2006, 2013; SILVA,
2012, 2015; KRAWCZYK, 2009; FRIGOTTO, 2005). In this paper, we present the results
obtained in the literature. The analysis of the data signaled to the following configurations of
the teaching work: (i) in the first semester of work, a teaching practice more focused on
reading teaching, focusing on the discussion of social themes, from vernacular texts, in order
to try to engage them not only in school activities (research, seminar, reading and analysis of
texts), but also to a social engagement, close to a critical, participative, politicized education
that would have as purpose the construction and the accomplishment of an social action: a
walk through the streets of the neighborhood; (ii) in the second semester of work, a teaching
practice more focused on the teaching of writing in an essay, basically developed from the
discussion of social themes, reading texts linked to a more didactical and formal sphere and
presenting a writing model. In this sense, it is perceived that the teaching practice seeks to
meet different needs that are reflected in the field of re (construction) of the curricular praxis
of High School. On the one hand, the appreciation, recognition and visibility of a local /
vernacular context, in order to problematize about the surrounding reality, trying to put the
subject as protagonist of a literate citizen formation. On the other hand, the didactical actions
are aimed at attending to a school demand, in the sense of socializing a legitimized knowledge,
which, in theory, would contribute to refer this subject to higher education. The conjugation of
the attendance to this demand constitutes a work of teaching of reading and writing directed to
the resistance and the survival of these populations, in a context of extreme social
vulnerability, located in metropolis of the Amazon.
Keywords: High school. Teaching work. Literacies. Portuguese language. Resistance.
Survival.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Ciclo de (re)design ................................................................................................... 74
Figura 2 - Organograma - Estrutura de trabalho por semestre letivo ..................................... 114
Figura 3 - Brasil: mapa de mortes no campo .......................................................................... 146
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Caracterização dos fins da educação secundária e do ensino de Português: da
Colônia à República velha ........................................................................................................ 32
Quadro 2 - Documentação oficial referente ao Ensino Médio no Brasil de 1995 a 2017 ........ 43
Quadro 3 - Regulamentação oficial para estruturação do ensino secundário no Brasil ........... 54
Quadro 4 - Modelo de Letramento Crítico proposto por Janks (2013) .................................... 75
Quadro 5 - Modelo de identificação ......................................................................................... 92
Quadro 6 - Modelo descritivo ................................................................................................... 92
Quadro 7 - Categorias de análise dos dados ............................................................................. 93
Quadro 8 - Entrevistas realizadas com docentes, gestores e alunos ......................................... 96
Quadro 9 - Aulas gravadas (P1) ............................................................................................... 97
Quadro 10 -Perspectivas gerais da organização do trabalho docente de Língua Portuguesa . 110
Quadro 11 - Episódio 1. Caminhada: leitura, pesquisa, discussão, realização da ação .......... 118
Quadro 12 - Aula de Língua Portuguesa P1: fase de preparação do episódio 1 ..................... 123
Quadro 13 - Aula de Língua Portuguesa P1: fase de preparação do episódio 1 ..................... 125
Quadro 14 -Aula de Língua Portuguesa P1: fase de preparação do episódio 1 ...................... 125
Quadro 15 - Aula de Língua Portuguesa P1: fase de finalização do episódio 1 ..................... 126
Quadro 16 - Preparação para escrita do ENEM: leitura, discussão e preparação para escrever
uma Redação........................................................................................................................... 128
Quadro 17 - Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2 (fase inicial) ................................... 132
Quadro 18 - Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2. exposição conceitual 1 .................. 133
Quadro 19 - Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2. exposição conceitual 2 .................. 133
Quadro 20 - Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2. Resolução de uma avaliação escrita
................................................................................................................................................ 134
Quadro 21 - Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2. Refacção de uma atividade de escrita e
leitura de texto dissertativo ..................................................................................................... 134
Quadro 22 -Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2. Produção textual I .......................... 135
Quadro 23. Acesso, diversidade, poder para resistir e ensinar Português no EM..................181
Quadro 24. Alusão à figura masculina e feminina na construção discursiva docente.......... . 194
Quadro 25. Universidade e comunidade: mudanças de vida e compromisso a assumir..........207
Quadro 26. Projetos, experiências e aprendizagens mais significativas..................................213
Quadro 27. Posicionamentos dos alunos no jogo da argumentação: equipe 1........................219
LISTA DE FOTOS
Foto 1 - Bairro da Terra Firme: vista do Canal do Tucunduba para a parte alta da
cidade.............................................................................................................
85
Foto 2 - Escola Estadual.............................................................................................. 86
Foto 3 - Sala de aula do Ensino Médio........................................................................ 86
Fotos 4 - Auditório da escola......................................................................................... 165
Foto 5 - Boneco: homem chacinado............................................................................. 165
Foto 6 - Banner com fotos dos jovens chacinados........................................................ 167
Foto 7 - Cartaz 1.......................................................................................................... 168
Foto 8 - Cartaz 2.......................................................................................................... 168
Foto 9 - Cartaz 3.......................................................................................................... 168
Foto 10 - Imagens do início da Caminhada................................................................... 169
Foto 11 - Imagens do início da Caminhada................................................................... 169
Foto 12 - Imagens do início da Caminhada................................................................... 169
Foto 13 - Populares assistem à caminhada.................................................................... 169
Foto 14 - Sons e performances da caminhada............................................................... 170
Foto 15 - Sons e performances da caminhada............................................................... 170
Foto 16 - Sons e performances da caminhada............................................................... 170
Foto 17 - Profa. na caminhada....................................................................................... 171
Foto 18 - PM2023.......................................................................................................... 171
Foto 19 - PM2024.......................................................................................................... 171
Foto 20 - PM1449........................................................................................................... 171
Foto 21 - Caminhada na ponte....................................................................................... 171
Foto 22 - Círculo de falas finais..................................................................................... 171
Foto 23 - Aluna da turma............................................................................................... 171
Foto 24 - Dispersão do ato............................................................................................. 171
Foto 25-
26- 27. Jogo da Aplicação do jogo argumentação ...................................................... 217
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BID Banco Interamericano de Investimento
BIRD Banco Mundial
BNCC Base Nacional Comum Curricular
CEB Câmara de Educação Básica
CF Constituição Federal
CH Carga Horária
CNE Conselho Nacional de Educação
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CPT Comissão Pastoral da Terra
DCNEM Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
DST Doenças Sexualmente Transmissíveis
EF Ensino Fundamental
EM Ensino Médio
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
EP Educação Profissional
FBSP Fórum Brasileiro de Segurança Pública
FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação
GNL Grupo de Nova Londres
HP Horário Pedagógico
IES Instituição de Ensino Superior
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
LC Letramento Crítico
LD Livro Didático
LDB Diretrizes e Bases da Educação
LP Língua Portuguesa
MEC Ministério da Educação
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
OCEM Orientações Curriculares para Ensino Médio
OPNE Observatório do Plano Nacional de Educação
PC DO B Partido Comunista do Brasil
PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
PCNEM Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
PDS Projeto de Desenvolvimento Sustentável
PEC Proposta de Emenda Constitucional
PNE Plano Nacional de Educação
PNLD Programa Nacional do Livro e do Material Didático
PNLEM Programa Nacional do Livro Didático de Ensino Médio
PROEMI Programa Ensino Médio Inovador
SAEB Sistema de Avaliação da Educação Básica
TCLE Termos de Consentimento e Livre Esclarecido
TCU Tribunal de Contas da União
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
USAID Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 15
2 ENSINO MÉDIO NO BRASIL: HISTÓRICO, POLÍTICAS E DISPUTAS
CURRICULARES .................................................................................................................. 20
2.1 DO PERÍODO COLONIAL À PRIMEIRA REPÚBLICA ............................................... 20
2.2 O ENSINO SECUNDÁRIO: DO GOLPE DE 1930 AOS ANOS DE 1980...................... 34
2.3 O ENSINO SECUNDÁRIO: DE 1980 AOS PRIMEIROS DECÊNIOS DE 2000 ........... 40
2.4 CENÁRIOS DO ENSINO MÉDIO NO PAÍS E A REFORMA DE 2017 ........................ 48
3 LETRAMENTOS: PERSPECTIVAS TEÓRICAS DO CAMPO APLICADO ............ 55
3.1 LETRAMENTO: O PERCURSO DE UM CONCEITO ................................................... 55
3.2 LETRAMENTO CRÍTICO ................................................................................................ 65
4 PROCEDIMENTOS DE PESQUISA:OPÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS78
4.1 TIPO DE PESQUISA E INSTRUMENTOS DE GERAÇÃO DE DADOS ...................... 78
4.2 LÓCUS DE PESQUISA: A REGIÃO, A CIDADE, O BAIRRO...................................... 83
4.2.1 A escola ........................................................................................................................... 84
4.3 SUJEITOS DA PESQUISA ............................................................................................... 87
4.3.1 Professora de Língua Portuguesa ................................................................................ 87
4.3.2 A turma do terceiro ano do EM ................................................................................... 88
4.4 PROCEDIMENTO METODOLÓGICO PARA DESCRIÇÃO DAS AULAS ................. 90
4.5 CATEGORIAS E PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE .................................................... 92
5 LETRAMENTOS, RE(CONFIGURAÇÕES) E RESISTÊNCIAS: O ENSINO DE
LEITURA E DE ESCRITA NO TERCEIRO ANO DO ENSINO MÉDIO EM UMA
PERIFERIA DE BELÉM-PA................................................................................................ 94
5.1 DESCRIÇÃO, SISTEMATIZAÇÃO E ORGANOGRAMA GERAL DO TRABALHO
DOCENTE................................................................................................................................ 94
5.2 PROFESSORA DE LÍNGUA PORTUGUESA: TRAJETÓRIA DE FORMAÇÃO
LETRADA E AS PERSPECTIVAS ANUNCIADAS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DO
TRABALHO DE ENSINO ...................................................................................................... 98
5.3 DESCRIÇÃO GERAL DE EFETIVAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE.................... 110
5.4 EPISÓDIO 1: CAMINHADA ............................................................................................ 116
5.4.1 Episódio 1 Caminhada: sub-episódio 1 – preparação ............................................... 123
5.4.2 Episódio 1 Caminhada: sub-episódio 3 - finalização ................................................ 126
5.5 EPISÓDIO 2: PREPARAÇÃO PARA A ESCRITA DO ENEM .................................... 126
5.6 PORTUGUÊS NO ENSINO MÉDIO: CAMINHADA E RESISTÊNCIA ..................... 136
5.7 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O EPISÓDIO 1 .................................................. 177
5.8 “UMA HORA A GENTE TEM QUE LARGAR UM... E GERALMENTE O QUE SE
LARGA É O LOCAL”: O ENEM E O ENSINO DE PORTUGUÊS NO ENSINO MÉDIO.186
5.9 “A SALA FOI SAQUEADA E [...] O ACUSADO É O ALUNO DA INSTITUIÇÃO, DE
QUEM É A CULPA?”: OS POSICIONAMENTOS DE ALUNOS EM RESPOSTA ÀS
PRÁTICAS EDUCATIVAS EM UM TERRITÓRIO DE EXTREMA VULNERABILIDADE
SOCIAL. ................................................................................................................................. 207
5.10 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O EPISÓDIO 2 ................................................ 226
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 230
REFERENCIAS.................................................................................................................... 236
ANEXOS................................................................................................................................ 254
15
1 INTRODUÇÃO
“Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra-mola que resiste
Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera”
João Ricardo - João Apolinário
Secos & Molhados (1973)
O Ensino Médio no Brasil é oferecido em 28,3 mil escolas no Brasil urbanas e rurais,
responsáveis por 8.133,040 matrículas. 89,8% das escolas estão na zona urbana e 10,2% na
zona rural, o que configura a menor participação da zona rural em toda educação básica.
95,6% dos matriculados frequentam escolas urbanas. 22,4% dos matriculados - 1,8 milhões-
estudam no período noturno. Com 6,9 milhões de matrículas, as redes estaduais têm uma
participação de 84,8% no total do Ensino Médio (doravante EM) e concentra 96,9% das
matrículas da rede pública. 519,6 mil professores atuam neste nível de ensino (INEP, 2017).
A taxa de jovens de 15 a 17 anos matriculados no EM é de apenas 56,4%, enquanto que 18%
deles ainda estão no Ensino Fundamental e 14,6% estão fora da escola (OPNE, 2017).
Para Silva (2015), o desafio da escolarização dos jovens de 15 a 17 anos no EM, nível
obrigatório para esta faixa etária, a partir da Emenda Constitucional n.59, de 2009, está
articulado a duas pautas centrais: a atual conjuntura educacional direcionada a estes jovens e a
pluralidade juvenil. Acrescentaríamos, ainda, uma terceira pauta: as multifacetadas e desiguais
realidades de oferta e de qualidade do EM no continental território brasileiro. Aliado a isto, é
preciso romper com uma postura sociocultural que ainda conduz ao não reconhecimento, por
uma dada parcela da população, de que a educação secundária1 é um direito (SILVA, 2015, p.
69).
Direito este constrangido pela realidade imposta, limitado pela necessidade de
progressão da quantidade e da qualidade do ensino ora veiculado, restrito de investimento
necessário ao estabelecimento de uma prática profissional em condições de infraestrutura
salubres e minimamente decentes, ultrajado pelo constrangimento de que este nível de ensino,
ainda, não é considerado como um direito básico, em especial, para a parcela da população
1 Ao longo deste texto, uso o termo secundário é usado para fazer referência ao Ensino Médio.
16
menos favorecida economicamente do país (SILVA, 2015; BRASIL, 2014; VOLPI; RIBEIRO;
SILVA, 2014). Consoante Chauí (1989, p. 20):
A prática de declarar direitos significa, em primeiro lugar, que não é um fato óbvio
para todos os homens que eles são portadores de direitos e, por outro lado, significa
que não é um fato óbvio que tais direitos devam ser reconhecidos por todos. A
declaração de direitos inscreve os direitos no social e no político, afirma sua origem
social e política e se apresenta como objeto que pede o reconhecimento de todos,
exigindo o consentimento social e político.
Este “reconhecimento de todos” implica a necessidade de visibilizar que as instituições
escolares recebem juventudes. Um público plural e desigual diante das condições de vida, de
trabalho, de moradia, de acesso, de lazer, de metas para o futuro, de enfrentamento e de
sobrevivência diante da realidade que lhe circunda (LOPES et al., 2017, 2018). Ademais, é
necessário que se possa interagir com estes jovens por intermédio de outras línguas(gens), é
preciso mobilizar outras linguagens, outras mídias, outras artes, outras formas de ler, de
escrever, de interagir com os domínios da Ciência, da Ética, da Estética, do Trabalho, da
Tecnologia e da própria Educação (SILVA, 2015), a fim de que eles possam, de fato, usufruir
desta etapa final da escolarização básica (CURY, 2008).
Conforme Street ([1990], 2014, p. 37), as populações locais possuem seus próprios
letramentos, habilidades, convenções, modos de aprender os novos letramentos gerenciados
pelas agências. Nesse sentido, é necessário recorrer a uma observação acurada, minuciosa, das
práticas sociais efetivas em diferentes contextos culturais. Trata-se de pesquisar os usos, as
funções e os significados atribuídos à escrita em diferentes contextos geográficos, linguísticos,
políticos, culturais, históricos, a fim de compreender como as práticas letradas estão
articuladas aos contextos específicos e a diferentes matrizes discursivas em que são gestadas.
No que se refere ao trabalho de ensino de Português no EM, é necessário
compreender os caminhos a serem trilhados para realizar ações didáticas possíveis de serem
construídas com estes jovens que estão inseridos nestes cenários multifacetados, que venham a
contemplar as demandas formativas locais e as demandas formativas institucionais para o
referido nível de ensino, uma vez que o confronto do “oficial ou institucional” e do “cotidiano
ou ordinário” instauram a arena de lutas, de disputas constitutivas do ininterrupto fluxo
dialógico para a constituição dos sujeitos (KALMAN, 2010; LOPES, 2006; BAKHTIN, 1995,
1987).
Tendo em vista estes pressupostos, a pesquisa de doutorado intitulada “Letramentos,
prática docente e ensino de leitura e de escrita: tensões e resistências em uma escola da
periferia de Belém (PA)” tem como objetivo geral investigar as práticas de letramento
17
construídas por uma professora de Língua Portuguesa para o ensino de leitura e de produção
textual em uma escola pública, de Ensino Médio, levando em consideração as relações entre as
demandas formativas locais e as finalidades de formação do nível de ensino.
A pesquisa se assenta na concepção de que o letramento veiculado no âmbito escolar
é constituído a partir de entrecruzamentos e de configurações de práticas letradas incorporadas
à forma escolar, o que implica a convocação de diferentes repertórios letrados para a
construção do ensino de leitura e de escrita no EM. Esta construção didático-curricular é
encarnada nas tensões e disputas corporificadas entre práticas escolares consideradas “mais
estáveis” - instituídas historicamente na cultura escolar - e práticas escolares “mais
emergentes” - inserção de demandas mais recentes como a convocação de determinadas
temáticas e/ou objetos de ensino, de diferentes agentes sociais, de entrada de novas tecnologias
e de outros suportes (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001; ROJO, 2009; BUNZEN;
MENDONÇA, 2006).
Nesse sentido, os dados desta pesquisa sinalizam para a defesa da proposição de que o
letramento escolar pode ser concebido como uma prática socio-cultural-institucional,
construída e constituída por intermédio do trabalho docente, qualificada como um ato
interativo, tenso, híbrido, difuso, contraditório, rizomático, forjado por ações didáticas de
permanências e de rompimentos estabelecidos em zonas fronteiriças entre os sujeitos, os
saberes, os agentes escolares, os espaços, os textos, os dispositivos, os instrumentos, as
linguagens e as culturas implicam escolhas, posicionamentos, responsabilidades para fins de
uma formação letrada, escolarizada, inclusiva, cidadã, crítica, que lhes permita construir
cenários futuros em uma sociedade global (ROCHA; MACIEL, 2013).
Acredita-se, então, que esta prática escolarizada não só contribui para o
desenvolvimento de uma demanda formativa reflexiva, agentiva, mas, sobretudo, reconhece a
multiplicidade dos significados e usos dos letramentos correlacionados aos diferentes e
peculiares contextos socioculturais, articulados a relações balizadas por disputas de poder,
tendo em vista que a neutralidade da tecnologia veiculada é utópica (STREET, 2006;
SANTOS-MARQUES, 2016).
Para construir esta investigação, elencamos os seguintes objetivos específicos e as
respectivas perguntas de pesquisa:
Mapear as práticas de letramento propostas pela docente na disciplina Língua
Portuguesa, sejam elas voltadas ao ensino de leitura e de escrita tal como previsto para
a etapa do EM, sejam elas ligadas a demandas formativas locais emergentes;
18
Identificar os objetos de ensino selecionados (o que se ensina) e os objetivos de ensino
(para que se ensina) prefigurados nessas práticas, bem como os materiais utilizados
(textos e outros recursos), relacionando-os à formação letrada para o nível de ensino e
às demandas formativas institucionais e locais;
Descrever e analisar as configurações das ações docentes (como se ensina) no âmbito
das práticas de letramento escolar voltadas às finalidades do EM brasileiro, a fim de
problematizar possíveis tensões identificadas nessas práticas quanto às ações docentes,
objetos e objetivos de ensino mobilizados no âmbito da escolarização da Língua
Portuguesa no referido nível de ensino.
Perguntas de pesquisa
Quais são os eventos e as práticas de letramento existentes no processo de ensino de
Português, especificamente, de leitura e de escrita em uma turma do terceiro ano do
EM, de uma escola pública da periferia de Belém- PA?
Quais são os objetos de ensino convocados para a construção da leitura e da escrita no
EM e como estão interligados aos diferentes objetivos e demandas do referido nível de
formação?
Como as práticas de ensino de leitura e de escrita estão articuladas às diferentes
tensões do ensino de Língua Portuguesa no EM, tendo em vista a heterogeneidade das
práticas de leitura e de escrita na construção e constituição de uma educação
secundária, periférica, amazônica?
A pesquisa de campo foi realizada em uma escola estadual, situada em Belém-PA,
durante o ano letivo de 2016. Para o processo de geração de dados, adotamos como
referencial teórico- metodológico os pressupostos da pesquisa de cunho etnográfico (VÓVIO;
SOUZA, 2005; MOITA-LOPES, 2013; GARCEZ; SCHULZ, 2015; ANDRÉ, 1995); as
concepções de escrita e de letramento como manifestação sócio-histórica, ancorada e
ressignificada em diferentes contextos socioculturais (STREET, 1984, 1990, 2010, 2014;
ZAVALA; NIÑO-MURCIA; AMES, 2004; KLEIMAN, 1995, 2000, 2004, 2013, 2016;
BARTON; HAMILTON, 1998); as contribuições teóricas dos letramentos críticos (JANKS,
2010, 2012, 2016; FREIRE, 2011; ROCHA; MACIEL, 2013); as considerações da
19
Linguística Aplicada sobre as práticas de ensino de Português (BUNZEN; MENDONÇA,
2006, 2013; MACHADO, 2017; ROJO, 2000, 2004, 2009, 2012; SOUZA, 2011).
Estas questões são desenvolvidas neste texto da seguinte maneira: no primeiro
capítulo, situamos o Ensino Médio no Brasil, a partir de uma trajetória de disputas e de
tensões, que, por sua vez, se reflete no currículo de Língua Portuguesa e na sua constituição
como disciplina escolar voltada ao ensino de leitura e de escrita; no segundo capítulo,
apresentamos as resenhas sobre letramentos, atentando para a complexidade do conceito e
diversidade e multiplicidades de práticas letradas, que podem constituir o universo de
letramentos na educação básica e contribuir no sentido de problematizar as ações docentes
voltadas aos fins de ler e de escrever neste processo de escolarização; no terceiro capítulo,
expomos as informações referentes ao arcabouço metodológico da pesquisa, às estratégias
utilizadas para a geração dos dados e à apresentação do contexto e dos sujeitos de pesquisa;
no quarto capítulo, a análise descritiva e analítica dos dados e, por fim, as considerações
finais.
20
2 ENSINO MÉDIO NO BRASIL: HISTÓRICO, POLÍTICAS E DISPUTAS
CURRICULARES
Este capítulo apresenta um breve panorama histórico do Ensino Médio no Brasil. Tal
inscrição histórica permite não só compreender a constituição desse nível de ensino e da
disciplina curricular Português como reflexo das condições históricas, políticas, econômicas,
educacionais, culturais de cada época do país até a atualidade, como também caracterizar o
referido nível de ensino pela distribuição seletiva e desigual de conhecimento, estreitamente,
vinculada a um processo de mobilidade social limitado e estratificado (GOMES, 2000).
Um breve reconhecimento desta vinculação histórica é pertinente, a fim de que
possamos visibilizá-la, porque a garantia e permanência do acesso do alunado, a qualidade do
ensino ora praticado, a pertinência e a relevância da formação letrada, ainda, constituem
significativos desafios para a implementação efetiva da escola secundária no Brasil (ZOTTI,
2005).
Nesse sentido, organizamos este panorama em quatro etapas: a primeira etapa abarca
o período colonial à primeira república; a segunda situa o supracitado nível de ensino de 1930
a 1980; a terceira engloba a década de 1980 aos primeiros decênios de 2000 e, finalmente, a
quarta etapa apresenta uma caracterização geral do atual cenário do EM no país,
caracterizando as demandas relacionadas ao processo de oferta, de qualidade e aos desafios
necessários à implementação e universalização desta etapa final da educação básica.
2.1 DO PERÍODO COLONIAL À PRIMEIRA REPÚBLICA
No Brasil, as atividades educativas iniciam, em meados de 1549, com a chegada dos
primeiros jesuítas, que, liderados pelo padre Manuel da Nóbrega, fundaram a primeira
“escola de ler e escrever” (FREIRE, 1989). O ensino de português2, de “bons costumes” e de
doutrina cristã foram a matriz curricular de base do chamado “tempo heroico”. Pode-se dizer
que a Companhia de Jesus3 foi a responsável por instituir o primeiro modelo educacional em
2 O aprendizado das línguas indígenas por parte dos jesuítas foi uma necessidade decorrente do processo de
catequese. Um dos primeiros registros sobre as línguas indígenas foi a “A arte de Gramática da língua mais
usada na costa do Brasil”, de José de Anchieta. O livro foi impresso em 1595. A obra está disponível no seguinte
endereço eletrônico: https://www.bbm.usp.br/node/70. Acesso em: 15 set. 2017. 3 “Ordem religiosa da Igreja Católica, fundada na Europa em 1540 por Inácio de Loyola [...] Segundo Azevedo
(1976), a atuação jesuítica na colônia brasileira pode ser dividida em duas fases distintas: a primeira fase,
considerando-se o primeiro século de atuação dos padres jesuítas, foi a de adaptação e construção de seu trabalho
de catequese e conversão do índio aos costumes dos brancos; já a segunda fase, o segundo século de atuação dos
jesuítas, foi de grande desenvolvimento e extensão do sistema educacional implantado no primeiro período. Após duas décadas de atuação, possuíam cinco escolas elementares (Porto Seguro, Ilhéus, Espírito Santo, São
21
terras brasileiras, para fins de cristianizar os indígenas e difundir entre eles os padrões da
civilização ocidental e cristã. Alguns princípios, seguidos pelos membros da ordem para
implementação deste projeto, estavam alicerçados aos seguintes fundamentos:
a busca da perfeição humana por meio da palavra de Deus e a vontade dos homens;
a obediência absoluta e sem limites aos superiores; a disciplina severa e rígida; 4) a
hierarquia baseada na estrutura militar; 5) a valorização da aptidão pessoal de seus
membros. (SHIGUNOV NETO; MACIEL, 2008, p. 173).
Tendo em vista estes ditames, o Ratio Studiorum4 foi o método de ensino utilizado
pelos jesuítas para orientar os trabalhos desenvolvidos pelos membros da congregação tanto na
metrópole, quanto nas colônias. O método educacional era assim caracterizado: centralização,
autoritarismo, orientação universalista, formação humanista, literária e uso da música;
apresentava duas opções de cursos: o curso secundário e o curso superior de Teologia e de
Filosofia. O primeiro tinha duração de cinco anos e era voltado à formação literária e
humanista. O segundo tinha duração de três anos e era voltado à formação filosófica. Levando
em consideração estes pressupostos, os membros da ordem fizeram uma adaptação de modo a
atender à demanda local, que tinha:
[...] o objetivo de atender à diversidade de interesses e de capacidades. Começando
pelo aprendizado do português, incluía o ensino da doutrina cristã, a escola de ler e
escrever. Daí em diante, continua, em caráter opcional, o ensino de canto orfeônico e
de música instrumental, e uma bifurcação tendo em um dos lados, o aprendizado
profissional e agrícola e, de outro, aula de gramática e viagem de estudos à Europa.
(RIBEIRO, 1998, p. 21-22).
Inicialmente, as atividades educativas exercidas pelos jesuítas para os índios e filhos
de colonos eram direcionadas ao ensino de Língua Portuguesa (doravante LP), Doutrina Cristã,
Leitura, Escrita, Canto, Música, Teatro, Dança, Gramática. Estes religiosos iniciaram o longo
processo de dominação e de exploração suplantado pela coroa portuguesa, pois buscavam
formar os filhos de colonos e de líderes indígenas, os futuros detentores do poder tribal que,
mais tarde, poderiam proteger os núcleos de colonização portuguesa de ataques. Isto evidencia
que a educação brasileira, colonizadora desde sua gênese, é marcada pela vinculação do campo
educacional aos interesses políticos, econômicos e religiosos do colonizador europeu, porque
Vicente e São Paulo de Piratininga) e três colégios (Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia)” (SHIGUNOV NETO;
MACIEL, 2008, p. 173-174). 4 Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Jesu publicado, em 1599, pelo padre Geraldo Cláudio Aquaviva para
formação do homem cristão. O método apresentava influências das teorias de Aristóteles, São Tomás de Aquino e
do Movimento da Renascença (SHIGUNOV NETO; MACIEL, 2008).
22
“toda educação é política, como nos ensinou Paulo Freire, ela não é neutra, pois,
necessariamente, implica princípios e valores que configuram uma certa visão de mundo e de
sociedade” (GADOTTI, 2013, p. 01).
O curso de humanidades, correspondente ao que se convencionou chamar de curso
secundário, foi o mais difundido no país, tinha duração de dois anos e abarcava os estudos de
Gramática, Retórica e Humanidades. Além disso, havia uma oferta de ensino profissional,
agrícola ou manufatureiro, a fim de formar mão de obra necessária ao empreendimento
colonial (ZOTTI, 2004; PAIVA, 2003).
Quanto ao ensino de línguas, o latim era o idioma em que estava estruturado o curso
de humanidades veiculado pelos jesuítas na formação das primeiras letras. O Português era o
instrumento para alfabetização dos poucos que eram escolarizados para aprendizagem do e
através do latim (SOARES, 2002, p. 158). Não havia um contexto de constituição da Língua
Portuguesa como área de conhecimento, porque: (i) não era uma área de estudo tradicional; (ii)
o uso da LP era secundarizado no processo comunicativo cotidiano; (iii) a configuração do
estatuto da LP como bem linguístico e cultural no Brasil colonial ainda era incipiente, a LP
ainda seria forjada por um processo de padronização, de invenção como língua oficial para
invenção da nação (SOARES, 2002; BERENBLUM, 2003).
A partir do século XV, com a Expansão Ultramarina e a Formação dos Estados
Nacionais, os padrões linguísticos foram criados por motivações de ordem social, política,
histórica, econômica. Os padrões linguísticos vernáculos europeus contemplaram funções
concernentes à escrita de leis, de documentos do governo, de Literatura, das Artes, do
Comércio, da Ciência. Ele é decorrente da Formação dos Estados Nacionais e da Modernidade,
passando, então, a ter um prestígio, não só pelas funcionalidades ora mencionadas, mas
também por possibilitar a tradução da bíblia para as línguas vernáculas, a integração simbólica
de uma identidade étnica, a representação de nação, de língua e de literatura nacional. Tais
origens iluminam a valorização quase hegemônica das aprendizagens de variedades de
prestígio que predominou na história da educação brasileira (FREIRE, 1989; GNERRE, 1998;
ZOTTI, 2005; BURKE, 2010).
Em meados do século XVIII, houve a controversa reforma de Marquês de Pombal5
que, por motivações de ordem política, econômica6 e ideológica, expulsa
7 os jesuítas do Brasil,
5 “Três obras clássicas, pela importância de que se revestem, precisam ser nomeadas. Duas são sistematicamente
citadas e reconhecidas por terem influenciado as reformas pombalinas da instrução pública, em Portugal e seus
domínios: Verdadeiro Método de Estudar (1746), de Luis Antonio Verney, Cartas sobre a Educação da
Mocidade Portuguesa (1760), de Ribeiro Sanches. A terceira, por ser menos conhecida, deve ter sua importância
23
confisca os bens da Companhia de Jesus, fecha colégios8, estabelece a inclusão do ensino de
Português, a obrigatoriedade do uso da LP e proíbe o uso de outras línguas na colônia, em
especial, as línguas indígenas e línguas africanas (GARCIA, 2007). Esta política de Estado,
que suprimiu o sistema de ensino criado pelos jesuítas, instituiu, por via do alvará régio, de 28
de junho de 1759, as aulas régias ou avulsas, autônomas, independentes das disciplinas Latim,
Grego, Filosofia e Retórica.
A criação das aulas régias, com ensino efetivado por professores laicos, nomeação de
diretores de ensino, a criação de um subsídio econômico para a manutenção dos
estabelecimentos de ensino foram algumas das medidas estabelecidas pela reforma pombalina.
Mas, o novo, disperso e fragmentado sistema não extinguiu os estudos nos estabelecimentos de
ensino de outras congregações religiosas. Por outro lado, estas ordens não contavam com o
aparato, infraestrutura e organização jesuítica para atender à população livre, que, devido à
atividade mineradora, passou a ser mais numerosa. Isso implicou um considerável aumento de
atividades econômicas na colônia e a necessidade de um sistema educacional que possibilitasse
formação escolar a esta demanda populacional, o que pressupunha, por sua vez, também, a
necessidade de delinear um processo de oficialização e de formalização de um currículo
(SHIGUNOV NETO; MACIEL, 2008; AMARAL; SECO, 2006).
Mesmo após este desmonte do sistema educacional jesuítico, os estudos de linguagem
continuavam focados no ensino de Gramática e de Retórica. A Gramática Latina e a
Gramática da Língua Portuguesa eram os componentes curriculares. Pela primeira vez, é
conferido ao Português o referido estatuto, porém o vernáculo só se configuraria como um
melhor avaliada [...] Apontamentos para a Educação de um Menino Nobre (1734), de Martinho de Mendonça
de Pina e de Proença, que, segundo a historiografia portuguesa, teria uma estreita associação com Ensaios sobre a
Educação, de Locke.” (ALVES, 2006, p. 04). 6 Desde o século XVI, Nóbrega anuncia o quanto era proveitosa a criação de vacas para a produção de laticínios.
No século XVII, os jesuítas estiveram diretamente ligados à exploração das “drogas do sertão” - gêneros naturais
da economia amazônica, a saber: cravo, cacau, pimenta, castanha, salsaparrilha, canela, etc.-, dedicaram-se à
criação de gado e chegaram a ser donos de engenho (PRADO JÚNIOR, 1986, apud FREIRE, 1989). Em virtude
de suas atividades econômicas, religiosas e educacionais estavam presentes em diversos e importantes pontos da
Colônia. Isto pode ser visibilizado pelo estabelecimento dos colégios no país, a saber: Colégio da Bahia (1549),
Olinda (1573), São Vicente (1553), Recife (1619), Santos (1652), Espírito Santo (1551), áreas onde progrediram
os engenhos de açúcar; o Colégio de Cachoeira (BA)- (1687), na zona de plantio de tabaco; o de Ilhéus (1604),
na área de cultivo de cacau e açúcar; Colégio de Belém (1652), ligado ao mercado das “drogas do sertão”,
grandes latifúndios, em especial, na Ilha do Marajó, onde tiveram próspera criação de bubalinos, entre outros.
Cabe lembrar que a congregação religiosa não pagava imposto (FREIRE, 1989; BARBOSA, 2005; ZOTTI,
2004). 7 O Decreto-lei de 3 de setembro de 1759, promulgado pelo Rei D. José I, suspende as atividades da Companhia
de Jesus. 8 Instituições que ainda permaneceram em funcionamento após a reforma pombalina: Escola de Artes e
Edificações Militares da Bahia, as aulas de artilharia do Rio de Janeiro e os Seminários de São José e São Pedro
e o Seminário Episcopal do Pará, para formação de líderes religiosos e defesa militar da colônia (SOARES,
2011).
24
subsídio instrumental e preliminar para o ensino e aprendizagem do “verdadeiro” objeto do
ensino: a gramática latina (SOARES, 2002).
Cabe mencionar que, com a desestruturação da supracitada organização educacional,
a regressão do ensino afetou, também, as escolas de primeiras letras coordenadas por capelães
e padres-mestres, porque não havia quadro de professores para assumir as classes e o país
ficou praticamente treze anos sem escolas. Este desinteresse reflete os fins coloniais em jogo,
visto que em meados do século XVIII circulam as ideias liberais9 na Europa, que começavam
a provocar revoltas e emancipações. Além disso, o próprio regime colonial, baseado no
trabalho escravo, e centralizado administrativamente na metrópole, não exigia quadros
profissionais aptos nas atividades de leitura, de escritura e de cálculo. Naquela conjuntura, a
educação não poderia contribuir para a ascensão dos membros daquela formação social,
tampouco para a participação política dos mesmos.
Desse modo, o período colonial pode ser caracterizado do seguinte modo: (i)
centralização religiosa do processo educativo; (ii) manutenção de interesses de uma elite
colonial; reprodução de desigualdades sociais; (iii) ensino elitista voltado à formação de
lideranças religiosas e das classes dominantes, (iv) fortalecimento e expansão do processo de
colonização do território brasileiro; (v) não constituição de um sistema de ensino no país,
restando uma escola primária, ainda, sob a responsabilidade de religiosos e de um ensino
secundário fragmentado e limitado às aulas régias.
A delineação deste quadro está diretamente relacionada ao empreendimento colonial,
mercantilista, agroexportador firmado no tripé da economia agrária, latifundiária e escravista.
O papel social delegado aos colonos seria de subserviência ao colonizador para a obtenção do
lucro decorrente da exploração das colônias e de suas populações, que se reverbera, do ponto
de vista educacional em relações de autoridade, rígidos padrões de disciplina, de cumprimento
de normas, de comportamentos, de organização espacial, de distribuição do tempo e de
imposição de um sistema marcado por padrões de recompensa e castigo, características que
ainda reverberam no sistema educacional atual (SOARES, 2011; ZOTTI, 2005; PAIVA,
2003; FREIRE, 1989; SILVA, 1999).
Em 1808, a forçada instalação da corte portuguesa no Brasil trouxe mudanças ao
panorama educacional brasileiro. Em virtude disso, foi necessário organizar um sistema de
ensino para atender à demanda educacional da aristocracia portuguesa e preparar quadros para
9 Não foi à toa que a leitura de obras dos filósofos modernos como Descartes, Rousseau, Locke, Voltaire, dentre
outros, foram proibidas no Brasil. A leitura de tais obras poderia suscitar o desejo de emancipação da colônia, o
que representaria uma perda econômica para a coroa portuguesa.
25
as novas ocupações técnico-burocráticas. Nessa época, foram criados os cursos superiores de
Medicina, Agricultura, Economia, Política, Química e Botânica, as Academias Militares, o
Museu Real, a Biblioteca Pública, a Imprensa Régia10
. Todavia, para a educação elementar
não houve grande progresso; as elites a recebiam como ensino privado. Cabe enfatizar que
essa relação pouco ou quase nada mudou na educação de hoje, delimitando nitidamente os
segmentos sociais que têm acesso ou não ao que é considerado como “boa educação”.
Ainda assim, a Constituição de 1824 instituía a gratuidade da instrução primária e a
fundação de instituições dos demais níveis de ensino. O artigo 179, alínea 32, estabelecia a
gratuidade para todos os cidadãos. O artigo 6, item 1, da constituição de 1824, considerava
como cidadãos brasileiros as pessoas que tivessem nascido no Brasil, o que incluía os
escravos após a lei da emancipação e/ou libertos. Então, legalmente o escravo não era tido
como cidadão e devido a sua condição em uma sociedade escravagista sequer precisava ou
reivindicava escolarização (FREIRE, 1989). O ensino secundário foi negado a negros e
índios. A interdição está impressa na história deste nível de ensino e a entrada desta parcela da
população no sistema formal de ensino, ainda, é muito recente.
Desse período imperial, é indiscutível a relevância do Ato Adicional à Constituição
que vigorou a partir de 1834. Este descentralizou o ensino elementar e secundário e criou os
Conselhos Provinciais em Assembleias Legislativas, que poderiam legislar “sobre a instrução
pública e estabelecimentos próprios para promovê-la. Seu artigo 10, parágrafo 2º, promulgava
que às assembleias não competiam “as Faculdades de Medicina, os Cursos Jurídicos,
Academias”.
Tal lei encarregou o governo central de administrar a educação superior, bem como
os ensinos primário e médio da capital do império, atribuiu às províncias o “direito” de
organizar e legislar a instrução popular das províncias e eximiu a responsabilidade do governo
central, em relação ao ensino primário e secundário, incluindo o curso Normal, deixando-os
sob a responsabilidade das províncias, que, desprovidas de recursos humanos e econômicos,
não puderam ofertar de forma adequada nem quantitativa, nem qualitativamente os referidos
níveis de instrução. Este cenário permitiu a expansão de instituições particulares de ensino
secundário no país, como o Colégio Caraça (1867-1885), dirigido pelo Padre Júlio José
Clavelin, que se tornou um dos estabelecimentos privados mais renomados no contexto
10 Em 1810, foi criado o Primeiro jornal do Brasil – A Gazeta do Rio de Janeiro.
26
nacional11
, destinados obviamente aos que podiam pagar as mensalidades (FREIRE, 1989;
PAIVA, 2003; ZOTTI, 2005; FRANÇA, 1997).
Em 2 de dezembro de 1837, o Seminário São Joaquim foi transformado em Colégio
de instrução secundária: era criado o Colégio D. Pedro II, cópia de liceus franceses, possuía
anuidades caras e era frequentado exclusivamente pela aristocracia de todo o país, a fim de
prepará-los rumo ao ensino superior. Uma característica presente no processo de construção
desta instituição, que estará presente ao longo da história da educação brasileira, diz respeito à
transplantação cultural12
, isto é, os modelos educacionais bem sucedidos de países
considerados mais desenvolvidos são tomados como referência para serem implementados na
realidade brasileira.
Trata-se de transplantar para o Brasil escravista, clientelista, alguns dos ideários da
Europa do século XIX, a saber: a autonomia individual, o ethos burguês e outros aspectos
constitutivos do liberalismo burguês oitocentista, o que leva a uma tentativa de mimetizar um
ideário educacional que não se conforma a realidade local e, ao mesmo tempo, reflete a falta
de vontade política e de um projeto de políticas públicas de enfrentamento sério para atender a
demanda educacional de um país continental, multifacetado, estratificado e explorado desde
sua invenção enquanto nação (BERENBLUM, 2003; ZOTTI, 2005). Para Freire (1968, p. 79),
trata-se de uma:
Posição típica ou atitude normal de alienação cultural. A de se voltar
messianicamente para as matrizes formadoras ou para outras consideradas em nível
superior ao seu, em busca de solução para seus problemas particulares, inadvertidos
de que não existem soluções pré-fabricadas e rotuladas para estes ou aqueles
problemas, inseridos nestas ou naquelas condições especiais de tempo ou de espaços
culturais. Qualquer ação que se superponha ao problema, implica numa
inautenticidade, por isso mesmo no fracasso da tentativa.
Um exemplo foi o recorrente e falacioso movimento do governo de Michel Temer em
tomar, às avessas, modelos de países como Finlândia, Alemanha, Coréia, Canadá para
reformular o EM brasileiro. Por exemplo, a criação de itinerários formativos em que os jovens
11 Outras instituições secundárias privadas obtiveram destaque neste período, a saber: Colégio dos Jesuítas, Santa
Catarina, fundado em 1845; Colégio de São Luís, em Itu-SP, fundado em 1867; Colégio de Campinas,
organizado pela sociedade Culto à Ciência, fundado em 1874 (FRANÇA, 1997). 12
Nos anos de 1940 e 1950, a estruturação do ensino técnico industrial foi realizado com assessoria da Comissão
Brasileiro-Americana de Ensino Industrial (CBAI); nos anos de 1950 e 1960, a reestruturação do ensino primário
efetivada com o auxílio da Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar (PABAEE); nos anos de 1960
e 1970, a reforma do ensino superior com os acordos MEC-USAID; nos anos de 1980 e 1990, foram efetivados
os convênios MEC-BIRD no Ensino Fundamental; ainda nos anos de 1990, o Banco Interamericano de
Investimento (BID) e o Banco Mundial (BIRD) influenciaram na regulamentação de intervenções legais como o
decreto nº 2.208/97, portaria MEC nº 646/97 e nº 1.005 que implementaram a reforma do ensino médio e técnico
(FRIGOTTO; CIAVATTA, 2004).
27
pudessem escolher o que gostaria de cursar, inclusive, haveria possibilidade de escolher cursar
mais de um itinerário. Um destes itinerários estaria voltado à profissionalização destes jovens
em que teriam acesso a conhecimentos profissionais - técnicos - para sua inserção no mercado
de trabalho, negligenciando assim a este público- menos favorecido economicamente- uma
formação de natureza mais propedêutica.
Na contramão dessa tendência histórica, a professora investigada, nesta pesquisa,
busca resgatar em sua prática de ensino a realidade vivenciada pela juventude periférica, uma
postura educativa contra-hegemônica, situada, corajosa, que não se limita ao conteúdo
programático disciplinar, mas busca convocar outros letramentos, outras disciplinas, para a
construção de práticas letradas escolares, voltadas a letrar compreender, problematizar e
transformar a realidade e assim tentar desestabilizar a herança colonial - mutista, verbosa,
antidialogal, vertical, impermeável- ainda tão atual no cenário educacional brasileiro (FREIRE,
1989, 1968).
Por outro lado, cabe lembrar que o colégio Dom Pedro II e seus professores foram
fundamentais para o processo de alfabetização e de letramento dos filhos da elite rural e
aristocrática. O Regulamento de 1938 da referida instituição, ao orientar as obrigações
docentes, recomenda: “1º - não só ensinar aos seus alunos as letras e ciências, na parte que lhes
competir, como também, quando se oferecer ocasião, lembrar-lhes seus deveres para com
Deus, para com seus paes, pátria e governo” (MOACYR, 1936, p. 280, apud ZOTTI, 2005, p.
36).
Para além destes preceitos religiosos e nacionalistas, ainda, mobilizados para a
composição de discursos de dirigentes que estão no poder atual, os currículos construídos e o
material didático produzido pelos docentes da principal escola secundária do período imperial-
o colégio Pedro II - serviram como “modelo” para os estabelecimentos de ensino de todo país.
Dentre os materiais didáticos, sinalizamos as Gramáticas da Língua Portuguesa e Antologias
de textos da Literatura Brasileira e Portuguesa, produzidas pelos professores da referida
instituição, fundamentais para o processo de institucionalização do Português como disciplina
curricular, conhecimento destinado à formação do público elitista que frequentava a escola
brasileira até praticamente a primeira metade do século XX13
(RAZZINI, 2000; SOARES,
2002; ZOTTI, 2005).
13 João Ribeiro escreveu três volumes (curso elementar, médio e superior) da Gramática Portuguesa. Tais
manuais tiveram uma notável contribuição para o ensino do vernáculo. Em 1941, o volume para o curso
elementar chegava a 97ª edição e, para o superior, a 21ª edição. Também, em 1877, Fernandes Pinheiro publicou
as Postilas de retórica e poética ditadas aos alunos do Imperial Colégio de Pedro II pelo respectivo professor.
Em 1878, Franklin Dória publica a Tese para o concurso da cadeira de retórica, poética e literatura nacional do
28
A partir de 1870, mais uma vez, a influência das ideias europeias continuava a nortear
o ensino secundário brasileiro. O desenvolvimento industrial, agrícola e técnico marca o
momento econômico favorável e próspero do país. Neste momento, o pensamento liberal e as
ideias positivistas ganhavam fôlego via propostas de “inovações” para as instituições
brasileiras. Este cenário possibilitou a criação de uma suposta diversificação dos estudos
secundários: os estabelecimentos de ensino para formação clássica e os estabelecimentos
destinados à profissionalização. Os estudos humanísticos/propedêuticos continuariam a ofertar
a formação letrada necessária para encaminhar as elites ao ensino superior, reproduzindo a
manutenção social dirigente e os profissionalizantes preparariam a mocidade dirigida, hábil e
competente para exercer o ofício necessário ao “progresso”, ao dito desenvolvimento social.
Tais reformas não afetaram o funcionamento do Colégio D. Pedro II, que prosseguiu
formando as elites do país para continuidade dos estudos e manutenção da condição social
letrada e de poder vigente. Por conta disso, o objetivo da estrutura do ensino secundário era
preparar uma facção social para ser encaminhada ao ensino superior, a fim de suprir a
demanda administrativa e política do país. O grau de bacharel em Letras era concedido aos
discentes concluintes dos estudos no Colégio Dom Pedro II, o que eximia a necessidade de
realização de exames parcelados de ingresso (ZOTTI, 2004), aos quais se submetiam os
demais postulantes ao ensino superior.
Quanto ao segundo império (1840-1889), houve um certo avanço na instrução popular
ofertada pelo município neutro e algumas iniciativas relacionadas à educação popular14
. Como
já foi mencionado, o sistema educacional foi descentralizado, cada província ficou responsável
pela organização dos seus sistemas e não precisava prestar contas ou informar a qualquer
órgão. Porém, este esteve ligado ao desenvolvimento econômico, social e político de cada
província. As diversidades regionais decorrentes do desenvolvimento desigual das várias
províncias estavam diretamente relacionadas ao maior ou menor interesse em investir nos
sistemas educativos.
Às vésperas da queda da monarquia, o presidente da província do Pará, Antônio José
Ferreira Braga, em relatório para a Assembleia legislativa, em 18 de setembro de 1889, critica
as condições precárias da instrução pública na província. Neste documento, o representante
externato do Colégio Pedro II. A Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, circulou como o
principal livro escolar de leitura na escola brasileira por quase 70 anos, do fim do século XIX até as primeiras
décadas do século XX (RAZZINI, 2000). 14
Entendemos por educação popular como aquela que concebe “o Estado e a Sociedade como uma arena (no
sentido gramsciano) na qual é preciso marcar posição, garantir conquistas e conquistar novos direitos,
trabalhando com as contradições e limites existentes tanto no Estado quanto fora dele” (GADOTTI, 2013, p. 02).
29
explicitava a contradição existente entre as condições de desenvolvimento material, tendo em
vista os investimentos da economia da borracha e as péssimas condições de vida do povo,
excluído do processo de enriquecimento.
Na verdade, a denúncia trata do não compromisso dos dirigentes com as questões
sociais, dentre elas, a da instrução pública primária (BARROSO, 2006). Universalizar o ensino
para a colônia não era objetivo da aristocracia dirigente, interessava-lhes a manutenção de uma
hegemonia política, econômica, intelectual, fortemente, atrelada aos interesses da metrópole.
Tais fatos permitem vislumbrar o caráter potencialmente transformador da universalização do
ensino público, que o Brasil só alcançaria um século depois, em condições muito precárias de
qualidade de oferta (PAIVA, 2003).
França (1997) investiga a organização da educação pública na província do Grão
Pará, especificamente, o processo de construção e implementação do Liceu Paraense no
período de 1840 a 1889. A instituição foi criada pela a Lei nº 97, de 28 de junho de 1841, que
institucionalizaria a educação primária e secundária na capital da Província. Conforme esses
estudos, este último nível de instrução seria ofertado por dois cursos: Humanidades e
Comércio. O primeiro tinha duração de cinco anos e o segundo corresponderia a dois anos de
duração. As seguintes disciplinas constituíram a grade curricular: Língua Latina, Língua
Francesa, Aritmética, Álgebra e Geometria; Filosofia Racional e Moral; História Universal,
Geografia Antiga e Moderna e História do Brasil; Retórica, Crítica, Gramática Universal e
Poética; Escrituração Mercantil e Contabilidade; Língua Inglesa.
Em agosto de 1851, o presidente da província instituiu o ensino de gramática latina.
Quanto ao ensino de Língua Portuguesa, no regulamento do Liceu Paraense, de 5 de fevereiro
de 185215
, percebemos a presença desta língua na grade curricular, como segunda cadeira
(art.02), embora não apareça na ordem anual de distribuição disciplinar nos seis anos de curso
(art.03), percebemos a presença do Latim nos três primeiros anos, complementado por Inglês e
Francês, o que sugere que o Português era um suporte para o ensino de Latim e demais línguas
modernas.
Razzini (2000) demonstra a supremacia da formação clássica - Latim, Grego,
Retórica, Filosofia -, nas primeiras décadas de existência do Colégio D. Pedro II, em
detrimento da “Gramática Nacional”: 52% do currículo eram destinados ao latim, o que
correspondia a 25% da Carga Horária (CH). Até 1869, a língua latina ocupava entre 17% e
25% da CH do curso secundário; enquanto que o Português e outras línguas, como Francês,
15 Documentos oficiais sobre a história da educação secundária do Pará (1839 a 1964) estão disponíveis em:
http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/43e/doc01_43e.pdf. Acesso em: 07 de maio de 2018.
30
Inglês, Alemão, Italiano, representavam apenas 10%, mas já sinalizavam a discreta presença
de diferentes repertórios linguísticos e culturais no processo de letramento na esfera escolar.
A autora revela a subordinação do ensino de Língua Portuguesa ao ensino de Latim.
De 1838 a 1869, o mesmo docente ministrava LP, Latim, Gramática Geral, Gramática
Nacional. Progressivamente, em decorrência das inúmeras reformas, decretos e intervenções
oficiais, a Língua Portuguesa adquire estatuto disciplinar, o cargo de professor de Português16
foi criado oficialmente17
, a disciplina tornou-se independente do Latim; a exigência do
vernáculo como requisito fundamental nos exames preparatórios foi regulamentada, bem como
a progressiva inserção da Literatura Brasileira no currículo da principal instituição de ensino
secundário do país (RAZZINI, 2000). Um documento importante referente ao campo
educacional do Brasil Império foi o parecer-projeto “Reforma do ensino primário e várias
instituições complementares da instrução pública”, de 12 de setembro de 1882, de autoria de
Rui Barbosa.
O texto é considerado como um primeiro diagnóstico exaustivo da realidade
educacional nacional relacionada ao ensino elementar, abordando as problemáticas referentes à
obrigatoriedade da educação escolar de 5 a 15 anos, à organização pedagógica, à formação
docente, à criação de escolas, ao orçamento necessário às despesas com o ensino, à qualidade
do material didático, à defesa do ensino laico, e outros. Sua argumentação parte da tese da
estreita relação entre educação e desenvolvimento de um país; “ignorância” popular, miséria,
servilidade e falta de educação. Quanto ao estudo de Língua Portuguesa (LP) e de Gramática,
Rui Barbosa faz referência ao caráter prescritivo do ensino, que ignorava a dinâmica e a
vitalidade da língua. Os educadores da época acreditavam que o processo de ensinar estava
ligado à necessidade de definir, conceituar, categorizar.
Para o referido político, deveria haver a exclusão do estudo das teorias gramaticais do
nível primário e a inclusão de um ensino conduzido por processos intuitivos, produção de
textos no primeiro primário; somente, no segundo grau primário, a Gramática deveria ser
16 Decreto nº 4.773, de 23 de agosto de 1871, cria o cargo de professor de português: “A Princeza Imperial
Regente, em Nome do Imperador, Attendendo a que a experiencia tem demonstrado a necessidade de separar o
ensino da lingua vernacula das outras duas disciplinas, Historia e Geographia, que estavam incluidas em uma só
aula do curso preparatorio annexo á Escola Militar, Ha por bem, em virtude da autorização conferida pelo art. 298
do Regulamento que baixou com o Decreto nº 3083 de 28 de Abril de 1863, Alterar as disposições do Decreto nº
3705,de 22 de Setembro de 1866, determinando que no dito curso haja mais um Professor, especialmente
destinado ao ensino da lingua vernacula, e tambem mais um repetidor além dos que já existem”. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-4773-23-agosto-1871-552183-publicacaooriginal-
69229-pe.html. Acesso em: 18 de setembro de 2017. 17
Decreto nº 4.773, de 23 de agosto de 1871, cria o cargo de professor de português.
31
apresentada, mas fazendo uso do método intuitivo para o seu aprendizado. Rui Barbosa já
sinalizava a necessidade de um ensino de Língua Portuguesa mais efetivo, eficiente, produtivo
e reflexivo, tendo como ponto de partida o material textual-discursivo. Posicionamento atual,
significativo, que ainda merece ser, de fato, compreendido e incorporado à reflexão e à
implementação contemporânea sobre ensino de LP. Esse diagnóstico permanece válido em
parte até pelo menos a metade da década de 1960, como princípio de organização interna da
disciplina, com o foco no ensino de gramática normativa, na perspectiva classificatória e
metalinguística (FREIRE, 1989; VASCONCELOS, 1992; PAIVA, 2003).
Depois da Proclamação da República, a constituição de 1891 concede aos estados a
obrigação de difundir o ensino elementar. A nova constituição terminava por adotar quase
todos os princípios do sistema educativo do período posterior, contendo apenas pequenas
alterações. Esta lei não fazia referência à perpetuação do analfabetismo das classes populares
brasileiras18
, pois refletia a falta de interesse político para o estabelecimento de um sistema de
ensino universal. Nessa época, o Colégio Dom Pedro II passou a ser nomeado “Instituto
Nacional de Instrução Secundária" e, no ano seguinte, “Ginásio Nacional”. A referida
instituição foi fortalecida, porque os programas do Ginásio Nacional passaram a ser referência
para Exames Preparatórios e deveriam ser adotados pelas demais instituições.
No período republicano, cinco regulamentações oficiais19
foram criadas para a
estruturação da instrução secundária, com dois objetivos: o aperfeiçoamento e a disseminação
do ensino, marcados pelo processo de inscrição entre a oficialização e a desoficialização, isto
é, o dilema de fazer do ensino secundário uma organização curricular, seriada, a ser cumprida
obrigatoriamente ou um ensino voltado à formação dos alunos em disciplinas específicas para
fins de ingresso em cursos superiores, tendo em vista que o término do secundário não era
requisito obrigatório para ingresso em instituições superiores (ROMANELLI, 2012).
A dualidade da estrutura educacional brasileira remete à dualidade da sociedade
escravocrata que gestou a República, dando prosseguimento aos antagonismos a respeito da
(des)centralização do poder, conformada aos valores e padrões do pensamento aristocrático-
rural. Este dado demonstra a acentuada finalidade do secundário: enciclopédico, propedêutico,
humanístico e, por vezes científico, para formar os mais favorecidos para continuidade dos
18 O censo de 1890 informava a existência de 85,21% de analfabetos na população total.
19 Reforma Benjamin Constant (Decreto nº 981, de 8 de novembro de 1890 e Decreto nº 1.075, de 22 de
novembro de 1890). Reforma de ensino do Ministro Epitácio Pessoa (Decreto nº 3.890, de 1 de janeiro de
1901). Lei Rivadávia Correia (Decreto nº 8.659, de 5 de abril de 1911). Reforma Carlos Maximiliano (Decreto
nº 11530, de 18 de março de 1915). Reforma João Luis Alves (Decreto nº 16782, de 13 de janeiro de 1925).
32
estudos, perpetuando a faina de atender aos interesses e ideologias da hegemonia vigente
(PAIVA, 2003; ZOTTI, 2004).
Razzini (2000) sinaliza a presença das seguintes características da instrução
secundária correspondente ao primeiro período republicano: (i) valorização do ensino de LP;
(ii) ênfase aos temas nacionais; (iii) desaparecimento das disciplinas do “antigo regime” -
Religião, Filosofia e Retórica. É necessário mencionar que, neste período, a disciplina de
Instrução Moral e Cívica passa a integrar a grade curricular do ensino secundário, uma espécie
de mecanismo curricular-ideológico a serviço dos interesses do Estado vigente. Este
instrumento “ideo-curricular” dá continuidade à tentativa de controle e de dominação do
aparelho ideológico estatal, utilizado reiteradamente em vários momentos da história da
Educação brasileira para impor valores e ideais da hegemonia política dirigente
(ALTHUSSER, 1985; ZOTTI, 2004).
Bunzen e Medeiros (2016) observam que, nessa conjuntura, a disciplina curricular
Língua Portuguesa passou a ter um espaço considerável na grade curricular do secundário. A
obrigatoriedade e o restabelecimento da precedência do exame de português impulsionaram o
crescimento vertiginoso da disciplina, em especial, o ensino de gramática do vernáculo, em
detrimento das atividades de leitura e de produção de textos. Este dado evidencia a estreita
relação entre as políticas linguísticas, o processo de estandardização da língua nacional, a
suposta construção de uma identidade nacional genuinamente brasileira e os possíveis
letramentos em circulação na escola no processo de ensino de leitura e de escrita do vernáculo
(GNERRE, 1998; BERENBLUM, 2003).
Para fechamento desta seção, o quadro 1 busca apresentar, de forma sumarizada, os
propósitos da educação secundária do período colonial ao início do século XX, sinalizando o
famigerado e insuficiente processo de implementação da instrução de base, nos primeiros
séculos de invenção do país.
Quadro 1 - Caracterização dos fins da educação secundária e do ensino de Português: da
Colônia à República velha
Período histórico Propósitos da educação secundária Ensino de português
Período colonial
(1500-1759)
Formação de lideranças para pregar a fé e para
atuarem como agentes do Estado;
Conformidade aos propósitos missionários e
coloniais;
Educação de base literária, filosófica, clássica;
Manutenção do monopólio intelectual da
metrópole;
Ênfase ao trabalho intelectual;
Contundente reação ao pensamento crítico, recusa
Latim como o idioma de estruturação do
ensino secundário e superior liderado pelos
jesuítas;
LP era um instrumento para aprendizagem
do e através do latim.
Ensino estruturado no tripé: Retórica,
Oratória e Gramática.
33
ao pensamento científico/experimental que
despontava na Europa;
Objetivo: formar a elite dirigente.
Período pombalino
(1759- 1808)
Fragmentação do ensino secundário;
Criação das aulas régias, autônomas, isoladas,
baseadas no enciclopedismo;
Educação de base clássica, ornamental e
europeizante dos jesuítas;
Conformidade aos propósitos coloniais;
Manutenção do monopólio intelectual da
metrópole;
Pouco interesse em implementar educação
universalizante, popular e de qualidade;
Interesse em reforçar a dependência e submissão
da colônia a metrópole.
Tentativa de laicização do ensino.
Objetivo: formar a elite dirigente.
Com a reforma pombalina houve a
obrigatoriedade do uso e do ensino da LP
nas escolas brasileiras;
Tal política linguística reflete a tentativa de
controle e de domínio da colônia;
A LP passa constituir componente curricular
ao lado da gramática latina, mas ainda é
veiculada como instrumento para o ensino
do verdadeiro objeto de ensino: o Latim.
Período imperial
(1808-1889)
Formação de elites conforme modelo europeu;
Ensino de caráter conteudista e enciclopédico;
Conciliação entre formação literária e formação
humanista para fins de ingresso no ensino superior;
Objetivo: formar a elite dirigente.
Subordinação do ensino de LP ao ensino de
Latim;
Acentuada progressão da CH e do currículo
de LP e de Literatura Brasileira;
Eixos de estruturação da disciplina: Leitura e
Recitação de Português, Exercícios
Ortográficos, Quadros da literatura nacional;
Inclusão do exame de Português;
A aula de LP torna-se independente;
Ensino baseado em comentário, exemplos e
exercício como na Gramática Nacional
Elementar (1864), de Caldas Aulete.
Período
republicano I
(1889-1930)
Continuidade de formação de quadro dirigente e de
um modelo curricular voltado para este fim;
Predominância de formação para as Humanidades,
seguido de componentes curriculares das Ciências,
Matemática, Desenho, Estudos Sociais;
Ensino de caráter propedêutico e enciclopédico
para atender aos interesses da oligarquia cafeeira de
tradição ruralista que assistiria à depressão de 1929
e à transição da economia agrária para a industrial.
Objetivo: formar a elite dirigente.
Progressão da CH de LP;
Período de valorização do ensino de LP e
declínio do Latim;
Fusão do ensino de LP e literatura;
Centralização e controle do Material
Didático;
Reestabelecimento da precedência e
obrigatoriedade do exame de Português:
Redação e a prova escrita com análise
gramatical e análise sintática de um trecho
clássico de português;
Prestígio para a leitura de “obras modernas”;
A ênfase gramatical arrefece e é concedida
maior atenção ao ensino “prático”.
Fonte: Elaboração própria, a partir de Razzini (2000); Soares (2002); Paiva (2003); Zotti (2004,2005).
É possível constatar que se delineia nesse panorama a formação de um currículo
mais voltado a atender aos interesses de uma política colonialista, elitista, pouco ou nada
comprometida com a universalização do ensino, a participação política e a autonomia da
população brasileira. Formava-se uma elite para conhecer a literatura vernácula e estrangeira,
bem como a variedade de prestígio do Português, especialmente, a modalidade escrita do
português.
34
Nessa direção, atenta-se que o componente curricular “Português” pouco contribui
para uma formação letrada e que parece mais atender aos interesses políticos da época do que
às necessidades do povo no sentido de acesso às letras, à leitura, à escrita e aos diferentes
repertórios linguísticos e culturais do povo brasileiro, em especial, das classes sociais menos
favorecidas economicamente.
Podemos dizer que houve uma verdadeira interdição à cidade das letras durante 430
anos (RAMA, 1985) e o reflexo dessa conjuntura histórica, colonial da Casa Grande e
Senzala ainda goteja seus resquícios até hoje na realidade social, política, econômica, cultural
e educacional brasileira. Nossa investigação reflete sobre a tentativa de implementação de um
trabalho de ensino, que considere as culturas locais, em um contexto periférico, brasileiro, e
que é atravessado pela obrigatoriedade de didatizar um conteúdo programático atrelado à
normatização curricular, docimológica, dominante, homogeneizante, que perdura desde o
Brasil colonial.
2.2 O ENSINO SECUNDÁRIO: DO GOLPE DE 1930 AOS ANOS DE 1980
A partir dos anos de 1930, o Brasil, marcado pela crise da economia agrária, caminha
rumo ao processo de industrialização e de urbanização. A emergência de uma sociedade
urbano-industrial desponta em meio a um cenário de mudanças e intermediário entre o Brasil
rural e o Brasil industrial, indiciado não só por uma mudança de modo de produção, mas
também por um processo de substituição de um modelo capitalista dependente,
agroexportador, por um modelo capitalista dependente, urbano-industrial. Nesse contexto de
fortalecimento industrial e crescimento urbano, a instrução escolar desponta como uma
demanda necessária ao desenvolvimento do novo modelo econômico e da propaganda de um
“novo Brasil”.
No primeiro momento, Getúlio Vargas incluiu em seu programa de governo a difusão
extensiva do ensino público20
, em especial, o ensino técnico-profissional, criando alianças e
colaborando com os estados, fundou os Liceus Industriais e reformou o ensino comercial e
industrial21
. Quanto ao ensino elementar, o apoio à difusão do ensino primário foi realizado na
forma de apelo aos Estados para investirem no setor. No período de 1932-1936, houve um
20 A constituição de 1934 fazia referência à criação do Plano Nacional de Educação para todos os níveis de
instrução, coordenar e fiscalizar em todo território nacional. Nesse documento, a educação é reconhecida como
direito de todos. O ensino primário foi instituído como gratuito, obrigatório e extensivo aos adultos. Além disso,
fixava as porcentagens mínimas de investimento no campo educacional: governo central e municipal 10% e
governo estadual e Distrito Federal 20%. Este último ponto não foi mantido pela constituição de 1937. 21
Vale lembrar a fundação da Cruzada Nacional de Educação em fevereiro de 1932.
35
crescimento de matrículas superior a 30%. Tal aumento deve-se aos esforços estaduais e às
reformas qualitativas orientadas pelos educadores renovados. Cabe lembrar que, nesse período,
as desigualdades regionais econômicas são bem refletidas no campo educacional, São Paulo e
Distrito Federal gastavam 30 vezes mais que os estados do Nordeste, por exemplo (PAIVA,
2003).
Nesse contexto, o governo Vargas fundou o Ministério da Educação e Saúde, que
instituiu a Reforma Francisco Campos - decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931-, a fim de
tentar conferir organicidade a esta etapa de ensino para fins de superação da mera etapa de
preparação para o ensino superior. O resultado disso foi: (i) a construção de um desenho
curricular configurado para uma formação geral e específica do homem, a fim de formar mão
de obra para os mais diversos setores sociais e produtivos da sociedade; (ii) institucionalização
do currículo seriado, obrigatório, disposto em dois níveis de estudo: o fundamental (etapa
comum, de formação geral, com duração de 5 anos, obrigatório para ingresso no ensino
superior) e o complementar (etapa de adaptação, de formação específica, com duração de 2
anos, obrigatória para ingresso somente em determinadas instituições); (iii) equiparação de
todas as escolas secundárias ao Colégio Pedro II; (iv) implementação de programas de ensino
de LP que abordassem “obras modernas”, exercícios de leitura voltados à explicação do texto,
estudo do vocabulário, interpretação dos textos, análise literária, entrada de literaturas
europeias contemporâneas e literatura americana (BRASIL, 1931).
Cabe lembrar que esta primeira grande configuração federal para a instrução secundária
mantém a natureza enciclopédica, propedêutica, humanista e elitista da escola brasileira e não
estaria, de forma alguma, articulada aos vários cursos do ensino-técnico profissional e também
não visava à emancipação das classes populares. Os cursos eram destinados a atender
provavelmente aos “desvalidos da sorte”, que formariam a mão de obra necessária ao dito
desenvolvimento social e econômico do país.
Demarcava-se, nitidamente, a natureza dual da referida etapa de ensino: o ensino
secundário e o ensino técnico-profissional - comercial e industrial: prioridades da reforma -,
demarcando um binarismo social e educacional voltado a responder às demandas
conservadoras de uma elite. Vale ressaltar que ensino técnico-profissional não permitiria ao
concluinte a possibilidade de acesso ao ensino superior, exceto, em caso de continuidade em
áreas específicas (RAZZINI, 2000; GOMES, 2000; ZOTTI, 2004).
Com o estabelecimento do Estado Novo, em 1942, é instituída a Reforma Capanema,
pelo decreto lei nº 4.244, de 9 de abril de 1942, que passa a legislar sobre o secundário, o
Curso Ginasial com ciclo fundamental, de quatro anos de duração e o Curso Colegial, que
36
era um ciclo complementar com três anos de duração e tinha duas modalidades: o curso
clássico e o curso científico. O primeiro era voltado ao estudo das Letras ou das Humanidades
e o segundo direcionado às Ciências. Paralelo ao ensino secundário geral, foram realizadas as
reformas para regulamentação do ensino técnico-profissional22
que tinha como objetivo
habilitar os discentes para o ingresso no nível superior, enquanto que os cursos Normal,
Agrotécnico, Comercial técnico e Industrial técnico não asseguravam o acesso à educação
superior.
É importante dizer que esta organização escolar reporta ao fato de que o “passaporte”
de acesso ao ensino superior está intrinsecamente articulado ao domínio de conteúdos gerais,
das Ciências, das Letras, das Humanidades, saberes tidos como legitimados e válidos para a
formação daqueles que deveriam assumir os lugares sociais considerados mais prestigiados,
do ponto de vista, político, econômico, cultural, imprimindo, mais uma vez, a natureza
enciclopédica, literária, elitista e dual da configuração curricular do ensino secundário
brasileiro.
Ao analisar os dados da matrícula deste período, Gomes (2000) aponta um dado
interessante: as classes médias urbanas passaram a integrar o corpo discente da escola
secundária acadêmica, enquanto que houve no mesmo período uma expressiva diminuição de
ingresso nos cursos profissionalizantes. O resultado da expansão de um currículo acadêmico
implicou a formação de uma demanda de concluintes que, em tese, não estaria preparada para
o mercado de trabalho, mas que poderia suprir algumas necessidades de uma sociedade
urbanizada e, industrializada, que, decerto, precisaria de mão de obra para os setores
burocráticos, comerciais e de serviços.
Uma mudança significativa no Estado Novo foi a centralização e controle dos Livros
Didáticos (doravante LD) pelo Ministério da Educação e Saúde, retirando a hegemonia do
Colégio Pedro II23
, quanto à criação de materiais didáticos que seriam largamente adotados
nas escolas de todo o país. Foi criada a Comissão Nacional do LD. Quanto ao Programa de
Português do curso ginasial, a portaria nº 170, de 11 de julho de 1942, instituiu a
preeminência da literatura, com destaque para leitura patriótica/nacionalista e um crescimento
acentuado para gramática no currículo de Português.
22 Conjunto de leis orgânicas que regulamentaram o ensino técnico-profissional: Decreto-lei nº 4.048 de
30/01/1942 para o ensino industrial; Decreto-lei nº 6.141 de 28/12/1943 para o ensino comercial; Decreto-lei nº
9.613 de 20/08/1946 para o ensino agrícola. 23
Decreto nº 1.006, 30 de dezembro de 1938.
37
Com a derrocada do Estado Novo, uma nova constituinte foi promulgada em setembro
de 1946 e, após um período de trezes anos, em 20 de dezembro de 1961, foi promulgada a
primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A Lei nº 4024/1961 instituía: (i) o
processo de descentralização das orientações curriculares; (ii) a eliminação de quaisquer
restrições de acesso ao nível superior por parte dos egressos dos cursos profissionalizantes;
(iii) a nova designação para a etapa: ensino médio; (iv) a manutenção da estruturação do curso
secundário de sete anos e a dualidade estrutural das redes de oferta, perpetuando a faina de
formar explicitamente dirigentes e dirigidos; (v) a redução do número de disciplinas
solicitadas: nove disciplinas para o ciclo ginasial e oito para o ciclo colegial, além das práticas
educativas que deveriam ser ofertadas de acordo com a escolha e possibilidade das escolas);
(vi) a LP passou a ser disciplina obrigatória, com aumento da CH, de 20 horas no ginasial e
10 horas ou mais no colegial; no ginasial, o ensino seria composto por três partes: expressão
oral, expressão escrita, gramática expositiva; no colegial, haveria aprofundamento dos
conhecimentos gramaticais, estudos das literaturas e análise literária (RAZZINI, 2000;
KUENZER, 2007).
Devido às mudanças implicadas pelo Golpe militar de 1964, em 1971, uma nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação - Lei nº 5.692, 11 de agosto de 1971, foi publicada e
regulamentou: (i) a equivalência entre os ramos propedêutico e profissional para o secundário;
(ii) a obrigatoriedade da habilitação profissional; (iii) a mudança de denominação: primeiro
grau e segundo grau; (iv) a extensão da obrigatoriedade de quatro para oito anos do primeiro
grau e redução de sete para três a quatro anos do segundo grau; (v) a eliminação do exame de
seleção, etc. Vale atentar para a possibilidade do ensino secundário como etapa de preparação
para o exercício de profissões técnicas, o que, na verdade, camuflou a generalização da
habilitação profissional como finalidade desse nível de ensino, reforçando assim a natureza de
uma formação especializada para papeis sociais específicos, que, de certa forma, obliterava a
necessidade de uma educação emancipatória para a população mais pobre, o que convergia
com as demais políticas – econômicas e sociais - dos governos militares.
Ao relacionarmos o modelo político e econômico do período histórico à proposta
curricular, é possível delinear ao menos três metas: (i) restrição de acesso ao ensino superior e
a ênfase ao discurso patriótico, ao discurso do dever cívico para manutenção da ordem24
; (ii)
tentativa de despolitizar o ensino secundário a partir da aplicação de um currículo tecnicista,
voltado, em tese, ao mercado de trabalho, alicerçado na teoria do capital humano; (iii)
24 O decreto nº 58.023, de 21 de março de 1966, regulamenta as normas sobre a Educação Moral e Cívica em
todo o país.
38
preparação de mão de obra, a fim de atender às demandas do desenvolvimento econômico
decorrente do dito “milagre econômico”. Nessa época, houve a proliferação de escolas
profissionais para atender às necessidades das diversas áreas de atuação, multiplicadas, de
modo desordenado e voltadas para atender aos interesses imediatos do mercado (ZOTTI, 2004;
KUENZER, 2007; RAMOS, 2007).
Zotti (2004) chama a atenção para o fato de que não foram disponibilizados os recursos
humanos e materiais necessários para dar aparato às redes públicas de ensino do país, a fim de
que pudessem oferecer a profissionalização proclamada. Enquanto isso, as escolas da rede
privada criavam “simulacros” dessa profissionalização ou simplesmente a desconsideravam e
continuavam a preparar para o ingresso no ensino superior. A lei proclamava uma extensa
oferta de cursos, mas, na prática, a inviabilidade de implementação constrangia as redes
pública e privada a oferecer uma educação limitada e pouco diversificada, tendo em vista as
demandas de formação necessária ao trabalho, à cidadania, à participação política, social,
transformadora. Em 1981, a lei nº 7044 revoga a obrigatoriedade da profissionalização.
Cabe mencionar que, nos anos 1970, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº
5.692 /71) altera mais uma vez o nome da disciplina Língua Portuguesa para “Comunicação e
expressão” nas primeiras séries do que hoje é considerado Ensino Fundamental (EF);
“Comunicação em língua portuguesa” para as séries finais do EF; “Língua Portuguesa e
Literatura Brasileira”, para o segundo grau (BRASIL, 1971).
Nessa época, pode-se perceber o desaparecimento do latim no currículo, a influência da
teoria da comunicação que, de certa forma, conferiu legitimidade de ordem teórica à entrada de
textos variados para a leitura na escola – propagandas, quadrinhos, notícias-, textos de outras
esferas sociais migram para a leitura escolarizada, o que pode ser considerado bastante
relevante ao processo de disseminação dos letramentos vernaculares ou locais no âmbito
escolar-disciplinar; bem como o aumento significativo de uma literatura ao público infantil.
Tais mudanças implicaram a perda da hegemonia das Antologias e a inclusão da literatura
vernácula nos vestibulares (RAZZINI, 2000; SOARES, 2002; BUNZEN, 2006; PIETRI,
2010).
O foco do ensino estaria interligado ao desenvolvimento do uso da língua, entendida
como código, e à capacidade de emitir e receber mensagens (BUNZEN, 2006; SOARES,
2002; PIETRI, 2010; RAZZINI, 2000). Nesse momento, foi publicado um documento
relevante para o ensino de escrita: o decreto federal nº 79. 298, de 24 de fevereiro de 1977, que
instituiu, a partir de janeiro de 1978, a obrigatoriedade da prova de redação em Língua
Portuguesa nos Vestibulares (BUNZEN, 2006).
39
A publicação do decreto coloca em cena duas situações pertinentes ao contexto
educacional em debate. A primeira é a grande demanda pelos cursos universitários. A segunda
remete à necessidade de retorno da redação aos exames vestibulares. A imposição oficial
implicou a (re)criação de uma “nova disciplina” no currículo para ensinar a fazer a chamada
Redação de Vestibular. Se, por um lado, a medida estimulou, de algum modo, o ensino de
escrita de textos para atender a um aparelho docimológico externo à escola, por outro lado,
estes objetos de avaliação passaram a servir como objeto de estudo para pesquisadores
brasileiros nas décadas de 1970, 1980 e 199025
interessados no ensino-aprendizagem de
Português. Ferreira (2017, p. 67) formula26
as seguintes constatações referentes a este
investimento teórico, analítico, reflexivo da academia brasileira:
(i) a constatação de recorrentes problemas de redação concernentes ao uso
normativo, à informatividade, à concatenação de ideias, à ausência de
posicionamentos críticos, mas também à presença de fenômenos linguísticos
relevantes para refletirmos sobre traços característicos do português brasileiro
em curso, vivo, dinâmico, oriundo dos usos reais da língua;
(ii) o conjunto de análises sinaliza para a necessidade de ensinar escrever, levando
em consideração as reais condições de produção, a existência de um
interlocutor, os propósitos comunicativos, a funcionalidade e a
operacionalização da escrita em práticas situadas;
(iii) a crítica ao ensino balizado no uso de estratégias de preenchimento e de
modelos prontos, centrados nos tipos textuais narrativo, descritivo e
dissertativo, os quais não garantiriam ao aluno, em tese, a condição de
produtor de textos;
(iv) a necessidade de construção de um arcabouço teórico-metodológico com base
em estudos linguísticos, a fim de repensar não só alternativas relativas às
práticas de ensino de língua materna, mas também para melhoria dos materiais
didáticos, constituição de regulamentação oficial orientadora da ação docente,
tentativa de (re)estruturação de sistemas avaliativos e inserção de critérios de
caráter textual e discursivo nestes aparelhos docimológicos.
O significativo progresso das pesquisas acadêmicas concernentes aos processos de
ensino-aprendizagem de línguas na escola, o impacto das teorias da enunciação, as pesquisas
no campo do texto e da leitura, a repercussão das pedagogias críticas, a ampliação de cursos de
formação continuada, os estudos sobre letramento e de outros campos do conhecimento
igualmente relevantes, aliados ao contexto de redemocratização do país, de gestão de uma
nova conjuntura, que precisasse reaver a histórica dívida educacional em termos de
universalização da educação elementar e secundária, introduzem um novo capítulo para a
25A saber: Viana (1976), Carone (1976), Fernandes (1976), Baccega (1977), Pécora (1977, 1989), Lemos (1977),
Lima (1977), Mamizuka (1977), Negrão (1977), Osakabe (1977), Val (1991), Brito (1995), Barros (1999),
Sautchuk (2003), dentre outros. 26
As formulações foram tecidas inspiradas basicamente a partir das leituras de (BRITTO, 1997; PIETRI, 2010,
GOMES-SANTOS, 2010).
40
Educação brasileira que será (re)delineado, em especial, a partir da nova LDB no fim da
década de 1990.
Consequentemente, a constituição do ensino de Língua Portuguesa é, de algum modo,
afetada tanto pelos fatores supracitados, quanto pela expansão da oferta, pela implantação dos
sistemas avaliativos27
e pela publicação de uma série de documentos oficiais. Mais adiante,
faremos uma breve apresentação destas publicações para situar e apontar as informações
relevantes ao ensino de leitura e de escrita na escola básica e secundária.
2.3 O ENSINO SECUNDÁRIO: DE 1980 AOS PRIMEIROS DECÊNIOS DE 2000
No final da década de 1980, a Constituição Federal (CF), de 1988, Artigo 5º, instituiu a
educação como um direito social, ao lado da saúde, do trabalho, do lazer, da segurança, da
previdência social, da proteção à maternidade, à infância, da assistência aos desamparados,
direito à moradia, à alimentação. No Capítulo III – “Da educação, da cultura e do desporto”, na
seção I - Da educação, artigo número 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e
da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho” (BRASIL, 1988).
Com a promulgação desta nova lei, delineava-se o esboço de uma nova reforma
educacional, que mobilizou vários segmentos da sociedade brasileira envolvidos com as
questões de Educação, a fim de construir um projeto capaz de articular a formação da
juventude e, ao mesmo tempo, a uma demanda de exercício da cidadania ativa, atuante nas
atividades política e produtiva da sociedade. No fim da década de 1990, na nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação – Lei nº 9.394/96, no artigo 4º da LDB, a educação é
apresentada como um direito do cidadão e é um dever do Estado atendê-lo mediante oferta
qualificada.
Neste documento, o EM é considerado etapa final da Educação básica, para fins de
prolongamento e aprofundamento da educação geral, com vistas à preparação básica para o
trabalho e cidadania; que deveria contemplar uma visão orgânica do conhecimento, a fim de
27 Em meados da década de 90, temos a implantação do primeiro sistema de avaliação do Ensino Fundamental e
do Ensino Médio, SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), que teria o papel de investigar a situação
dos referidos níveis de ensino em escala nacional, a fim de melhor conhecer a realidade da escola brasileira,
identificar as principais necessidades e procurar planejar políticas públicas, para tentar melhorar a qualidade do
ensino ofertado tanto do ponto de vista quantitativo, quanto qualitativo.
41
propor uma relação mais estreita entre teoria e prática e uma oferta limitada a um anunciado
processo de progressiva universalização (GOMES, 2000).
Relegando boa parte das contribuições do amplo debate realizado, a lei instituída como
parte integrante das políticas educacionais, propostas pelo governo Fernando Henrique
Cardoso, expressava uma concepção de educação ligada ao modelo econômico em curso,
versão nacional do processo globalizado, que exigia uma nova forma de relação entre Ciência
e Trabalho. As formas de fazer, determinadas a partir de processos técnicos simplificados,
restritos no geral a uma área do conhecimento, transparentes e facilmente identificáveis e
estáveis, são substituídas por ações voltadas a articular saber científico, capacidades cognitivas
superiores, capacidade de intervenção crítica e criativa perante situações não previstas, que
exigem soluções rápidas, originais e teoricamente fundamentadas.
O fato do EM28
passar a ser configurado na LDB (Lei nº 9394/96) como etapa final da
educação básica ocorreu em um momento de profundas alterações de ordem tecnológica e
econômico- financeira. A ideia do EM como parte da educação básica está em consonância
com esse novo contexto educacional, uma vez que a LDB objetivava que esta etapa
consolidasse e aprofundasse os conhecimentos adquiridos na educação fundamental,
desenvolvesse a compreensão e o domínio dos fundamentos científicos e tecnológicos e não
apenas preparasse para o vestibular.
Nessa conjuntura, vale assinalar que o EM brasileiro possuía múltiplas finalidades:
preparar para a cidadania, para o mundo de trabalho e para o ingresso no ensino superior, a
partir de uma formação dita generalista. Isso lhe imprimia uma identidade pouco definida. No
que diz respeito ao EM profissional29
, a LDB permite a formação para o exercício profissional,
atendida a formação geral do educando, sobre o pressuposto de que a educação profissional
por si só é insuficiente, sem uma educação geral.
Dessa maneira, o currículo deveria contemplar os conteúdos definidos por esta etapa de
desenvolvimento de forças produtivas, orientada por metodologia que estimule a iniciativa e a
reflexão, permitindo a formação profissional articulada à formação geral do educando, o que
remonta ao caráter propedêutico já assinalado em leis anteriores. Esta caracterização curricular
do EM estaria, então, circunstanciada a contemplar diferentes finalidades: formar para a
28 A lei, embora bastante flexível, é rígida em três pontos no que se refere ao ensino médio: mínimo de 3 anos,
2.400 horas, 800 horas por ano, 200 dias letivos anuais, constituída por 13 disciplinas. 29
O decreto nº 2.208, de 17/04/97 regulamentou a educação profissional e estipulou a oferta em módulos,
separado do EM regular.
42
cidadania; formar para o mundo do trabalho; formar para continuidade dos estudos
(KUENZER, 2010, 2007).
Para Zibas (2005), a reforma da década de 1990 do EM brasileiro reiterou a retórica do
discurso da progressão tecnológica e produtiva para formar sujeitos polivalentes e capazes de
aprender e de se apropriar de competências gerais, flexíveis e transferíveis. Por conta disso, os
sistemas de ensino deveriam produzir um conjunto de saberes, de conhecimentos, de
metodologias e de avaliações balizadas em princípios que pudessem incitar iniciativa,
responsabilidade, trabalho em equipe, autonomia, por intermédio de uma integração de
disciplinas, contextualização dos conteúdos disciplinares, protagonismo dos sujeitos, avaliação
formativa e de caráter processual.
Uma formação flexível, generalista, única, que, em tese, prepararia todos para o
exercício da cidadania, para a construção de uma ética discursiva, letrada, diversificada,
competente, hábil, voltada a uma gama de funções sociais para encenar competências
profissionais renováveis, movediças, múltiplas, que concatenassem com a construção de
projetos locais e de vida dos sujeitos. Essa foi a aposta da supracitada reforma.
O novo modelo coloca em voga o fazer escolar etiquetado como “tradicional”,
reacendendo a pauta não tão nova entre os defensores da “escola tradicional” e da “escola
nova/ativa/progressiva”. Estas mudanças polêmicas, tensões e dilemas relativos ao EM
brasileiro estão encampados nas escolas brasileiras e obviamente ressonam nos processos de
(re)constituição das disciplinas curriculares encenadas nas escolas médias, em especial, as
públicas, que resistem e sobrevivem, ainda, à necessidade de maiores investimentos, em
melhoria de gestão dos recursos, criação de programas contínuos, efetivos e eficientes para a
formação docente, investimento na infraestrutura dos prédios, que possibilitassem condições
mais decentes e dignas para as comunidades escolares.
Conforme a categorização de Levin e Hopfenberg (1993), esta reforma pode ser
considerada como uma transformação de 2º nível30
, porque faz referência ao tipo de mudança
que propõe modificar a cultura escolar básica, revendo a organização, a responsabilidade, as
expectativas e metas da escola e de todos os agentes envolvidos, o que implicaria a
necessidade de transformação das ações de todos os atores e setores nela intrigados.
Nas primeiras décadas do novo milênio, há um considerável número de publicações de
regulamentações oficiais voltadas ao EM, que indicia algumas mudanças e permanências na
30A transformação do 1º nível é tipo de reforma que busca mudar a escola em eficácia e eficiência; a organização
da escola, os pressupostos básicos, mas a forma essencial como os profissionais e alunos atuam na escola não são
modificadas.
43
cena social, política, histórica econômica do país. No que tange ao EM, podemos elencar
alguns aspectos que julgamos significativos e pertinentes à investigação em questão: (i) apesar
da expansão da matrícula do EM, de 3,7 milhões em 1991 para 9,1 milhões de jovens em 2004,
a universalização desta etapa da escolarização ainda constitui um desafio, que deve ser
contemplado pelas políticas públicas atuais; (ii) a regulamentação de documentos nacionais
norteadores da prática docente e da estruturação didático-curricular, revelando a função do
governo central no sentido de contribuir para a promoção de políticas no âmbito nacional; (iii)
a regulamentação do FUNDEB31
pela Lei n°. 11.494, de 20 de junho de 2007, que consiste em
uma espécie de fundo para financiar a educação básica, obviamente, constitui relevante
incremento para financiamento do EM, embora não seja suficiente para garantir todas as
condições de acesso, permanência e garantia de término de todo o ciclo da educação básica, é
imprescindível para manutenção da educação de base no país ; (iv) a institucionalização do
piso nacional para docentes da educação básica, o que não garantiu que todos os governos
estaduais e municipais cumprissem, de fato, esta determinação; (v) implementação e ampliação
de sistemas avaliativos voltados ao crescimento de padrões ou níveis de desempenho
educacional a serem usados para o estabelecimento de parâmetros de competitividade
internacional, o que denota uma forma do controle estatal para fixar parâmetros, objetivos e
técnicas de medição para avaliar a multifacetada e desigual realidade educacional brasileira
(OLIVEIRA, 2009).
A seguir, o quadro 2 apresenta algumas das principais intervenções oficiais do governo
federal direcionadas ao EM nas últimas décadas.
Quadro 2 - Documentação oficial referente ao Ensino Médio no Brasil de 1995 a 2017
Regulamentações, diretrizes, orientações,
programas do Estado brasileiro voltados ao Ensino Médio
1995 Ampliação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) para o EM;
1996 LDB 9.394/96. Inclusão do EM na Educação Básica (obrigatório: Ensino Fundamental);
1997 Criação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM32
)
Decreto n. 2.208, de 17/04/97 regulamenta a educação profissional;
1998 Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM);
1999 Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM);
2001 Matrizes de referência SAEB/INEP (3º ano do EM);
31 Fundo Nacional para a Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização do Profissional do
Magistério 32
Para maiores informações sobre o ENEM e as influências dos sistemas avaliativos nas práticas de ensino de
escrita na escola pública, ver Vicentini (2014).
44
2002 Orientações Complementares aos PCN (PCN+);
2003 Criação do Programa Nacional do Livro Didático de Ensino Médio (PNLEM): Portaria Ministerial n.º
2.922, de 17 de outubro de 2003;
2004 Decreto 5.154/2004. Ensino Médio Integrado: formação nos eixos da Ciência, Cultura e Trabalho;
2006 Orientações Curriculares para Ensino Médio (OCEM);
2009 EC 59/2009 incorpora na Constituição Federal a obrigatoriedade escolar dos 4 (quatro) aos 17 anos,
indicando o ano de 2016 para que se efetive.
Criação do Programa Ensino Médio Inovador (PROEMI) e do novo ENEM;
2010 Resolução CNE/CEB 04/2010 Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica, 14 anos
após ter sido sancionada a LDB, a educação básica deve ser compreendida como “um conjunto
orgânico, sequencial e articulado” (Brasil, Parecer CNE/CEB 07/2010 e Resolução CNE/CEB 04/2010);
2011 Novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (parecer CNE/CEB n. 5/2011);
2013 Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio;
2014 PNE (2014-2024): Meta 3: Universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a
17 anos e elevar até 2024, a taxa líquida de matrículas no Ensino Médio para 85%;
2016 Programa de Fomento à Implementação de Escolas em Tempo Integral, portaria n. 1.145/2016;
2017 Lei 13.415/2017 incorporada à Lei 9394/ 1996;
2018 BNCC do Ensino Médio.
Fonte: Elaboração a partir de levantamento documental e bibliográfico.
Deste conjunto de documentos, destacaremos duas regulamentações para apreciação
mais acurada, tendo em vista a relevância dos mesmos para a orientação do trabalho de ensino
de Língua Portuguesa: os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
(BRASIL,1999) e as Orientações Nacionais para Ensino Médio (OCEM, 2006), uma vez que
são os documentos curriculares em voga no momento da geração de dados para esta tese. Nos
anos de 1997 e 1998, a Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação e do
Desporto do Governo Federal publicou o documento intitulado Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) para orientar o trabalho do professor de várias disciplinas escolares e os
níveis de progressão curricular.
Para Rojo (2000), esta intervenção governamental é representativa em termos de
política educacional e linguística, pois significa um avanço em prol da formação letrada, crítica
e consciente da sociedade brasileira. No sentido de buscar garantir um currículo mínimo e
necessário para contemplar esta demanda historicamente constituída e negligenciada pelo
poder público, a autora sinaliza a necessidade de um investimento vigoroso em termos de
reflexão sobre os processos de transposição didática e acerca da apropriação do desenho
curricular que, por sua vez, estão articuladas a três eixos basilares: “a construção de currículos
plurais e adequados a realidades locais”, “a elaboração de materiais didáticos que viabilizem a
implementação destes currículos”, “a formação inicial e continuada de professores e
educadores” (ROJO, 2000, p. 28). Gomes-Santos (2007) propõe, ainda, a “realização do
45
currículo em sala de aula”, isto é, os processos de didatização dos objetos de ensino
(re)constituídos por intermédio do trabalho docente.
Em 1999, houve a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio (PCNEM). O documento apresenta quatro grandes blocos intitulados: Parte I. Bases
legais; Parte II. Linguagens, Códigos e suas tecnologias; Parte III. Ciências da natureza,
matemática e suas tecnologias; Parte IV. Ciências Humanas e suas Tecnologias. Os PCNEM
explicitam três conjuntos de competências: comunicar e representar, investigar e compreender,
assim como contextualizar social ou historicamente os conhecimentos. Na seção
conhecimentos de Língua Portuguesa, encontramos a discussão da problemática da divisão
curricular do ensino de língua materna em gramática, estudos literários e redação, reproduzida
pelos livros didáticos e vestibulares.
O texto apresenta uma crítica a esse ensino tripartido e propõe o ensino integrado e
interdisciplinar dos saberes33
. A orientação teórico-metodológica proposta para o ensino é uma
perspectiva essencialmente dialógica, que concebe a linguagem como espaço de manifestações
de caráter social, político, ideológico e histórico. O texto oficial aponta para a necessidade de
conhecimento das práticas socioculturais dos grupos sociais formadores da realidade nacional,
tidas como “patrimônio”, as quais precisam ser analisadas e reconhecidas como material
simbólico representativo da diversidade social e histórica.
Apesar da importância do documento para o cenário educacional nacional, a reflexão
sobre os objetivos, conteúdos e da didática necessários ao ensino de Língua Portuguesa, tendo
em vista o multifacetado e desigual universo escolar do EM brasileiro, ainda, não foi
contemplada no documento supracitado, que não apresenta uma reflexão de natureza teórica,
conceitual, metodológica mais acurada e consistente. Saliente-se que boa parte da discussão
acumulada na área de Linguística Aplicada acerca do ensino-aprendizagem de Língua
Portuguesa foi ignorada pelos elaboradores da política pública.
Diante da necessidade de orientação do trabalho docente no âmbito do ensino
secundário, no ano de 2006, as Orientações Nacionais para Ensino Médio (OCEM) tentam
contribuir para que o Ensino Médio “garanta ao estudante a preparação básica para o
prosseguimento dos estudos, para a inserção no mundo do trabalho e para o exercício cotidiano
da cidadania, em sintonia com as necessidades político-sociais de seu tempo.” (OCEM, 2006,
p. 18).
33 Cabe lembrar que o documento não estipula carga horária para a realização desse trabalho, deixando essa
tarefa a cargo da escola e de sua intenção de formação.
46
No que se refere ao ensino de Português, é delegado o papel de desenvolver,
complexificar e aprimorar a prática da leitura, da escrita, de reflexão sistemática sobre a
língua(gem) neste nível de ensino. O documento é orientado por uma concepção de linguagem
como processo interativo, dialógico, construída no seio de práticas sociais, situadas em sua
amplitude histórica, política, ideológica, que se constituem nas mais diferentes esferas de uso e
de circulação das línguas(gens). Assim, as OCEMs consideram que o Português no EM deve
possibilitar uma formação geral, humanista, agentiva, crítica, a fim de incitar à prática
reflexiva do simbólico inscrito nas várias realidades em que estão inseridos os estudantes.
A regulamentação é norteada pelo paradigma das competências, a partir das quais
dispõe sobre a eleição de textos, de agrupamentos de textos, de gêneros discursivos oriundos
da multiplicidade de usos e de formas. Quanto à organização do trabalho de ensino, pode-se
observar a proposição de serem organizados em sequência didática, que pudessem contemplar
diferentes temáticas, mídias e suportes de circulação, domínios ou esferas; tipos ou sequências
textuais; gêneros discursivos; práticas de linguagem.
O documento assevera a necessidade de abordar as múltiplas linguagens e os gêneros
discursivos, a fim de propiciar um trabalho docente que possa conceber as diferentes
dimensões do complexo processo de produção de sentidos/ de efeitos de sentidos, vinculando
assim o interesse disciplinar de acessar aos letramentos múltiplos. Nessa direção, a perspectiva
de letramento considerada abarca os diversos e multifacetados sistemas semióticos em
circulação, diferentes graus, níveis, tipos de habilidades e de competências necessários para
interagir, bem como as mais diferentes refrações ideológicas implicadas e constitutivas destas
semioses (OCEM, 2006).
Apesar dos avanços no âmbito das intervenções oficiais sobre o ensino de língua
portuguesa, a realidade das práticas de ensino no EM, ainda, apresenta configurações
didáticas travestidas dos resquícios oriundos de filiações historicamente constituídas no
percurso disciplinar e escolar em que a disciplina foi gestada. Mendonça e Bunzen (2006) e
Machado (2017) assinalam tal característica nos seguintes termos: (i) fragmentação da
disciplina Português; (ii) tradição da formação para o conteúdo; (iii) persistência de métodos
transmissivos; (iv) predomínio de ensino de gramática, sendo o texto, muitas vezes, pretexto
para ensino de conteúdos gramaticais; (v) permanência de uma concepção de linguagem
(instrumental) subjacente a materiais didáticos e demais dispositivos didáticos; (vi) concepção
de aprendizagem passiva; (vii) ensino de dissertações escolares e de “modelos”; (viii) ensino
de literatura com ênfase para historiografia; (ix) ensino de leitura para fins de didatizar as
leituras “recomendadas” ou “obrigatórias” exigidas por vestibulares de grandes universidades;
47
(x) avaliação mais focada na capacidade de reter informações em detrimento de processos
avaliativos mais voltados ao diagnóstico/check-up de habilidades e de competências, dentre
outros.
Por outro lado, é possível perceber indícios de práticas de letramento escolar que evocam
reconfigurações de uma disciplina em processo de (re)constituição, de (re)arranjos, de
(re)modelagens, indicativo de um hibridismo disciplinar, curricular e epistemológico.
Elencamos da seguinte maneira tais indícios de (re)configuração: (i) maior tempo pedagógico
destinado para leitura de textos, seguida de produção de textos e de análise linguística; (ii)
variedade de textos e gêneros discursivos: possível entrada do texto como unidade de
trabalho; (iii) implementação de ensino de gênero via sequência didática; (iv) entrada das
literaturas africana e indígena ( Lei 10.639/03) e de textos oriundos de letramentos
vernaculares e de resistência; (v) tentativa de implementação de projetos didáticos como
organizador do trabalho pedagógico; (vi) entrada de uma concepção de linguagem para além
da representação e da instrumental: linguagem como interação, diálogo, ação sobre si e sobre
os outros tecida por fios ideológicos constituídos e que ainda estão por si constituir; (vii)
entrada dos recursos, das mídias e das tecnologias para a construção de processos interativos
que tenham fins didáticos (MENDONÇA; BUNZEN, 2006; MACHADO, 2017); (viii)
coexistência de práticas de ensino híbridas, mestiças, pois “a mescla de perspectivas vai ser o
mais comum nas salas de aula durante um bom tempo: uma progressão que ora segue critérios
estruturais, tradicionais, ora segue critérios discursivos” (MENDONÇA, 2006, p. 218) quanto
à seleção dos conhecimentos linguísticos tomados como objetos de ensino.
Em relação a este último aspecto, Lopes (2005) observa que as disciplinas escolares
podem ser consideradas como uma “tecnologia de organização curricular”, construída a partir
de discursos híbridos, recontextualizados, ressignificados, o que implica um processo de
fragmentação e de descontinuidades identitárias. Nesse sentido, o processo de constituição de
uma dada disciplina é interpelado ora pelo conjunto de saberes acadêmicos,
institucionalizados, estáveis, das regulamentações oficiais norteadoras; ora pelo conjunto de
saberes oriundos de outros campos, de experiências pessoais e profissionais dos docentes, da
sua trajetória de militância, de leituras, das experiências, das demandas e dos saberes
locais/vernaculares que povoam o percurso dos diversos contextos de encenação do trabalho
docente.
Para Rosa e Ramos (2015), este trânsito disciplinar que coaduna e, ao mesmo tempo,
rompe com os documentos oficiais, com a língua dita legítima, com os saberes hegemônicos,
é o que constitui o que as autoras intitulam “currículo diáspora”, ensaiado pelos docentes que
48
se “arriscam” a realizar experiências (in, inter, trans)disciplinares no seio do mundo usineiro.
Cabe mencionar que Hall (2003) discorre sobre o termo “diáspora”, originário do grego, que
denota a dispersão de grupos populacionais ao redor do globo em razão de fenômenos
naturais, sociais ou políticos.
Segundo o autor, o termo ressignificado reporta ao hibridismo no caso dos híbridos
caribenhos que passam por um processo ‘transcultural’ e de ‘crioulização’, a uma formação
sincrética, em que os elementos formam desigualdades com diferentes inscrições nas relações
de poder, em que a luta cultural está em relação de dependência e de subordinação às histórias
imperiais. Os sujeitos antes isolados agora se cruzam. As sociedades são compostas não de
um, mas de muitos povos, culturas e narrativas. Logo, suas origens e matrizes não são únicas,
mas diversas e devem constituir os modos de letrar na escola e demais agências de
letramentos em que estes sujeitos circulam, integram e interagem.
Por conta disso, a necessidade de hibridização de um currículo, um currículo “diaspórico”,
capaz de contemplar as várias narrativas constitutivas deste híbrido, contraditório, violento e
complexo processo de construção do que somos. Nessa direção, reside nossa tentativa de
investigar como uma professora de um subúrbio da Amazônia paraense constrói uma prática
de ensino de Língua Portuguesa, a fim de contemplar diversas demandas institucionais para a
implementação do ensino de leitura e de escrita na educação secundária e, ao mesmo tempo,
contemplar a discussão de questões relacionadas à história, à cultura, às identidades dos
sujeitos neste contexto marcado por um sério processo de vulnerabilidade social.
2.4 CENÁRIOS DO ENSINO MÉDIO NO PAÍS E A REFORMA DE 2017
Pesquisadores que se dedicam a pesquisar EM no Brasil (CURY, 1998, 2008;
KRAWCZYK, 2009, 2014; KUENZER, 2011) elencam três questões centrais sobre os
desafios relacionados à universalização deste nível de ensino: (i) o acesso e a permanência da
juventude nas instituições escolares; (ii) a questionada qualidade do ensino ora veiculado; (iii)
a indefinição de identidade e de objetivos bem delineados para a educação média. Acrescido a
estes fatores, os autores mencionam a falta de estrutura dos prédios, a remuneração precária
dos profissionais, as propostas curriculares divorciadas da realidade, as péssimas condições de
trabalho e a necessidade de investimentos sérios nos processos de formação inicial e
continuada de docentes.
Volpi, Ribeiro e Silva (2014) coordenaram uma pesquisa sobre a exclusão de jovens de
15 a 17 anos do EM, a partir dos depoimentos de 250 adolescentes gerados em 25 grupos
focais e 51 entrevistas em seis cidades brasileiras. A investigação realizada no Brasil é parte de
49
uma pesquisa efetivada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em 24
países. Alguns dos resultados elencados sobre os entraves enfrentados por estes sujeitos no EM
são: (i) necessidade de trabalhar precocemente; (ii) gravidez na adolescência; (iii) violência
familiar e no entorno da instituição escolar; (iv) violência simbólica e física existente no dia a
dia da escola; (v) reprovação de um ano letivo; (vi) jovens em situação de conflito com a lei e
que cumprem medida socioeducativa; (vii) cansaço; (viii) enfado em relação ao discurso
professoral e à prática docente tradicional; (ix) conteúdos desinteressantes, excessivos e
distantes da realidade discente; (x) ausência de diálogo entre docentes e discentes e demais
profissionais que atuam no cotidiano escolar, dentre eles, a gestão das unidades; (xi) as
péssimas condições de trabalho nas escolas, em especial, a caótica infraestrutura dos prédios;
(xii) desinteresse e desmotivação dos professores para a realização de atividades escolares;
(xiii) necessidade de reconhecimento e de valorização dos contextos em que as escolas estão
situadas; (xiv) recursos insuficientes em educação para a melhoria do fluxo escolar, de
mudanças na organização escolar e de alterações curriculares/disciplinares.
Diante desta situação do EM no país e de todas as necessidades de investimento para
possibilitar o direito de acesso à educação básica, Ferreti e Silva (2017) atentam que, no dia
22 de setembro de 2016, decorridos 22 dias da posse de Michel Temer, em virtude do
impeachment de Dilma Rousseff, que aconteceu de modo conturbado e permeado de
incertezas, sejam elas no âmbito legal, sejam no âmbito político, jurídico, o que o conforma
como golpe de estado para muitos especialistas34
, foi lançada a Medida Provisória (MP) nº
746 / 2016 com vistas a encenar mais um processo de reconfiguração e de reestruturação do
EM no país.
Imediatamente, dois retrocessos inscritos na proposta de medida repercutiram: o fim
da obrigatoriedade de quatro disciplinas - Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física- e a
permissão para que indivíduos com “notório saber” possam exercer o magistério no campo
técnico-profissional. Isto deu visibilidade à discussão da iminente reforma, mas também
obliterou outras questões mais relevantes como a alteração da estrutura curricular e do
34 Nove especialistas em direitos humanos formaram o júri do Tribunal Internacional Sobre a Democracia no
Brasil, que ocorreu no Rio de Janeiro, nos dias 19 e 20 de julho de 2016. O resultado considerou que houve
violação à democracia e à constituição. Os jurados foram o bispo mexicano Raul Veras, ativista de Direitos
Humanos, candidato ao Prêmio Nobel da Paz em 2010. O advogado e político mexicano Jaime Cárdenas; o
jurista italiano Giovanni Tognoni; a senadora francesa Laurence Cohen; a filósofa espanhola Maria José Dulce; a
advogada norte-americana Azadeh Shahshahani; o jurista e acadêmico costa-riquenho Walter Montealegre; o
professor de Direito Carlos Augusto Argoti, da Universidade de Rosário; e o argentino Alberto Felipe, professor
da Universidade Nacional de Lanús. Outros especialistas e instituições jurídicas brasileiras se pronunciaram na
mesma direção.
50
financiamento de estabelecimentos não públicos, com verbas públicas, permitindo, do ponto
de vista da política pública, o processo de privatização da educação secundária no país.
Este debate trouxe à tona o histórico contexto de tensões, de disputas, de hegemonia
político-ideológica referente aos sentidos, aos fins e aos formatos da educação secundária,
reiterando a insistente articulação entre educação e economia capitalista e a demasiada
natureza instrumental deste nível de ensino que, historicamente, é destituído do investimento
econômico e do interesse político necessários para propor, de fato, um processo de
universalização desta etapa final da escolarização básica.
Nesse cenário de caos político, crise econômica, democracia fragilizada, escândalos de
corrupção, em 16 de fevereiro de 2017, foi promulgada a Lei nº 13.415, que instituiu
consideráveis alterações à Lei nº 9394/1996 em relação à configuração regulamentar do EM.
Elencamos alguns dos aspectos centrais desta “nova” intervenção oficial:
(i) a carga horária mínima anual de oitocentas horas do EM, distribuídas por
duzentos dias letivos deverá ser ampliada para mil e quatrocentas;
(ii) uma Base Nacional Comum Curricular (doravante BNCC), relativa à parte
comum do currículo- 60% da CH-, norteadora de quatro áreas do
conhecimento: Linguagens e suas tecnologias, Matemática e suas tecnologias,
Ciências da natureza e suas tecnologias, Ciências humanas e suas tecnologias,
pressupondo-se a implementação da parte diversificada do currículo (40% da
CH), sob responsabilidade de cada sistema de ensino;
(iii) a carga horária da BNCC a ser cumprida ao longo de todo o curso médio não
será superior a mil e oitocentas horas; somente Língua Portuguesa e
Matemática são disciplinas obrigatórias durante os três anos do curso
secundário;
(iv) o currículo do EM será formado pela BNCC e por cinco itinerários formativos
que englobam as quatro áreas supracitadas e um quinto intitulado “formação
técnica e profissional”, em tese, os discentes poderão fazer mais de um
itinerário formativo; este último poderá ser feito na própria instituição ou em
regime de parcerias e “vivências práticas de trabalho no setor produtivo ou em
ambientes de simulação” (art. 6, I), inclusive instituições de educação à
distância;
(v) a possibilidade de permissão de certificação intermediária dos cursos
estruturados em etapas terminais, tudo isto realizado conforme as condições
dos diferentes e desiguais sistemas de ensino das unidades federativas do país;
(vi) em relação à carga horária, a BNCC contempla no máximo 1800 horas,
substituindo a carga horária que era correspondente a 2400 horas.
(vii) em relação à formação profissional mínima para exercer o magistério na
educação média, a legislação institui que "profissionais com notório saber
reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar conteúdos de
áreas afins à sua formação ou experiência profissional” (Art. 61, IV).
Consoante Pereira (2018), a flexibilização da legislação está diretamente relacionada
ao fato dos sistemas de ensino apresentarem realidades bem peculiares. A implementação de
51
um currículo dito flexível e interligado às aspirações da juventude demanda uma verdadeira
tarefa de Hércules às redes estaduais e aos agentes construtores destes cenários de ensino.
Tendo em vista esta situação, o autor destaca alguns destes desafios, a saber: (i) designação de
itinerários formativos interligados aos interesses estudantis e às demandas locais; (ii) ajuste da
carga horária e investimento da formação docente em virtude da efetivação dos itinerários de
formação; (iii) articulação de parcerias para a oferta da formação técnica e de outros
itinerários de modo a garantir a equidade, a qualidade e a mobilidade tanto em municípios que
possuem muitas escolas, quanto nos locais que têm poucas instituições de Ensino Médio, pois
49% dos municípios possuem apenas uma escola de educação média35
(INEP, 2017); (iv)
garantia de recursos para orçar a infraestrutura necessária para a implementação da escola de
tempo integral e dos itinerários específicos, por exemplo, laboratórios específicos para
determinados itinerários.
Para Motta e Frigotto (2017, p. 367), esta (de)reforma, “protagonizada pelos arautos
do Golpe de Estado consumado no dia 31 de agosto de 2016”, constitui uma verdadeira
interdição ao futuro das gerações atuais e futuras por representar um tríplice retrocesso:
retroage à Reforma Capanema no contexto da ditadura Vargas, onde o ensino
secundário industrial, comercial e agrícola não tinha equivalência para o ingresso no
Ensino Superior. A superação definitiva deu-se mediante a Lei nº 4.024/1961, que
instaurou a equivalência dos diferentes ramos do então ensino industrial, agrícola e
comercial. Agora com o engodo de que o aluno tem alternativas de escolha, a lei cria
cinco itinerários estanques que supostamente seriam oferecidos pelas escolas.
Amplia-se, agora, o leque da não equivalência;
retroage à Lei nº 5.692/1971, reforma da educação dos tempos da ditadura
empresarial militar com uma profissionalização precária frente às realidades dos
estados. Não será questão de “livre escolha”, como propalam os reformadores, mas
compulsória, pois será o caminho de cumprir com a carga horária obrigatória e,
quando houver, a ampliação do que denomina de escola de tempo integral em
condições infraestruturais precarizadas. Nessas condições dadas, cada escola vai
ofertar a educação profissional que couber em seu orçamento;
retoma, em um outro contexto e dentro de um estado de exceção, o ideário da
política de Paulo Renato de Souza. Agora sequer precisam postergar as medidas,
como ocorreu com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº
9.394/1996. Retoma, de forma pior, o Decreto nº 2.208/1996, que já aprofundava a
dualidade estrutural entre educação profissional e educação básica. O anúncio do
MedioTec pelo MEC indica, de forma clara, a incorporação do Pronatec no Ensino
Médio regular. Uma comprovação inequívoca de que se trata de uma contrarreforma
destinada aos filhos da classe trabalhadora. Também uma confissão explícita de que
o MEC assume, de fato, uma divisão classista da educação. (MOTTA; FRIGOTTO,
2017, p. 367-368).
35 Levando em consideração a dimensão territorial do país, Alencar e Mendes (2018) chamam a atenção para o
fato de que mesmo os locais onde há mais de uma instituição que oferece o EM, muitas vezes, elas estão situadas
em pontos bem distantes, inclusive, algumas estão localizadas na área urbana e outras na área rural. No caso da
região amazônica, é possível encontrar determinadas situações em que uma localidade rural do mesmo município
só pode ser acessada via transporte fluvial e o tempo de demora de uma viagem pode levar mais de 10 horas
entre o município sede e um dado distrito.
52
Para os referidos autores, a reforma do Ensino Médio pode ser assim configurada: (i)
diretamente concatenada a PEC nº 55, que regulamenta o congelamento do financiamento
público para a Educação, Saúde, Cultura, etc., e subtrai direitos universais da classe
trabalhadora; (ii) tradutória do ideário liberal-conservador alinhado aos ideais do autoritário e
vexatório movimento do Escola Sem Partido; (iii) rígida em relação à realização de tradição
disciplinar sugerida pelos organismos internacionais, fomentada por intelectuais orgânicos do
capital e favoráveis ao comando de uma hegemonia/elite vigente, interessada em uma
distribuição seletiva, desigual e segregadora do conhecimento básico necessário à construção
de uma postura letrada diante da realidade circundante, que anuncia conceder à juventude a
“escolha” dentre o que, supostamente, será proporcionado; (iv) representativa da diluição do
EM como etapa final da Educação Básica, posto que constitui uma afronta aos princípios
constitucionais, à LDB e ao Plano Nacional de Educação (PNE); (v) permissividade de
supostos profissionais para atuarem como docentes, configurando assim o fim dos concursos
públicos, a intensificação da proletarização / precarização do trabalho docente; (vi) a
comercialização de cursos por estabelecimentos privados ou organizações sociais que se
dizem neutros (MOTTA; FRIGOTTO, 2017).
De acordo com Motta e Frigotto (2017, p. 369), a reforma configura, pois, como:
“uma contrarreforma que [...] consolida o projeto da classe dominante [...] em sua marca
antinacional, antipovo, antieducação pública, em suas bases político-econômicas de
capitalismo dependente, desenvolvimento desigual e combinado, [...] nega os fundamentos
das ciências aos jovens”. A herança elitista da educação colonial, império e períodos
subsequentes presente e persistente na história brasileira é agora atualizada e juridicamente
fundamentada sob o pretexto da oportunidade de escolha de modernização curricular,
operando uma flexibilidade vexatória, porque excludente e utópica tendo em vista o cenário
da educação média de Norte a Sul do país.
Tendo em vista este panorama de disputas sociais e de poder encarnadas nas políticas
de oferta, de acesso, de permanência da educação secundária brasileira, historicamente,
voltado aos interesses sociais, políticos e ideológicos das instâncias de domínio do poder,
profundamente, circunstanciado por processos de exclusão e de distribuição seletiva e
desigual, ainda, carente de mais investigações que possam evidenciar os processos de
(re)construção da sua efetiva implementação, fizemos a opção de situar nossa pesquisa de
campo neste nível de ensino, especificamente, no processo de ensino de leitura e de produção
textual no norte do país, não só pelas disparidades regionais dos indicadores (BRASIL, 2014),
53
mas também pela necessidade de investigar as diferentes formas de (re)invenção e de
resistência do trabalho docente, levando em consideração o multifacetado cenário social,
cultural, territorial, econômico que estão em processo de disputas, de tensão e de construção
do Letramento escolar no Ensino Médio amazônico, urbano e periférico.
Para finalizar, apresentamos um quadro sinóptico de todas das intervenções do estado
no ensino secundário no último século e tendo em vista o objetivo introdutório deste texto,
apresentamos a seguir o quadro síntese desta incursão histórica com as informações que
julgamos mais pertinentes ao nosso propósito. Ele serve para situar nossa compreensão acerca
das tensões, dos dilemas e das disputas de poder que norteiam e cambiam as sete principais
regulamentações oficiais do nível de ensino em que geramos os dados da nossa investigação.
54
Quadro 3 - Regulamentação oficial para estruturação do ensino secundário no Brasil
Mudanças
Legais
Reforma Francisco
Campos (1931)
Reforma Gustavo
Capanema (1942) Primeira LDB (1961) Segunda LDB (1971) Alteração de (1982) Segunda LDB (1996)
Reforma (2016)
Lei 13.415/2017 incorporada a
Lei 9394/ 1996
Traços Unidade do Ensino
Propedêutico
Organicidade e
Dualismo, ênfase na
cultura Humanística
Equivalência de todos os
Ramos, Dualismo,
Centralização Reduzida
ou Mitigada
Aumento da Educação
Compulsória, Terminalidade
Geral,
Maior Flexibilidade
Curricular
Retorno ao Dualismo
Conceito de Educação
Básica, Universalização
do EM, Separação do EM
e Educação Profissional
(EP)
Dualismo
União EM e EP
“Flexibilidade” curricular
Estratificação do saber e da
sociedade
Designação e
Tempo de
duração do curso
Ensino secundário:
fundamental (5 anos)
Complementar (2
anos)
Sete anos
Ensino secundário:
ginasial (4)
clássico (3)
ou
científico (7)
Ensino médio:
Ginasial (4)
Colegial (3)
Sete anos
Segundo grau
Três ou quatro anos
Segundo grau
Três ou quatro anos
Ensino Médio:
Três anos
Ensino Médio:
Três anos
Requisito para
ingresso Exame de admissão Exame de admissão Exame de admissão
Conclusão do ensino de
primeiro grau
Conclusão do ensino de
primeiro grau Conclusão do EF Conclusão do EF
Finalidade do
ensino
“Acentuar a elevar, na
formação espiritual dos
adolecentes, a
consciência patriótica
e a consciência
humanística” art.1§2
“A educação de grau
médio, em
prosseguimento à
ministrada na escola
primária, destina-se à
formação do
adolescente”
Art. 33.
“tem por objetivo geral
proporcionar ao educando a
formação necessária ao
desenvolvimento de suas
potencialidades como
elemento de auto-realização,
qualificação para o trabalho
e preparo para o exercício
consciente da cidadania.
“aprimoramento do
educando como pessoa
humana, incluindo a
formação ética e o
desenvolvimento da
autonomia intelectual e
do pensamento crítico”
Art. 35 §3
“Os currículos do Ensino Médio
deverão considerar a formação
integral do aluno, de maneira a
adotar um trabalho voltado para a
construção de seu projeto de vida
e para sua formação nos aspectos
físicos, cognitivos e
socioemocionais.” Art. 35§ 7º
Contexto
Histórico
Grande Depressão de
1929, Revolução de
30, Industrialização
substitutiva de
Importações,
Urbanização
Segunda Guerra
Mundial, Estado Novo,
Industrialização
substitutiva de
importações,
Urbanização
Impasses do nacional
desenvolvimentismo,
Industrialização
substitutiva de
importações,
urbanização
“Milagre brasileiro”
Vigência do ato Institucional
n° 5
Abertura política, Crise
da dívida externa,
“Década perdida”
Relativa estabilidade
monetária, Déficit em
transações correntes
Globalização, Exigências
de competividade
internacional
Crise política e econômica
Golpe de Estado: Impeachment
Neoliberalismo regressivo: suposta
adequação ao mercado/atendimento
às prescrições de organismos
internacionais
Tensão sociedade política/sociedade
civil disputa por hegemonia
Globalização/ Internacionalização
Matricula (nºs
absoluto) 1935=155.770 1940=260.202 1960=1.177,427
1970=4.086.072
1971=1.119,421 1980=2.819,182
1991=3.770,230
2004=9.169.357
2011=8.400.689
Fonte: Elaboração própria com base em Gomes (2000, p. 22), Silva (2015), Ferreti e Silva (2017) e textos oficiais36
.
36 Reforma Francisco Campos (decreto nº 19.890 - de 18 de abril de 1931); Reforma Gustavo Capanema (decreto-lei nº 4.244, de 9 de abril de 1942); LDB lei nº. 4024, de 20
de dezembro de 1961; LDB lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971; lei nº 7.044, de 18 de outubro de 1982; LDB lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei nº 13.415, de 16
de fevereiro de 2017.
55
3 LETRAMENTOS: PERSPECTIVAS TEÓRICAS DO CAMPO APLICADO
Neste capítulo, abordaremos a discussão teórica a respeito do conceito de Letramento,
relacionando com discussões sobre Língua, Educação, Letramento Crítico e Trabalho Docente.
Para tanto, apresentamos um breve percurso de constituição dos estudos do letramento, a
inscrição da dimensão conceitual sócio-histórica, a relevância da contribuição dos pensadores
do letramento crítico e suas perspectivas para cogitarmos acerca das práticas escolares,
voltadas a uma tentativa de construir uma formação no EM que contemple a natureza híbrida,
heterogênea, sincrética, múltipla da construção do letramento escolar.
3.1 LETRAMENTO: O PERCURSO DE UM CONCEITO
Há séculos a escrita e a leitura são objetos de estudo de pesquisadores de diferentes
áreas do conhecimento. Alguns linguistas e filólogos caracterizam a linguagem falada em
oposição à linguagem escrita. Os psicólogos têm abordado a aquisição das habilidades de
leitura e de escrita, dando ênfase ao aspecto cognitivo deste processo. Uma vertente da
Antropologia empreendeu pesquisas em sociedades que desconheciam um sistema de escrita e
postularam os efeitos ou impactos desta ausência nestas populações. Nesse sentido, as
investigações da área vêm abordando temas relativos às relações entre escrita e oralidade;
aquisição da escrita e seus possíveis efeitos cognitivos; apropriação da escrita e mobilidade
social; os impactos das relações de poder inscritas no plano linguístico-discursivo, construídas
em diferentes contextos socioculturais e sociointeracionais (ZAVALA; NIÑO-MURCIA;
AMES, 2004).
No início dos anos 1960, surgiram empreendimentos investigativos em diferentes
campos disciplinares que procuraram pesquisar as culturas orais e escritas, a saber:
“Pensamento Selvagem”, de Levi Strauss (1962), na França; “A galáxia de Gutemberg”, de
Mc Luhan (1962), no Canadá; “As consequências do letramento”, de autoria de Goody e Watt
(1963), na Inglaterra; Prefácio a Platão, de Eric Havelock (1963), nos Estados Unidos, que
são consideradas publicações importantes para a construção do campo de pesquisa sobre
escrita, oralidade e história das sociedades. Estas obras serviram de base para a construção
dos estudos de Jack Goody e de Walter Ong, que vieram a consolidar a corrente de
pensamento intitulada Teoria da Grande Divisa. Os defensores desta vertente, de perspectiva
evolucionista, consideravam oralidade e escrita como sistemas distintos, do ponto de vista
formal e funcional, vinculados aos diferentes modos de pensamento. Mais que isso,
56
consideravam que o uso de sistemas de escrita influenciaria as estruturas cognitivas e, em
função disso, os processos lógico-formais, de memorização, de abstração, de categorização,
autoanálise estariam diretamente vinculados aos processos de aquisição e uso da escrita
(ZAVALA; NIÑO-MURCIA; AMES, 2004; GALVÃO; BATISTA, 2006).
Na década de 1980, várias pesquisas etnográficas foram realizadas em diferentes
contextos internacionais, demonstrando especificidades e as interligações dos letramentos
escolares e não escolares, a saber: a pesquisa de Scribner e Cole (1981), na Libéria; a
investigação de Street (1984), no Irã; os trabalhos de Heath (1982, 1983), nos Estados Unidos.
Estas investigações, vinculadas a vertente teórica intitulada Novos Estudos de Letramento,
evidenciavam que as práticas letradas estão relacionadas aos usos discursivos e concepções de
grupos sociais e culturais específicos. Nessa direção, o processo de aquisição da escrita estaria
diretamente relacionado à história sociocultural dos indivíduos, não podendo ser reduzido,
portanto, a uma aquisição de técnicas, habilidades linguísticas e sociopragmáticas.
Um estudo recorrentemente citado é a pesquisa etnográfica realizada por Heath (1982,
1983) em comunidades do Sul dos Estados Unidos sobre diferentes trajetórias de leitura e sua
correlação com o letramento escolar. A autora utilizou como foco de análise de seu estudo o
evento de letramento “qualquer ocasião em que uma peça escrita integra a natureza das
interações dos participantes e seus processos interpretativos” 37
(HEATH, 1982, p. 93).
A pesquisadora analisou as práticas letradas de famílias de três comunidades do sul
dos Estados Unidos (Maintown, Roadville e Trackton), em ambientes escolares e não
escolares, durante oito anos, e ratificou que as orientações de letramento mudam de
comunidade para comunidade. Estas distintas trajetórias de letramento implicam diferenças no
rendimento escolar das crianças. Isto porque, a escola impõe um modelo de letramento,
elegendo apenas algumas das diversas práticas de letramento existentes nas sociedades.
Estaríamos diante de um modelo de letramento autônomo, no sentido de existir de
modo independente, que autonomiza as práticas letradas dos usos sociais mais amplos,
criando assim eventos e práticas particulares, peculiares, específicos e institucionalizados.
Este letramento - escolarizado, pedagogizado- termina por estabelecer elos com outras
instituições, que, por sua vez, influenciam e também são influenciadas pelos saberes e
comportamentos do seio escolar letrado. Teríamos, então, letramentos sociais – escolares e
não escolares – situados, ancorados em tempos e lugares determinados que, de certo modo, os
37 Definição inspirada no conceito de Evento de fala, oriundo do campo da Etnografia da Comunicação, cunhado
por Dell Hymes, para quem, consiste em “atividades ou aspectos de atividades que são diretamente governados
por regras ou normas para uso da fala” (HYMES, 1972, p. 56).
57
especificam, mas, ao mesmo tempo, constituem os contextos e processos sociais mais amplos
que dão origem às práticas de letramento. Por conta disso, as práticas escolares de leitura e de
escrita podem propiciar o desenvolvimento de competências letradas necessárias para a
atuação em agências não escolares e o contrário também pode ser verdadeiro. Caso a escola
mobilize os saberes para além daqueles prescritos pelos currículos, de modo que os
aprendizes possam se apropriar de ressignificar os usos sociais da escrita e da leitura em
contextos não escolares (SOARES, 2004b; STREET, 2010b; CARRAHER et al., 1995).
No Brasil, o termo letramento foi usado inicialmente na obra de Mary Kato, “No
mundo da escrita: uma perspectiva sociolinguística”, em 1986. Para a autora, o conceito veio
abarcar a dimensão sócio-histórica e cultural da escrita, evidenciando suas concepções e
representações. No contexto nacional, este campo de pesquisa ganha força a partir das
décadas de 1980, 1990 e 2000. São ilustrativos desta linha de investigação a pesquisa de
Tfouni (2005[1986]), desenvolvida com adultos não alfabetizados em ambientes escolares e
não escolares, levando em consideração as competências discursivas e cognitivas destes
sujeitos nestas duas instâncias.
As coletâneas organizadas por Kleiman (1995) e Kleiman e Signorini (2000)
apresentam diversos trabalhos de pesquisa, evidenciando as articulações e implicações das
práticas letradas em diferentes ambientes institucionais, o que reafirma a tese de que as
práticas de uso da escrita estão articuladas aos diferentes contextos, usos e trajetórias dos
sujeitos nelas inseridos. Marinho e Carvalho (2010) apresentam textos de especialistas na
área, em especial, aqueles desenvolvidos no Brasil e na América Latina, problematizando a
complexidade dos conceitos de Alfabetização, Letramento, Cultura Escrita e suas possíveis
contribuições no âmbito escolar e acadêmico.
Campos (2003) investiga as práticas de letramento escolar no meio rural brasileiro,
enfocando o ensino de língua portuguesa para jovens e adultos ministrado por docentes
engajados ou não em movimentos sociais de luta pela terra no sudeste do Estado do Pará. Sito
(2010) pesquisa as práticas letradas de comunidades quilombolas do sul do país. Souza (2009)
analisa a atuação de jovens ativistas negros do movimento hip hop da cidade de São Paulo e
os modos de apropriação e empoderamento por via de diferentes linguagens. Estas
investigações estão voltadas aos letramentos locais ou vernaculares, construídos a partir de
experiências peculiares, originárias do cotidiano, das culturas locais, quase sempre, práticas
menos visíveis e prestigiadas pela cultura oficial e que, muitas vezes, constituem práticas de
resistência e de reexistência. (HAMILTON, 2002 apud ROJO, 2009; SOUZA, 2009;
KLEIMAN, 2010).
58
Cabe lembrar que as pesquisas do supracitado campo de pesquisa também vêm sendo
realizadas no âmbito da Amazônia paraense, lócus da nossa pesquisa. Este movimento é
impulsionado, sobretudo, após as defesas de doutoramento de Campos (2003) e Gomes-
Santos (2004), no departamento de Linguística Aplicada da UNICAMP. O deslocamento
destes pesquisadores às academias paraenses possibilitou o processo de formação de
professores na graduação e na pós-graduação no campo dos estudos do letramento,
proporcionando tanto a discussão de textos teóricos, quanto à orientação de vários trabalhos
de pesquisas: trabalhos de conclusão de curso (FERREIRA, 2005; SILVA, 2008);
dissertações de mestrado (RODRIGUES, 2006; PASTANA, 2007; SILVA, 2007;
FERREIRA, 2008; CHAVES, 2008; ALVES, 2009; ARAÚJO, 2012, dentre outros).
Além disso, é válido destacar a organização do grupo de pesquisa GELPEA38
,
formalizado pelo Prof. Dr. José Anchieta Bentes no diretório de grupo de pesquisa do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no ano de 2010;
bem como a publicação das coletâneas organizadas por Ferreira (2014) e Gomes-Santos et al.,
(2014). A primeira com textos voltados à divulgação das pesquisas sobre letramento escolar
na Amazônia paraense e a segunda direcionada à investigação do trabalho docente em
diferentes níveis de ensino. Ambas foram dedicadas a contemplar a divulgação das pesquisas
efetivadas em diversos contextos institucionais da complexa e multifacetada Amazônia
paraense, principalmente, nos contextos escolares. Nossa pesquisa está ancorada a esta ordem
social, territorial, acadêmica, educacional e tem como propósito investigar as práticas de
letramento encenadas no EM, especificamente, as ações didáticas de uma professora de
Língua Portuguesa voltadas ao ensino de leitura e de escrita.
Para Barton e Hamilton (1998, 2000), a noção de práticas de letramento contribui
significativamente para compreendermos a interligação entre as atividades de leitura, de
escrita e as estruturas sociais em que tais atividades são constituídas. Os autores consideram
as práticas sociais de letramento como a unidade básica de uma teoria social de letramento:
“as práticas de letramento são o que as pessoas fazem com o letramento” (BARTON;
HAMILTON, 2000, p. 07). Tais práticas extrapolam os limites da mera observação
comportamental, elas são constitutivas de processos ideológicos e identitários. Não se
confundem com uma noção de ‘prática’ atrelada ao ‘como fazer’ algo pela repetição.
Conforme Barton e Hamilton39
, “A noção de práticas – modos culturais de usar o letramento –
é mais abstrata, não pode estar totalmente contida em atividades observáveis e tarefas” (2000,
38 Grupo de Estudos em Linguagens e Práticas Educacionais da Amazônia.
39 As traduções de Barton e Hamilton (2000) são apresentadas em Freitas (2014).
59
p. 8). No bojo dessa discussão, o conceito de eventos de letramento é apresentado pelos
autores:
[...] são atividades em que o letramento tem um papel [...]. Os eventos são episódios
observáveis os quais surgem de práticas e por elas são formados. A noção de eventos
salienta a natureza situada do letramento, o qual sempre existe em um contexto
social. Tal noção está em paralelo com ideias desenvolvidas na sociolinguística e
também, [...] com asserções de Bakhtin de que o ponto inicial para a análise da língua
falada deve ser ‘o evento social da interação verbal’, ao invés de propriedades
linguísticas formais dos textos em isolado. (BARTON; HAMILTON, 2000, p. 8-9).
É indiscutível a natureza social dos eventos de letramento, episódios situados
historicamente para a realização de fins específicos. Neles, observa-se a relevância dos textos,
considerados por Barton e Hamilton como: “[...] parte crucial dos eventos de letramento e o
estudo do letramento é, em parte, um estudo de textos e de como eles são produzidos e usados”
(2000, p. 9). Práticas, eventos e textos, portanto, compõem a tríade que permite conceituar o
letramento como “[...] um conjunto de práticas sociais; as quais são observáveis em eventos, os
quais são mediados por textos escritos” (BARTON; HAMILTON, 2000, p. 09). Com base
nessa tríplice relação, os autores definem, como principal interesse, analisar eventos, a fim de
aprender sobre as práticas.
Nessa perspectiva, há diferentes letramentos e, obviamente, não é o mesmo em todos
os contextos. Em nossa pesquisa de campo, registramos o processo escolar de construção de
uma caminhada e observamos que o evento foi construído a partir da integração de vários
eventos de letramento. A convocação de textos de diferentes sistemas semióticos (letras de
música, cartazes, apresentação de livro, slides, recortes de jornais, fotografias, banners, faixas,
sons de diferentes instrumentos musicais, registros fotográficos) contribuiu para a construção
de evento de letramento que vai além das paredes da sala de aula e dos muros da escola.
As diferentes modalidades de uso da língua e a diversidade linguística e cultural estão
inscritas nestes textos que expressam a circulação dos alunos por diferentes usos e significados
de (multi, novos, múltiplos) letramentos constitutivos das práticas sociais em que eles
constroem, participam, integram, atuam e vivenciam nas instituições sociais oficiais e não
oficiais em que eles estão inseridos.
Kleiman (1995, p. 20) assinala que o letramento: “[...] extrapola o mundo da escrita tal
qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os
sujeitos no mundo da escrita [...]”. Estes letramentos são constituídos por diferentes mídias ou
sistemas simbólicos, construídos em diferentes culturas e línguas, o que nos permite
compreender que, dentro de uma dada cultura, “há diferentes letramentos associados a
diferentes domínios da vida” (BARTON; HAMILTON, 2000, p. 11). Os domínios e as
60
comunidades discursivas atreladas a eles podem ser caracterizadas por apresentarem fronteiras
instáveis.
No que se refere às atividades desses domínios, elas não são aleatórias, apresentam
configurações particulares de práticas de letramento, regularidades de atuação nos eventos de
letramento, construídos em contextos específicos. Consoante os autores,
Várias instituições sustentam e estruturam atividades em domínios particulares da
vida. Isso inclui a família, religião e educação, as quais são todas instituições sociais.
Algumas dessas instituições são mais formalmente estruturadas que outras, com
regras explícitas para procedimentos, documentação e penalidades legais por
infração, enquanto outras são reguladas pela convenção de pressões sociais e atitudes.
Letramentos particulares foram criados, e são estruturados e sustentados, por essas
instituições. (BARTON; HAMILTON, 2000, p. 11-12).
Nessa perspectiva, “as práticas de letramento são modeladas por instituições sociais e
relações de poder, e alguns letramentos são mais dominantes, visíveis, influenciando outros”.
Desse modo, as relações de poder pressupõem interesses de classes na procura da defesa de
seus interesses, preocupações, objetivos e é notável que “as práticas de letramento são
intencionais, embutidas em metas sociais mais amplas e práticas culturais” (p. 12-13). As
práticas de letramento correspondem a construtos sociais, edificadas culturalmente e, como
todos os fenômenos culturais, são dinâmicas, mudam, transformam-se assim como as pessoas e
as sociedades que as constroem e por elas também são constituídas.
Diante deste quadro, Hamilton (2002) considera a existência de letramentos e apresenta
a seguinte categorização: letramentos dominantes ou institucionalizados e letramentos locais
ou vernaculares, mas não os considera como independentes, mas interconectados. O primeiro
está vinculado oficialmente a instituições formais, que requerem agentes, autorizados,
valorizados, interligados às condições e ao status de poder que goza da instituição em que está
integrado. O segundo não é sistematizado por instituições formais, é originário do cotidiano,
das culturas locais, tem sua gênese na vida cotidiana, quase sempre, são desprestigiados,
inclusive pelos estabelecimentos escolares, e configuram-se como práticas de resistência ao
poder instituído, às práticas institucionalizadas e legitimadas de língua, de conhecimento, de
cultura.
Para Soares (2010, p. 63), precisamos desenvolver “pesquisas que identifiquem e
busquem compreender as práticas de leitura e de escrita, presentes e desenvolvidas na escola-
as práticas escolares- em suas relações com as práticas sociais de leitura e escrita para além das
paredes da escola”. Nessa perspectiva, o letramento é adquirido socialmente e sua aquisição,
61
obviamente, vai depender das práticas sociais letradas de cada meio. A partir desta perspectiva,
Letramento pode ser definido como:
un conjunto de prácticas discursivas, es decir, como formas de usar la lengua y
otorgar sentido tanto en el habla como en la escritura. Estas prácticas discursivas
están ligadas a visiones del mundo específicas (creencias y valores) de determinados
grupos sociales o culturales. Estas prácticas discursivas están integralmente
conectadas con la identidad o consciencia de sí misma de la gente que las practica;
un cambio en las prácticas discursivas es un cambio de identidad40
. (GEE, 2004, p.
24).
Em consequência da intensificação do processo de globalização, as mudanças sociais,
políticas, econômicas, históricas, tecnológicas ocorridas nos últimos 30 anos, transformaram
a(s) língua(gens) e propiciaram o redesenhamento das fronteiras/limites entre diferentes
práticas - diferentes linguagens, dialetos, gêneros e discursos- e implicaram a mercantilização
e globalização de práticas discursivas (FAIRCLOUGH, 2000). Nesse sentido, letramento,
potente constructo teórico de reflexão sobre as práticas sociais de uso da linguagem, reflete as
nuances destas transformações geo-socio-linguísticas. Por isso, o termo é ressignificado e
passa a ganhar cada vez mais campo de pesquisa, sobretudo, o ensino-aprendizagem de
línguas.
Kleiman e Sito (2016) sinalizam que o conceito de letramento(S) hoje recobre, pelo
menos, duas dimensões: a primeira compreende a multiplicidades de sistemas semióticos
articulados aos diferentes meios e modalidades de comunicação que extrapolam o uso da
linguagem verbal. Embora a escrita, ainda, seja parte importante e integrante para a construção
do processo interativo; a segunda sinaliza para a diversidade linguística e cultural possibilitada
pela disseminação dos meios digitais/tecnológicos, mobilidade, integração, interatividade, que
colocam em evidência os fluxos semióticos, linguísticos, discursivos e fazem emergir a
demanda de colocar em debate os processos de legitimidade da diversidade de línguas,
culturas, identidades envolvidas nesta complexa, intricada e assimétrica conjuntura (COPE;
KALANTZIS, 2000). É necessário sempre atentar que não é possível separar letramento e
questões de poder e de outros acessos - moradia, alimentação, transporte, serviços de saúde,
água potável- que obviamente vêm a intervir nas oportunidades e tipos de educação a que as
diferentes comunidades acessam e são impactadas.
40 Um conjunto de práticas discursivas, quer dizer, são formas de usar a língua e atribuir significado tanto na fala
quanto na escrita. Estas práticas discursivas estão ligadas às visões de mundo específicas (crenças e valores) de
determinados grupos sociais e culturais. Tais práticas discursivas estão integralmente interligadas à identidade ou
autoconsciência das pessoas que os praticam; uma mudança nas práticas discursivas é uma mudança de
identidade (Tradução de nossa responsabilidade).
62
Considerando este cenário, Rojo (2009) defende que a educação linguística deve
considerar os seguintes letramentos: letramentos multissemióticos: letramento para o campo
imagético, corporal, musical e demais semioses que extrapolam o mundo da escrita alfabética;
letramentos múltiplos: letramentos das culturas locais/vernaculares e os letramentos
valorizados, dominantes, institucionalizados, globais; letramentos críticos e protagonistas:
letramento necessário ao tratamento ético/apreciativo dos discursos, que circulam nas mais
diferentes esferas de uso e de circulação social, vinculando-o à vida social, política,
participativa, dos sujeitos.
Portanto, o letramento escolar termina por constituir (ou deveria?) uma rede de
interligações, de mobilizações, de entrecruzamentos de diferentes e de diversos saberes,
poderes, linguagens, semioses, problemáticas sociais, educacionais, situacionais mediadas por
práticas dialógicas, interativas, colaborativas, que levem em consideração a dimensão
territorial, cultural, econômica, sócio-histórica, institucional, contextual, situacional,
linguística, semiótica em que estão circunstanciados os agentes escolares, a escola e a própria
comunidade afetada por esta instituição.
Souza (2011), a partir de investigação de doutoramento sobre as práticas de leitura e de
escrita do movimento hip-hop, cunha a denominação letramentos de reexistência para fazer
referência às práticas singulares, forjadas no seio de práticas de uso social da linguagem e que
servem não só para desestabilizar os discursos instituídos, cristalizados, homogêneos,
validados e intermediados por instituições formais; mas também para que os agentes locais
assumam novas funções nas suas comunidades de pertencimento e naquelas em que estão em
processo de contato, a fim de que possam contribuir para mudanças necessárias para a
transformação de lugares sociais historicamente excludentes, por exemplo, a escola secundária
no Brasil.
Segundo a autora, a singularidade destes letramentos reside nas microrresistências do
dia a dia, reconstituídas nos usos da linguagem, nos gestos, nos comportamentos, nos trajes,
nos modos de seleção e de produção de textos, ações, eventos, que estão em contínua
construção e são marcados pela tensão, contradição e disputas de poder inerentes à
constituição destas resistências e reexistências.
De acordo com Souza (2016), o letramento de reexistência está ancorado em três
diferentes vértices: “os letramentos escolares, as experiências de letramento apoiadas nas
práticas sócio-históricas e culturais do grupamento de origem e as práticas de usos de
linguagem ligados ao momento vivido [...] movimentos sociais, grupos de lazer, de esportes ou
em outros associativismos” (SOUZA, 2016, p. 70). Este é o lugar em que está circunstanciada
63
e inscrita, de certo modo, a pesquisa desta tese, ou seja, investigar como a tentativa de
conjugação dessa tríade é convocada para o centro do trabalho docente, em especial, para a
prática da leitura e da escrita na sala de aula do EM, na escola pública, situada na periferia,
ocupada por grupos sociais, quase sempre, atravessados por enfrentamentos relativos à etnia, à
sexualidade, à condição de extrema vulnerabilidade de existência (SOUZA, 2009; LOPES et
al., 2017).
Acrescentaríamos a este rol, a própria sobrevivência destas populações - jovens, negras,
pobres - nas periferias brasileiras, muitas vezes, vitimadas pelas sucessivas chacinas que se
tornaram recorrentes nos subúrbios. Este cenário de violência é recorrente nas periferias de
Belém-PA, considerada a capital mais violenta do Brasil pelo Atlas da violência 2018. A
cidade apresenta umas das piores taxas de atendimento escolar para a população, em especial,
na faixa etária de 0 a 3 anos, mas também na taxa de 15 a 17 anos, faixa etária em que estes
jovens obrigatoriamente deveriam estará cursando o EM (SOUZA, 2009; LOPES et al., 2017;
IPEA, 2018).
Para além das categorizações, Rojo (2012) observa que as produções culturais letradas
contemporâneas são textos essencialmente híbridos, constituídos por diferentes linguagens,
campos distintos - popular, massa, erudito- e marcados por escolhas de ordem pessoal, política,
ideológica oriundas das diferentes “coleções”. Estas últimas caracterizadas pelos processos de
desterritorialização, descoleção e hibridação a que se reporta Canclini (1998). A conjugação
destas características remete à natureza híbrida, impura, mestiça, fronteiriça, móvel da
sociedade global (MOITA LOPES, 2013a, 2013b).
Nesse contexto, o conceito de letramento é ressignificado: os multiletramentos passam a
recobrir, como já mencionado, a diversidade social, cultural e linguística, a diversidade das
produções culturais, a multiplicidade das linguagens convocadas para o processo de
constituição das práticas letradas em tempos de Web 2.0. Em síntese, os multiletramentos são:
interativos, colaborativos, multimodais, transgressores, híbridos, heterogêneos, mestiços,
movediços, agentivos e (in)disciplinares. (MOITA LOPES, 2013, 2013b; ROJO, 2012).
Em 1996, o Grupo de Nova Londres (GNL) apresenta uma proposta de uma “pedagogia
dos multiletramentos”, a fim de focar as complexas práticas comunicativas que requerem altas
demandas comunicativas, interativas, colaborativas das pessoas, enfatizando a negociação
constante da multiplicidade linguística, das diferenças culturais e dos usos das novas
tecnologias, de novos letramentos para a construção de uma prática pedagógica capaz de
formar sujeitos para acessar e se apropriar das práticas de linguagem necessárias a sua vida
social, ao mercado de trabalho, para compreender e mediar relações de poder estabelecidas
64
nestes processos, bem como ao engajamento crítico para a configuração de cenários futuros e
de empoderamento para (sobre)viver em um mundo em constante mutação (COPE;
KALANTZIS, 2000).
Em linhas gerais, a partir de um campo teórico multidisciplinar, o referido grupo elenca
quatro aspectos de uma pedagogia dos multiletramentos para formar os chamados “criadores
de sentido”41
: (i) prática situada, (ii) instrução explícita ou aberta, (iii) enquadramento crítico,
(iv) prática transformada. O primeiro aspecto considera que o projeto didático tenha como base
as vivências, as experiências, as culturas em que o aluno está inserido. O segundo leva em
consideração a apresentação/ a análise de regras e convenções das práticas vivenciadas, das
práticas de linguagem, dos designs e de seus respectivos processos de produção e de
circulação, momento em que haveria a convocação de uma metalinguagem para a
compreensão e análise crítica dos modos de constituição e de significação dos textos
construídos (COPE; KALANTZIS, 2000).
Concomitante a isto, haveria um terceiro aspecto, que alinharia estes conhecimentos a
compreensão dos contextos sociais e culturais em que estas práticas de linguagens, de
construção de conhecimentos e de saberes são (re) constituídas, re(feitas), (re)significadas,
para fins de transformação de modos de agir, de pensar, de falar, de fazer sentido, de
emancipar. O último aspecto, prática transformada, crítica, coerente com os interesses e
demandas locais/globais (glocais), capaz de fazer dialogar a não tão nova relação teoria/prática
e a mobilidade de conhecimentos/saberes de um contexto para outro (ROJO, 2012; COPE;
KALANTZIS, 2000).
Rojo (2012) levanta a discussão a respeito da necessidade da escola questionar quais são
as suas tarefas em um contexto social em que estão em vigor várias ética(s) e estéticas:
discussão crítica das “éticas” ou costumes locais; debate a respeito das múltiplas estéticas;
construção de critérios apreciativos sobre as criações culturais. Acrescentaríamos, ainda, o
seguinte posicionamento: seria papel da escola promover o engajamento dos sujeitos para uma
formação letrada, crítica, emancipatória, capaz de construir ações de cidadania, de dignidade,
de respeito, de solidariedade, de urbanidade no sentido de transformar e de mobilizar
efetivamente o sujeito e a sua comunidade.
Resta questionar: a escola responde a esta demanda? Que práticas docentes se
aproximam dessa perspectiva no ensino de LP no nível médio? Como e de que forma isso é
praticado efetivamente? Acredito que estaríamos situados, então, no campo dos valores, das
41 Sujeito capaz de criar, analisar e transformar os discursos no curso do processo interativo, dialógico,
colaborativo.
65
atitudes e da participação/ ação social, política, histórica, ideológica, vinculado às práticas de
linguagem, que envolvem o que se denomina letramentos críticos, construto extremamente
potente para (re)pensar todo o percurso epistemológico construído em torno do conceito de
letramento e da prática de ensino construída com os sujeitos no campo educacional (ROJO,
2009; FREIRE, 2011).
3.2 LETRAMENTO CRÍTICO
Esta seção tem como enfoque refletir sobre o termo Letramento Crítico (doravante LC).
O uso do termo no singular não desconsidera a diversidade do campo teórico, mas sinaliza os
limites desta discussão a algumas acepções do conceito e suas respectivas implicações.
Cervetti, Pardales e Damico (2000) apresentam três influências teóricas relevantes para
constituição do LC e que servem para diferenciá-lo de outras teorias de letramento: (i) a teoria
crítica, (ii) a obra de Paulo Freire e (iii) o pós-estruturalismo. Os autores afirmam que o LC é
oriundo da teoria crítica social particularmente no que se refere à necessidade de aliviar o
sofrimento humano e formar uma sociedade mais justa por intermédio da crítica aos problemas
sociais e políticos, bem como pela proposição de alternativas.
Nessa perspectiva, o termo crítico faz referência à opressão e à exploração de alguns
grupos em relação a outros em termos de distribuição e de concentração de conhecimento,
poder, status, bens materiais e simbólicos, o que conferiria vantagens sobre o controle de
determinadas instituições, ideologias e práticas. Para a teoria crítica social, é necessário expor,
colocar em evidência, debater textos em que estas ideologias estejam subjacentes para tratar
criticamente tais representações e assim refletir, reconstruir e vislumbrar outros cenários
possíveis. Monte Mór (2013) assinala que a perspectiva crítica é revigorada ao ser articulada à
concepção de linguagem como prática social e às contribuições da teoria crítica, que defendem
a luta contra a desigualdade social, enfatizando a necessidade de reconstituir o entendimento
sobre as instituições, práticas e suas respectivas e constitutivas ideologias.
A segunda influência importante é a obra de Paulo Freire. Ele defende que a linguagem,
a leitura e a escrita são mecanismos centrais para o processo de reconstrução e de
transformação social. Para este pensador, o objetivo principal da educação é a construção de
uma consciência crítica, portanto, é necessário dialogar, problematizar, democratizar a palavra,
situar o aluno no processo sócio-histórico em que está circunstanciado, para que no processo
de reflexão- ação - transformação sobre o mundo, possa mudar sua condição, superar a
66
condição opressor e oprimido, lutar e conquistar emancipação e libertação dos processos de
opressão.
Paulo Freire é considerado o precursor de uma educação crítica, embora trabalhasse
inicialmente com foco na alfabetização de adultos. Para ele, esse ato estava diretamente ligado
à “democratização da cultura”, ainda que fosse apenas uma introdução, “um ato de criação,
capaz de desencadear outros atos criadores”. O pensador considera que há três tipos de
consciência: acrítica, a ingênua e a mágica. A primeira “é a representação das coisas e dos
fatos como se dão na existência empírica. Nas suas correlações causais e circunstanciais”
(p.138).
Nesse sentido, a causalidade autêntica está sempre submetida à sua análise, o que é
autêntico hoje pode não ser amanhã. A segunda é aquela que “(ao contrário) se crê superior aos
fatos, dominando-os de fora, e para isso, se julga livre para entendê-los conforme melhor lhe
agradar”. (p.138). A terceira é aquela que “não chega a acreditar-se” superior aos fatos,
dominando-os de fora, e para isso, se julga livre para entendê-los conforme melhor lhe agrade”
(p.138) (FREIRE, 2018).
Segundo Hooks (2017, p. 67), Freire “em seu entendimento global das lutas de
libertação, sempre enfatiza que este é o importante estágio inicial da transformação- aquele
momento histórico em que começamos a pensar criticamente sobre nós mesmos e nossa
identidade diante das nossas circunstâncias políticas”. Nesse ínterim, o ato de ler deve ser uma
prática para além do reconhecimento dos códigos alfabéticos e numéricos, o leitor precisa ser
desafiado a extrapolar os limites do texto escrito para o contexto em que está situado: a leitura
da palavra-mundo, articulada à dimensão política, ideológica, histórica, econômica deve estar
presente no ato dialógico de educar para formar sujeitos críticos e conscientes do seu lugar e
do seu papel na sociedade.
Trata-se de uma educação que tem como objetivo a formação/construção de uma
cidadania crítica, que pressupõe um exercício de reconstituição dos sentidos, a partir de uma
concepção de linguagem privilegiada pelo componente discursivo e pelos fios sociais e
ideológicos que constroem uma sociedade (MONTE MÓR, 2013). Assim, “é próprio da
consciência crítica a sua integração com a realidade, enquanto que da ingênua o próprio é sua
superposição à realidade” (p.139). Então, toda compreensão de alguma coisa vai se refletir em
uma ação. “A natureza da ação corresponde à natureza da compreensão. Se a compreensão é
crítica ou preponderantemente crítica, a ação também o será. Se é mágica a compreensão, a
mágica será a ação” (p. 139) (FREIRE, 2018).
67
Desta forma, Freire concebe que em uma sociedade em transição e inserida em um
processo de democratização era necessário ter uma educação que colaborasse com uma
organização mais reflexiva, que “lhe pusesse à disposição meios com os quais fosse capaz de
superar a captação mágica ou ingênua de sua realidade, por uma dominantemente crítica”
(FREIRE, 2018, p. 13).
Por conseguinte, tanto a teoria crítica, quanto a pedagogia crítica estão diretamente
relacionadas a questões de justiça, de equidade e de investimento no aspecto crítico do texto e
da vida como um relevante mecanismo de transformação social. Conforme Shor (1999, p. 01),
o LC:
desafia o status quo em um esforço de descobrir caminhos alternativos para o próprio
desenvolvimento e para o desenvolvimento social. Este tipo de letramento – palavras
repensando mundos, auto dissidente na sociedade – conecta o político e o pessoal, o
público e o privado, o global e o local, o econômico e o pedagógico, para repensar
nossas vidas e promover justiça no lugar da iniquidade. Letramento crítico, então, é
uma atitude através da história.
Em relação a esse posicionamento, Monte Mór (2013) empreende um interessante
percurso reflexivo sobre os sentidos atribuídos ao termo “crítico”, levando em consideração a
plasticidade e historicidade das diferentes orientações teóricas que o utilizam. A autora
incrementa uma problematização a respeito de duas recorrentes compreensões conferidas ao
termo. A primeira estaria associada aos mais complexos níveis de escolaridade, gestados em
uma esfera institucionalizada, letrada, legitimada, alicerçada nos campos acadêmico, literário,
filosófico, científico. A segunda remeteria a uma interpretação conectada à possibilidade de
criar uma percepção crítica ou a senso crítico, independente de complexos níveis de
escolaridade, estaria relacionada à capacidade de (re)inventar, (re)criar, (re)construir sentidos,
posicionamentos, visões de mundo e concatenada à possibilidade de desestabilizar, questionar,
reivindicar e romper com o sentido que, muitas vezes, é estabelecido, imposto, autorizado,
legitimado e institucionalizado. Para Janks (2012), a crítica possibilita aos participantes uma
tentativa de interagir com diferentes fontes semióticas, através de diferentes modalidades e
tecnologias, de (re) construir textos e trajetórias e embora não seja o ponto final, a reconstrução
ética e a transformação precisam desta (inter) ação.
A influência do pós-estruturalismo, relacionada à crença de que os sentidos dos textos
surgem das relações com outros significados e práticas decorrentes do contexto sociopolítico,
levantou a possibilidade de cogitar que os textos estariam interligados a sentidos ideológicos,
subjetivos e relacionados a questões de poder. Para esta perspectiva, os autores criam textos e
os indivíduos interpretam a partir de sistemas discursivos específicos, construídos a partir de
68
instituições e comunidades de práticas em que os sujeitos estão inseridos e o valor de verdade
ou falsidade destas interpretações está associado à lógica interna destes sistemas discursivos.
Para esta vertente, discurso, poder e contexto dependem dos significados subjacentes a
qualquer assunção de neutralidade ou valor de verdade. Nesta vertente, a linguagem está
diretamente ligada à produção e à manutenção de arranjos desiguais de poder, portanto, os
textos corporificam sentidos ideológicos.
Para (Janks, 2012), em um mundo desigual, é preciso entender que as diferenças são
estruturadas via relações de poder com diferentes acessos balizados em gênero, etnia,
nacionalidade, classe social, que continuam prestigiando uns em detrimento a outros, por isso
precisamos gerenciar políticas para compreender e administrar nosso dia a dia, levando em
consideração este contexto a autora propõe a possibilidade de atribuir, pelo menos, dois
significados para o termo: Política, grafado com P maiúsculo, para as grandes políticas
governamentais, acordos das nações unidas relacionadas às forças de paz, tribunais
internacionais, imperialismo linguístico, diferenças entre as políticas do norte e do sul, os
perigos de uma guerra mundial, globalização etc. e política, grafado com p minúsculo, para
distinguir políticas de diversidade, micro políticas para o dia a dia, as opções e escolhas
cotidianas, os desejos e os sentimentos construídos por cada um de nós, políticas identitárias,
atitudes em relação às vítimas de constrangimentos, de violência, de múltiplos processos de
exclusão.
Cabe lembrar, entretanto, que estas políticas não se excluem, muito pelo contrário, elas
estão em constante e permanente condição de interação e negociação. Para a pesquisadora, os
alunos precisam estar cientes e conscientes da existência desta constante interação, discutir
questões locais e globais, propor novas visões e intervenções, marcadas por densidade ética,
discursiva e crítica, a fim de vislumbrar e construir cenários atuais e futuros (BEZERRA,
2017). Em todo caso, consideramos a política como atividade reflexiva e deliberativa,
ocorrendo toda vez que ocorrer participação de um conjunto de sujeitos em prol de sua
liberdade, de sua criatividade, com força de críticas sociais e de elaboração de projetos
coletivos, alternativos ao poder dominante.
Em síntese, Cervetti, Pardales e Damico (2000) conferem ao LC as seguintes
formulações: (i) todo conhecimento é demarcado, do ponto de vista, ideológico e constituído
pelos modos de funcionamento discursivo de cada comunidade, logo o conhecimento é
ideológico e situado; (ii) a realidade só pode ser compreendida levando em consideração um
dado contexto em que os sujeitos encenam, engendram e constroem as práticas de letramento,
portanto, a realidade é sempre relativa, nem neutra, nem independente; (iii) os sentidos dos
69
textos estão para além das pretensões e das intenções dos autores, eles são diversos, forjados
no seio de uma prática social, cultural, histórica, política e atravessados por relações
constitutivas de poder, por isso as diferentes perspectivas são essenciais para a construção da
interpretação e de possíveis sentidos, oriundos de diversos universos socioculturais, para que
seja possível vislumbrar diferentes modos de agir, de pensar, de agenciar, de intervir e de
construir novos conhecimentos sem deixar de ter em vista as relações de poder que legitimam,
demarcam, hierarquizam e servem de teia de constituição destes conhecimentos; (iv) no campo
da educação, a mais importante meta é desenvolver um trabalho de ensino capaz de incitar a
construção de uma consciência crítica, perceber as diferentes e diversas formas e
entendimentos, dar licença ao respeito, ao valor de cada mundo e ao diálogo franco (JORDÃO,
2007; COSTA, 2012).
Consoante Monte Mór (2013, p.42), LC pode ser entendido como "parte da premissa de
que a linguagem tem natureza política, em função das relações de poder nela presentes”.
Conforme Luke (2012), o termo letramento crítico refere-se ao uso das tecnologias e outras
mídias de comunicação para analisar, criticar e transformar as normas, os sistemas de regras e
as práticas que governam os campos sociais da vida cotidiana. De acordo com Luke e Dooley
(2011, p. 01), o LC pode ser definido como:
o uso de textos para analisar e transformar relações de poder culturais, sociais e
políticas [...] Ele foca no desenvolvimento e aquisição equitativa de linguagem e
letramento por comunidades e estudantes marginalizados historicamente, e através do
uso de textos numa gama de meios de comunicação para analisar, criticar, representar
e alterar estruturas de conhecimento desiguais e relações sociais da escola e
sociedade.
Jordão (2016) lembra que o LC é uma abordagem e não uma metodologia de ensino para
fins de acumulação e de mensuração de uma gama de tópicos programáticos. Trata-se de uma
abordagem educacional, pautada em uma perspectiva pós-moderna e decolonizadora,
inseparável das atitudes e dos interesses dos sujeitos, “é uma filosofia de vida, de profissão, de
interação com as pessoas, com o conhecimento e com o mundo” (JORDÃO, 2016, p. 44). Por
isso, procura buscar práticas alternativas, não canônicas, para vislumbrar outros percursos
ainda não legitimados, configura-se como uma prática contingente, predisposta ao
questionamento, à (re)construção, à transformação.
Nessa dimensão acadêmica e filosófica, a língua é considerada como lugar de construção
e de constituição do sujeito, da sociedade, da cultura, da vida, concebida como o lugar em que
o ideológico se manifesta, de forma objetiva e material, considerada como palco privilegiado
70
ao exercício do debate, do conflito, da luta de classes. Essa articulação entre os processos
ideológicos e os processos discursivos leva-nos a compreender que, ao manifestar a atividade
de linguagem, estamos no campo do simbólico, comprometido necessariamente com os
sentidos que emanam das relações sociais estabelecidas. Por isso, estamos sujeitos a seus
equívocos, à sua opacidade, à não neutralidade no uso dos signos diante de qualquer situação,
o que leva à conclusão de que nem os sujeitos, nem os sentidos estão completos, eles estão em
constante construção, interação, negociação (BAKHTIN, 1987, 1995; JORDÃO, 2013). Nesse
sentido, concordamos que:
qualquer prática de construção de sentidos, inclusive a leitura e a escrita, é ideológica
e acontece em referência a determinados sistemas de crenças, valores, interesses [...]
ideologia aqui é entendida no sentido foucaultiano de perspectiva cultural, social,
moral, ou melhor, como sendo aquele elemento mesmo do processo de construção de
sentidos que permite que o processo aconteça. (JORDÃO, 2013, p. 74).
Levando em consideração este pressuposto, é necessário atentar para o fato de que um
trabalho de ensino voltado à criticidade tem que considerar a ancoragem socio-histórica
subjacente às escolhas, valores, interesses, intrinsecamente, encapsulados aos procedimentos
discursivos das atuações profissionais, redimensionando o papel da escola no sentido de
conclamar questões relativas à alteridade, à heterogeneidade e de problematização de relações
de poder, de hierarquização, de construção de sentidos em uma dimensão multissemiótica,
cultural, política, histórica (JORDÃO, 2013).
Para Janks (2016), trabalhar, a partir dos pressupostos do LC, implica necessariamente
considerar questões de poder, diversidade, acesso, design e redesign, que são interdependentes
(JANKS, 2013). Para a autora, “a linguagem pode ser e é usada para manter e desafiar formas
existentes de poder” (JANKS, 2016, 29). Segundo a pesquisadora, em relações sociais de
desigualdade de poder, existem valores, de natureza social, econômica, étnica, etária, de
gênero, conferidos aos membros de uma dada sociedade e que convergem para que um
determinado grupo social se mantenha numa dada hierarquia e, ainda, dissemine tais valores a
ponto de naturalizar - ou neutralizar- e impor uma disposição ou ordem instituída, quanto mais
impotentes certos grupos sociais estiverem ou tiverem a sensação de estar em relação à ordem
dominante estabelecida, o uso da força, da repressão, da violência atuará de modo menos
frequente. Muitas vezes, as instituições sociais família, igreja, escola atuam por via das
práticas de linguagem para o processo de mobilização de significados a favor de uma dada
ordem estabelecida. Consoante Janks (2016, p. 31):
71
Mais significativo é acentuar que crescemos, inconscientemente absorvendo os
discursos das pessoas ao nosso redor. Jame Gee (1990) define o discurso como os
modos de falar/escrever/fazer/estar/ acreditar/valorizar a respeito das pessoas ao
nosso redor. Esses discursos constroem posições de identidade para nós e nos
engendram como determinados tipos de seres humanos. Isso é a língua em sua forma
mais poderosa.
A partir de outra perspectiva histórica e teórica, Althusser (1918 [1985]) reconhece
que a escola é um aparelho ideológico do Estado, pois atua primordialmente através da
ideologia e secundariamente através da repressão, a qual é atenuada, dissimulada e simbólica.
O aparelho escolar desempenha um papel determinante na reprodução das relações de
produção, sua unidade é assegurada pela ideologia dominante. De acordo com o mesmo autor,
a escola vem substituir o antigo aparelho da igreja. Ela recebe as crianças de todas as classes
sociais desde o maternal e inculca durante anos os saberes contidos na ideologia dominante.
Bourdieu (1999) concebeu a escola como a sede da reprodução cultural. O sistema de
ensino representaria a solução mais camuflada para o problema da transmissão de poder, pois
contribuiria para a reprodução social, sob a aparência da neutralidade. Além disso,
dissociaria seu papel de reprodução cultural e de reprodução social, escamoteando a
harmonia no processo de transmissão de um bem cultural comum. Todavia, a troca desse bem
cultural requer o compartilhamento de um código que é possuído somente por aqueles que
têm condições de possuí-lo.
Em outras palavras, “a apropriação destes bens supõe a posse prévia dos instrumentos de
apropriação [...] o livre jogo das leis da transmissão cultural faz com que o capital cultural
retorne às mãos do capital cultural” (BOURDIEU, 1999, p. 297). Assim, as hierarquias
sociais são convertidas em hierarquias escolares, as quais são responsáveis, na maioria dos
casos, pela perpetuação da ordem social. Nesse sentido, Signorini (2006, p. 172) formula o
seguinte posicionamento:
a legitimidade do falante e de sua língua é consequência da aquisição dos padrões, ou
seja, são as formas e funções instituídas pelas metapragmáticas institucionalizadas
que legitimam e igualam os falantes enquanto falantes porque apagam/ neutralizam as
diferenças (inclusive de cor, credo, gênero, condição socioeconômica, por exemplo) e
as hierarquizações daí decorrentes, estabelecendo a igualdade mínima de condições
entre interlocutores para uma comunicação social significativa.
Estes pressupostos se aproximam muito da ideia da autonomia do letramento de
quaisquer outras práticas culturais situadas, prestigiando assim as formas de uso da linguagem
vinculada aos grupos majoritários (KLEIMAN, 1995; STREET, 2014). A escola, uma das
principais agências de letramento no Brasil, é a instituição responsável pelo ensino da variante
padrão e ao docente cabe a tarefa de levar a sua audiência a apropriação da referida variedade
72
de prestígio. Mesmo não sendo condição suficiente, este conhecimento da língua prestigiada
concatenado a outras condições possibilitaria o acesso e a permanência do indivíduo em
instituições sociais, como a universidade, as repartições públicas e a própria escola.
Janks (2016) lembra que os falantes fluentes desta língua, que são altamente letrados,
tendem a ter mais poder e influência. Ela assinala que a língua também pode e deve ser
utilizada para desafiar, desestabilizar, reptar a maneira como a realidade se conforma. O não
consentimento, a prática da recusa, da desconstrução de discursos instituídos e legitimados, o
estabelecimento do conflito por um grupo de pessoas pode levar a mudança, talvez a pequenas
ou grandes transformações. Para a autora, “o que torna o letramento desafiador é a sua
criticidade e preocupação com a política de significado: as maneiras pelas quais os
significados dominantes são mantidos ou desafiados e mudados” (JANKS, 2016, p. 30-31).
A partir deste posicionamento, a pesquisadora instiga a rememorarmos o legado
freiriano no sentido de que o ato de aprender a reconhecer como a realidade é construída e
nomeada de modo opressivo, o ato de ler o mundo e renomear o que está a sua volta pode
mudar o mundo e transformar a sociedade, desvelar a desigualdade e buscar a igualdade, isto
nos parece ser o cerne do LC: “permitir que os jovens leiam tanto a palavra quanto o mundo
em relação ao poder, identidade, diferença e acesso a conhecimento, habilidades, ferramentas
e recursos. Não só escrever e reescrever o mundo, mas também construir design e redesign”42
(JANKS, 2013, p. 227).
Isto pressupõe obviamente um certo tipo de agência, pois as pessoas fazem (re)design,
transformam, revozeiam, criando configurações singulares, marcadas por crenças valores,
atitudes, experiências e narrativas que são constituídas em um processo dinâmico, que
envolve questões de identidade, de cultura, de poder, de economia, de conhecimentos de áreas
diversas e de múltiplas semioses (COPE; KALANTZIS, 2011).
Janks (2010) assevera a necessidade de incursão do acesso às formas dominantes -
conhecimentos, variedades linguísticas, discursos, gêneros, modos de representação visual, de
interação social- e, ao mesmo tempo, valorizar e promover a diversidades de línguas e de
letramentos aos nossos estudantes. Se, por um lado, promovemos o acesso a estas formas
dominantes, estamos assim coadunando com o fortalecimento e sustentação das mesmas. Se,
por outro lado, negarmos aos alunos este acesso, perpetuamos a marginalização deles, porque
42 “critical literacy is about enabling young people to read both the word and the world in relation to power,
identity, difference and access to knowledge, skills, tools and resources. It is also about writing and rewriting the
world: it is about design and re-design” (JANKS, 2013, p. 227).Tradução de nossa responsabilidade.
73
a sociedade continua a reconhecer o valor e a importância destas formas legitimadas. Este
processo é intitulado paradoxo de acesso: “estas formas dominantes incluem linguagens
dominantes, variedades dominantes, discursos dominantes (GEE, 1990), letramentos e
conhecimentos dominantes, gêneros dominantes, modos de representação visual dominantes e
uma gama de práticas culturais relatada na interação social” (JANKS 2010, p. 24).
Para a pesquisadora, é necessário compreender que a diversidade social, linguística e
cultural é uma fonte para a criatividade e a cognição e que estes diferentes acessos podem
afetar e impactar o futuro das pessoas. As identidades são construídas pela diversidade
linguística, pelo hibridismo cultural, pela dimensão socio-histórica, que constitui a história
das línguas e das culturas, confere status e poder a determinadas formas e narrativas em
detrimento de outras, nós que ensinamos línguas temos a responsabilidade de ter a percepção
desta situação (JANKS, 2004). Nesse sentido, a autora propõe que façamos uma série de
questionamentos, a saber:
Quem tem o tipo de educação necessária para uma boa qualificação profissional?
Quem obtém acesso na língua de poder e em sua variedade de prestígio? Quem
obtém acesso ao conhecimento de alto status? Que conhecimento é valorizado em
nossa sociedade e de que é esse conhecimento? Que versão da história é ensinada na
escola, que língua, que sistema de crença? No Brasil, devemos ensinar as histórias e
culturas de africanos, afrodescendentes e indígenas? (JANKS, 2016, p. 34).
Os questionamentos propostos pela estudiosa remetem diretamente ao nosso contexto
de pesquisa, o que uma professora de uma escola pública seleciona para ensinar, valorizar,
legitimar, construir, preparar para as suas aulas de Português no EM, uma vez que é sua
obrigação formar para a vida, para a cidadania, para a continuidade dos estudos? Como o
conhecimento é ensinado? Qual é o material de apoio mobilizado? Como essa prática de
ensino investigada é configurada, do ponto de vista, do acesso disponível para este grupo de
alunos?
Por fim, cabe lembrar os conceitos de design e redesign. O primeiro é entendido como
a maneira de “fazer e moldar textos” (JANKS, 2016, p. 35), esta prática está diretamente
vinculada aos modos de mobilizar a multiplicidade de sistemas semióticos através da
diversidade cultural, linguística e discursiva para a construção de sentidos inscritos nos textos,
produção de conhecimentos e produtos. Conforme Janks (2016), para o LC produzir textos é
relevante, porque possibilita: (i) “escolher quais sentidos construir e [...] agir sobre o mundo”,
(ii) “reconhecer como estamos nos posicionando”; (iii) ganhar compreensão da forma como
são construídos os textos, bem como das possibilidades e limitações de diferentes modos de
74
construção de sentidos”, (iv) “adquirir a experiência que nós precisamos para o redesign de
nossos próprios textos e dos textos dos outros” (JANKS, 2016, p. 36).
O grupo de Nova Londres (2000) assevera que uma pedagogia dos multiletramentos
enfatiza a necessidade de estudantes aprenderem a usar, selecionar, combinar, recombinar
fontes diversas por via da criação de possibilidades de transformação e reconstrução, o
redesign “é um ato de transformação [...] temos de pensar na reconstrução como um processo
contínuo de transformação” (idem, p. 36-37).
A autora assevera o considerável desafio de efetivar não só o redesign de textos, mas,
sobretudo, o redesign de práticas, porque a realização e a ação estão arraigadas em nós. No
entanto, pequenas transformações podem fazer a diferença, mudar o rumo da vida e dar sua
contribuição para o longo processo de luta por equidade, justiça e liberdade, a fim de que as
pessoas possam ter acesso aos bens sociais. Isto é o que a autora intitula de ciclo de redesign.
Para ilustrar tal ciclo, Janks (2013) apresenta uma figura dialogando com a contribuição
brasileira freiriana, conforme já mencionamos neste texto.
Figura 1 - Ciclo de (re)design
Fonte: Janks (2013, p. 37).
Nessa perspectiva, Janks (2013) propõe que educadores e pesquisadores façam os
seguintes questionamentos: como a educação contribui para que nossos estudantes em todos
os níveis de educação se tornem agentes de mudança? Como podemos formar estudantes que
possam contribuir para respeitar as diferenças e viver de modo harmônico com seus pares?
Como as diferentes disciplinas que constituem o campo da educação podem apresentar
diferentes respostas a estes questionamentos?
Para a pesquisadora supracitada, as respostas podem partir da perspectiva do
letramento crítico, embora esteja enraizado no domínio da linguagem, a educação crítica tem
75
o potencial de atravessar o currículo escolar e a pesquisa de forma mais ampla, posto que
pode permitir aos jovens ler a palavra e o mundo em relação às questões de poder, de
identidade, de diferença e de acesso ao conhecimento, bem como possibilite a (re)construção,
design e redesign dos saberes historicamente constituídos.
Nesses termos, Janks (2010, 2013) defende uma proposta que articula as quatro
dimensões mencionadas - acesso, poder, diversidade, design - e a relação de interdependência
para nortear um processo de construção de uma educação crítica. É justamente esta
interdependência destas dimensões que constituem o elemento primordial nesse desenho
teórico: os efeitos do foco em qualquer uma dessas dimensões sem nenhuma das outras. Por
exemplo, em termos simples, o que faz uma abordagem pedagógica que leva o poder a sério,
mas desconsidera questões de acesso, de diversidade ou de possibilidades de
construção/transformação? Os pressupostos da interdependência constitutiva de uma
educação crítica podem ser visualizados no quadro 4:
Quadro 4 - Modelo de Letramento Crítico proposto por Janks (2013)
Poder sem acesso Mantém a excludente força dos discursos e práticas vinculadas ao poder
instituído.
Poder sem
diversidade
Perde as rupturas que produzem contestação e mudança.
Poder sem design e
redesign
A desconstrução do poder inscrito nos textos e práticas, sem reconstrução (ou
redesign) remover a agência dos homens.
Acesso sem poder Acesso sem uma teoria do poder conduz para a naturalização do poder dos
discursos sem a compreensão de como estas formas tornaram-se dominantes.
Acesso sem
diversidade
A diferença fundamentalmente afeta quem consegue o acesso e quem pode se
beneficiar dele. História, identidade e valor estão envolvidos nesse acesso.
Acesso sem design
e redesign
Esta condição mantém e materializa formas dominantes,
desconsiderando como eles podem ser transformados.
Diversidade sem
poder
Conduz para uma celebração da diversidade sem reconhecer que a diferença é
estruturada em um domínio
e que nem todos os discursos /gêneros / linguagens / letramentos são igualmente
poderosos.
Diversidade sem
acesso
Diversidade sem acesso às formas de poder da língua confina os estudantes ao seu
próprio gueto.
Diversidade sem
design e redesign
Diversidade fornece significados, ideias, perspectivas de alternativa para
reconstrução e transformação. Sem design, o potencial que a diversidade oferta
não é materializado.
Design / redesign
sem poder
Designs ou redesigns que negligenciam questões de poder não podem provocar
mudanças.
Design / redesign
sem acesso
Corre o risco de tudo o que foi projetado permaneça às margens.
Design / redesign
sem diversidade
Isto privilegia formas dominantes e falha ao usar os recursos do design fornecidos
pela diferença.
Fonte: Janks (2013, p. 226, tradução de nossa responsabilidade).
76
No âmbito escolar, todo este arcabouço teórico, filosófico, acadêmico só pode ser
materializado no processo de realização do currículo em sala de aula por intermédio do
trabalho do professor: o trabalho docente é a arena de construção dos (re)designs de textos e
de práticas, em que acesso, poder e diversidade são, de fato, esposados, preconizados. As
identidades dos sujeitos, a construção de currículos e os processos de legitimidades colidem e
se constituem na busca pela legitimidade e pela disputa de poder para a formação letrada,
crítica e cidadã almejada. Para Tardif e Lessard (2005, p. 23):
é evidente que o impacto do ensino sobre a sociedade não se limita a variáveis
econômicas, na medida em que a escolarização está mais do que nunca no coração do
processo de renovação das funções sociotécnicas, como também da distribuição e a
partilha dos conhecimentos e competências entre os membros da sociedade. A
importância econômica do ensino caminha a par de sua centralidade política e
cultural.
Desse modo, as profissões que lidam com o trabalho interativo trazem sempre a
humanidade de seu objeto para o cerne da discussão. O modo de tratar o objeto não pode ser
limitado às modificações de ordem objetiva, técnica, instrumental, é necessário circunscrevê-lo
ao campo das interações humanas, considerando a complexidade das relações de poder, de
afetividade, de ética, de resistência, de indiferença, de responsabilidade, de solidariedade, de
(in)conformismo, intrínsecas às interações dos homens. Este é o caso da docência, as relações
construídas são marcadas ora pela iniciativa, pela participação, pela ação do outro, este traço
constitutivo é central para o processo de análise das ações docentes, das funções, dimensões e
alcances da profissão.
Na realidade, a sala de aula é um espaço significativo, para que possamos
compreender a atuação profissional docente, bem como a conjugação dos saberes, das
experiências, das interações com os demais sujeitos da educação, atrelados aos estilos de
docência, às tentativas de resistência ou não às formas de poder instituído. No contexto da
nossa pesquisa, consideramos que a sala de aula da escola pública, suburbana, de nível
secundário pode ser o lócus privilegiado para o ensino, para a construção do profissional que
ensina e, consequentemente, para a efetivação de uma educação que se quer crítica e, ao
mesmo tempo, está a serviço das formas institucionalizadas e prestigiadas.
Portanto, uma educação linguística edificada pela (re)produção de discursos (contra)
hegemônicos, ora mais próximos aos letramentos locais ou vernaculares, ora mais próximos
aos letramentos dominantes ou institucionalizados deve ser atravessada pelos resquícios da
77
heterogeneidade de formas, de dizeres, de saberes e de realidades constitutivas dos
letramentos que circulam no âmbito escolar.
78
4 PROCEDIMENTOS DE PESQUISA: OPÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS
Este capítulo apresenta considerações relativas às escolhas teóricas e metodológicas
para o processo de geração e de análise de dados da investigação sobre as práticas de
letramento no ensino de leitura e de escrita no Ensino Médio. Para tanto, são expostos alguns
pressupostos teóricos da pesquisa interpretativista, de caráter qualitativo; são apresentadas e
definidas as estratégias usadas para a geração dos dados e são descritos: o contexto da
pesquisa, os sujeitos da pesquisa e as categorias de análise.
4.1 TIPO DE PESQUISA E INSTRUMENTOS DE GERAÇÃO DE DADOS
A pesquisa interpretativista é o que se convencionou denominar “tradição inovadora”.
Por essa razão, apresenta bases ontológica, epistemológica e metodológica diferentes da
pesquisa positivista. Quanto ao aspecto epistemológico, produzir saber na corrente positivista
consiste em realizar a observação direta de variáveis controláveis de um fato, enquanto que,
na corrente interpretativista, o acesso ao fato deve ser efetivado de forma indireta, pelos
vários significados que o constituem.
No âmbito metodológico, para a primeira forma de investigação, as variáveis sociais
são passíveis de padronização, o tratamento estatístico é utilizado para gerar generalizações;
para a segunda forma de investigação, os múltiplos significados são passíveis de
interpretação, pois eles são construídos e reconstruídos no processo de interação. Nesta forma
de produzir conhecimento, o fator qualitativo é o que interessa.
No que se refere ao aspecto ontológico, a posição positivista concebe que o mundo
social independe do contexto pesquisado; para a interpretativista, o homem atribui
significados ao mundo social, logo não pode ser colocado à margem do processo e é
impossível ignorar o ponto de vista dos participantes da sociedade investigada e daquele que a
investiga (MOITA LOPES, 1994). De acordo com Moita Lopes (1996, p. 22), a pesquisa
interpretativista representa “um foco de investigação diferente, revelador, portanto, de novas
descobertas que não estão ao alcance de pesquisa positivista [...] que pode ser mais adequado
à natureza subjetiva do objeto das Ciências Sociais”.
Moita Lopes (1994) apresenta os dois tipos de pesquisa interpretativista: a
introspectiva e a etnográfica. A primeira está fundamentada no referencial teórico da
Psicologia Cognitiva e é utilizada na investigação dos processos que subjazem à compreensão
e à produção da linguagem, bem como dos processos de ensino-aprendizagem de língua. A
79
segunda nasce nos campos da Sociologia e da Antropologia43
e procura localizar o contexto
social da perspectiva dos participantes, ou seja, considera a visão dos mesmos, inclusive do
observador-participante sobre todo o contexto social.
Como toda corrente teórica que estuda objetos complexos, a etnografia não apresenta
uma abordagem única. Campos (2003) apresenta dois tipos de práticas etnográficas:
convencional e crítica. Baseado em Thomas (1993), Campos (2003, p. 81-82) mostra que a
primeira seria “herdeira de um campo voltado para descrever ‘o que é? Preocupada em
manifestar ‘significados através da interpretação de significados’; enquanto que a segunda
“estaria preocupada em perguntar ‘o que poderia ser’ e tentaria provocar a reflexão dos
sujeitos da pesquisa”. Para a perspectiva crítica, não é necessário somente conhecer e
descrever os fatos, tal como preconiza a vertente convencional, mas é preciso refletir a relação
entre o conhecimento e o posicionamento político do pesquisador e dos sujeitos interados na
pesquisa (CAMPOS, 2003, 2004).
André (1995) reconhece a etnografia como um tipo de investigação efetivada por
antropólogos para pesquisar uma dada cultura ou sociedade e observa que na área da
Educação realizamos pesquisa de cunho etnográfico, que permite (re)construir processos e as
relações que constroem a experiência da escola em seu cotidiano e possibilita atentar para os
valores, os hábitos, as crenças, as práticas e os comportamentos de um dado grupo social.
Nesse sentido, é caracterizado pelos seguintes procedimentos: observação participante e
colaborativa do pesquisador; entrevista e análise de documentos; interação entre o
pesquisador e os sujeitos da pesquisa; ênfase no processo e não no produto final; atenção
reservada ao significado, com a perspectiva que os sujeitos têm de si e da realidade a que
pertencem; geração dos dados por pesquisa de campo (ANDRÉ, 1995).
Para Erickson (1990; ERICKSON; SHULTZ, 2002), este tipo de pesquisa possibilita
fazer uma descrição das ações dos atores envolvidos no cotidiano escolar voltada à
observação detalhada, acurada, minuciosa de ocorrências reais, específicas e situadas, a fim
de que possamos compreender as diferentes perspectivas e dimensões do processo de
construção de sentidos encenados pelos diversos atores em nossos multifacetados e
complexos cenários investigativos. De acordo com o pesquisador, a etnografia objetiva
43 Franz Boas é pioneiro no campo de realização da pesquisa etnográfica. Bronisław Malinowski também
apresenta relevantes contribuições para a realização do referido modo de gerar dados de pesquisa, a saber: a
importância da observação participante, a ênfase da permanência do pesquisador no campo de investigação, a
relevância da linguagem no processo constitutivo dos objetos e sujeitos pesquisados. Segundo o autor, a análise e
descrição das formas de linguagem podem revelar sistemas e significados de dada cultura (LOPES, 2006).
80
responder aos seguintes questionamentos: o que está acontecendo no âmbito social em um
determinado cenário? Como os eventos estão organizados em termos de padrões sociais e
princípios culturais do cotidiano? O que tais eventos e ações significam entre os participantes?
Como pode um sistema investigado ser comparado a outro existente em diferentes contextos?
(GARCEZ; SCHULZ, 2015).
Nesse sentido, a pesquisa de campo deve ser norteada pelas perguntas que embasam a
investigação, requer um trabalho de imersão intensa e duradoura no lócus de trabalho, gerar
um rico banco de dados em termos de notas, observações, documentos, eventos e materiais,
bem como a organização e sistematização destes dados, a fim de que possibilite estabelecer
um processo interativo, visível, que conduza a recorrente e constante indução e dedução do
dado observado e viável de análise em meio ao cenário rico, heterogêneo, pluridiscursivo,
típico de investigações que abordam realidades complexas e tensionadas pelas lutas de classe,
entre culturas, línguas e identidades, quase sempre em situação de desigualdade, de
(contra)hegemonia, de disputas de poder e de legitimidade.
Tendo em vista estes pressupostos, o processo de geração de dados da nossa pesquisa está
inscrito no campo da investigação etnográfica, de base qualitativa, crítica, por considerarmos
que esta opção metodológica pode contribuir para melhor compreender a realidade da escola
pública, de nível médio e de periferia, cenário da investigação em voga. Para nortear nossas
ações de pesquisa, (re)alinhamos os questionamentos supracitados da seguinte forma:
Quais são os eventos e as práticas de letramento voltados ao ensino de leitura e
de escrita no EM?
Quais são os objetos de ensino mobilizados e os objetivos do ensino de leitura
e de escrita voltadas ao ensino que considere e convoque diferentes
letramentos para a construção do processo de escolarização da leitura e da
escrita no EM?
Como esta organização curricular, disciplinar, escolar investigada pode ser
problematizada em relação às práticas de letramento consideradas mais
estáveis e as práticas de letramento escolar “emergentes” na construção da
aula de Língua Portuguesa?
Cavalcanti e Moita Lopes (1991) ressaltam que a “pesquisa de base antropológica” é
um caminho para refletir e produzir conhecimento no âmbito da Linguística Aplicada. Nessa
direção, Moita Lopes (1994; 1996; 2006; 2013a, 2013b) e Cavalcanti (1986; 2006) vêm
defendendo que as pesquisas realizadas em ambientes institucionais em que as práticas sociais
81
são encenadas e construídas pelos diferentes usos da linguagem passaram a ser de capital
importância para o campo da Linguística Aplicada.
Para Moita Lopes (1996, p. 87), a pesquisa de natureza, de base ou de cunho
etnográfica já era a opção metodológica predominante no campo de investigação da LA. O
pesquisador sinalizava a escolha em investigações efetivadas no contexto nacional e
internacional, que se dedicavam a descrever de modo denso, profundo, detalhista o cotidiano
escolar para compreender os padrões interativos construídos em contextos situados, ancorados
em realidades de sala de aula, atentando para a possibilidade do olhar do pesquisador para as
questões específicas do processo de ensino-aprendizagem.
Cavalcanti (2006) sugere um “olhar metametodológico” para cogitarmos as consequências
das opções metodológicas, em função dos possíveis perigos e equívocos que podem ser
ocasionados ao narrarmos a cultura, a língua e as identidades do outro. Nessa direção, a autora
prefere denominar seu investimento de pesquisa como “de natureza etnográfica”, porque faz
uso de algumas orientações da etnografia para o processo de geração dos dados, porém não se
restringe a apenas este universo disciplinar.
Moita Lopes (2006) intitula a prática de fazer pesquisa do linguista aplicado como
“indisciplinar”, híbrida, mestiça, a fim de que possa estar ainda vinculada a uma atitude
responsiva social. Fonseca (1999) chama a atenção para algumas peculiaridades da utilização
do “método etnográfico” apenas para a abordagem de eventos únicos sem atentar à
necessidade da sistematização dos dados. Consoante a estudiosa, é necessário estranhar,
sistematizar e comparar fatos e situações para qualificar o trabalho como etnográfico.
Dessa forma, Garcez e Schulz (2015) defendem, que para tentar assegurar uma pesquisa
etnográfica em LA, é necessário investir em um trabalho de reconhecida qualidade. No
entendimento de Rampton, Maybin e Roberts (2014, p. 21), uma pesquisa no campo da
“etnografia da linguagem” pode ser caracterizada do seguinte modo: “cuidadosa, lógica,
responsável, explícita, cética, bem informada, comparativa e original, conduzindo à produção
de asserções interessantes em que as pessoas em determinada comunidade discursiva possam
confiar”44
. Nesse sentido, investigar práticas de letramento requer observação minuciosa das
práticas sociais efetivas em determinados contextos culturais. Trata-se de pesquisar os usos, as
44 Tradução de Garcez e Schulz (2015, p. 21-22).
82
funções e os significados atribuídos à escrita em diferentes contextos geográficos, linguísticos,
culturais, históricos45
.
Nessa direção, esta pesquisa de cunho etnográfico está circunscrita ao campo dos
estudos aplicados, a fim de problematizar questões concernentes ao ensino de língua materna,
especificamente, o ensino da leitura e da escrita, a partir do trabalho de uma professora de
Língua Portuguesa, representante formal da cultura escolar, voltada à formação escolar em um
cenário institucional público, estadual, de nível secundário, situado em uma periferia de uma
das principais capitais do norte do país. Em outras palavras, nosso trabalho busca recapitular e
encaminhar o seguinte itinerário discursivo:
Em vez de recapitular o que todos os que estão do lado de fora acham que sabem, é
só chegar mais perto do que muitos professores e alunos vivenciam de fato. Assim, as
salas de aula surgem como lugares onde dia após dia os participantes lutam para se
reconciliar uns com os outros, com os seus futuros, com as normativas políticas e os
movimentos da história, lugares onde a estética vernácula é combustível tão potente
quanto à transmissão de conhecimento, lugares onde o currículo coabita com a
música popular e a cultura midiática, um lugar onde os estudantes fazem o melhor
que podem com matérias nada promissoras, e onde os participantes se batem com o
significado da estratificação de classe social, em esforços empreendidos pela flexão
de ambivalência social46
. (RAMPTON, 2006, p. 3-4).
Portanto, os sujeitos da educação também se constituem cidadãos, debatem temas
relevantes, discutem sobre conhecimentos linguísticos e realizam atividades escolares e
eventos de letramento. Por isso, é pertinente a este percurso investigativo “identificar as
práticas culturais, os locais específicos e os contextos de uso, bem como as condições em que
foram forjadas as trajetórias dos sujeitos e as atividades presentes em seu percurso de
socialização” (VÓVIO; SOUZA, 2005, p. 49).
A fim de que um empreendimento investigativo dessa natureza seja contemplado,
mobilizamos diferentes instrumentos de pesquisa para o processo de geração dos dados que
venham a revelar por intermédio da linguagem os indícios constitutivos das identidades, dos
contextos e dos usos da leitura e da escrita no seu cotidiano, a saber: diário de campo,
gravação em áudio e vídeo, entrevista, fotografia, aplicação de formulário, entrevista,
observação participante, o que permite analisar como são construídas as práticas de letramento
e como elas podem servir como espaço de interlocução com o contexto pesquisado (VÓVIO;
SOUZA, 2005).
45A saber: estudos de Scribner e Cole (1981, Libéria, comunidade Vai), estudos de Heath (1982,1983,
comunidades do sul dos EUA), estudos de Street (1984, vilarejos no Irã), estudos de Barton e Hamilton (1998,
Lancaster, na Inglaterra). 46
Tradução de Garcez e Schulz (2015, p. 26-27).
83
Seguindo esta orientação metodológica, utilizamos para a captação dos dados
audiovisuais os seguintes equipamentos: MP3 Sony modelo NWZ-B162F, gravador Sony
profissional modelo, celular Nokia 701, câmera 8mp, câmera Canon semiprofissional (modelo
SX 400 IS), bem como fizemos uso do diário de campo para as anotações de observações
realizadas na escola de EM, efetivamos a recolha de materiais escritos e documentos referentes
ao processo de ensino. Abaixo, são apresentadas as estratégias usadas para a geração dos
dados:
Realização de entrevistas com professores responsáveis pela disciplina Língua
Portuguesa, bem como docentes e coordenadores pedagógicos das turmas do
terceiro ano do EM pesquisadas;
Realização de entrevistas com alunos que cursam o terceiro ano do Ensino
Médio;
Acompanhamento e registro em áudio e vídeo de aulas da disciplina curricular
Língua Portuguesa;
Acompanhamento e registro do processo de avaliação realizadas, reunindo
inclusive avaliações escritas dos discentes;
4.2 LÓCUS DE PESQUISA: A REGIÃO, A CIDADE, O BAIRRO
Belém, outrora denominada Santa Maria de Belém do Grão Pará, capital do Estado do
Pará, constitui uma das principais vias de entrada para a região norte do Brasil. Do ponto de
vista geográfico, segundo o IBGE (2010), está situada às margens do Rio Guamá, próximo à
foz do rio Amazonas, possuindo uma área de aproximadamente 1. 064.918 km² e população
estimada em 1. 439.561 habitantes, que reside no núcleo metropolitano, oficialmente dividido
em 71 bairros distribuídos por 8 Distritos Administrativos. Possui, também, uma quantidade de
39 ilhas em alguns destes distritos (GUSMÃO, 2013).
Um destes é o Distrito Administrativo do Guamá, denominado DAGUA, constituído
por seis bairros. Boa parte da população residente neste distrito é de baixa renda, oriunda de
municípios do interior do Estado. Além disso, nestes bairros, há elevados índices de pobreza,
de violência, falta de saneamento básico e toda sorte de problemas de ordem social típicos dos
bolsões de miséria que, lamentavelmente, formam a paisagem das metrópoles brasileiras,
resultado notório da exclusão, que leva ao cenário de desordem urbanística e social (IBGE,
2010; COUTO, 2014).
84
Na segunda metade do século XX, este distrito, área de baixada da cidade, recebeu o
fluxo populacional menos favorecido economicamente. Devido à proximidade do distrito aos
rios e portos da cidade, esta área passou a abrigar uma parcela significativa da população que
migra dos interiores para a capital em busca de melhores oportunidades de trabalho e de vida,
o que tem ocasionado o significativo aumento demográfico desta área, bem como o aumento
de demanda de serviços básicos como assistência à saúde, condições de saneamento básico -
drenagem pluvial, tratamento de esgoto, rede de água potável, serviço de coleta de lixo-,
acesso a estabelecimentos de ensino, áreas de lazer, dentre outros. Para Couto (2010, p. 81),
a valorização urbana da área central estimula uma ocupação mais acentuada das áreas
periféricas da cidade, sobretudo, aquelas excluídas do mercado imobiliário [...] a
periferia passou a receber um grande contingente populacional, inclusive do interior
do estado, sem, contudo, receber a infraestrutura adequada para organizar o espaço.
O pesquisador defende que este crescimento desordenado, marcado por movimentos
de ocupação de áreas públicas e privadas e por uma disposição intraurbana fragmentada,
conduziu a um processo de segregação socioespacial e de favelização destes espaços. Além
disso, o mesmo pesquisador sinaliza para outras problemáticas decorrentes deste processo de
periferização, a saber: o estigma em relação aos que residem nestes locais, sérios problemas de
integração, de convivência, de autoestima coletiva, cenário fértil para expansão e consolidação
de redes criminosas como as redes de narcotráfico e de tráfico de pessoas (COUTO, 2010).
4.2.1 A escola
A escola estadual, lócus de geração dos dados da tese, está localizada no coração de um
dos bairros mais populosos e violentos deste distrito: a Terra Firme que abriga, segundo o
IBGE (2010), uma população de mais de 61 mil pessoas. A população jovem de 05 a 25 anos
está estimada em aproximadamente 22.995, o que corresponderia a 37% dos ocupantes desse
território. O bairro é entrecortado por um dos principais canais que formam a bacia do
Tucunduba, que serve como via para escoar embarcações que transportam pessoas,
mercadorias e madeira, contribuindo assim para impulsionar o comércio do bairro e de toda
área da bacia do Tucunduba47
.
47 A bacia do Tucunduba tem localização a sudeste da cidade de Belém e corresponde a um dos afluentes do rio Guamá,
possui aproximadamente 1055 ha, dos quais 575 há estão em áreas de “baixadas” o que corresponde a 21, 02% das áreas de
várzea de Belém (DNOS, 1974). Compõem essa bacia 13 canais com 14.175 metros de extensão dos quais 7.865 metros são retificados. O canal principal da bacia do Tucunduba, onde se encontram as comunidades Riacho Doce e Pantanal, é
considerado pelos moradores o marco divisor entre os bairros do Guamá e Terra Firme, embora a lei nº 7.806 30/071996
estabeleça outra delimitação” (MARQUES, 2001, p. 69, apud COUTO, 2010, p. 80).
85
Foto 1 - Bairro da Terra Firme: vista do Canal do Tucunduba para a parte alta da
cidade
Fonte: Pesquisa de campo, 2016. Foto: Jean Brito.
A instituição pesquisada foi fundada em 1972. No ano letivo de 2016, possuía 2.04848
alunos matriculados e distribuídos em três turnos de funcionamento, constituindo a segunda
maior escola da Secretaria Estadual de Educação em número de alunos. Deste universo, 874
cursavam o EM, seja na modalidade regular (Res. 191/2011), seja na modalidade expandido
(Res.191/2011), seja na modalidade EJA (1ª e 2ª etapa). Nesta agência, atuam
aproximadamente 70 professores especialistas, mestres e doutores. Quanto à oferta de
modalidades, encontramos a oferta do Ensino Fundamental (I e II, regular/ EJA), Ensino
Médio (regular/ EJA), Atendimento Educacional Especializado e turmas de aceleração do
projeto Mundiar49
(Fundamental e Médio).
A secretaria estadual, em parceria com a Fundação Roberto Marinho, criou o projeto
devido ao considerável número de alunos em distorção idade/série, que, no Ensino
Fundamental chega a 47% dos alunos e no Ensino Médio alcança 64% dos alunos. As turmas
atendidas pelo Mundiar devem ser atendidas de modo diferenciado, a fim de tentar promover
um trabalho diferenciado para este público, a partir da metodologia e do material didático,
designados pelas instituições proponentes.
Nesse entremeio, resta questionar o que uma professora de Língua Portuguesa realiza
em suas aulas de ensino de leitura e de escrita para ampliar os Letramentos Críticos de seus
alunos neste contexto social? Contexto este, muito vulnerável, estratificado, multifacetado, do
ponto de vista, econômico, estrutural, educacional; mas muito rico, do ponto de vista, de
48 Informação disponível no endereço eletrônico: http://www.seduc.pa.gov.br/site/seduc. Acesso em: 04 de julho
de 2016. 49
Informações disponíveis em: www.seduc. pa.gov.br. Acesso em: 24 de setembro de 2015.
86
produções culturais, comerciais, de movimentos sociais, quase sempre, não legitimados, mas
que estabelecem constantes contatos com as instituições consideradas legitimadas.
Nesse ínterim, tais produções e relações estão em efervescência e se entrecruzam, se
mesclam e se conflitam nesta arena de letramentos e de (sobre)vivências que é o bairro da
Terra Firme e a escola investigada.
Fotos 2 - Escola Estadual Fotos 3 - Sala de aula do Ensino Médio
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016. (Ferreira, 2016). Fonte: Pesquisa de Campo, 2016. (Ferreira, 2016).
A escolha desta escola pode ser justificada por dois fatores que consideramos
significativos: (i) a instituição é a maior agência de letramento escolar bairro e a segunda
maior escola em número de alunos da rede estadual do Pará; (ii) a autora desta tese é
professora de Língua Portuguesa da escola, o que possibilitou acessar a instituição, além de
poder desenvolver e acompanhar juntamente com outros profissionais da escola projetos
institucionais relevantes para o processo de ensino-aprendizagem na educação básica. Essa
aproximação, a priori, despertou para conhecer melhor o que a docente investigada fazia,
quando dizia estar realizando um projeto em sala de aula, bem como sinalizou a necessidade
de melhor compreensão sobre o trabalho docente realizado por estes profissionais, neste
contexto, marcado por um processo de extrema exclusão e vulnerabilidade social.
87
4.3 SUJEITOS DA PESQUISA
Os principais sujeitos da pesquisa são alunos de uma turma do terceiro ano do EM e
uma professora da disciplina Língua Portuguesa, que designamos pelo pseudônimo de Bia
Paiva. A seguir, apresentamos um breve perfil de cada grupo referenciado, conforme o perfil
delineado nos questionários aplicados e entrevistas realizadas.
4.3.1 Professora de Língua Portuguesa
Bia Paiva50
está na faixa etária de 36 a 40 anos, é casada e declara ter cinco filhos.
Negra, filha de uma professora de Língua Portuguesa e de um fotógrafo profissional, criada no
bairro da Cremação, periferia de Belém. Ela é graduada em Letras, habilitação em Língua
Portuguesa, concluiu o curso no ano de 2002, é especialista em Língua Portuguesa, já fez
disciplinas do curso de Mestrado em Letras (área de concentração Literatura) como aluna
especial. Toda sua formação superior foi realizada na Universidade Federal do Pará.
Trabalha há 17 anos no magistério e iniciou a prática docente ministrando aulas
particulares e oficinas sobre o Português Padrão e não padrão - baseadas em livros do Prof.
Marcos Bagno - na Casa da Linguagem51
, para professores, oriundos do antigo curso
secundário magistério, que atuariam nas séries iniciais. Segundo a docente, esta experiência foi
muito significativa para a sua formação e atuação profissional, pois a interação com estes
professores recém formados, que praticamente desconheciam esta discussão a respeito das
variedades linguísticas, preconceito, língua como instrumento de poder e de hierarquização
social influenciou muito todo o trabalho que ela realizou, posteriormente, nas redes pública e
privada de ensino, como professora de gramática, de redação e de literatura.
Atualmente, a docente exerce seu ofício exclusivamente na rede estadual de ensino do
Pará, é moradora do bairro onde está situada a escola, fundadora de um dos coletivos culturais
da comunidade e exerce um papel atuante em questões sociais, culturais e educacionais. O
reconhecimento por todo o trabalho ora realizado há quase uma década na maior escola
pública estadual do bairro veio final do ano passado, quando a XI edição do Prêmio
Professores do Brasil concedeu a ela o título de melhor professora na categoria Ensino Médio
50 Nome fictício.
51 Vinculada à Fundação Cultural do Estado do Pará, a Casa da Linguagem funciona em um prédio histórico que
data de 1870, localizado na área central da Belém, próximo ao famoso Teatro da Paz e outras construções do
complexo arquitetônico da capital paraense. É um espaço de formação para o campo das linguagens em que são
ofertadas oficinas, minicursos, lançamentos de livros, saraus, apresentações culturais, ofertadas gratuitamente ou
mediante o pagamento de taxas de baixo custo. Para maiores informações ver: http://www.fcp.pa.gov.br/espacos-
culturais/casa-da-linguagem.
88
pelo desenvolvimento do projeto Juventude Periférica: do extermínio ao protagonismo,
realizado ao longo do ano de 2018 na escola supracitada e descrita, que deu origem ao Cine
Club TF, atual coletivo cultural, coordenado atualmente pela docente no bairro da Terra Firme.
4.3.2 A turma do terceiro ano do EM
A turma era frequentada efetivamente por 23 jovens, residentes no bairro da Terra
Firme: 56.5% declararam gênero feminino e 43.5% do gênero masculino, 100% estavam
solteiros (as) e na faixa etária de 15 a 20 anos, não tinham filhos. Uma aluna desta turma
estava grávida. Somente 13% dos alunos declararam ter uma atividade remunerada - lavador
de carro, cabeleireiro, autônomo-, os demais, 87% declararam não exerciam uma atividade
formal, mas faziam pequenos trabalhos e/ou ajudavam a família ou terceiros em pequenas
vendas - loja de roupa, venda de vísceras, carro de lanche - no comércio local. Todos
concluíram o Ensino Fundamental em escola pública, na modalidade regular.
Em relação à escolaridade dos pais, constatamos as seguintes informações sobre a
escolaridade básica materna: 4,4% possuíam Fundamental completo; 26% tinham o
Fundamental incompleto; 47,8% possuíam EM completo, 13% somente o EM incompleto e
apenas 8,8% concluíram o Superior completo. Em relação à escolaridade paterna: 4.4%
tinham Fundamental completo, 26% apenas Fundamental incompleto, 34,8% completaram o
EM, 26% o EM incompleto e apenas 4,4% completaram o ensino superior. É importante
sinalizar que a maioria das mães destes jovens possui um nível de escolaridade mais elevado
se comparado aos pais.
Quando questionados em relação a sua formação letrada, os alunos creditam à escola o
papel de principal agência de letramento (52,2%). Juntas, Família, Igreja e Teatro
correspondem a 47,8% das respostas. 56,4% consideram a figura do professor como um
agente central no processo de formação de leitor, seguido da figura materna (34,8%) e do pai
(8,8%). Embora não apareça nos dados estatísticos, alguns alunos citaram a figura da avó
como uma pessoa importante para a construção da sua trajetória de letramento.
Quanto ao acesso e ao domínio da escrita, 78,2% destes estudantes consideram que a
escola foi a instituição onde aprenderam a escrever e 21,8% afirmam que a família e a igreja
contribuíram para o aprendizado da escrita. Eles afirmam usar a escrita no dia a dia, em
especial, para fins escolares (47,8%) e para uso das redes sociais (13%). Por sinal, a maioria
afirma ter acesso à internet (95,6%) e a considera como principal veículo de comunicação
89
para ter acesso a redes sociais, notícias, curiosidades, conteúdos escolares, documentários,
contos.
Todos estes alunos afirmaram já ter lido, pelo menos, um livro52
ao longo da sua
trajetória escolar. Em relação a outros bens culturais, os estudantes relataram ter acesso a
filme, música, festas populares, dança, teatro. Por fim, cabe mencionar que boa parte destes
jovens (91,3%) participa ou já participou das atividades realizadas pelos coletivos culturais53
do bairro.
Em relação aos temas debatidos na escola mais recorrentemente, eles apontam os
seguintes: preconceito em geral, racismo, cultura negra, homofobia, questão de gênero,
bullying, cultura do estupro, diversidade cultural, violência, saneamento básico, desigualdade
social, história do Pará, cultura local. Os temas são atuais e delineiam um trabalho com as
demandas locais de formação, tais como desigualdade social e cultura local, além das
temáticas que também incidem sobre esta população. No que se refere aos recursos didáticos
que consideram facilitadores da aprendizagem escolar, os alunos acreditam que o uso da
Internet e de recursos tecnológicos contribuiria, consideravelmente, para a aprendizagem,
porém a escola, muitas vezes, não os disponibiliza.
Os estudantes, contudo, percebem o esforço dos professores em preparar
apresentações e levar seus próprios equipamentos para facilitar o processo de ensino-
aprendizagem. Esse dado denuncia que, embora a Internet hoje faça parte da formação desses
alunos, ela se constitui ainda como uma ferramenta que a escola nega a estes sujeitos. Eles
acabam reconstruindo o acesso de outra forma, por via de outros meios negociados, mas não
com o sistema escolar vigente.
Quanto às ações didáticas facilitadoras da aprendizagem, 39,1% acreditam que
atividade e explicação viabilizam a construção do processo de aprendizagem e 30,4% creditam
somente a “boa” explicação do professor a ação didática mais relevante no processo de ensino.
52 Livros que os alunos mencionam quando questionados acerca da última leitura que fizeram: 50 tons de cinza,
Rei congo, A maldição do tigre, O nome da rosa, O pequeno príncipe, After, Tomorrow land, Manifesto
comunista, O império, A cidade que encolhe, Mentes brilhantes, Caverna do dragão, Azul, O alienista, Tudo e
todas as coisas, Mentes tranquilas, Almas felizes. No questionário, não perguntamos que obras foram indicadas
pela escola, mas em virtude das nossas observações e convivências em campo, supomos que são livros
recomendados pelos professores da escola, pelos coletivos culturais do bairro, pelas igrejas – há muitas igrejas
evangélicas espalhadas pelo bairro- e pelos familiares, parentes ou amigos mais próximos. 53
Na pesquisa aqui descrita, estamos entendendo que os coletivos culturais podem ser considerados “instituições”
não formais que atuam na comunidade nas seguintes áreas: Capoeira, Dança de Rua, Teatro, Comunicação.
Alguns dos coletivos mais atuantes no bairro são: Teatro Ribalta (promoção de oficinas de teatro), Tela Firme
(grupo que gerencia mídias para divulgar acontecimentos da comunidade), Casa Preta (grupo que discute
questões de negritude e realiza eventos para a promoção da cultura afrodescendente e indígena), Capoeira
Angola: eu sou angoleiro (grupo que ensina e promove a capoeira angola no bairro).
90
Em relação ao ensino de Língua Portuguesa, destacamos os seguintes dados: 39,1%
consideram-no importante para a melhoria da prática de ler, de escrever e de falar
“corretamente”, 26% concebem a relevância desta disciplina para o mundo do trabalho,
preparação para o ENEM e para formação do indivíduo; 8,8% analisam que os alunos têm
direito de conhecer a gramática e os usos da Língua Portuguesa; 4,4% julgam que a
apropriação dos conhecimentos da LP contribui para a melhoria da aprendizagem de conteúdos
de todas as demais disciplinas, para observar e compreender a realidade a sua volta. No que
tange aos gêneros textuais trabalhados na escola, os discentes dizem já ter trabalhado com os
seguintes: letra de música, seminário, carta, crônica, poema, redação - texto dissertativo,
narrativo, argumentativo e “textos” jornalísticos.
Para finalizar este tópico, elencamos o que estes alunos indicam como possíveis
melhorias para o EM na escola investigada: (i) melhor estrutura física, (ii) disponibilidade de
recursos tecnológicos , dentre eles, o livre uso da Internet e de equipamentos como:
computadores, data show, (iii) abertura da biblioteca, (iv) inclusão de atividades culturais, (v)
aulas mais dinâmicas, (vi) “pontes” entre as disciplinas escolares, (vii) uso de material didático
mais específico, contendo mais fontes e detalhes, (viii) melhor interação entre discentes e
docentes, (ix) mais participação dos alunos nas atividades escolares, (xi) um menor número de
paralisações, (xii) oferta de merenda escolar e de água de boa qualidade.
4.4 PROCEDIMENTO METODOLÓGICO PARA DESCRIÇÃO DAS AULAS
Para descrever as aulas selecionadas, usamos um instrumento de descrição específico:
a sinopse. Conforme Schneuwly, Cordeiro e Dolz (2000, p. 25):
A sinopse é um instrumento metodológico utilizado para condensar uma unidade de
ensino. Ela é constituída por trechos das sequências de ensino e auxilia no processo
de comparação e análise de dados, bem como para situar momentos específicos de
todo o material didático organizado. O nível de condensação é definido
pragmaticamente pelas atividades descritas. Esta forma de reduzir as sequências
didáticas permite evidenciar a estrutura hierárquica e as sequenciação das unidades e
sequências de ensino54
.
Para os pesquisadores mencionados, a sinopse é um instrumento de descrição das
atividades efetivadas em sala de aula, a fim de apresentar os principais traços constitutivos do
54 Tradução nossa de "Le synopisis est un outil pour condenser en une unité plus appréhendable les transcriptions
des séquences d’ enseignement afin de les rendre comparables et analysables, d’ en saisir la structure et de
pouvoir situer chaque moment analysé dans un tout. Le dregré de condensation est défini pragmatiquement par
les fonctions que nous venons de décrite ; pour donner une idée quantitative [...] La forme de cette réduction doit
permettre de mettre en évidence la structuration hiérarchique et la séquentialité d’ une séquence d’
enseignement.”
91
trabalho docente, que permite demonstrar a construção de objeto de ensino, os modos de
apresentação, os dispositivos didáticos usados ao longo da intervenção didática. Trata-se de
uma macroestrutura ou um sistema da lógica geral do trabalho docente. Por intermédio deste
instrumento, é possível definir pragmaticamente as etapas de uma unidade do trabalho de
ensino, conferir a quantidade de sequências e de módulos de trabalho, demonstrar a estrutura
hierárquica e a sequenciação das unidades ensinadas.
A produção de sinopses demanda tarefas básicas, a saber: (i) transcrição das
sequências de ensino de modo integral; (ii) leitura dos dados para o levantamento das
atividades realizadas; (iii) etiquetagem das atividades desenvolvidas ao longo das aulas; (iv)
decupagem das ações docentes executadas; (v) (re)constituição da narrativa de cada nível da
atividade escolar. Integrado a estas tarefas, é necessário apresentar as informações interligadas
ao contexto, às situações de ensino, aos dispositivos didáticos, aos suportes e aos modos de
trabalho concatenados ao processo de decomposição e transformação de um dado objeto de
ensino.
Tendo em vista os pressupostos teóricos sobre sinopse do grupo de didática das
línguas de Genebra, usamos sinopses para o trabalho de descrição dos dados. Isso pode ser
justificado pelo fato de as mesmas facilitarem a recuperação de momentos das aulas e a
realização de gestos profissionais55
do ensino, além de outras características, como a
temporalidade do objeto - memória e antecipação didática-, os dispositivos didáticos, a
regulação, a reação e o efeito de obstáculos para a construção de um objeto, a
institucionalização de novos saberes, a avaliação, etc. Porém, o modelo de sinopse utilizado é
uma adaptação utilizada em Ferreira (2008), inspirada no modelo produzido pelo grupo de
Genebra, para descrição de aulas do contexto escolar brasileiro.
Para os fins desta investigação, elegemos os elementos que consideramos mais
pertinentes ao desenvolvimento da atividade de ensino: os marcadores de tempo para cada
tarefa, os dispositivos didáticos, a descrição geral de cada atividade efetivada. Vejamos a
seguir o modelo de sinopse a ser adotado:
55 Os gestos profissionais constituem uma das etapas de análise fundamentais para o entendimento do desenvolvimento e
progressão do trabalho de ensinar. O professor recorre a uma série de gestos profissionais para o entendimento da lógica das
atividades empreendidas, essenciais à abordagem do processo de ensino-aprendizagem de um objeto de ensino. As análises
de aulas efetivadas pelo grupo de Genebra apontam para quatro gestos fundamentais: memória e antecipação – é um gesto
ligado a um conhecimento que deve ser lembrado ao longo do processo didático; Proposição dos dispositivos didáticos – durante o ensino, a elementarização (divisão, compartilhamento) do objeto é traduzida em diferentes suportes materiais e
modos de trabalho, revelando diferentes dimensões do objeto; Avaliação e regulação- para descrever e compreender o lugar
da avaliação e da regulação, da construção e da transformação de um objeto de ensino; IV- Institucionalização – esse gesto é
concebido como fixação explícita e convencional de um saber a ser construído num dado nível de aprendizagem e a ser utilizado e cobrado em determinadas circunstâncias. Informações apresentadas em Ferreira (2008, p. 53-61), construídas a
partir do seguinte referencial teórico-metodológico: SCHNEUWLY; CORDEIRO; DOLZ (2000), SCHNEUWLY (2001),
SCHNEUWLY; DOLZ; RONVEAUX (2005). Cabe mencionar que tais categorias não serão utilizadas neste trabalho.
92
Quadro 5 - Modelo de identificação
Sinopse de sequência de ensino:
Professora: Episódio:
Série: MP3 Tempo de gravação: Data:
Quadro 6 - Modelo descritivo
Nível Marcadores Instrumentos Descrição das Atividades
1 Episódio 1
Reconstituição
Cadernão56
Introdução ao estudo de erro e estilo: conceituação, exemplificação e início
da resolução dos primeiros exercícios.
1.1 5’40’’-10’53’’
t.3
----- Comentário geral sobre o que vem a ser o uso criativo da linguagem e
exemplificação.
1.2 10’54’’- 23’14’’
t.3 a 36
-----
Exposição sobre a problemática da criatividade e o rompimento com a
gramática normativa: conceituação de erro e exemplificação.
1-3 23’15’’- 31’40’’
t.36 a 64
-----
Leitura de uma peça publicitária e questionamentos sobre duas leituras
possíveis para o texto. Comentário da professora sobre o sentido subjacente
ao texto da propaganda.
1.4 35’16’’- 41’11’’
t.74 a 110
-----
Início da resolução do primeiro exercício: leitura de uma propaganda da
Sadia.
Fonte: Ferreira (2008, p. 63).
O nível 1 faz referência à tarefa geral a ser feita em uma etapa do trabalho de ensino, os
sub-níveis (0, 1.1, 1.2, 1.3, 1.4) estão articulados às etapas de trabalho para executar a tarefa
geral. Em relação aos sub-níveis iniciados por zero, temos dois casos: o nível 0 transição, que
se refere à passagem de uma tarefa para outra e o nível 0 intermediário, que faz menção à
retomada de uma dada informação. A leitura dos níveis hierárquicos do maior para o menor
deve possibilitar a construção da tarefa geral. Os marcadores correspondem ao tempo em que
cada nível é construído e aos turnos em que os níveis estão dispostos. O instrumento diz
respeito aos dispositivos didáticos mobilizados no processo de construção do trabalho ensino
(SCHNEUWLY, 2000).
4.5 CATEGORIAS E PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
As categorias de análise foram configuradas a partir da conjugação da leitura teórica e
da análise geral dos dados gerados em campo: entrevistas realizadas com a professora,
sinopses de todas as aulas registradas, textos utilizados em sala de aula, eventos de letramento.
O resultado dessa conjugação sinalizou para a construção de um tripé de análise que pudesse
contribuir para nortear a compreensão, descrição e análise dos dados, uma vez que a seleção
dos objetos de ensino (o que se ensina), o estabelecimentos dos objetivos de ensino (para que
56 Material didático produzido por um grupo de ensino da rede privada de Belém-PA.
93
se ensina) e a organização do trabalho didático (como se ensina) são pilares que constituem e
sustentam as práticas docentes. Assim, nosso foco central de investigação aborda os objetos
selecionados e reconfigurados para serem ensinados, busca atentar para os objetivos
articulados a estas reconfigurações e para as ações docentes que operacionalizam tais práticas
de ensino no supracitado ambiente institucional.
Quadro 7 - Categorias de análise dos dados
OBJETOS objetos linguísticos e discursivos mobilizados nas práticas de ensino de leitura e de
escrita construídas com os alunos na aula de Português do EM, para fins de convocação
de práticas linguísticas, discursivas, culturais de letramentos que se entrecruzam no
âmbito escolar.
DEMANDAS
FORMATIVAS
diferentes finalidades do ensino de leitura e de escrita, considerando a formação escolar
voltada a contemplar as demandas formativas locais, que estão interligadas, imbricadas
às demandas institucionais, legitimadas, dominantes.
AÇÃO DOCENTE Como é encenada a ação de ensinar: que lugar a professora ocupa na construção da
prática de ensino, como estes sujeitos constroem a ação de ler e de escrever nesse
contexto – materiais, atividades, redações – e como se configura essa ação em termos da
mobilização de diferentes letramentos no âmbito da escolarização da leitura e da escrita
no EM.
Fonte: Elaboração própria.
94
5 LETRAMENTOS, RE(CONFIGURAÇÕES) E RESISTÊNCIAS: O ENSINO DE
LEITURA E DE ESCRITA NO TERCEIRO ANO DO ENSINO MÉDIO EM UMA
PERIFERIA DE BELÉM-PA
Este capítulo tem como objetivo analisar os dados gerados na pesquisa de campo. A
primeira etapa compreende o processo descritivo-analítico dos dados: a apresentação das
entrevistas realizadas com a professora a respeito das condições de planejamento e de
perspectivas do trabalho investigado; apresentação e descrição de sinopses de aulas; a
sistematização e organização do trabalho docente em um organograma geral para uma melhor
visualização geral dos dados de sala de aula.
Nesta etapa, também, investimos em uma seção de cunho analítico-descritivo, a fim de
situar as linhas gerais de fundamentação e de alinhamento das perspectivas da prática docente,
em concatenação com o processo de construção da história de formação da professora
investigada e as demandas locais e institucionais anunciadas para a efetivação do trabalho
docente no referenciado contexto de geração dos dados.
A segunda etapa compreende a categorização e especificação dos eventos e das práticas
de letramento pesquisados, buscando situar as práticas de ensino de leitura e de escrita que
refletem o processo de letramento escolar, que revela o atendimento a diferentes demandas
letradas. Ora uma demanda formativa local, vernacular, ora a uma demanda formativa
institucional, prescrita, voltada ao cumprimento das ditas finalidades do Ensino Médio, as
quais evidenciam a diversidade e complexidade constitutiva do letramento escolar, construído
no âmbito do referido de nível de ensino.
5.1 DESCRIÇÃO, SISTEMATIZAÇÃO E ORGANOGRAMA GERAL DO TRABALHO
DOCENTE
No ambiente institucional em que a geração de dados foi realizada, a disciplina Língua
Portuguesa é configurada da seguinte maneira: são ministradas seis aulas de Português -
Língua e Redação- para o terceiro ano do EM e duas aulas de Literatura, isto funciona para as
turmas do diurno57
. Cabe lembrar que dois professores são responsáveis pelo desenvolvimento
da disciplina: um ministra “Português” - Língua e Redação- e outro “Literatura”, o que
caracteriza uma configuração escolar tradicional de ensino de LP no Brasil.
57 Para o noturno, são apenas quatro aulas de Português e duas aulas de Literatura. Isto acontece porque o tempo
de aula no período noturno é menor.
95
Acompanhamos durante dois semestres letivos o trabalho destes dois professores. Para
a análise desta investigação, elegemos apenas o material gerado nas aulas da professora de
“Português”, não só porque possui o maior número de aulas, mas também porque
consideramos mais adequado aos propósitos da pesquisa em virtude da relevância e do papel
do ensino de leitura e de escrita com vistas à formação letrada, crítica e de resistência, a partir
da mobilização da multiplicidade de letramentos em cena no âmbito escolar, que, no dizer da
docente, contribuiria para formar “um intelectual da periferia”.
Nesse contexto, o conteúdo programático da disciplina Língua Portuguesa é definido de
acordo com os programas oficiais vigentes para o referido nível de ensino, prescrito pela
regulamentação estadual e federal e de sistema de avaliação: Programa da Secretaria de
Educação do Estado do Pará, estabelecido pelo Conselho Estadual de Educação (2010), os
Parâmetros Curriculares Nacionais (1999), as Orientações Curriculares para o Ensino Médio
(2006), o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) etc.
Os principais instrumentos didáticos utilizados para o desenvolvimento do trabalho de
ensino anunciado nestas regulamentações oficiais são: livro didático, textos avulsos, obras
literárias, apostilas montadas pelos professores. Quantos aos principais recursos didáticos,
verificamos o uso de quadro, pincel, data show, caixa de som, uso de celulares para a captação
de fotos e vídeos, câmeras semiprofissionais.
Como já foi mencionado, o processo de geração de dados iniciou em maio de 2016 e
findou no início de 201758
, sendo que a priori, realizamos o processo de contato com a
instituição e com os docentes. Antes de iniciarmos a pesquisa da prática docente propriamente
dita, agendamos e realizamos entrevistas com os coordenadores pedagógicos e os docentes de
Língua Portuguesa sobre a organização e o processo de ensino na referida instituição.
Ao longo do processo de geração dos dados, foram realizadas entrevistas com a
professora, os alunos e representantes dos coletivos culturais do bairro. No quadro 8, são
listadas as entrevistas realizadas com os sujeitos da pesquisa mencionados.
58 A previsão da nossa permanência em campo de pesquisa foi condicionada aos seguintes critérios: (i) prazo de
90 a 180 dias; (ii) registro de dois projetos didáticos, contemplando o processo de construção e implementação
dos mesmos. Estes foram os critérios estipulados no projeto de pesquisa Projetos didáticos de Língua Portuguesa
no Ensino Médio em uma escola da periferia de Belém-PA, número do CAAE: 53094915.4.0000.5404, aprovado
no Comitê de ética da Unicamp. O parecer foi expedido no dia 25 de abril de 2016.
96
Quadro 8 - Entrevistas realizadas com docentes, gestores e alunos
Sujeito da pesquisa59
Data da entrevista Tempo de duração
P1. Entrevista 1 28/04/2016 1:08:21
P1. Entrevista 2 08/06/2016 00:58:51
P1. Entrevista 3 24/08/2016 00:32:05
P1. Entrevista 4 30/11/2016 1:56:51
G1.Entrevista 1 03/05/2016 00:28:09
G2.Entrevista 1 31/05/2016 00:40:46
G3. Entrevista 1 31/07/2016 00:57:48
C1. Entrevista 1 04/11/2016 00:29:08
C2. Entrevista 1 07/11/2016 00:10:06
C3. Entrevista 1 17/11/2016 00:40:37
A1. Entrevista 1 04/10/2016 00:14:43
A2. Entrevista 1 04/10/2016 00:09:50
A3. Entrevista 1 04/10/2016 00:17:36
A4. Entrevista1 05/10/2016 00:11:08
A5. Entrevista 1 05/10/2016 00:11:50
A6. Entrevista 1 05/10/2016 00:18:06
A7. Entrevista 1 05/10/2016 00:19:29
19 ---- Em torno de 9,4h de gravações
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Além disso, realizamos a observação das aulas do primeiro e do segundo semestre. As
primeiras aulas foram registradas somente no diário de campo. Após algum tempo de
convivência em campo, obtivemos a permissão e o consentimento de todos os sujeitos da
pesquisa para a realização das gravações em áudio e vídeo das aulas e dos eventos de
letramento realizados. Por conta disso, todos os esclarecimentos relacionados à realização da
pesquisa foram efetivados. Duas vias dos Termos de Consentimento e Livre Esclarecido
(TCLE) foram assinados pela pesquisadora e pelos participantes da pesquisa, uma via ficou
sob a posse dos participantes e a outra via ficou registrada no banco de dados, que está sob
nossa responsabilidade.
Em relação aos dados gerados em sala de aula, acompanhamos 25 aulas, mas foram
gravadas 19 em áudio e vídeo (quase 30h de material gravado). Também, registramos dois
eventos de letramento que julgamos pertinentes ao trabalho docente em questão: uma
caminhada que teve como ponto de partida o auditório da escola e ponto de chegada a ponte
sobre o Rio Tucunduba e uma roda de convivência, realizada no dia 12 de novembro de 2016,
no auditório da escola e que contou com a participação dos coletivos culturais Casa Preta e
Capoeira Angola. Somente o primeiro evento será utilizado nesta ocasião para fins de análise.
59A seguir, as identificações dos sujeitos de pesquisa: P1= Professora, G=Gestor escolar: G1 = coordenadora
pedagógica turno matutino, G2= diretora da escola, G3= gestora da USE 06, C: representante de coletivo cultural
do bairro: C1= representante do coletivo capoeira angola, C2= representante do coletivo GON (Grupo de Ouro
Nacional); A= aluno, A1, 2, 3, 4, 5, 6, 7: alunos da turma.
97
A seguir, apresentamos o quadro 9 em que é possível visualizar o mapa de aulas
gravadas no primeiro e segundo semestre de 2016:
Quadro 9 - Aulas gravadas (P1)
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
Primeiro e segundo semestre de 2016:
terceiro ano (P1)
1 16 de maio de 2016 0:21:07
2 13 de junho de 2016 1:23:02
3 16 de junho de 2016 1’30’’
4 20 de junho de 2016 46’00’’
5 23 de junho de 2016 3:03:42
6 24 de junho de 2016 2:20
7 27 de junho de 2016 1:05:24
8 08 de agosto de 2016 1’19’’09’’’
9 18 de agosto de 2016 2:13:20
10 22 de agosto de 2016 1’24’’34
11 26 de agosto de 2016 0:40:37
12 1 de setembro de 2016 1:31:36
13 8 de setembro de 2016 1:56:00
14 12 de setembro de 2016 1’24’’25
15 26 de setembro de 2016 53’’08
16 04 de outubro de 2016 00:47:35
17 06 de outubro de 2016 1’08’’01
18 27 de outubro de 2016 3:30
19 03 de novembro de 2016 1’33’’22
Total 28,6h
98
5.2 PROFESSORA DE LÍNGUA PORTUGUESA: TRAJETÓRIA DE FORMAÇÃO
LETRADA E AS PERSPECTIVAS ANUNCIADAS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DO
TRABALHO DE ENSINO
Antes de proceder à descrição do trabalho docente investigado, percebemos a
necessidade de apresentar mais dados da trajetória de formação da professora participante da
pesquisa e o que foi anunciado como “planejado” para o trabalho de ensino de Língua
Portuguesa, ano letivo de 2016. Nesse percurso, discorremos sobre algumas formulações de
acadêmicos que vêm contribuindo para um melhor entendimento acerca das identidades
sociais, de um modo geral, e das identidades profissionais docentes, em particular.
Para Hall (2003, 2009), a identidade una, fixa e indivisível é tida como uma fantasia,
pois no contexto contemporâneo, os processos identitários são constituídos a partir de
inúmeras interpelações gestadas nos contextos culturais em que os sujeitos estão ancorados.
Portanto, as identidades são múltiplas, historicamente situadas, e podem ser transgressoras de
limites políticos, territoriais, econômicos.
De acordo com Pennycook (2006, p. 82), um posicionamento acadêmico de natureza
transgressiva pode ser entendido da seguinte forma: “a teoria transgressiva assinala a intenção
de transgredir, política e teoricamente, os limites do pensamento e da ação tradicionais, não
somente entrando em território proibido, mas tentando pensar o que não deveria ser pensado,
fazer o que não deveria ser feito”. Deste modo, inferimos que tanto Pennycook (2006) quanto
Hall (2009), as relações sociais são constituídas por relações de poder. Para o primeiro, por
via do elemento da transgressividade; no segundo pelo processo diaspórico que se traduz na
questões identitárias, multiculturais, que se mesclam, constituem e circundam o processo de
construção cultural, linguística, identitária dos grupos sociais ao redor do globo ao longo da
história das sociedades.
A identidade é essencialmente discursiva, carregada de sentidos (SANTIAGO, 2000) e
perpassada por relações de poder. Tais relações podem (re)elaborar os sistemas de referência,
as normas, as crenças, os valores, isto é, a própria cultura até então constituída. Conforme Iza
et al., (2014, p. 275), a identidade pode ser compreendida como “um processo de construção
social de um sujeito” historicamente situado. No que tange à identidade profissional, esta é
construída a partir das significações sociais do ofício, de sua inscrição social, política,
histórica, cultural.
A docência, enquanto profissão desponta no contexto da modernidade devido à
necessidade de disseminação de um conjunto de saberes, de valores, de crenças. Conforme
99
Garcia, Hypólito e Vieira (2005, p. 54-55), a identidade profissional docente pode ser
concebida como:
[...] uma construção social marcada por múltiplos fatores que interagem entre si,
resultando numa série de representações que os docentes fazem de si mesmos e de
suas funções, estabelecendo, consciente ou inconscientemente, negociações das quais
certamente fazem parte de suas histórias de vida, suas condições concretas de
trabalho, o imaginário recorrente acerca dessa profissão [...].
O profissional da educação vai construindo uma determinada trajetória de trabalho por
intermédio da preparação escolar, experiências diversificadas, formação acadêmica inicial e
continuada, etc. Logo, o processo é contínuo e está diretamente ligado à cultura e às demandas
sociais em curso (IZA et al., 2014). Mockler (2011) assinala que a identidade docente engloba
três aspectos básicos: o ambiente externo da política- aqui incluímos todo o contexto sócio-
histórico, ideológico, econômico, cultural-, o contexto profissional e a experiência pessoal. As
três instâncias estão envolvidas e imbricadas na constituição do “ser-professor(a)”:
aprendizagem profissional, ativismo docente e desenvolvimento pessoal, as quais concorreriam
para o processo de atuação profissional, política, cultural, linguística, semiótica, ideológica.
Levando em consideração estes pressupostos, cabe lembrar que a docente investigada
considera a centralidade da sua formação acadêmica e pessoal para sua trajetória de
letramento. Ela considera que a universidade foi determinante no encaminhamento de leituras,
também menciona as leituras, de vertente espiritual, filosófica, literária, realizadas nos sete
anos em que se dedicou ao movimento Hare Krishna:
A gente estudava muito assim... primeiro o Bhagavad Gita que era o livro sagrado
[...] mas lá eles a gente .... eles na verdade... Eles leem muito livro de passa tempo
[...] são aquelas explicações assim... pra formação do mundo... pra existência
entendeu? [...] Nessa época assim como eu tava numa parte de formação eu tava me
formando... eu falo assim tentando encontrar um rumo pra minha vida.... devia ter 16
pra 17 anos... 17 anos eu deveria ter... Ai o que foi que aconteceu eu comecei a
pesquisar... eu não ficava lendo só... a minha referência.... a minha fonte não era só
do Hare Krishna... eu lia Helena Blavatsky... Filosofia... lia sobre gnose... sobre a
influência dos astros né.
lá no Hare Krishna... a conduta lá é você dedicar a sua vida e abdicar o material em
função da espiritual... e ai como eles acreditam que a gente vai... que a gente
transcende... [...] a vida só é uma oportunidade de você galgar pra um plano
melhor... você precisa ajudar o outro... você precisa se dedicar o outro... você
tem que abrir mão de dar pra oferecer o bem pro outro... ai o que que foi que
acontece... encaixou certinho com tudo que a minha mãe ensinou a vida
inteirinha dela... porque a vida da minha mãe sempre foi essa coisa... da... é da
bondade do outro.... ela não morreu por causa da bondade do outro né...ela foi
acolhida da pior forma possível... mas foi acolhida [...] . E hoje vejo a educação
como militância... eu acredito que é o único meio de mudar o mundo [...] é um
princípio... eu acredito que é possível mudar o mundo fazendo isso. (Trecho de
entrevista realizada com Bia Paiva, no dia 28/04/2016, ênfase adicionada).
100
É possível perceber que a trajetória da docente é marcada por diferentes instâncias
sociais formadoras que, articuladas, são cruciais para a sua constituição como leitora, e,
consequentemente, podem ter influência no seu modo de ser uma profissional da linguagem.
Observamos uma considerável influência de uma instância pessoal, fortemente atrelada aos
ensinamentos de vertente espiritual, filosófica, existencial. Para ela, este conjunto, de algum
modo, afeta o seu fazer pedagógico.
Podemos, então, considerar que o percurso formativo, em alguma instância, reflete
diretamente na concepção de educação como “militância”, como uma possibilidade de
transformação, de emancipação, de mudança instaurada pelo processo educativo quando
afirma: “E hoje vejo a educação como militância... eu acredito que é o único meio de mudar o
mundo [...] é um princípio... eu acredito que é possível mudar o mundo fazendo isso”. Este
posicionamento nos reporta ao pensamento freiriano quando o educador defende que:
O que teríamos de fazer, numa sociedade em transição como a nossa, inserida no
processo de democratização fundamental, com o povo em grande parte emergindo,
era tentar uma educação que fosse capaz de colaborar com ela na indispensável
organização reflexiva de seu pensamento. Educação que lhe pusesse à disposição
meios com os quais fosse capaz de superar a captação mágica ou ingênua de sua
realidade, por uma dominantemente crítica. (FREIRE, 2018, p. 139).
A partir de uma descrição geral dos dados gerados, é possível perceber que este
posicionamento indicia o fazer disciplinar desta docente, a saber: as questões de cumprimento
de um currículo oficial, concatenadas aos propósitos oficiais vigentes para o ensino de Língua
Portuguesa, para o próprio nível de ensino em questão e às demandas locais emergentes destes
contextos institucionais de trabalho, que corroboram, para que a profissional procure encenar
diferentes papeis, funções, posições em virtude da (re)criação/ (re)configuração da efetivação
do currículo em sala de aula (GOMES-SANTOS, 2007).
A respeito de possíveis formas de trabalhar e de relacionar currículo escolar imposto e
os saberes locais/vernaculares no ensino de Língua Portuguesa:
A primeira relação que eu faço no que diz respeito às coisas pontuais mais locais é
fazer com que percebam que esse currículo imposto... ele... em nenhum
momento... ele reconhece e valoriza a importância desse conhecimento local...
eles precisam saber disso... eles sabem disso... porque eu mostro pra eles né... o
que que a gente faz.... Bom primeiro como a gente tá com duas vertentes... como a
gente ta com a educação aqui e o Mec aqui... o que que a gente faz...a gente vai
mexer nesse local pela necessidade de eu me formar enquanto indivíduo... a
gente não pode deixar esse imposto se não eu não entro... se não eu não vou entrar
[...] eu preciso dos dois... eu não posso simplesmente me formar mas também não
posso abandonar isso aqui... entendeste... agora uma coisa é fato Débora... uma
hora a gente tem que largar um... e geralmente o que se larga é o local. (Trecho
de entrevista realizada com Bia Paiva, no dia 28/04/2016)
101
Maher (2007) defende que a questão da educação intercultural está diretamente
relacionada a tentar proporcionar o diálogo de conhecimentos e de comportamentos edificados
a partir de orientações culturais diferentes e, muitas vezes, conflitantes. A autora defende que
este empreendimento é necessário para a realização de negociações nos casos de conflitos
interculturais e, ao mesmo tempo, é o alicerce que justifica o valor de ser e de existir das
escolas e o que lhe confere importância política.
Isso aparece no trabalho realizado pela professora ora investigada em que é perceptível
que o campo de disputas curriculares, de poder, de conhecimento, de culturas e a encenação do
próprio conflito no discurso da docente investigada, quando defende a necessidade de
esclarecer a existência do conhecimento (não) reconhecido no campo escolar e formal. Nesse
sentido, há necessidade de debate, de diálogo, em função da importância de duas vertentes -
oficial e cotidiana; dominante ou vernacular - que se colidem na arena de letramentos (arena de
luta) em discussão na aula de Português do EM (BAKHTIN, 1987; BARTON, HAMILTON,
2000; VOLÓCHINOV, 2017).
Ao mesmo tempo, a fala da professora revela o processo híbrido, competitivo,
migratório da construção dos saberes em sala de aula, ao demonstrar a coexistência de duas
dinâmicas curriculares concorrentes na prática de ensino de Português no EM: ora um
currículo imposto pelas instâncias escolares hegemônicas e homogeneizantes “o currículo do
MEC”, instituído como aquilo que deve ser ensinado na escola; ora um conjunto de saberes
locais, provenientes da cultura local, da cultura produzida por estes sujeitos e pelos seus pares,
situados em uma periferia, de uma das principais metrópoles da Amazônia brasileira. Instaura-
se a tensão entre as práticas docentes que tomam corpo no cotidiano desta professora, motor
central desta investigação. Instaura-se não só uma tensão entre as práticas docentes impostas
pelo currículo do MEC, mas também das práticas locais. Forma-se aqui a arena de luta a que se
refere Volóchinov (2017).
Jordão (2007) chama a atenção para o fato de que o conhecimento é ideológico por
natureza, parcial, incompleto, não neutro ou desinteressado, edificado em contextos
específicos, os quais revelam o alcance das possibilidades de entendimento e da legitimidade
conferida ao discurso dos sujeitos que o constituem e o constroem no bojo da prática social
propriamente dita. Nessa direção, Moita Lopes (2006) defende que “todo conhecimento é
político” e, portanto, não é possível dissociar a pesquisa da vida social. Em consonância com
esta postura, Pennycook (2006, 2014) advoga que uma Linguística Aplicada Crítica perpassa
necessariamente pela sua natureza transgressiva, reflexiva, problematizadora e movente, logo é
102
impossível ignorar questões políticas alegando que não é possível se posicionar; é impossível
ignorar vozes marginalizadas que apresentam visões alternativas do mundo.
A interface estabelecida entre linguagem, letramento e poder é perceptível e o currículo
pode ser entendido como uma constituição particular, de uma seleção parcial, oriunda de uma
dada cultura, de um dado posicionamento político, que inclui, exclui e nos leva a questionar
quem, de fato, decide. É o governo quem impõe o currículo? Os professores decidem e
selecionam o que ensinam? Quanto os estudantes e suas respectivas comunidades interferem
nesse processo? (JANKS, 2010). Lopes (1999, p. 03) atenta para o fato de que:
os processos de seleção e legitimação não são construídos a partir de critérios
exclusivamente epistemológicos ou referenciados em princípios de ensino-
aprendizagem, mas a partir de um conjunto de interesses que expressam relações de
poder da sociedade como um todo, em um dado momento histórico. Assim, atuam
sobre o processo de seleção cultural da escola, em relações de poder desiguais, o
conjunto de professores, aqueles que fazem parte do contexto de produção do
conhecimento de uma área e a comunidade de especialistas em educação. Atuam
igualmente inúmeras outras instâncias culturais, políticas e econômicas de uma
sociedade, que atuam direta ou indiretamente sobre a escola, sobre a formação e
atualização de professores e sobre a produção de conhecimentos na área específica e
educacional.
Nesse contexto, a professora concebe sua atuação diante da necessidade de contemplar
diferentes demandas socioeducacionais que se tensionam no palco de atuação docente. Esta
tensão implica escolhas disciplinares, didáticas, curriculares; no deslocamento do tempo e do
próprio espaço de trabalho; na escolha do material didático e nos caminhos metodológicos a
serem percorridos no curso do ano letivo.
Dessa maneira, o posicionamento da docente sinaliza para: (i) a existência de uma
demanda escolar necessária para atender a uma expectativa de programas e de
regulamentações direcionadas à prática docente no EM, voltados à valorização dos
conhecimentos vernaculares, ao diálogo, ao exercício da criticidade, que, embora seja
claramente necessária ao processo de letramento dos sujeitos, em um determinado momento do
ano letivo, é colocada a margem em função do “lugar” que ocupa no aparelho ideológico do
estado em que coabita; (ii) a existência de uma demanda escolar e oficial necessária para a
aprovação no ENEM, que possibilitaria continuidade dos estudos e por ser instituída como
hegemônica, não pode ser abandonada.
A respeito do trabalho docente direcionado de modo a permitir a articulação desta
demanda dupla, a professora apresenta o seguinte exemplo de como tenta concatenar estas
duas dimensões:
103
Olha a questão do currículo imposto [...] geralmente eu trabalho como eu jogo muito
pras questões assim do currículo imposto... pelo PCN e o currículo imposto da escola
por exemplo se tem um simulado que tá agendado... eu vou ter que entregar questões
... eu vou ter que passar por uma agenda da escola... ai o que que eu faço eu jogo esse
conteúdo mais fechado né... a questão do local ai eu trabalho as atividades
avaliativas mas que não estão atreladas a agenda da escola... é minha mesmo... eu
fico mais livre...é um critério avaliativo sim mas não prestar contas pra escola e eu
acho que é o que mais rende [...] um exemplo disso é quando a gente trabalha... vou
te dar o exemplo que tá acontecendo agora... essa questão da cultura
afrodescendente que é uma discussão que tá bem em voga depois da lei etc. e tal
e aí eu vou trabalhar com o conteúdo que é necessário por conta do currículo
imposto mas eu vou tá atrelando à questão da identificação desse conteúdo
dentro da realidade dele e aí qual é a realidade que eu peguei... o fato que
ocorreu e que tá bem recente que é a chacina que tá completamente ligado com o
fato de ser negro... ser de periferia... ser pobre. (Trecho de entrevista realizada
com a Profa. Bia Paiva, no dia 28/04/2016).
A fala da professora investigada apontaria para uma prática docente a favor de uma
agenda híbrida, mista, isto é, uma mistura de perspectivas e de objetivos (MENDONÇA,
2006), que indiciaria possíveis relações dialógicas, intertextuais, contextualizadas, ligadas ao
cumprimento de uma agenda de trabalho que busca contemplar ora uma demanda escolar
dominante, ora uma demanda escolar local. Esta última pode ser evidenciada na proposta que
aborda a chacina ocorrida no bairro da Terra Firme em novembro de 2014, que exterminou
mais de uma dezena de jovens, pobres e negros da comunidade: “essa questão da cultura
afrodescendente que é uma discussão que tá bem em voga [...] aí qual é a realidade que eu
peguei [...] a chacina que tá completamente ligado com o fato de ser negro... ser de periferia...
ser pobre”.
Trata-se de tentar, no âmbito escolar, atribuir outros sentidos, ressignificando e
refletindo acerca dos acontecimentos, das representações, dos procedimentos, dos modos de
agir, de conceber e de compreender algo a partir da realidade circundante (JORDÃO, 2013).
Investimento didático este, considerado mais produtivo pela professora investigada: “e eu acho
que é o que mais rende”. Por outro lado, a docente deve também atender aos compromissos
institucionais que passam pela obrigatoriedade do cumprimento de programas escolares, de
prazos, de avaliações bimestrais, contemplando uma demanda escolarizada, institucionalizada,
dominante. Nesse sentido, é preciso retornar à agenda escolar que passa pela necessidade de
preparação para os exames intermediários e finais:
eu jogo muito pras questões assim do do currículo imposto... pelo PCN e o currículo
imposto da escola se tem um simulado que tá agendado... eu vou ter que entregar
questões ... eu vou ter que passar por uma agenda da escola... ai o que que eu faço...
eu jogo esse conteúdo mais fechado né. (Trecho de entrevista realizada com a Profa.
Bia Paiva, no dia 28/04/2016).
104
Assim, a escola, instituição criada na modernidade, a partir de modelos industriais
(TARDIF; LESSARD, 2005), continua a dar sequência à faina de controlar as formas de
linguagem e de pensamento, o que leva a uma pedagogização do letramento, dos significados e
usos da escrita e restringe os Letramentos ao Letramento escolar (SOARES, 1999, 2004b,
2010). Nessa direção, o trabalho docente é contingenciado:
aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos a partir dos quais a instituição escolar
categoriza e apresenta os saberes sociais por ela definidos e selecionados como
modelos da cultura erudita e de formação para a cultura erudita. (TARDIF, 2002, p.
38).
Apreciamos, então, o anúncio de um dito currículo diaspórico ou migratório (IZA et al.,
2014), que, em termos machadianos, se traduz ora em acender uma vela para Deus, ora em
acender outra para o Diabo e assim seguir resistindo para continuar tecendo o cotidiano da
escola, manter os alunos nesta instituição situada em um contexto citadino, periférico,
estratificado, marginalizado, violento, marcado pelo famigerado binômio “inclusão-precária/
territorialização precária” (COUTO, 2014, p. 28-29), que se constitui na formação de
territórios instáveis e inseguros do ponto de vista socioespacial, fragilizando os elos entre os
grupos sociais residentes nestas áreas e a própria interação deles com o território em que se
situam.
Nesse sentido, a professora relata a relação dos alunos com as aulas que tratam de
temas locais, reforçando a nossa percepção do trabalho de ensino anunciado por esta docente
em relação à abordagem de práticas de letramento vernaculares ou locais:
eu costumo dizer o seguinte quando chega o segundo semestre... de agosto a
outubro quase não respira... quando chega a prova do ENEM... agora nós
podemos estudar, agora nós podemos estudar, agora é que a gente vai dar
continuidade do nosso ano letivo, porque até aqui a gente só cumpriu tabela né, é
isso entendeu, sabe o que eu acho interessante, não há um esvaziamento de
interesse, não há.... se tu marcares um sábado após a prova do ENEM eles vêm,
eles vêm. Por isso que eu te digo que são meu sinalizador é isso que me sinaliza e
todo mundo diz assim: ah, porque eles foram pra lá por causa do ponto, a
porque isso... aquilo outro, gente eu preciso ter a minha moeda de troca porque a
cultura deles é essa (Trecho de entrevista realizada com a Profa. Bia Paiva, no dia
28/04/2016).
Cox e Assis-Peterson (2007, p. 33) cogitam a possibilidade de conceber cultura60
como “um conjunto colidente e conflituoso de práticas simbólicas ligadas a processos de
60 Antes de chegar a este postulado, as autoras ficham seis conceitos de cultura apresentados em Duranti (1997) e
elencam as seguintes assertivas sobre como o conceito pode ser concebido: “a cultura é algo distinto da natureza,
ou seja, é transmitida através das gerações”; “A cultura é pensada como conhecimento de mundo (visão
105
formação e transformação de grupos sociais, uma vez que, por esse ângulo, podemos aninhar
a heterogeneidade, o inacabamento, as fricções e a historicidade no âmago do conceito”.
Considerando essa concepção de cultura, atentamos que, para além de uma disputa curricular,
o trabalho docente anunciado indicia um conflito de práticas simbólicas, culturais e
linguísticas em cena, em colisão e em conflito ora no palco institucional escolar, ora no palco
da cultura popular: a rua, a praça pública (BAKHTIN, 1987).
Então, se, por um lado, é obrigação institucional tentar preparar o aluno para uma
avaliação nacional para ler e escrever na variedade da língua tida como legítima, por outro
lado, é importante visibilizar a cultura, a língua e as manifestações deste sujeito, não só no
sentido de firmar uma postura contra-hegemônica, ainda que isto esteja ao alcance das críticas
daqueles que colocam em xeque a validade da participação dos alunos na construção dos
eventos de letramento encenados por estes sujeitos como: as caminhadas, os atos, as rodas de
convivência.
Ao longo do processo de geração dos dados, observou-se o processo de preparação e
realização de uma caminhada pelas ruas do bairro, que reunia as escolas do bairro, os
representantes dos coletivos culturais, familiares e amigos dos jovens vítimas da chacina
ocorrida no bairro em novembro de 2014, a fim de questionar acerca do processo de
julgamento dos possíveis envolvidos. Esta caminhada foi filmada e serviu para a produção de
um videoclipe da música Pau torando, de Rafael Lima, um cantor e compositor de música
popular brasileira.
Também, registrou-se uma roda de convivência realizada na escola, que integrava
alunos da escola, membros da comunidade, representantes dos coletivos culturais por ocasião
do dia da consciência negra e demais eventos de letramento que focam, por exemplo, os
problemas sociais do bairro; mas também, no sentido de fazer uso da “cultura deles”, da
língua, das práticas sociais, dos movimentos de cultura, de mobilização da comunidade como
“recurso” ou “instrumento” de manutenção e de sustento da própria dinâmica escolar, isto é,
fazer uso dessa “moeda de troca” para manter este indivíduo no banco da escola.
No Seminário “10 Anos de Metodologia de Coleta de Dados Individualizada dos Censos
Educacionais”, em 20 de junho de 2017, foram apresentados dados de uma pesquisa que usou uma
metodologia de acompanhamento longitudinal da trajetória dos alunos. Ela revelou que o Pará é o
cognitiva de cultura)”; “cultura como comunicação, ou seja, como um sistema de signos [...] produto da
interação”; “Cultura é vista como um sistema de mediação”; “Cultura como sistema de práticas [...] é algo que
inclui condições materiais e experiência dos atores sociais”; “Cultura como sistema de participação [...] como
sistema de práticas” (COX; ASSIS-PETERSON, 2007, p. 29-32).
106
estado da federação que apresentou a maior taxa de evasão em todas as etapas de ensino,
alcançando 16% no Ensino Médio.
Nessa perspectiva, a prática anunciada da professora Bia corrobora com o que foi
observado por Silva (2014, p. 106): “os professores reconstroem e adequam ao seu trabalho
cotidiano os conhecimentos e as orientações a que têm acesso, mantendo, apenas, aquelas que
podem ter um “valor de uso” nas práticas”. O professor produz ou tenta produzir saberes que
compreende e domina por meio de sua prática. Tardif (2002, p. 48-49) define estes saberes
experienciais como um
conjunto de saberes atualizados, adquiridos e necessários no âmbito da prática da
profissão docente e que não provêm das instituições de formação nem dos currículos.
Estes saberes não se encontram sistematizados em doutrinas ou teorias. São saberes
práticos e formam um conjunto de representações a partir dos quais os professores
interpretam, compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas
as suas dimensões.
Por conta disso, educar está para além de formar para as grandes avaliações, é
necessário formar para atuar em práticas sociais de uso da língua, a fim de que o aluno possa
concluir esta etapa da vida acadêmica e, ao final, possa ter a percepção dos usos e do poder da
língua em diferentes práticas situadas com as quais se depara, em revelia a uma concepção
despolitizada de protagonismo juvenil, apenas, como mero recurso de integração e de
participação dos sujeitos em ações escolares (SOUZA, 2009). Nessa perspectiva, o discurso
professoral anunciador do trabalho de ensino apresenta o seguinte posicionamento:
Débora, eu quero que meu aluno saia do Ensino Médio, se ele precisar de exame
de exame e o SUS negar, ele vai lá no Ministério Público e ele entra com uma
ação, tô solicitando esse exame, então ele tem, aí é leitura de mundo, eu tenho que
saber aonde eu estou e pra onde eu vou recorrer e o que eu devo fazer, entendeste e aí
ele vai redigir alguma coisa pra conseguir aquele exame, por isso que eu te digo que
sistematizar vem pra vida prática, entendeu? Porque não adianta o meu aluno
sair escrevendo um puta texto se não me sabe nem aonde é o Ministério Público
[...] se ele sair com a consciência que a língua é um instrumento de poder o resto
ele vai atrás. (Trecho de entrevista realizada com a Profa. Bia Paiva, no dia
28/04/2016).
No fragmento em questão, parece evidente a intenção de ofertar uma formação para
além de garatujar as letras e os números. Parece mais urgente e necessário formar para
promover uma discussão escolar acerca da importância dos usos da letra, da leitura, da escrita
de enunciados concretos para agir na vida no sentido de desestabilizar as formas instituídas de
poder e assim buscar a transformação da realidade social. Para Janks (2016, p. 30-31), “o que
torna o letramento desafiador é a sua criticidade e preocupação com a política de significado:
as maneiras pelas quais os significados dominantes são mantidos ou desafiados e mudados”.
107
Nessa direção, Volóchinov (2017) considera que “a palavra se torna uma arena de lutas”
e é por via deste “instrumento de poder”, que podemos constatar o processo de mudanças
sociais. Para o autor, “A palavra como a conhecemos reflete sensivelmente as mudanças mais
sutis da existência social.” (p. 112) e “Em todo signo ideológico cruzam-se ênfases
multidirecionadas. O signo transforma-se no palco da luta de classes.” (VOLÓCHINOV,
2017, p. 113). No fragmento, também, percebemos uma tendência do trabalho de ensino de
LP no EM nesse contexto: a preferência por uma abordagem que presenteia um lugar
privilegiado à prática de leitura de textos, leitura de mundo, delegando à prática de produção
escrita e de análise linguística um espaço menos prestigiado na eleição do eixo a ser abordado
no processo de transposição didática.
No caso em questão, possivelmente, o objetivo delineado mais urgente seria formar para
a consciência dos usos, delegando aparentemente um papel acessório e não de irrelevância aos
aspectos formais da língua, o que instiga a pensar, também, acerca da validade das opções
didáticas ora realizadas, a fim de possibilitar o desenvolvimento de um determinado nível de
apropriação deste instrumento de poder: o uso da modalidade escrita da Língua Portuguesa.
Machado (2017) assinala que, ao longo do curso médio, os jovens de 14 a 18 anos
precisam interagir e, de fato, exercerem um considerável grau de apropriação e de proficiência
em uma diversidade de gêneros discursivos, os quais sejam fundamentais para inseri-los na
vida social e profissional. A fim de que essa interação seja efetivada, é preciso que o sistema
formal da língua seja dominado basicamente, até mesmo, para que a almejada e necessária
leitura de mundo seja construída com êxito no exercício da prática social, é necessário
imbricar, interligar, inflitrar estas diferentes linguagens, semioses, discursos na arena da sala
de aula, da escola, da rua para viver a língua, a cultura e a verdadeira vida do povo que se
constitui também na instituição escolar, considerável agência de letramento para a formação
das populações periféricas e de acesso a determinados formatos de letramentos (BAKHTIN,
1987; STREET, 2014) .
Janks (2010, 2004) faz referência ao paradoxo do acesso, isto é, possibilitar o acesso
às formas dominantes e ao respectivo domínio e preservação deste arsenal dominante e, ao
mesmo tempo, valorizar e promover as diversidades de línguas, de formas letradas. O
domínio destas formas inclui o domínio das línguas (gens), dos gêneros, dos discursos, dos
conhecimentos, das representações multimodais, culturais constitutivas das interações sociais.
Negar estas possibilidades é, de certa forma, contribuir para perpetuar um processo de
marginalização social.
108
Em linhas gerais, levar à apropriação da prática da leitura, da escrita e da análise
linguística no EM é o desafio a ser instituído. Perguntamos, então, à docente o que ela
considera como mais importante nesse processo de trabalho de ensino de português para este
público e, conforme sua perspectiva:
É conseguir fazer com que eles percebam que eles podem protagonizar a própria
história... eles podem reescrever isso de uma maneira diferente... que eles têm poder
pra isso... eu acho que isso é o mais importante... mas a gente fazer com eles
percebam [...] eles percebem através das minhas atuações, entendeste? [...]
porque eu também sou negra... eu sou de periferia... eu também passei por coisas
que eles passaram e se hoje sou algo que eles consideram importante quem me
deu isso foi os estudos... eu não conseguiria de outra forma... pelo menos eu tento
passar isso pra eles (Trecho de entrevista realizada com a Profa. Bia Paiva, no dia
28/04/2016).
Consoante Garcia, Hypólito e Vieira (2005), a identidade docente é um fértil campo de
negociações com os discursos dos grupos e dos indivíduos que atuam no processo de disputas
por um espaço social, político, acadêmico e convergem para a construção das configurações,
dos efeitos práticos, de atitudes e de verdades que podem ser observadas no processo de
instituição da docência e das múltiplas facetas que a constituem.
Nesse sentido, pode-se dizer que o intercâmbio da história de vida da professora
investigada- negra, moradora de uma periferia da capital, protagonista da sua própria
realidade-, de certo modo, interfere na (re)invenção do discurso escolar, da (re)organização
das formas escolares instituídas pelos sistemas impostos por uma rede de regulamentos
internos e de regulamentações externas, que estabelecem objetivos, currículos, prazos,
avaliações ao trabalho do professor.
Porém, a natureza complexa da atividade docente permite a produção da resistência,
da reinvenção, da reexistência de uma ética discursiva, responsável, desestabilizadora da
ordem instituída capaz de procurar modificar as relações de reprodução, a interação entre os
próprios integrantes dos grupos sociais, a (re)construção ou o protagonismo da própria
narrativa de vida, seja da professora, seja do grupo de alunos (SOUZA, 2011; 2016, 2010).
Assim, os fragmentos do discurso professoral anunciador da prática docente
investigada buscam contemplar as três possíveis configurações de construção didática do
ensino de Português no EM. A primeira estaria relacionada a uma demanda escolarizada no
sentido de preparação para os exames e de garantia de término do próprio curso médio,
atendendo a uma das finalidades da educação secundária tal como a conclusão desta etapa da
escolarização básica, com eventual continuidade dos estudos. Este aspecto está atrelado a um
dado apontado pela pesquisa coordenada por Volpi, Ribeiro e Silva (2014, p. 51), o qual revela
109
que a continuidade dos estudos é um dos desafios enfrentados pelos jovens que cursam o EM
no Brasil.
Tais desafios não estão vinculados somente a questões da esfera escolar ou questões
didáticas, mas também circunstanciados pelas desigualdades sociais que os afetam
diretamente: gravidez na adolescência, homofobia, discriminação racial, sexismo. E, apesar
deste cenário desalentador, a mesma investigação aponta para um dado relevante: a “restrita
consciência” que os adolescentes demonstram sobre o direito à educação pública e de
qualidade. Eles revelam que a escola é “um mal necessário” (VOLPI; RIBEIRO; SILVA,
2014).
A segunda configuração estaria ligada a uma demanda local emergente vinculada às
práticas sociais, culturais e linguísticas da comunidade escolar em questão e que atenderia aos
propósitos do contrato didático firmado entre a docente e os alunos para a construção do ano
letivo. Tendo em vista o lugar da Língua Portuguesa no contemporâneo cenário geo-socio-
linguístico, Moita Lopes (2013, p. 52) advoga a necessidade de levar em consideração que os
estudos e abordagens nos conduzam a “compreender o que consideramos como português (e
que constrói nossas práticas e vidas sociais pelo mundo), de forma a abrir espaços para a
criação de outros futuros sociais alternativos, mais justos e mais éticos”.
A terceira estaria interligada a uma demanda contingenciada a uma agenda docente
articulada à própria construção de trabalho da professora, a fim de responder a uma instância
política, ideológica, ligada ao comprometimento de estabelecer o diálogo junto a pessoas
pobres, suburbanas, negras, - sobre a possibilidade de dar continuidade ao caminho dos
estudos, um dos caminhos, que pode levar alguns destes sujeitos a protagonizar e (re) escrever
suas trajetórias para além das páginas policiais que narram o extermínio da juventude pobre e
negra deste país61
. Para Freire (1979, p. 18-19),
este compromisso com a humanização do homem, que implica uma responsabilidade
histórica, não pode realizar-se através do palavratório, nem de nenhuma outra forma
de fuga do mundo, da realidade concreta, onde se encontram os homens concretos.
O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a
realidade, de cujas ‘águas’ os homens verdadeiramente comprometidos ficam
‘molhados’, ensopados. Somente assim o compromisso é verdadeiro. Ao
experienciá-lo, num ato que necessariamente é corajoso, decidido e consciente, os
homens já não se dizem neutros.
61 Segundo Atlas da Violência 2017, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstra que homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as
principais vítimas de mortes violentas no país. Os negros são a maioria (78,9%) dos 10% dos quem têm mais
possibilidade de se tornarem vítimas de homicídios.
110
5.3 DESCRIÇÃO GERAL DE EFETIVAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE
A seguir, pode ser encontrado o quadro de organização do trabalho docente de Língua
Portuguesa (P1) da professora pesquisada para o ano de 2016. O quadro 10 foi organizado, a
partir da primeira entrevista62
concedida pela profissional. As informações estão relacionadas
à organização geral da prática da docente e as proposições de trabalho para o ano de 2016
para as turmas do terceiro ano sob a responsabilidade desta profissional. Apresentamos uma
síntese de cada item que foi perguntado à entrevistada.
Quadro 10 - Perspectivas gerais da organização do trabalho docente de Língua
Portuguesa
Aspectos de organização
da prática docente
Professora Bia (P1): Português
1. Funcionamento curricular
da disciplina Língua
Portuguesa no EM,
especificamente no terceiro
ano especificamente.
A disciplina é dividida em dois eixos, com 6 aulas para LP e 2 aulas para
Literatura no turno matutino, um professor assume a disciplina LP e outro
assume a disciplina Literatura. A entrevistada possui seis aulas semanais
com a turma do terceiro ano, divide 4 aulas para Língua e duas para
Redação. No segundo semestre, devido à proximidade da prova do
ENEM, há uma inversão: ela reforça o ensino de escrita, dá ênfase ao
ensino do modelo de redação do ENEM, procura fazer leitura e análise
linguística de textos e solicita atividades de produção de texto.
2. Proposta metodológica
adotada pelo professor.
A professora já considerava que trabalhava com projetos. Para ela, isso é
educação, a outra parte é atender ao MEC. Na instituição privada, foi
mais difícil dar continuidade a um trabalho menos voltado ao conteúdo em
si, em função da exigência de cumprir o programa e ter que seguir o
material didático, que era produzido e comercializado pela própria
instituição. Apesar das dificuldades, conseguiu realizar algumas ações,
porque havia um projeto institucional que abarcava a questão da cidadania,
então fazia ações com os alunos. Uma delas foi realizada em parceria com
uma escola do Aurá63
, abordando questões referentes ao meio ambiente e ao
destino do lixo da cidade de Belém.
3. Estruturação dos trabalhos
em linhas gerais e possível
vinculação aos interesses da
comunidade escolar.
Para a professora, é necessário ter um planejamento, por mais flexível que o
processo seja devido às condições estruturais da escola pública. No início do
ano, é feito um planejamento geral e, ao longo do ano, ela possui um suporte
de anotações para guiar o trabalho com as aulas e os registros de cada turma.
Quanto aos interesses da comunidade escolar, a docente diz não saber se
contempla a comunidade escolar, mesmo após quase 10 anos de atuação
intensa nessa escola.
4. Planejamento previsto para
ser implementado no ano de
2016.
A previsão para o ano de 2016 era dar continuidade à valorização das
origens afrodescendentes da comunidade, que teve início em 2015, em
especial, a partir de leituras não canonizadas, como por exemplo: a poesia
marginal. Isto foi sinalizado no planejamento. Para o primeiro semestre,
uma das leituras selecionadas foi o livro de um professor da escola,
intitulado Rei Congo, percebeu que poderia usar este texto pelas seguintes
motivações: livro de um autor paraense, obra não canônica, texto voltado a
explicar as origens do movimento social no Pará, ou seja, uma leitura para
além da história oficial, capaz de propiciar um debate a respeito da história
das lutas sociais e, ao mesmo tempo, interligar aos acontecimentos atuais no
62 Entrevista 1, realizada em 28/04/2016 , tempo de duração 1:08:21.
63 A área do Aurá abrigava o antigo aterro sanitário da Região Metropolitana de Belém.
111
Pará. Para o segundo semestre, devido ao ENEM, o trabalho de
continuidade de leitura do livro é suspenso, porque é necessário focar na
preparação para os exames. Para a docente, é um trabalho paralelo: “uma
coisa é fazer educação, a outra é atender ao MEC”, ela diz tentar atender ao
MEC, mas também tem tentado fazer educação.
5. Ensino de leitura e
demandas locais ao longo do
processo de ensino.
Procura realizar um ensino de leitura em que os alunos possam apresentar
sua percepção sobre os assuntos debatidos. Para ilustrar, cita um exemplo:
no dia do ato da obra inacabada da Av. Celso Malcher, quando a
manifestação chegou a Av. Perimetral, a polícia tentou impedir a interdição
dos dois lados. Então, um aluno deitou na pista e quando ele fez isso, os
demais acompanharam. A polícia recuou. Isso foi debatido em sala de aula:
a questão da autoridade, as motivações que levaram ao gesto, a linguagem
mobilizada.
6. Principais linguagens e
gêneros textuais / discursivos
mobilizados.
O suporte mais utilizado é a roda de convivência, o debate. Sujeitos de
diferentes setores para debater uma temática. Hoje, a estratégia é colocar um
aluno como debatedor, para que possam se apropriar do poder da palavra. A
concentração é maior quando é um deles falando. Quando é uma autoridade,
eles ficam entediados.
Gêneros e linguagens a serem trabalhados: seminários, bate-papo, projetos
de ação, resposta aos comandos dos exercícios, vídeos, fotografias,
música/ poesia (forte para literatura de resistência e poetas marginais;
leitura de contos Dalton Trevisan, Machado de Assis, Raquel de Queiroz).
7. Relação entre o currículo
escolar imposto e as questões
locais.
A docente procura fazer o aluno perceber que o currículo imposto não
reconhece nem valoriza o conhecimento local. Nesse sentido, tenta mediar o
local e o currículo imposto, porque precisa dos dois. Um fato: em um dado
momento é necessário abandonar um deles, e, geralmente, é o local.
Entretanto, não há um esvaziamento de interesse, se você marcar uma aula
no sábado após o ENEM, o aluno vem. O aluno não vai para a realização do
projeto só pela “rua”, “oba oba”, “a putada” como a maioria dos professores
pensa.
8. Principais instituições não
escolares responsáveis pela
formação letrada dos alunos
do EM.
A professora considera a Igreja, é uma prisão, mas forma. Os coletivos
culturais do bairro, instituições não formais, muito atuantes no bairro, e o
mundo do trabalho, no caso destes alunos, o trabalho no comércio, são
instâncias de letramento importantes.
9. Relações entre a leitura e a
escrita trabalhadas em sala de
aula e as atividades de
trabalho.
Há uma relação direta, o que estes estudantes trabalhadores têm é a
autoridade com a palavra oral e trazem isto para as atividades
escolares. A liderança das ações que eles realizam na escola está na mão
desses indivíduos que já trabalham no Comércio local.
10. Mais importante para o
aluno aprender nesta etapa de
escolarização.
Sair sabendo que a língua é um instrumento de poder. Ainda que o
formal não seja pleno, ele precisa ter a consciência do poder da língua.
11. Maiores dificuldades e as
maiores facilidades
enfrentadas.
Uma das maiores dificuldades: os sujeitos da educação não compreendem
que educação não é o que o MEC prega. É a maior dificuldade porque
fingem fazer educação.
A grande facilidade é que o aluno está mudando, ele sabe que o tradicional
não dá conta.
12. O que significa para o
alunado o trabalho exercido
neste fim da educação básica?
A possibilidade de mudar a história de vida dos estudantes. A docente
vem percebendo o ingresso dos alunos da escola pública na universidade.
Estes alunos são os primeiros da várias gerações da família deles a terem
acesso ao ensino superior.
Fonte: Elaboração a partir de dados gerados pela entrevista concedida pela professora Bia Paiva,
realizada em 08/06/16.
A partir da leitura destas informações referentes à perspectiva geral do trabalho de
ensino a ser implementado pela docente em questão, destacamos alguns aspectos que
112
consideramos pertinentes ao entendimento de como foi delineado o trabalho de ensino
direcionado ao último ano do EM neste contexto de atuação:
(i) a clássica fragmentação da disciplina escolar Língua Portuguesa em aulas de
Língua, Literatura e Redação, conforme mencionam Mendonça e Bunzen
(2006), o que demonstra o elo estabelecido com as práticas escolares mais
estabilizadas no percurso de constituição disciplinar;
(ii) o ano letivo e os eixos de trabalho são divididos em virtude do aparelho
docimológico externo, o primeiro semestre é mais dedicado a leitura e a fazer
“educação”; o segundo semestre é voltado a ensinar escrever o modelo de
redação do ENEM devido à proximidade dos exames finais. As avaliações
externas, especificamente o ENEM, interferem e impactam o modo de realização
da disciplina escolar. Este efeito é sinalizado na análise apresentada por
Vicentini (2014). Este traço também convoca um traço tradicional da prática
escolar: o processo de preparação aos exames preparatórios e de admissão, o
aparelho docimológico como elemento constitutivo e característico do processo
de constituição das disciplinas escolares (CHERVEL, 1988);
(iii) para o ano de 2016, a proposta de ensino vinculada ao “fazer educação” seria dar
continuidade à discussão já iniciada em 2015 sobre as questões
afrodescendentes, este tema foi escolhido devido à chacina ocorrida no bairro
no final do ano de 2014, o desenvolvimento do fazer didático precisaria
contemplar o seguinte recorte: o resgate histórico das lutas sociais na Amazônia
e isto deveria ocorrer a partir de textos produzidos por autores e poetas situados
neste contexto, o que justificaria a escolha de um livro escrito por um
historiador, pesquisador e professor da instituição64
e das letras de música do
compositor paraense Rafael Lima, a realização e a articulação de uma ação social
propriamente dita culminaria ao fim deste ciclo de leituras de textos locais ou
vernaculares. Esta opção concorreria ao atendimento de uma dupla demanda: “fazer
educação”, abordando temas e textos concernentes à realidade da comunidade escolar
e, ao mesmo, atender a uma demanda institucional: abordar o conteúdo escolar,
preparar para os exames, formar para a construção de um leitor crítico e conhecedor
da própria história e da cultura em que está inserido;
64 O pesquisador é autor das seguintes obras: COSTA, J. L. M. Dando nome aos bois. Belém: CROMOS, 2014.;
COSTA, J. L. M.. Cartas de Sesmarias. Belém: Iterpa, 2010; COSTA, J. L. M. Rei Congo. Belém: 2004.
113
(iv) o segundo semestre de trabalho estaria relacionado ao atendimento de uma instância
oficial e docimológica, por isso estaria diretamente focado no ensino de escrita,
especificamente, a redação do ENEM;
(v) a atividade de leitura de textos parece ser o “carro-chefe” que norteia o trabalho de
ensino, ler para criticar, informar, esclarecer, debater, escrever; ler parece ser o aporte
necessário e fundamental na realização deste trabalho;
(vi) a principal entrada para a construção do trabalho de ensino é a temática. A partir
desta escolha, a docente define o que e como trabalhar, os textos literários e não
literários, os gêneros discursivos, o canônico ou não canônico, as linguagens
(musical, gestual, teatral, audiovisual), bem como as ações e parcerias a serem
construídas;
(vii) a necessidade de valorização do capital humano que constitui esta comunidade
escolar. Por conta disso, é necessário convocar este público para integrar,
efetivamente, ações em que eles sejam atores/ protagonistas da prática social
escolar;
(viii) o trabalho de ensino está diretamente relacionado à necessidade de ensinar o
conteúdo para tentar preparar os alunos para uma formação crítica, resistente,
transgressiva; os trabalhos realizados em outros bimestres são convocados como
memória didática65
- a análise dos textos já realizada, bem como a questão
estrutural já trabalhada- , a fim de subsidiar a construção da “redação do
ENEM”. Nesse sentido, percebemos que, nesse contexto de trabalho, mesmo no
momento em que há predominância de um ensino mais voltado aos conteúdos
para uma situação específica, porque é preciso “preparar para aprovar”,
“preparar para uma chance de ingressar em uma IES”, existe o germe da
transgressão, da resistência, do anseio de transpor as fronteiras que cercam as
instituições hegemônicas. Passar no ENEM faz parte da prática de ensinar para
libertar, ainda que as condições físicas, materiais, estruturais não sejam
favoráveis. Trata-se da encarnação do paradoxo do acesso a que faz referência
Janks (2004).
65 Para Gomes-Santos e Ferreira (2014, p. 56), “Criar a memória didática: implica a reconstituição, em uma
matriz integral, dos diferentes elementos em que o objeto de ensino foi decomposto [...] que busca restabelecer a
totalidade do objeto, fragmentada pelo trabalho de ensino. Funciona, portanto, conforme uma lógica retrospectiva
(“Como vimos na aula passada...”), guardando, ao mesmo tempo, um caráter provisório e prospectivo
(antecipação didática) – já que pressupõe que a totalidade do objeto ainda não foi construída, que o objeto
continua em construção (“Na próxima aula vamos estudar...”)”.
114
Tendo em vista a dimensão da organização geral e do ano letivo escolar imposto pela
rede estadual de ensino paraense, nosso foco é descrever e analisar dois bimestres de trabalho:
o segundo bimestre (realizado no primeiro semestre de 2016, à esquerda do diagrama) e o
terceiro bimestre do ano letivo de 2016 (realizado no segundo semestre de 2016, à direita do
diagrama). A fim de que possamos melhor visualizar a mencionada macroestrutura didática
construímos o organograma 1:
Figura 2 - Organograma - Estrutura de trabalho por semestre letivo
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Tardif (2002) ressalta que os saberes docentes são estruturados a partir dos
conhecimentos aprendidos na formação inicial e que somados às experiências vividas podem
ser sistematizados, dando embasamento quando incorporados a uma prática aplicada. Para o
autor, o saber docente pode ser compreendido como “um saber plural, formado pela
amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes
disciplinares, curriculares e experienciais” (TARDIF, 2002, p. 36).
Nessa direção, a bipartição ora anunciada é desenvolvida no processo de tensão, de
entrecruzamentos, de disputas que se estabelecem entre os dois grandes eixos de trabalho
propostos. Este processo é corporificado no processo de mobilização de repertórios de saberes,
a construção didático-disciplinar e abordagem dos textos em sala de aula, que se manifesta em
115
instâncias de tensionamento: a tensão quanto ao lugar da “forma escolar”, quanto ao lugar dos
repertórios de “novos” e “estáveis” saberes. E, ainda, a tensão com relação ao processo
didático que necessita traduzir-se em ações efetivas voltadas à encenação dessa arena de
letramentos e de formatos em sala de aula em contextos específicos (VINCENT; LAHIRE;
THIN, 2001; ROJO, 2009; SANTOMÉ, 2009).
Cabe mencionar que concebemos a forma escolar como uma forma específica de
socialização, a relação social escolar, balizada por regras particulares e relações próprias de
estabelecimento de exercício do poder. Seu objetivo mais amplo está articulado à
pedagogização do social, disciplinarização das relações pedagógicas e de transformação de um
estatuto de socialização entre alunos e professores, também, concatenada a outras mudanças
sociais, históricas, econômicas, políticas, a saber: a formação dos Estados Nacionais, a
emancipação de setores e de práticas heterogêneas, a universalização da alfabetização e da
própria forma escolar, a construção de uma dimensão entre um mundo letrado escriturário /
escolar e um mundo letrado vernacular / pragmático (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001).
Compreendemos que tais formatos constituem articulações sociais, forjadas por práticas
escriturárias, construídas pela linguagem em sua intrínseca interação com a vida, a cultura e a
história das sociedades (BAKHTIN, 1997, 1987). Em decorrência da análise do contexto
francês urbano correspondente ao fim do século XVII e meados do século XIX, os autores
postularam cinco características que consideram relativamente recorrentes, a saber:
1. A escola como espaço específico, separado das outras práticas sociais (em
particular, as práticas de exercício do ofício), está vinculada à existência de saberes
objetivados. (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 28).
2. A escola e a pedagogização das relações sociais de aprendizagem estão ligadas à
constituição de saberes escriturais formalizados, saberes objetivados, delimitados,
codificados, concernentes tanto ao que é ensinado quanto à maneira de ensinar, tanto
às práticas dos alunos quanto à prática dos mestres. A pedagogia (no sentido restrito
da palavra) se articula a um modelo explícito, objetivado e fixo de saber a transmitir.
[...] Historicamente, a pedagogização, a escolarização das relações sociais de
aprendizagem é indissociável de uma escrituralização-codificação dos saberes e das
prática. [...] O modo de socialização escolar é, portanto, indissociável da natureza
escritural dos saberes a transmitir. (VINCENT; LAHIRE, THIN, 2001, p. 28-29).
3. A codificação dos saberes e práticas escolares torna possível uma sistematização do
ensino e, deste modo, permite a produção de efeitos de socialização duráveis,
registrados por todos os estudos elaborados sobre os efeitos cognitivos de escola. A
forma escolar de aprendizagem se opõe então, ao mesmo tempo, à aprendizagem no
âmago de formas sociais orais, pela e na prática à escrita [...] e à aprendizagem do
"ler" e do "escrever" não sistematizado, não formalizado, não durável. (VINCENT;
LAHIRE; THIN, 2001, p. 30).
4. A escola como instituição na qual, se fazem presentes formas de relações sociais
buscadas em um enorme trabalho de objetivação e de codificação - é o lugar da
aprendizagem de formas de exercício do poder. Na escola, não se obedece mais a
uma pessoa, mas a regras supra-pessoais que se impõem tanto aos alunos quanto aos
mestres. [...] A codificação da organização das próprias práticas e saberes escolares
(por exemplo, codificação gramatical) é correlativa de processos extra-escolares -
116
principalmente estatais -, de codificação e, deste modo, está indissociavelmente
ligada a um modo particular de organização e de exercício do poder. (VINCENT;
LAHIRE; THIN, 2001, p. 30-31).
5. Enfim, para ter acesso a qualquer tipo de saber escolar, é necessário dominar a
"língua escrita [...]. A forma escolar de relações sociais é a forma social constitutiva
do que se pode chamar uma relação escritural-escolar com a linguagem e com o
mundo. (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 34-35).
Nesse sentido, a escolha dos formatos e instrumentos de ensino necessários ao
atendimento da forma escolar considerada “mais estável” e ao atendimento de inserção de
outros formatos de ação já dominados por estes sujeitos no âmbito do contexto em que estão
situados é traduzida, por exemplo, quando é convocada uma forma genuinamente escolar
como “os seminários ou exposições orais”, assentada, basicamente, a partir da socialização de
escritos sobre a história do movimento social negro e indígena das lutas sociais como processo
de preparação dos alunos para a realização de uma caminhada pelas ruas do bairro, prática
sociocultural também marcada pelo uso de escritos como os cartazes, frases de efeitos,
símbolos específicos, recortes de jornais, a qual teve como intuito cobrar o fim do julgamento
dos acusados pela chacina de jovens do bairro em novembro de 2014.
Logo, a organização do trabalho docente é distinta da lógica acadêmica ou científica, é
necessário asseverar a existência de uma “coerência pragmática” ou “racionalidade docente”,
constitutiva e pertinente ao contexto de construção do trabalho de ensino ora realizado
(CHARTIER, 2007; TARDIF, 2002). Por isso, apresentamos a seguir os quadros sinópticos,
que mostram as atividades referentes a cada bimestre do trabalho que selecionamos como
recorte para a descrição e análise da prática docente de Língua Portuguesa no EM.
Consideramos o conceito de episódio, para organizar os dados de sala de aula. O conceito
de episódio foi emprestado da narratologia e é definido como uma unidade de análise
cronológica. Episódio é conceituado por Schneuwly (2000, p. 25) como “um acontecimento de
duração variável cuja extensão temporal é definida pelo fato de o meio criado continuar
idêntico, voltado para um mesmo objetivo didático”. Por isso, categorizamos o material gerado
da seguinte forma: Episódio 1. Caminhada e Episódio 2. Preparação para escrita do ENEM.
5.4 EPISÓDIO 1: CAMINHADA
O episódio será apresentado da seguinte maneira: atividade realizada pelo professor em
sala de aula, uma breve justificativa para a realização de cada atividade e os instrumentos
didáticos mobilizados para a construção das atividades. Vale lembrar que, para a organização
desta estrutura panorâmica do episódio, fizemos a escuta atenta de todo o material de sala de
aula gravado, a decupagem das aulas, a construção de sinopse de cada aula e a leitura das
117
anotações feitas nos diários de campo ao longo do trabalho de campo. Vale lembrar que todas
as atividades foram planejadas e construídas pela professora. As informações apresentadas no
quadro 11 tem como finalidade mostrar o trabalho ora proposto em cada uma das etapas que o
constitui.
118
Quadro 11 - Episódio 1. Caminhada: leitura, pesquisa, discussão, realização da ação
Atividades realizadas Justificativa da atividade
Instrumentos didáticos /
Tensão fundante
1 Pesquisa da letra de música do Rafael Lima66
Pau Torando. Trata-se de um levantamento,
porque a letra ainda não tinha sido gravada;
Leitura e discussão das versões da letra
encontradas pelos discentes;
Rafael Lima é um cantor, compositor de letras que
retratam a realidade paraense. Em razão da
mencionada chacina ocorrida no bairro, uma das
letras do repertório deste artista foi escolhida para ser
debatida em sala de aula, porque retrata a condição
dos jovens no contexto das periferias, em especial, a
situação de violência e de impunidade vivenciada
pelos moradores destas áreas.
Além do mais, o clip desta música seria gravado por
ocasião de uma caminhada organizada pelos coletivos
culturais do bairro e por lideranças da comunidade, a
fim de questionar sobre a situação do andamento dos
processos judiciais dos acusados de envolvimento na
chacina ocorrida no bairro em novembro de 2014.
Letra de música do Rafael Lima Pau Torando
___________
Uso de texto do âmbito vernacular para abordagem de
um tema concernente ao local e para fins de exploração
de conteúdos da forma escolar “mais estável”.
66 “Rafael Lima é violonista autodidata, cantor e compositor, natural de Belém. Possui cinco CDs: três de estúdio e dois ao vivo, gravados na Suíça. Seu próximo CD,
"Nômade", o primeiro gravado em terras brasileiras, chega ao público em Junho de 2014, e conta com a participação de músicos paraenses, como: MG Calibre, Luiz Pardal,
Adelbert Carneiro, Marcos Puff, Marcio Jardim, Ricardo Akino, entre outros. Gravará sua opereta ‘Reinavam com o Castiçal’, adaptação de 13 páginas do livro ‘Primeira
Manhã’, do romancista marajoara Dalcídio Jurandir, que deverá sair em versão CD/DVD brevemente. Rafael é um parceiro dos movimentos sociais, por isso foi um dos
artistas convidados para o VI Congresso Nacional do MST, ocorrido em fevereiro de 2014, em Brasília. Trabalha com crianças da periferia de Belém, ensinando música e
desenvolvendo atividades lúdicas no bairro da Terra Firme. As crianças aprendem a tocar, entre outros, composições do maestro Waldemar Henrique.” Informação disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=Zp4SGHpd-yA. Acesso em: 03 abr. 2018. Nesse link, é possível acessar a entrevista completa concedida ao Letras e Livros, mediada
por Pedro César Batista.
119
2
Leitura e discussão dos primeiros capítulos do
livro Rei Congo, de João Lúcio Mazzini Costa.
O livro aborda a tragédia do Brigue Palhaço -
massacre de 257 paraenses nos porões do navio
Brigue Palhaço, em 1823 - para dar início à
discussão acerca dos movimentos sociais na
Amazônia.
João Lúcio Mazzini Costa, professor, pesquisador,
autor do livro Rei Congo que apresenta os primeiros
movimentos sociais na Amazônia paraense, dentre
eles, o massacre do Brigue Palhaço, rebelião
sufocada, em que mais de duas centenas de pessoas
foram assassinadas, seria uma espécie de embrião
para os movimentos revolucionários que ocorreriam,
posteriormente, dentre eles, a Cabanagem, revolta
popular em que o povo toma posse do poder na
província do Grão Pará (1835-1840).
A professora julga necessário compreender esta
história de luta e de resistência do povo em pró de
libertação, de melhorias das condições de vida e,
também, para sinalizar a trajetória dos movimentos
ao longo da história, a violência e a impunidade
configuradas nesse processo de disputas de poder e
de luta pela justiça social.
Apresentação do livro e os dois primeiros capítulos do
Livro Rei Congo, de João Lúcio Mazzini.
_____________
Seleção de uma produção de um pesquisador da
história da Amazônia. Leitura de um texto formal,
editado, legitimado para abordagem de um “novo”
tema: a história não oficial da cultura afroindígena,
ribeirinha, cabocla.
3
Entrega de uma pesquisa escrita, as equipes devem
optar por pesquisar sobre uma destas opções
Cabanagem, Brigue Palhaço, Rei Congo ou a
Biografia do Batista Campos, Eduardo Angelim
ou do Grenfeld (personagens envolvidos na
tragédia mencionada acima), é um levantamento, é
uma apresentação do material lido, para confrontar
a história oficial e história não oficial;
Além da leitura do livro, foi necessário solicitar que
cada equipe de aluno procurasse conhecer mais sobre
lideranças significativas nesse processo de
constituição dos movimentos. Por isso, pesquisar
sobre as biografias de Batista Campos, Eduardo
Angelim ou Grenfeld seria importante para
compreender a leitura da obra em questão, mas
também para entender sobre a própria história do
Pará, das revoltas populares e relacioná-las a história
atual construída no seio da própria periferia.
Textos escritos sobre informações a respeito de fatos
históricos e personagens significativos da história
social do Pará.
____________
Formato escolar tradicional para a construção de
repertório cultural sobre a história da cultura local.
4
Realização de um pré-teste sobre questões do
ENEM (tipo, gênero, intertextualidade);
O pré-teste recapitula questões de leitura e dos
conteúdos até então trabalhados ao longo de todo o
primeiro semestre. É uma avaliação mais voltada à
leitura de textos e integra umas das atividades
avaliativas do bimestre, também, é uma forma de
preparar o aluno para o ENEM e dar conta de uma
agenda da escola que incentiva a realização de
Pré-teste (tira, charge, poema, trechos de entrevistas,
pequena crônica, anúncio)
______
A manutenção do aparato docimológico interno para
fins de regulação do conteúdo trabalhado. Prática,
secularmente, utilizada pelas instituições preparatórias
120
simulados, pré-testes e provas, utilizando questões de
provas anteriores, a fim de familiarizar o aluno a este
tipo de avaliação.
do ensino secundário.
5
Apresentação dos seminários, a partir da
pesquisa relacionada aos movimentos sociais na
Amazônia, da leitura dos capítulos do livro Rei
Congo e das leituras e discussões realizadas em
sala de aula
Os seminários tinham como intenção fazer que cada
equipe buscasse melhor compreender para além da
leitura do livro, melhor conhecer os atores envolvidos
na tragédia do Brigue Palhaço, as origens e causas do
movimento cabano e das disputas de poder no
contexto amazônico e, ainda, tentar aproximar o
conteúdo pesquisado a fatos mais atuais, bem como
debater as diferentes fontes de informação e de
posicionamentos a respeito da história dos
movimentos sociais.
Textos de apoio (livro, pesquisa)
Slides preparados
Pequenos vídeos
_______
Formato genuinamente escolar: seminários para leitura,
discussão e aprofundamento de um tema escolar. Nesse
caso, a temática cerceia o contexto amazônico, negro,
afroindígena.
6
Produção de um documentário (paráfrase ou
paródia), a fim de contar o que foi pesquisado e
alimentar o canal do youtube, criado por eles.
A partir dos levantamentos realizados, das leituras e
debates, cada equipe preparou uma breve
apresentação ou um pequeno vídeo e por
recomendação da docente, este material serviria para
alimentação dos canais do youtube que eles já
possuíam e usavam como meio de veicular
informações do seu interesse.
Algumas equipes preparam vídeos;
Outras equipes apresentaram trechos de entrevistas que
realizaram com professores de história da escola;
_______
“Rompimento” com os formatos mais estabilizados
para a mobilização de formatos que convocam o
aparato tecnológico que necessita ser implementado na
escola.
7
Exposição dos documentários
Cada equipe fez a socialização do material produzido.
Foram pequenas apresentações feitas pelos alunos,
entrevistas com professores de história da escola,
apresentações em power point com imagens, nem
todos editaram um vídeo.
Gravação do clip Pau Torando: reunião dos
alunos para sair da escola e ir ao canal do
Tucunduba. Estiveram presentes as escolas do
bairro, o bloco firme, o coletivo cultural Casa
Preta e o cantor e compositor da letra da música. A
caminhada teve início no auditório da escola e
Após a realização do trabalho de leitura e de
discussão, era chegado o dia em que a turma, os
coletivos culturais e demais membros da comunidade
foram em caminhada da escola à ponte do canal do
Tucunduba para protestar por punição aos envolvidos
na chacina de novembro de 2014.
Cartazes, imagens, fotografias, carro de som, os
tambores dos coletivos, arte plástica, canto da letra de
música.
__________
Mobilização de diferentes repertórios linguísticos,
culturais e semióticos – uso de música, de instrumentos
121
8
teve como destino a ponte do canal do Tucunduba;
O hino da caminhada foi a letra de música Pau
torando, cartazes, imagens, fotografias, carro de som,
e os tambores dos coletivos entoaram a andança rumo
à necessidade de continuar fazendo a história e dar
prosseguimento à luta por direitos de homens e
mulheres da Amazônia expiada, explorada e
chacinada.
de percussão, atabaques, dança e performance pelos
coletivos Capoeira angola e Casa Preta- para a
construção de um formato que mobiliza escola e
comunidade: uma caminhada e, ao mesmo tempo,
convoca formatos escolares como o “cartaz” feito em
cartolina pelos alunos com frases de efeito.
9
Recapitulação e avaliação da caminhada a partir
da leitura e análise da letra de música Cantilena,
de Rafael Lima.
Leitura do texto e análise da letra da música,
considerando as leituras e a caminhada realizada,
uma espécie de balanço do trabalho ora empreendido,
buscando mais uma vez pensar nesse percurso de
construção do movimento social e suas conexões com
a realidade local.
Letra de música Cantilena
______
Uso do texto vernacular para retomar questões do
conteúdo programático e de temas abordados ao longo
da sequência de trabalho, reconfigurando o formato
escolar.
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
122
Para o procedimento de descrição e análise dos dados do episódio 1, desenvolvido em 13
aulas, consideramos a existência de três momentos ou sub-episódios para a realização didática
do mesmo: Sub-episódio1. Preparação; Sub-episódio 2. Efetivação (caminhada) e Sub-
episódio 3. Finalização - recapitulação da discussão abordados ao longo do episódio e de
tópico textuais/linguísticos. O primeiro é referente aos trabalhos de leitura, de discussão, de
apresentações e de debates para a compreensão de textos e da história dos movimentos sociais
no Pará. O segundo é pertinente à realização da caminhada pelas ruas do bairro. O terceiro é
dedicado a uma última leitura, que recapitula a discussão realizada ao longo do bimestre. A
seguir, elencamos algumas considerações iniciais sobre o episódio 1:
(i) a leitura é o eixo de ensino privilegiado no processo de construção do episódio,
percebe-se o considerável investimento na discussão e debate de questões sociais,
o que sinaliza a preferência para a análise temática entremeada a análise de
conhecimentos linguísticos dos textos; a produção oral é destaque no trabalho de
ensino deste episódio;
(ii) o trabalho docente é organizado a partir de uma sequência de atividades para a
implementação de um evento de letramento propriamente dito: a caminhada;
(iii) a eleição de autores não canônicos, de temas locais e de textos vernaculares
predominam nessa etapa do trabalho;
(iv) os discentes são responsáveis pela produção de pesquisas, de seminários, de
pequenos vídeos e de entrevistas, revelando a agência deste público no sentido de
realização de ações que convergem, independente, de uma orientação docente
direcionada à construção destas ações constitutivas e indispensáveis para a
produção do episódio em questão; o que indicia o protagonismo juvenil para o
processo de constituição e de efetivação do trabalho docente nessa cena didática;
(v) a preparação da caminhada é realizada em termos escolares por iniciativa do
trabalho da professora, é uma ação desvinculada da agenda da escola, pode-se
dizer do lugar acessório desta ação ao conjunto da forma escolar
institucionalmente colocada. Mas, de capital importância aos agentes de
letramento atuantes na comunidade, também, responsáveis pela organização do
evento: os coletivos culturais - muitos alunos são integrantes destes coletivos-, o
cantor e compositor de uma letra de música e demais membros da comunidade do
bairro, como os familiares das vítimas chacinadas;
(vi) a realização de uma avaliação instituída pela escola, para fins de cumprimento de
uma agenda institucional, parte constitutiva e fundante da forma escolar, que,
123
tradicionalmente, orienta a aplicação de pré-testes e simulados ao longo do ano
para fins de preparação dos alunos do nível médio, observa-se que o cumprimento
desta norma é realizado, mas, de certa forma, desvinculado de uma agenda de
trabalho construída pela professora.
Como já constatamos, a docente abordou a temática dos Movimentos sociais na
Amazônia, as atividades programadas para o ano letivo de 2016, de certa forma, davam
prosseguimento ao debate em torno de questões relacionadas à chacina67
, que ocorreu em
novembro de 2014, nas periferias da cidade de Belém-PA, em especial, no bairro da Terra
firme. Tendo em vista a pertinente necessidade de problematização deste acontecimento e da
necessidade de debate a respeito do contexto social, histórico, político, econômico, territorial,
linguístico em que a comunidade escolar está inserida, a docente propõe organizar a sequência
de atividades supracitadas que, nesse contexto de pesquisa, intitulamos episódio 1:
Caminhada.
A seguir, apresentamos um recorte das sequências das aulas referentes aos sub-
episódios que compreendem a preparação, concretização e finalização desta unidade de
desenvolvimento do trabalho docente. Trata-se da apresentação das sinopses de aulas dos
subepisódios preparação e finalização. A etapa da concretização será descrita por via de
relatos, registros fotográficos, de filmagem e dados dos diários de campo, a fim de que
possibilite uma visão geral do que foi realizado.
5.4.1 Episódio 1 Caminhada: sub-episódio 1 – preparação
Abaixo, é possível visualizar o primeiro quadro sinóptico. Descrevemos a primeira
aula do episódio referente à leitura da letra de música que seria o hino da caminhada.
Quadro 12 - Aula de Língua Portuguesa P1: fase de preparação do episódio 1
Sinopse de sequências de ensino: Leitura e análise da letra de música Pau Torando
Professora: P1 Episódio 1: Caminhada
Série: 3° ano – 2 aulas
Início: 0’00’
Término: 1’43’’20 Data: 13 de junho de 2016.
67 Este tópico dar continuidade a discussão que teve início em 2015. Alguns dos textos trabalhados com as
turmas do EM foram os documentários Poderia ter sido você e Primeiras linhas; o vídeo Gritar homem negra, de
Vitória de Santa Cruz; a edição do jornal, produzido pela Faculdade de Comunicação, dedicada à chacina
ocorrida em Belém em novembro de 2014; poemas de Marcelino Freire; a letra de música A minha alma, a paz
que eu não quero, de Marcelo Yuka, interpretada no Álbum Lado B Lado A, do Rappa; entre outros.
124
Nível Marcadores Instrumentos/
Objetos
Descrição das Atividades
1 Episódio 1 Instrumentos: Letra de
música e livro
1.1 0’00 a 5’35’’
---- Organização para o início dos trabalhos, solicitação da
letra de música Pau Torando, de Rafael Lima68
,
questionamento a respeito da pesquisa da letra da música.
Alguns alunos mencionam que tiveram dificuldade, uma
aluna diz que enviou uma mensagem ao cantor e
compositor e ele encaminhou a letra.
1.2 5’36’’- 11 ’59
’’
----
Solicitação de leitura da letra da música. Divisão da leitura
do texto por estrofe. A docente sinaliza a importância da
pesquisa, leitura e análise do texto. Início da leitura do
texto (primeira estrofe) e análise do uso do infinitivo e as
supressões da letra R.
1-3 11’ 60 ’’- 12
’55 ’’
---- Retomada e continuação da leitura do texto pela mesma
aluna.
1.4 12’57’’- 14’
01’’
---- Leitura realizada pela professora
1.5 14’’03- 24’
06’’
Objetos:
tópico temático
vocabulário
norma padrão/ não padrão
Discussão a respeito das possíveis diferenças e análise a
respeito da linguagem do texto: padrão/não padrão,
coloquial/ não coloquial. Um aluno identifica o uso de
gírias no texto, o uso de marcas linguísticas do português
levando em consideração a questão do rural/urbano. A
professora questiona o que significa a expressão “Pau
torando” no contexto periférico urbano e no contexto da
letra da música. Classificação do gênero da letra.
1.6 24’ 06’’-
25’07’’
---- Chamada de atenção dos alunos, convocação para
responder aos questionamentos.
1.7 25’10’’-
32’35’’
Objetos:
Tópicos informacionais;
Recursos
linguísticos/textuais
Retomada dos questionamentos a respeito da análise do
texto. Discussão sobre gênero e suporte, tipologia textual,
denotativo/ conotativo/ polissemia da expressão “Pau
torando”, “Pau canta”.
1.8 32’38’’-
35’43’’
---- Entrada de um professor em sala para falar sobre o seu
horário de aula.
1.9 36’03’’-
59’20’’
Objetos:
Tópico temático
Vocabulário
Retomada da análise do texto: discussão sobre a condição
das pessoas nas periferias da cidade, sobre o que é
colarinho branco, latifúndio, posseiro, grileiro, pistoleiro,
memória do ato ocorrido na avenida perimetral.
1.10 59’50’-
1’43’’02’’’
Objetos:
Tópico temático
Recursos
linguísticos/textuais
Solicitação da leitura do texto da apresentação do livro Rei
Congo, identificação da tese formulada pelo autor da
apresentação do livro, correlações entre o episódio relatado
no livro (em 1823), Eldorado dos Carajás (assassinato de
membros do MST) e a chacina ocorrida no bairro da Terra
Firme em 2014. Ainda não houve punição para os culpados
nos três casos.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
A seguir, apresentamos os quadros sinópticos da fase de preparação das seis aulas
referentes aos seminários que foram realizadas nos dias 20 e 23 de junho de 2016.
125
Quadro 13 - Aula de Língua Portuguesa P1: fase de preparação do episódio 1
Sinopse de sequências de ensino: Socialização da pesquisa
Professora: P1 Episódio 1: Caminhada
Série: 3° ano – 2 aulas
Início: 0’’00
Término: 46’’00
Data: 20 de junho de 2016.
Nível Marcadores Instrumentos Descrição das Atividades
1 Episódio 1 Instrumentos:
Slides/ Pesquisa
escrita
1.1 0’’00 - 5’’40 ---- Organização para o início das apresentações
1.2 5’’46 - 13’’14
----
Apresentação da primeira equipe: Rei Congo
1-3 13’’28 - 15’’11 ---- Perguntas/ comentários em relação à primeira equipe
1.4 16’’15 - 25’’22 ---- Apresentação da segunda equipe: Rei Congo
1.5 25’’26 - 42’’30
----
Perguntas/comentários em relação à segunda equipe, sinalizando
as contradições da dita história oficial relativa ao Rei congo,
congada e religiosidade no Brasil, em especial, para as populações
que foram escravizadas pelo colonizador e passaram por um
processo de violência simbólica no que tange aos ritos religiosos
destas populações.
1.6 42’’30 - 46’’00 Considerações finais sobre as apresentações.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Quadro 14 -Aula de Língua Portuguesa P1: fase de preparação do episódio 1
Sinopse de sequências de ensino: Continuação da socialização da pesquisa
Professora: P1 Episódio 1: Caminhada
Série: 3° ano – 4 aulas
Início: 0’00’
Término: 3’03’’42
Data: 23 de junho de 2016.
Nível Marcadores Instrumentos Descrição das Atividades
1 Episódio 1 Slides/ Pesquisa
escrita
1.1 0’’00 a 3’’25
---- Organização para o início dos trabalhos:
1.2 3’’27 - 28’’30
----
Apresentação da terceira equipe: tema Brigue Palhaço
1.3 28’’35 - 47’’28 ---- Perguntas/ comentários em relação à apresentação, discussão a
respeito do evento histórico Brigue Palhaço, tomando como base,
em especial, o livro Rei Congo, do professor João Lúcio.
1.4 47’’33 - 1’39’’29
----
Exibição de um vídeo sobre Brigue Palhaço.
1.5 1’40’’ - 1’45’’10
----
Comentários /perguntas em relação ao vídeo e à apresentação.
1.6 1’45’’11 - 1’55’’54
---
Exposição da quarta equipe
1.7 1’57’’39 - 2’09’’35
---
Exposição da quinta equipe
1.8 2’10 - 2’12’’
---
Orientações a respeito dos vídeos e organização do restante das
apresentações.
1.9 2’12’’06 - 2’27’’09
---
Exposição da sexta equipe
1.10 2’27’’13 - 2’44’’ --- Comentários/perguntas a respeito da exposição
1.11 2’45’’35 - 3’02’’42 --- Exposição da sétima equipe
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
126
5.4.2 Episódio 1 Caminhada: sub-episódio 3 - finalização
Apresentamos o quadro sinóptico referente à última aula do episódio Caminhada.
Nessa aula, a professora precisou unir duas turmas - uma turma do primeiro ano e uma turma
do segundo ano do EM, devido à falta de professores na manhã daquela segunda-feira. As
duas turmas foram acomodadas, foi realizada a leitura e a análise de mais uma letra de
música, do compositor Rafael Lima, a história dos movimentos sociais no Pará e alguns
conceitos foram recapitulados.
Quadro 15 - Aula de Língua Portuguesa P1: fase de finalização do episódio 1
Sinopse de sequências de ensino: Análise da letra de música
Professora: P1 Episódio 1: Leitura de textos e formação da consciência crítica
Série: 3° ano – 2 aulas MP3: Início: 0’00’
Término: 1’05’’24
Data: 27 de junho de 2016.
Nível Marcadores Instrumentos//objetos Descrição das Atividades
1 Episódio 1 Instrumentos: Slides/ letra
de música / vídeo
1.1 0’’00 - 1’’50
--- Organização para o início dos trabalhos: passagem de
som/imagens
1.2 1’’51 - 4’’00
Objetos:
Tópico temático
Início da discussão a respeito da letra de música Cantilena,
de Rafael Lima. Considerações a respeito do título do texto.
1.3 4’’05 – 4’’42 --- Leitura de um trecho do texto
1.4
4’’47 - 28’’28
Tópico temático
Recursos
linguísticos/textuais
Análise textual/linguística a respeito da tipologia, da
contextualização do texto em relação à Cabanagem e ao
Brigue Palhaço.
1.5
28’’29 - 55’’00 Vocabulário
Figuras de linguagem
Elementos da narrativa
Continuação da leitura do texto e análise entrecortada à
leitura - análise de vocábulos, figura de linguagem, categoria
tempo - sempre associando ao contexto dos eventos
históricos supracitados.
1.6
55’0’07 -
1’05’’24
Tópico temático/ reflexivo
Comentário de um professor que entrou no auditório e
assistiu ao final da aula, a professora fez uma fala de
encerramento da aula. Ao final, assistiram ao vídeo da
música.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
5.5 EPISÓDIO 2: PREPARAÇÃO PARA A ESCRITA DO ENEM
No segundo semestre de 2016, a professora de Língua Portuguesa (P1) focou o
trabalho de ensino de produção textual para o ENEM. As atividades programadas envolveram
a construção de aulas expositivas referentes às questões conceituais do texto dissertativo-
argumentativo, problematização de questões polêmicas a serem solicitadas no contexto da
127
avaliação externa, apresentação do modelo de redação exigida no referido processo avaliativo,
atividade de produção escrita e ao longo da constituição deste episódio didático.
É relevante atentar, ao longo deste percurso, a recorrência de um discurso docente de
sensibilização para a importância dos estudos, de ingresso em uma instituição de ensino
superior, para fins pessoais e sociais. A seguir, é apresentado o quadro 16 referente à
estruturação geral do episódio 2.
128
Quadro 16 - Preparação para escrita do ENEM: leitura, discussão e preparação para escrever uma Redação
Segundo Semestre de 2016:
atividades do terceiro bimestre Justificativa da atividade Instrumentos didáticos / Tensão fundante
1 Sensibilização para a importância do conteúdo a ser trabalhado.
Apresentação do planejamento para os trabalhos para o segundo
bimestre e do formato da segunda avaliação: produção escrita.
A docente sinaliza a importância de estudar e de
investir na preparação para o ENEM por se tratar
de um investimento de capital relevância para a
vida destes alunos no sentido pessoal, acadêmico e
social. Para isso, lembra que é necessário ler,
estudar, construir um posicionamento
argumentativo.
Anúncio do metadiscurso didático e do pacto didático.
2 Leitura de um texto sobre divisão do trabalho, discussão sobre os
preconceitos e as desigualdades que ainda persistem em relação
ao gênero no mundo do trabalho. Análise do texto dissertativo-
argumentativo, características da tipologia, natureza da
argumentação, estrutura do parágrafo de texto dissertativo,
coesão textual: tessitura dos elos coesivos, discussão a respeito
das fontes do repertório informacional convocado para a
construção do texto. Considerações sobre dissertação
argumentativa voltada para o ENEM - atendimento aos direitos
humanos, construção de uma conclusão tipo solução.
A professora julga necessário rememorar conceitos
e traços constitutivos da tipologia e apresentar
como isso deve ser adequado à escrita da
dissertação do ENEM, bem como as peculiaridades
do texto dissertativo exigido nesta avaliação.
Texto Divisão Sexual do trabalho;
Slides
______
Exposição de temas genuinamente escolares: tipo textual
dissertativo, argumentação, elementos coesivos.
3
Exposição oral sobre estrutura padrão do texto dissertativo.
Leitura e análise de uma redação considerada pelo INEP como o
melhor texto do ENEM 2012, apresentada no LD.
A docente prossegue com a apresentação dos
conceitos e apresenta uma redação para a discussão
destes conceitos, a fim de exercitar a conceituação
apresentada.
Texto do LD
Redação do ENEM
4 Exposição oral sobre tipos de argumentação: argumento por
autoridade, ilustração, provas concretas/ específicas, analogia
convocando exemplos relacionados à discussão sobre Gêneros.
A continuidade do trabalho de conceituação e a
proposição do exercício para fixação do conteúdo
trabalhado.
Folha avulsa
Livro didático
129
5 Realização da prova da segunda avaliação
6
Leitura e análise da prova, sinalizando a questão da estrutura do
texto dissertativo, bem como a discussão de Gênero, em especial,
a situação da mulher na sociedade brasileira. Considerações
gerais sobre a avaliação e ao processo seletivo, ênfase para a
necessidade de estudar no dia a dia.
A avaliação foi comentada em sala de aula para a
recapitulação dos conceitos, discutir as
dificuldades apresentadas e, em seguida, cada
aluno deveria tentar refazer as questões da prova
que não fez ou fez de modo incorreto.
Prova
Texto da prova: redação do ENEM.
______
Elemento de interligação entre o instrumento escolar
mobilizado e a evocação de situações vivenciadas pelas
mulheres do bairro, em especial, em relação à violência
física e simbólica a que muitas estão sujeitas.
7 Leitura individual de um artigo de opinião. Leitura em voz alta do
texto. Discussão a respeito do texto, os alunos são convocados a
falar. Alguns alunos são chamados para o início do debate. Os
questionamentos giram em torno da estrutura do texto dissertativo
- identificação da tese, tipos de argumento, estruturação do
tópico frasal- e sobre a temática Corrupção.
A atividade tinha como objetivo ler um texto para
incitar o debate e a construção de um
posicionamento crítico dos alunos e, ao mesmo
tempo, exercitar os conceitos trabalhados.
Artigo de opinião Corrupção cultural ou organizada, de
Renato Ribeiro.
8 Devolução dos textos e comentário geral sobre a refacção das
questões da prova. Continuidade ao debate do artigo de opinião
sobre a questão da corrupção.
_______
Textos dos alunos
9 Proposição da atividade de produção textual: problemática da
depredação do prédio da escola. Esta escolha foi motivada pelo
fato do terceiro roubo consecutivo das lâmpadas da sala de aula
do terceiro ano. Solicitação de uma produção textual. Orientações
para a produção do texto dissertativo-argumentativo. Além disso,
a docente solicita que é necessário realizar uma ação para chamar
a atenção da escola para este problema da depredação do prédio.
Atividade de produção escrita, a partir de uma
situação-problema ocorrida na sala de aula para os
alunos que estavam em situação de recuperação
paralela69
.
As condições locais afetam o desenvolvimento da
prática docente; é necessário convocar o elemento local,
que tenciona o fazer docente. É preciso colocá-lo em
discussão no molde escolar legitimado e balizado pelo
aparelho docimológico externo.
10 Entrega dos textos da parte 2 da recuperação. A turma foi
dividida em três equipes para exercitar argumentação por via do
jogo da argumentação - jogo enviado para escola por ocasião da
Exercitar a discussão de questões sociais, a
construção de um ponto de vista, o exercício da
construção da argumentação na modalidade oral de
Jogo da argumentação
_______
O jogo instaura certo rompimento com a cadeia
69 O sistema de avaliação dos alunos da SEDUC-PA funciona da seguinte maneira: os alunos fazem quatro avaliações ao longo do ano. Eles devem obter a nota mínima de 5
pontos em cada uma delas. As notas da primeira e terceira avaliações bimestrais devem ser multiplicadas por dois. As notas da segunda e quarta devem ser multiplicadas por
três. Somada a pontuação obtida em todas as quatro avaliações, o aluno deve alcançar a pontuação anual mínima e suficiente para a aprovação nas disciplinas cursadas, ou
seja, 50 pontos. Ao longo do ano, são realizadas duas recuperações destinadas aos estudantes que não conseguiram obter a pontuação exigida: uma recuperação paralela, que
deve ser realizada, obrigatoriamente, após a primeira e a segunda avaliação; bem como uma recuperação final, que deve ser efetivada, obrigatoriamente, após a terceira e a
quarta avaliação.
130
Olimpíada da Língua Portuguesa. Tempo destinado ao
entendimento do jogo: leitura das instruções de funcionamento.
Tempo destinado ao jogo das três equipes: realizamos a gravação
do jogo de cada equipe.
um modo mais interativo e lúdico. expositiva docente de apresentação do conteúdo. A
mobilização dos sujeitos é convocada por um
instrumento multimodal que traz à cena escolar um
momento mais interativo e descontraído ao processo
didático.
11
Palestra proferida por um advogado da OAB sobre a situação de
preconceito e marginalização da população negra no Brasil. Em
seguida, foi solicitada uma proposta de produção textual para toda
a turma.
Participar de eventos com sujeitos de formação
diversificada que possam discutir questões
relativas ao debate da situação da população negra
no Brasil contemporâneo.
Exercício de produção textual para todos os alunos
da turma. A proposta de produção teve como tema
“Desigualdade étnica e de gênero no Brasil do
século XXI”
Slides
Folha avulsa com a proposta de produção textual.
_______
A entrada de mais uma voz institucionalizada para
acrescentar ao repertório temático, que convocou alguns
alunos a tomarem a palavra e, certa maneira, contribuiu
ao momento de construção da redação escolar proposta
após a palestra.
12 Exposição dos tipos de argumento e revisão final para a prova do
ENEM (recapitulação dos conceitos).
Aulão de revisão final para todos os alunos da USE
06 no auditório da UFRA.
Slides
Trechos de redações do ENEM.
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
131
Abaixo, são apresentadas algumas considerações gerais sobre o episódio Preparação para
escrita do ENEM, a saber:
(i) a leitura também é o eixo de ensino privilegiado no desenvolvimento das ações
didáticas, observa-se o notável empreendimento na construção de um repertório
temático, aliado ao ensino de um “modelo” de escrita para uma situação de
avaliação específica; a produção escrita configura como o resultado do
investimento didático desenvolvido;
(ii) a escolha de gêneros discursivos escritos é mais restrita e predomina a didatização
do tipo textual dissertativo, desenvolvido a partir de uma sequência de atividades,
direcionadas à construção de um texto dissertativo com algumas características
específicas;
(iii) a eleição de autores legitimados por uma instância institucional, escolha de temas
de amplitude mais global, que também servem para respaldar uma discussão dos
problemas locais; o uso do livro didático de Língua Portuguesa;
(iv) os discentes são convocados a contribuir para a produção do debate, da construção
de um ponto de vista, da apropriação de um modelo de escrita, são chamados a
estudar para tentar ocupar um lugar social em uma IES, porém para o processo de
constituição e efetivação do trabalho docente nessa cena didática, percebemos uma
maior predominância da voz docente nas exposições orais, de certa forma, atrelada
à natureza do objeto em questão e à finalidade ora proposta;
(v) a realização de um conjunto de avaliações para fins de cumprimento de uma
agenda institucional, que programa uma série de pré-testes, simulados e provas ao
longo do ano para fins de preparação dos alunos do terceiro ano, observa-se que o
cumprimento desta norma é realizado no trabalho docente e, de certo modo, as
questões sociais, históricas, culturais, políticas, formativas discutidas pela docente,
a partir de uma agenda docente paralela ao instituído, “infiltram” a construção das
produções escritas destes discentes e indiciam as questões locais, os
posicionamentos dos alunos diante dos fatos e das problemáticas enfrentadas, bem
como as possíveis proposições interventivas para mudanças e melhorias.
O episódio 2 foi construído em 21 aulas, por conta disso, apresentamos um recorte das
sinopses e descrições de pontos relevantes do conjunto de aulas para mostrar os diferentes
aspectos constitutivos do trabalho de ensino realizado. Embora ainda apresente um fechamento
das atividades do bimestre anterior consideramos importante trazer a sinopse da aula do dia 08
132
de agosto de 2016 e já destacar aspectos relevantes, que serão reiterados ao longo de todo o
episódio.
A primeira aula do episódio tem como objetivo fazer uma orientação geral sobre o que
será trabalhado em praticamente todo o segundo semestre, a importância de priorizar os
estudos neste momento do ano letivo, tipo de avaliação, principais instrumentos didáticos.
Trata-se de uma “meta-aula”, orientada por um “meta discurso”, voltada à explicitação sobre o
objeto, os dispositivos e da proposição de um “pacto didático” entre professora e alunos a ser
acordado para aquele bimestre do ano.
O bimestre foi considerado central para o atendimento a uma demanda institucional,
escolar, balizada por uma avaliação externa, que estaria também vinculada a um propósito de
uma outra agenda do trabalho docente no EM neste contexto específico: a tentativa de
preparação destes sujeitos, a fim de que pudessem vislumbrar a possibilidade de ingresso em
uma instituição de ensino superior.
Quadro 17 - Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2 (fase inicial)
Sinopse de sequências de ensino: Introdução aos estudos do texto dissertativo argumentativo.
Professora: P1 Episódio 2: Preparação para escrita do ENEM
Série: 3° ano – 2 aulas
MP3: Início: 0’00’
Término: 1’19’’09
Data: 08 de agosto de 2016.
Nível Marcadores Instrumentos Descrição das Atividades
1 Episódio 2 Provas, pré-testes,
trabalhos escritos.
1.1 0’’00 a 24’’03
Entrega das provas e dos resultados da segunda avaliação.
Apresentação do quadro de desempenho dos alunos na avaliação,
em especial, do pré-teste composto por questões do ENEM.
Sinalização para a importância de estudar e preparar para o
ENEM, a fim de que possam ingressar na IES, apesar de todas as
dificuldades da escola e do momento político complicado que o
país enfrenta - escola sem partido, repressão, a condição do negro,
a discussão sobre gênero, sui gênero, teoria de gênero, assassinato
de líderes religiosos da umbanda. A importância de terem uma
leitura e um posicionamento para fazer a prova e para a vida.
1.2 24’’10 - 28’’22
---
Apresentação do planejamento para os trabalhos para o segundo
bimestre: oficinas de produção realizadas por outros professores,
focadas para a produção textual escrita.
1.3 28’’28 – 51’’10
---
Entrega das avaliações. Solicitação para postagem dos vídeos.
Algumas considerações sobre a apresentação formal dos trabalhos.
1.4 51’’45 – 54’’03
---
Apresentação do formato da segunda avaliação: produção
escrita. Sinalização para o uso do livro didático nas próximas
aulas e de dicionário, todos devem começar a levar estes
instrumentos.
1.5 55’’10 -
1’08’’41
---
Princípio sobre a discussão do uso de argumentos, diferença
entre opinião e argumento, natureza dos mesmos: citação,
comprovação.
133
1.6 1’08’’58 -
1’19’’09
---
Alguns tópicos sobre natureza dos argumentos são ditados, para
que os alunos copiassem no texto e pequenas explicações
paralelas. Solicita a leitura de texto do livro didático.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
A seguir, apresentamos as sinopses das aulas dedicadas à apresentação conceitual do
texto dissertativo-argumentativo e ensino de redação do ENEM.
Quadro 18 - Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2. exposição conceitual 1
Sinopse de sequências de ensino: Apresentação conceitual do texto dissertativo-argumentativo
Professora: P1 Episódio 2: Preparação para escrita do ENEM
Série: 3° ano – 4 aulas
MP3: Início: 0’00’
Término: 2’13’’20
Data: 18 de agosto de 2016.
Nível Marcadores Instrumentos Descrição das Atividades
1 Episódio 2 Roteiro /texto
avulso
1.1 0’’00 - 7’’50
---
Organização para o início dos trabalhos
1.2 7’’51 - 11’’10
---
Objetivo da exposição e importância da compreensão dos conceitos a
partir da leitura e análise dos textos.
1.3 11’’11 - 14’’29
---
Exibição do formato - análise de textos dissertativos, produção de
texto, análise dos textos produzidos e reescrita. Discussão sobre o que
é argumentar
1.4 14’’30 - 19’’29 --- Leitura do texto Divisão Sexual do trabalho
1.5 19’’30 – 38’’54
---
Análise: primeira entrada: temática. Discussão a respeito da divisão do
trabalho, os preconceitos e as desigualdades que ainda persistem em
relação ao gênero no mundo do trabalho.
1.6 38’’56 –
1’55’’35
---
Análise: segunda entrada: estrutura, levando em consideração
estruturação do texto dissertativo-argumentativo, características da
tipologia, natureza da argumentação, estrutura do parágrafo de texto
dissertativo, coesão textual: tessitura dos elos coesivos, discussão a
respeito das fontes do repertório informacional convocado para a
construção do texto.
1.7 1’56’’- 2’13’’20
---
Considerações finais da professora sobre dissertação argumentativa,
voltada para o ENEM, a saber: atendimento aos direitos humanos,
construção de uma conclusão tipo solução. Solicitação da professora a
respeito da leitura de gênero.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Quadro 19 - Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2. exposição conceitual 2
Sinopse de sequências de ensino: Estrutura do texto dissertativo
Professora: P1 Episódio 2: Preparação para escrita do ENEM
Série: 3° ano – 2 aulas
MP3: Início: 0’00’
Término: 1’24’’34
Data: 22 de agosto de 2016.
Nível Marcadores Instrumentos Descrição das Atividades
1 Episódio 2 Livro didático
134
1.1 0’’00 a 27’’40
----
Organização para o início dos trabalhos. A professora copia um
conteúdo no quadro. O aparelho de ar condicionado não estava
funcionando e o representante de turma precisou ir à direção em
busca de uma solução para o problema. A professora levanta o
questionamento sobre o fato do aluno da escola pública precisar ir
buscar soluções para o problema da sala de aula. Ele precisa
aprender na prática a questionar e buscar resolver um problema da
escola
1.2 28’’00 - 45’’00 Planejamento para os trabalhos que serão desenvolvidos na
próxima aula. Estímulo para os estudos e sinalização para a
necessidade de preparação para o ENEM. Necessidade da escola
valorizar aqueles que têm passado nos processos seletivos.
Chamada nominal.
1.3 45’’05 -1’24’’34 Exposição oral sobre tese, tópico frasal, estrutura padrão do texto
dissertativo. Leitura e análise de uma redação considerada pelo
INEP como o melhor texto do ENEM 2012, presente no livro
didático.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Quadro 20 - Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2. Resolução de uma avaliação
escrita
Sinopse de sequências de ensino: Leitura e análise da prova de segunda avaliação
Professora: P1 Episódio 2: Preparação para escrita do ENEM
Série: 3° ano – 2 aulas
MP3: Início: 0’00’
Término: 1’31’’36
Data: 1 de setembro de 2016.
Nível Marcadores Instrumentos Descrição das Atividades
1 Episódio 2 Prova/ Texto
Redação ENEM
sobre violência
contra mulher
1.1 0’’00 – 15’’33
----
Discussão da prova de segunda avaliação.
1.2 15’’34-51’’00 Leitura e análise do texto base da prova, sinalizando a questão da
estrutura do texto dissertativo, bem como a discussão de Gênero,
em especial, a situação da mulher na sociedade brasileira.
1.3 51’’01- 56’’42 Orientação para a importância de exercitar esta escrita para o
ENEM. Retorno para a discussão da situação da mulher na
sociedade brasileira e a avaliação.
1.4 56’’42 –
1’31’’36
Comentário de cada uma das questões da prova. Considerações
gerais sobre a avaliação e ao processo seletivo, ênfase para a
necessidade de estudar no dia a dia, a importância da entrada deles
em uma IES para eles e para a comunidade.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Quadro 21 - Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2. Refacção de uma atividade de
escrita e leitura de texto dissertativo
Sinopse de sequências de ensino: Atividade de reescrita das questões da prova da segunda avaliação, valendo a
primeira parte da recuperação
Professora: P1 Episódio 2: Ensino de produção textual escrita com foco para o ENEM
Série: 3° ano – 4 aulas
MP3: Início: 0’00’
Término: 1’56’’00
Data: 8 de setembro de 2016.
135
Nível Marcadores Instrumentos Descrição das Atividades
1 Episódio 2 Prova/ Texto
avulso/Apostila
1.1 0’’00 – 20’’27
----
Entrega das provas e trabalhos da segunda avaliação.
1.2 20’’28 – 27’’00 ----
Orientação para a realização da atividade, aqueles que estavam em
situação de recuperação de nota deveriam refazer as questões da
prova que não foram respondidas corretamente. Foi estipulado o
tempo de 1 aula, para que os alunos realizassem a tarefa.
1.3 50 minutos ---- Exercício.
1.4 00’00- 4’’46
----
Comentários sobre a atividade.
Organização dos trabalhos para o início da próxima atividade.
1.5 4’’47 - 25’’00 ----
Solicitação de leitura individual do texto Corrupção cultural ou
organizada, de Renato Ribeiro.
1.6 25’’20 - 32’’43 ---- Leitura em voz alta do texto.
1.7 32’’46 - 37’’01 ----
Considerações da professora a respeito do texto e solicitação da
participação dos alunos.
1.8 37’’02 – 1’16’’
----
Discussão a respeito do texto, os alunos são convocados a falar.
Alguns alunos são chamados para o início do debate. Os
questionamentos giram em torno da estrutura do texto dissertativo
(identificação da tese, tipos de argumento, estruturação do tópico
frasal) e sobre a temática Corrupção. Encaminhamento para o fim
dos trabalhos.
Quadro 22 - Aula de Língua Portuguesa P1: episódio 2. Produção textual I
Sinopse de sequências de ensino: Recuperação parte II
Professora: P1 Episódio 2: Preparação para escrita do ENEM
Série: 3° ano – 2 aulas
MP3: Início: 0’’00
Término: 53’’08
Data: 26 de setembro de 2016
Nível Marcadores Instrumentos Descrição das Atividades
1 Episódio 2
1.1 0’’00 - 17’’15
----
Considerações iniciais. Justificativa para a proposição da atividade da
segunda avaliação: o tema para a produção diz respeito à problemática
da depredação do prédio da escola. Esta escolha foi motivada pelo fato
do terceiro roubo consecutivo das lâmpadas da sala de aula do terceiro
ano.
1.2 18’’00 - 36’’50 ----
Exposição do conflito apresentado. Solicitação de uma produção textual.
Orientações para a produção do texto dissertativo-argumentativo. Além
disso, a docente solicita que é necessário realizar uma ação para chamar
a atenção da escola para este problema da depredação do prédio.
1.3 36’’51- 53’’08 ----
Respostas às dúvidas dos alunos sobre a atividade avaliativa.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
A aula do dia 06 de outubro de 2016 foi voltada ao exercício de discussão de vários
temas. Nessa ocasião foi usado um jogo enviado para as escolas que participaram em uma das
primeiras edições das Olimpíadas de Língua Portuguesa. Devido aos inúmeros feriados e às
paralisações dos professores que coincidiram com os dias de aula da docente, a turma ficou
quase todo o mês de outubro sem aulas de Língua Portuguesa. A turma foi dividida em três
136
equipes, gravamos as três rodadas de aplicação do jogo que foram simultâneas. Não foi feita
uma sinopse desta aula, as descrições de cada rodada foram observadas, registradas no diário
de campo e a gravação do áudio de cada equipe foi roteirizada em relatório de organização do
banco de dados.
A aula do dia 27 de outubro em que foi proferida uma palestra por um advogado da
OAB sobre a situação de preconceito e de marginalização da população negra no Brasil. Em
seguida, houve uma rodada de perguntas e, após a palestra, foi realizada a aplicação da
segunda proposta de produção textual a partir da temática “Desigualdade étnica e de gênero no
Brasil do século XXI”. Não houve atividades de retextualização destes textos. Não filmamos
nem gravamos, as observações foram registradas em diário de campo.
No dia 03 de novembro de 2016, todas as turmas de terceiro ano da escola e das
outras escolas da USE 06 foram reunidas em um auditório da Universidade Federal Rural da
Amazônia para assistirem aos professores, inclusive, a professora observada nesta pesquisa,
para proferirem um conjunto de orientações sobre a prova do ENEM da área de Linguagens e
suas Tecnologias. Somente, a fala da professora foi gravada.
A professora integrante desta pesquisa fez uma apresentação de orientações sobre a
prova de redação. Não fizemos sinopses destas últimas aulas, mas, ao longo deste capítulo,
dados gerados nestas ocasiões, serão descritos e retomados mais adiante e servirão para
construir o processo analítico desta prática de ensino de Língua Portuguesa.
5.6 PORTUGUÊS NO ENSINO MÉDIO: CAMINHADA E RESISTÊNCIA
O conjunto dos dados descritos nos episódios permite perceber que o trabalho de ensino
de leitura e de produção de textos abarca três grandes focos: questões linguísticas, históricas e
críticas que, por sua vez, estão imbricados e englobam o debate a respeito de língua, poder,
classe social, resistência, conscientização, currículo, história oficial e não oficial. Na primeira
aula do episódio Caminhada, é efetivada a leitura em voz alta e a discussão da letra de música
Pau Torando, de Rafael Lima (Anexo A), um artista paraense, que escreveu a letra por ocasião
da chacina ocorrida no bairro da Terra firme em novembro de 2016.
A fim de adensar o debate acerca da dimensão constitutiva do texto, a docente
recapitula a leitura do título da letra para buscar compreender os possíveis significados dos
termos que compõem o sintagma e justificar a opção do produtor do texto, tendo em vista os
prováveis interlocutores. A professora explica:
137
Quadro Sinóptico 3
Nível 1.5
Marcador 14’’03- 24’ 06’’
Questões linguísticas e
discursivas
P. [...] o título da música já é uma gíria, ou não? Colocar o pau pra, o que é por o pau pra
torar , ou pau torando ? O que é isso? [...] Fala assim mesmo, ó aquela festa lá na 99 tem
uma galera lá mas o pau tá torando nem vai pra lá, o que é pau torar? Existe uma
expressão, essa expressão ela tem uma conotação, ou seja, um significado tanto positivo
quanto negativo né verdade? O pau pode torar no sentido de a festa tá bombando, tá
todo mundo pipocando no sentido de dançar [...] Mas, o contexto da letra da música
nos remete a uma significação [...] não de festa, se tu pudesse substituir a expressão pau
torando ou por pau pra torar, tu colocarias que sinônimo pra essa expressão? Quando ele
pega no primeiro verso da música ele já tem uma ordem né, é o imperativo, ele fala com
o público específico, que público é esse? [...] isso aí dentro da função da linguagem é uma
função conativa, é aquela função persuasiva que quer influenciar a tua maneira de agir
né, [...] então... dentro desse contexto que eu tou falando com uma juventude, o que seria
por pau pra torar?
A22- Ir à luta?
P- Ham?
A22- Ir à luta.
P- Claro, por pau pra torar é lutar, tá? Então isso é luta, ele pega e fala assim mesmo:
“levanta juventude vem pra luta”, então por pau pra torar dentro desse contexto da
letra da música é vir pra luta, bora lutar, então é um chamado [...] bora guerrear, bora
lutar pelo nossos direitos, então eu posso falar que a linguagem ela é uma linguagem
coloquial, ela é um nível não padrão [...] Ele vai usar uma linguagem da gíria, uma
linguagem jovem.
Pode-se dizer que esta construção de conhecimentos, a partir do uso de um instrumento
didático oriundo do campo vernacular, de certa forma, confere um estatuto oficial, dominante,
institucional a um texto produzido no âmbito do local, em um contexto de resistência, pois a
composição foi produzida como forma de protesto à chacina de novembro de 2014. Esse dado
indicia para a seguinte característica constitutiva da prática de ensino de Português nessa
conjuntura de trabalho: a análise do vernacular é “inflitrada” pela instância escolar, acadêmica,
formal; intermediada e (re)constituída pela representante formal do aparelho institucional
escolar que elementariza, didatiza e legitima o que deve ser ensinado e sinaliza para um modo
de trabalho, revelando o uso de conteúdos típicos desta etapa de ensino – denotação/conotação,
funções da linguagem, níveis de linguagem- em uma nova coletânea de textos que aborda
temas caros ao público daquela comunidade.
Este movimento reporta a discussão a respeito da política linguística está intimamente
relacionada a uma “militância linguística” a línguas a beira da extinção, minoritárias ou em
situação de discriminação. Para esclarecer e complexificar este conceito, Rajagopalan (2013, p.
21) considera que
a política linguística não tem nada a ver com linguística; ela tem tudo a ver, isto sim,
com a política, entendida como uma atividade na qual todo cidadão- todos eles, sem
exceção- tem o direito e o dever de participar em condições de absoluta igualdade,
sem se importar com classe econômica, sexo, orientação sexual, idade, escolaridade,
e assim por diante. E, não só o direito de expressar suas opiniões livremente, mas
também de serem ouvidos e respeitados por elas (por mais ultrapassadas ou
ultrajantes que estas pareçam).
138
De algum modo, a professora tenta fazer isso, trazer outras vozes, linguagens e
posicionamentos para o seio da prática escolar, entretanto, muitas vezes, essa voz é atravessada
por outra política pública: o ENEM. Política que oficializa o que deve ser ensinado, institui a
língua que deve ser considerada como “padrão” e prescreve o conteúdo que deve ser
didatizado. Nesse sentido, os possíveis sentidos da expressão “Pau torando” são abordados e
instituídos por intermédio de variedade não padrão, não só para dizer o sentido da letra, como
também para “convidar”, “chamar”, “convocar” todos os interlocutores, em especial, o público
juvenil a reivindicar direitos.
A partir dos pressupostos freirianos, uma educação libertadora estaria balizada em
dois processos distintos: é necessário investir em um esforço de expor e problematizar o
contexto de opressão em que os sujeitos estão inseridos, a fim de evocá-los ao
comprometimento de (re) construção de uma prática de transformação, de contestação, de
reivindicação de direitos.
É necessário, então, instaurar um movimento pedagógico de contínuo
questionamento, (re)conhecimento e constante processo de busca de libertação, inclusive, a
liberdade de conclamar o direito de reconhecer e usar a língua para a construção desse ciclo de
re(construção) da práxis cotidiana, o que denotaria uma determinada inovação do tema no eixo
do saber.
O produtor do texto faz uso de uma suposta linguagem “jovem”, que estabeleceria
uma espécie de proximidade, de parceria, de identificação com o jovem, negro, morador de
periferia. O uso do não padrão é uma estratégia linguística, discursiva, enunciativa para além
da mera opção de registro ou de estilo.
Quanto à finalidade da ação de ensinar, o objetivo do ensino de português estaria
atrelado a interesses de discussão sobre a relação entre uso da língua e suas possíveis (re)ações
e embates de natureza acional, cultural, política e ideológica. O processo de ensino da língua,
da leitura, do discurso também seria uma forma de construir e constituir as arenas de luta
sociais, instituir legitimidade aos modos de agir, de pensar, de questionar, de compreender a
realidade circundante. O discurso docente incita a possibilidade de promover uma ação para
além dos muros da escola:
139
Quadro
Sinóptico 3
Nível 1.5
Marcador
14’’03- 24’ 06’’
Questões
linguísticas e
discursivas
P. Ele vai usar uma linguagem da gíria, uma linguagem jovem, isso é no que diz respeito à
linguagem, no que diz respeito a gênero textual, classifica, eu classificaria esse texto em que
gênero? Aí abre um buraco,né? Porque são muitos gêneros, mas eu...eu falaria que essa letra seria
que gênero textual? [...] Para com tua graça, e não me ignora, eu te fiz uma pergunta, qual é o gênero
textual, até os que não têm a letra, mas a gente acabou de ler a letra, então qual é o gênero textual que
tu poderias dizer: olha eu acho que é esse gênero aí viu? Hum?
A24- Letra de música.
P- Exatamente, é, a coisa é tão óbvia que a gente fica assim, pow eu vou, pow, mas é isso mesmo
,letra de música, letra de música [...]Ó, bora lá, então eu to diante da letra da música, e a tipologia?
[...]
Aluno 26- Injuntiva.
P- Injuntiva.
Aluno 27 - Argumentativa
P- [...] A base é argumentar, é te convencer, entendeste? [...] Ele ta, ele ta querendo te
convencer que o momento agora é de luta e que tu precisas lutar, isso é argumentativo, ta ok? [...]
Nós temos três, digamos assim três matrizes né? Três referências, eu tou aqui trabalhando,
tipologia, gênero e nível.
Depois da construção concernente aos possíveis sentidos do texto, da linguagem
utilizada, é a vez de categorizar o texto quanto ao gênero textual e o aluno é intimado a
responder ao questionamento. A preocupação professoral reside no sentido de perceber que o
aluno já faz o discernimento entre gênero e tipologia. Esta última forma de categorizar também
é mobilizada para completar o trio categórico analítico do texto: tipo, gênero e nível.
Uma observação a esta dinâmica didática é a tentativa de buscar imbricar a discussão
da leitura do texto ao tripé de classificação, para categorizar, prescrever, circunscrever a
serviço do currículo oficial, imposto, legitimado e, ao mesmo tempo, convidar ou convencer a
buscar pelos direitos. O discurso reiterado ressona como uma espécie de convocação: “Ele tá,
ele tá querendo te convencer que o momento agora é de luta e que tu precisas lutar, isso é
argumentativo”.
Mais uma vez, o currículo impõe uma política linguística e veicula uma ideologia
linguística, aliás duas: a dominante (o currículo, o livro didático, etc.), por isso mesmo
oficializada e a dominada (movimentos de resistência: a letras de música trabalhada em sala
de aula, o discurso docente, as situações de opressão, de violência, de repressão, de injustiça
sofridas pela comunidade escolar). Em seguida, a análise do texto tem continuidade.
Quadro Sinóptico 3
Nível 1.9
Marcador
36’03’’-59’20’’
Questões linguísticas e discursivas/
Vocabulário
P. [...] Bora lá, tá beleza ? Aí quando eu falo assim: “pau canta”, gente se por pau pra
torar é lutar, o que seria pau cantar?
Aluno. Porrada.
P- É, exatamente, porrada, isso é porrada, pau canta, olha o que ele fala assim pau
canta toda hora, pau canta toda, toda hora a gente tá pegando porrada, toda hora estão
batendo na gente, toda hora nós estamos num, num porão de um navio e estão
jogando solda cáustica na gente, toda hora, aí ele fala assim: “ pau canta toda vem
pra tora”, e aí o que é, vir pra, o que é vir pra torar, Flávio?
Aluno- Ir pra luta.
140
O sentido da expressão “pau cantar” é relacionado à histórica situação de
desigualdade social e de injustiça das classes sociais menos favorecidas economicamente na
Amazônia paraense, por isso a expressão em questão estabelece uma direta relação com um
fato histórico ocorrido em 1823: 257 caboclos, que se rebelavam contra o governo português
na Província do Pará, foram aprisionados no porão do navio Brigue Palhaço e devido ao calor,
à sede, à falta de ar iniciaram um tumulto. Para controlar a “ordem” dos prisioneiros, a força
imperial naval sob o comando de John Pascoe Grenfell arremessou cal nas entradas de ar da
embarcação. Este crime nunca foi julgado e até hoje não se sabe ao certo onde os corpos foram
enterrados.
Depois de 12 anos do massacre, as classes populares proclamaram a Cabanagem
(1835-1840), a letra da música, foco da leitura e da aula, também, “convida” a juventude a
questionar por justiça diante da situação de opressão dos moradores nas periferias de Belém,
também “convida” a participar de uma caminhada para pedir justiça pelo assassinato dos
jovens do bairro, porque depois de quase dois anos decorridos não houve julgamento, não há
culpados, não há condenados.
O objetivo de trazer à tona a história oficial e a não oficial sobre as origens do
movimento social de luta na Amazônia começa a ser apresentado, a analogia entre os fatos
ocorridos na periferia e a história de luta por direitos sociais no Pará é necessário para
fomentar o debate acerca da trajetória histórica, sangrenta e desigual das populações
amazônicas (índios, negros, caboclos, mamelucos, cafusos). A atividade de leitura prossegue e
a expressão “colarinho branco” é colocada em análise.
Quadro
Sinóptico 3
Nível 1.9
Marcador
36’03’’-
59’20’’
Questões
linguísticas e
discursivas
P. [...] o que é colarinho branco? É uma expressão específica nossa, exatamente, que identifica um
contexto, qual é o contexto? Falar em colarinho branco eu penso em que?
A. Em políticos.
P.[...] eu tou diante de uma metonímia [...] porque o colarinho branco é só a parte de um político,
mas que representa o todo, tá beleza? Uma patifaria, [...] Sempre vai só pra um lugar que não é pros
colarinhos brancos, tá bom? Sempre é a gente, quando eu li esse, esse pedacinho [...] eu lembrei do
Cazuza [...] “não me convidaram para essa festa pobre, que os homens armaram pra me convencer”
né? Ele chega um momento que ele fala assim mesmo: “eu fiquei na porta estacionando os carros”, eu
paguei a conta da festa que eles fizeram, mas eu fiquei só estacionando os carros. Então, a gente
sempre paga a conta [...] quando a gente para pra pensar, que a escola que tem o maior investimento
[...] é a escola pública, [...] é a melhor paga [...] nós deveríamos ou teríamos o direito de ter a
melhor escola, [...] Ele fala o seguinte: quando a coisa começa a pegar fogo, onde é que aumenta? No
feijão, no açúcar, no pão, [...] eu to diante de elementos representativos que simbolizam uma classe
social, falar em feijão e arroz, falar em pão é falar em quem?
A. No pobre!
P- Aí fala de colarinho branco o contexto é político, eu falo sobre pagar conta e sempre ter a mesma
via, eu falo de corrupção e falo de desigualdade social, eu falo de politicagem, ta?
141
Mais uma vez uma terminologia já trabalhada é evocada para categorizar a expressão
em questão. O conhecimento sobre figura de linguagem, um trecho de outra letra de música e
um exemplo contextual são mobilizados para tentar construir os significados “monitorados”
pelo professor em torno dos possíveis sentidos da expressão “colarinho branco”, que faria
referência a uma determinada classe social, detentora de um dado status social, político,
financeiro; a construção linguística estaria relacionada à corrupção, à exploração e à
desigualdade entre diferentes grupos sociais.
Entremeada a análise da expressão em voga, o direito do aluno ter uma boa escola pública
é anunciado: “nós deveríamos ou teríamos o direito de ter a melhor escola [...] é a mais bem
paga”. Direito este, constrangido pela realidade da escola pública degradada em que ele luta
para permanecer e onde ele é convidado a lutar e resistir, mesmo diante das desigualdades e
dificuldades enfrentadas e denunciadas, para que estes sujeitos tenham acesso ao Ensino
Médio neste contexto.
Esta realidade imposta entre o direito e a realidade evoca o posicionamento defendido
por Chauí (1989, p. 26) “cada direito, uma vez proclamado, abre campo para a declaração de
novos direitos e que essa ampliação das declarações de direitos entra em contradição com a
ordem estabelecida”. A professora dá continuidade à leitura e começa a perguntar o que
significa a palavra latifúndio.
142
Quadro
Sinóptico 3
Nível 1.9
Marcador
36’03’’-59’20’’
Questões
linguísticas e
discursivas
P. Aí tem uma parte aqui que eu acho muito bacana, quando fala: “latifúndio que ataca matando
posseiro”, aí da até pra arrepiar, né? Eu te pergunto, olha pra cá, que eu tou falando contigo, tá?
Tou falando contigo, o que é latifúndio? Wendel? És tu?
A. Latifúndio é um pedaço de terra.
P. 301 manhã concorda com Wendel? Ou protesta, negativo não é um pedaço de terra, o que é o
latifúndio? Tu concordas com o Wendel? É um pedaço de terra? Então, bora lá, eu vou abrir a porta e
vou me deparar com um espaço, PÁ, aquilo ali é um pedaço de terra, olha o latifúndio, se é um
pedaço de terra, latifúndio é isso? [...] o que é um latifúndio? É um pedaço, basta, olha eu tenho um
pedaço de terra, eu tenho um pedaço de terra lá no meu quintal [...], eu tenho latifúndio? Eu sou uma
latifundiária? [...] Não [...] bora começar a pensar e construir um conceito [...]
A. Pesquisei o que é latifúndio. (o aluno usou o celular para buscar o significado)
P- Tu já leste? [...] é uma coisa que nenhum paraense deve ficar na dúvida, nenhum paraense em
hipótese alguma pode não saber, tu tens que saber o que é um latifúndio e um minifúndio, tu tem
que saber, ta? [...] Ora, porque tu és a herança de tudo isso, se tu tá aqui agora, se no fundo do teu
pé tem terra batida, se tem piçarra, se tu tás numa escola que te desagrada, tu precisas saber a
origem de tudo isso, e a palavra tá em latifúndio, e o que é latifúndio?
A. Propriedade rural de grande extensão.
P. É uma propriedade rural de grande extensão, só isso P1, já entendi? Não, eu tenho que ser
proprietária de uma grande extensão de terra improdutiva, ou com uma produção
infinitamente pequena, com as máquinas obsoletas, sem investimento nenhum, gente o Pará é
estado que tem maior latifúndio em quantidade, eu tou falando de número, nenhum outro
estado como o Pará tem latifundiários e latifúndio. O Pará é o maior que tem no nosso Brasil, por
que ? [...] é uma grande propriedade rural sem produção, e aí a base da desigualdade social é essa, é
enquanto poucos têm muito, tem muitas terras improdutivas, tem muitos querendo produzir
num quadrado e não tem, a história do movimento sem terra (MST), começa por aí, o
movimento do sem terra são pessoas que querem reforma agrária, o que é uma reforma agrária? É
da terra pra quem quer plantar [...] o Pará só tem latifúndios de bilhões de hectares, já pensastes o
que é isso? Nós temos, é, é latifundiários que têm propriedades do tamanho de cidades e de estados e
às vezes até de países, acreditem gente, de países, europeus [...] O sul do Pará, o sudeste do Pará é
onde há maior concentração de terra, onde os grandes latifundiários estão, que inclusive foi
onde ocorreu a chacina, o massacre do Eldorado dos Carajás.
Pode-se constatar a necessidade de compreensão do termo “latifúndio” para entender a
base de construção da sociedade brasileira, amazônica e paraense, a fim de que possam
compreender o porquê da realidade desigual em que eles estão imersos: “tu és a herança de
tudo isso, se tu tá aqui agora, se no fundo do teu pé tem terra batida, se tem piçarra, se tu tás
numa escola que te desagrada, tu precisas saber a origem de tudo isso, a palavra tá em
latifúndio”, por isso a docente enfatiza e reitera que todos os alunos estejam atentos para a
compreensão da palavra: “nenhum paraense deve ficar na dúvida, nenhum paraense em
hipótese alguma pode não saber, tu tens que saber o que é um latifúndio”.
Devido à convocação docente, um aluno responde “é um pedaço de terra”. Outro
estudante pesquisa o conceito na internet via celular para trazer uma outra acepção à discussão
“Propriedade rural de grande extensão”. Nota-se que o discurso do alunado é um discurso
institucionalizado pelo dicionário, mas a professora rompe com a ordem institucional,
dicionarizada, estabilizadora. Para “quebrar” esta ordem estabelecida, ela lança mão de dois
binômios dos procedimentos de exclusão a que se reporta Foucault (1999): razão x loucura,
verdadeiro x falso.
143
Conforme Foucault (1999), há três procedimentos de exclusão: interdição, razão x
loucura, verdadeiro x falso. O primeiro faz referência ao fato de que “não se tem o direito de
dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância para qualquer um, enfim,
não pode falar de qualquer coisa” (idem, p. 9). O segundo faz menção à segregação da loucura:
a palavra do louco pode ser considerada nula, não deve ser acolhida, não tem verdade e nem
importância, mas, ao mesmo tempo, o louco pode ter o poder de dizer “uma verdade
escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a
sabedoria do outro não pode perceber” (idem, p. 11).
O terceiro remete à vontade de verdade: a vontade de saber, que atravessou séculos de
nossa história por intermédio de um sistema de exclusão que se traduzia no discurso
pronunciado, era pronunciado para quem de direito, pronunciava a justiça, profetizava o futuro
e contribuía para sua realização, obviamente, a partir daquilo que se acreditava. Nesse sentido,
essa verdade se desloca para o enunciado, o sentido, sua forma, seu objeto e para a relação
com a referência.
Segundo Foucault (1999, p. 17), a “vontade de verdade, como outros sistemas de
exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional”. Nesse sentido, o trabalho da professora
condiz com essa vontade de verdade que se apoia em um sistema institucionalizado (o MEC, a
escola), que se impõe e pressiona o trabalho docente. Então, a vontade de saber dela se vê na
ideia do desejo de verdade que é arbitrária a ideia de falsidade. Essa vontade de verdade está
dentro de um sistema de exclusão, para isso não há interesse no aprendizado do povo em geral.
Nessa direção, observamos a convocação de outras informações para tentar construir e
instituir uma definição, um sentido, uma leitura, quando, na realidade, poderia haver várias, a
do dicionário e tantas outras, para além da mera acepção do suporte legitimado. Por isso, é
evocado o exemplo da acachapante concentração fundiária no Pará e a memória de mais uma
das chacinas ocorridas no estado, porque os líderes de movimentos sociais mais uma vez
questionavam a histórica concentração da terra gestada nas capitanias hereditárias:
grande extensão de terra improdutiva, ou com uma produção infinitamente
pequena [...], gente o Pará é estado que tem maior latifúndio [...] aí a base da
desigualdade social é essa: poucos têm muito, tem muitas terras improdutivas, tem
muitos querendo produzir num quadrado e não tem [...] O sul do Pará, o sudeste do
Pará é onde há maior concentração de terra, [...] inclusive foi onde ocorreu o
massacre do Eldorado dos Carajás, que até hoje não houve resposta.
Depois de mais de vinte anos deste último acontecimento de repercussão internacional,
a professora tenta explicar porque os líderes foram chacinados:
144
Quadro Sinóptico 3
Nível 1.9
Marcador
36’03’’-59’20’’
Questões históricas
P. o massacre do Eldorado dos Carajás, que até hoje não houve resposta, até hoje não
houve resposta para aquele massacre, que se não me engano foram 19 paraenses, líderes,
ta? De Líderes populares, que estavam atrás de reforma agrária, gente o dia que a
gente começar a entender que fazer reforma agrária popular, que a gente começar a
fazer investimento em horta comunitária, vai livrar a gente da doença e da pobreza e
da miséria, e vai libertar o nosso povo, a gente vai começar a fazer das nossas paredes as
hortas suspensas, que é uma solução. Mas não vou entrar no caso, no mérito, a gente tá
aqui na letra da música.
Como o conceito de reforma agrária foi mencionado, a docente interliga o massacre
ao movimento de luta pela terra e pela reforma agrária. Mais um evento sangrento contra
líderes populares, mais um evento que pode ser interligado à leitura do texto construído em
sala de aula e a “quebra” da ordem instituída (FOUCAULT, 1999). Por outro lado, a dinâmica
discursiva demarca o alto grau de mediação didática do processo de atribuição e de arbitragem
de sentidos em voga no processo de leitura de textos em sala de aula, reforça um lugar limitado
à palavra do outro e reifica a institucionalização da palavra autoritária; o que pode
(re)configurar a prática de ensino a um limite movediço, fronteiriço, limítrofe, até mesmo
contraditório, entre a manutenção e o rompimento da ordem institucional colocada, que
pressupõe a vigência de sentidos ou coloca em cheque a “verdade institucional” pressuposta ao
discurso docente que busca enunciar uma outra “vontade de verdade”.
Essa contradição também é decorrente do processo de construção histórica da
sociedade brasileira, marcada por ser uma verdadeira “empreitada comercial” da terra
(capitania, engenho, fazenda), muito “próxima” a uma configuração social feudal caracterizada
pelo protecionismo, relações de dependência, de submissão, “mandonismo”, paternalista,
autárquica, mutista, antidialogal. Condições estas que não propiciaram condições favoráveis a
uma experiência democrática no processo de construção social do país, mas implicaram,
sobretudo, a criação de uma consciência hospedeira da opressão, cerceada pelo isolamento,
interditada pela palavra, pois não havia imprensa, a circulação de livros foi proibida e, até
mesmo, o sistema educacional jesuítico foi desintegrado (FREIRE, 1968; RAMA, 1985).
O nascimento da nação brasileira foi constrangido pela autoridade dos senhores da
terra, do capitão-mor, dos governadores e fiscais da coroa, que estabeleceram o que Foucault
(1996) intitula como um “sistema de vigilância”, balizado na exploração do trabalho do nativo
e dos escravos, que sufocou a formação de cidades, do comércio, da imprensa, do
desenvolvimento das artes, de escolas, de universidades e demais instituições letradas. Isto
propiciou as condições necessárias à formação de uma sociedade agrária, muda,
antidemocrática, acrítica, vertical, expiada, violenta, que afastou o homem comum de qualquer
forma de governo sob o jugo do respeito ou da força e lhes limitou ao ajustamento,
145
acomodação e a não integração. Esta conjuntura foi endossada e disseminada, também, pela
educação jesuítica, essencialmente, “verbosa” e justaposta à realidade colonial do Brasil.
Realidade esta, que ainda hoje ressona na sociedade brasileira contemporânea e em seu sistema
educacional nos vários e constitutivos níveis de ensino (FREIRE, 1968).
Por conta disso, a mencionada vontade de verdade - “verdade” a ser ensinada -
traduzida no discurso docente enunciado pode ser deslocada para o enunciado e as referências
desse dizer para além do espectro da fala professoral. Esta “verdade” enunciada pela docente
dialoga, situada na temporalidade colonial supracitada, corrobora com a pesquisa realizada
pelo Núcleo de dados, que analisa os relatórios da Comissão Pastoral da Terra (doravante
CPT), no período de 1985 a 2016, e revela o histórico de impunidade a que estão subjugados
aos que lutam pela terra e causas afins, aqueles que ousam questionar a condição social
imposta desde a invenção do país.
146
Figura 3 - Brasil: mapa de mortes no campo
Fonte: Pesquisa CPT (2017).
A pesquisa aponta que o Pará é o estado brasileiro que concentra 30% dos
assassinatos em conflitos relacionados à disputa fundiária. Mais alarmante, é a impunidade:
levantamento da CPT (2017), desde 1985, denuncia que menos de 10% dos homicídios, nos
últimos trinta anos, foi julgado70
. A leitura prossegue e outros termos aparecem: posseiro,
grileiro, pistoleiro e geram dúvida quanto ao entendimento e a docente propõe:
Quadro
Sinóptico 3
Nível 1.9
Marcador
36’03’’-59’20’’
__________
Questões
linguísticas,
discursivas
e históricas
dá uma lida [...] essa questão da reforma agrária, dá uma lida entende isso, pro Enem, ta? E aí por
curiosidade mesmo vai atrás dessa coisa do o que é o pistoleiro, o que é o posseiro, o que é o grileiro,
é , como é que são a ações de cada um deles, porque a letra da música é bem clara, [...] fala assim
mesmo ó: “latifúndio que ataca matando o posseiro justiça disfarça prende o pistoleiro”, [...] o
pistoleiro é aquele cara tão ferrado, não posso chamar palavrão né mana (risos),[...] o pistoleiro ele é
tão ferrado quanto o posseiro, é mais ou menos esses atos públicos, essas manifestações, quem
tava lá que fechou a Perimetral, que os caras já tavam, né, que os militares já estavam lá todos,
é, é, empinados pra impedir que a gente, é, é interditassem a avenida por completo, lembra
disso? Aí o cara vem na maior arrogância, PORRA!
Alunos- Calma P1.
P- Se ele entendesse, se ele entendesse, que a luta é também por ele, ele passava pro lado de lá,
porque ali ele é apenas um pau mandado, o dinheiro não vai pro bolso dele, mas ele defende o
cara que concentra o dinheiro no bolso, entendeu?
Neste fragmento, pode-se observar que a professora evoca a “memória didática” de
participação dela e dos alunos em um ato realizado em uma avenida próxima à escola. Nessa
direção, ela equipara a relação estabelecida entre pistoleiro vs posseiro evocada pelo texto ao
papel exercido entre os protestantes do ato da Avenida Perimetral por eles vivenciados vs
70 Informações disponíveis em http://www.mst.org.br/2015/03/18/menos-de-10-dos-1-700-assassinatos-em-
conflitos-de-terra-vao-a-julgamento.html. Acesso em: 13 abr. 2018.
147
policiais que tentam oprimir o ato de interdição. A memória é evocada para entender a relação
entre mandantes e executores das relações de poder instituídas.
Em uma elocução inflamada, monologal, visceral, ela reitera que “Se ele entendesse, se
ele entendesse” uma outra vontade de saber, uma outra verdade, ele “também”, assim como
ela - representante formal do aparelho ideológico escolar- subverteria a ordem e mudaria de
lado e de verdade, pois “a luta é também por ele [...] passava pro lado de lá, porque ali ele é
apenas um pau mandado”(FOUCAULT, 1999; ALTHUSSER,1985).
A docente continua a aula. A tarefa a ser realizada era a leitura da apresentação de um
livro sobre um dos eventos históricos, considerado o embrião dos movimentos sociais
populares na Amazônia paraense: a tragédia do Brigue Palhaço. A obra é resultado da pesquisa
de um professor de história e pesquisador, que reuniu documentos históricos e relatos sobre o
suposto processo de julgamento do acontecimento.
O texto de apresentação foi produzido por Paulo Fontelles Filho, nascido nos porões da
ditadura militar, filho da socióloga Hecilda Meire Ferreira Veiga e de Paulo César Fonteles de
Lima - advogado, sindicalista, ativista em defesa dos direitos humanos, foi o primeiro advogado
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Pará e da CPT durante a ditadura militar, deputado
estadual pelo PC do B (1983-1987).
Em virtude de sua atuação em defesa dos direitos dos lavradores em questões de ordem
fundiária no Estado do Pará, o advogado atuou ativamente em disputas relacionadas aos conflitos
agrários no sudeste do Pará. Em 11 de junho de 1987, aos 38 anos, ele foi assassinado por
pistoleiros em um posto de combustível, às margens da BR316, na Região Metropolitana de
Belém-PA. O crime causou grande comoção popular na época em função da forte atuação
política e sindical de Fontelles a favor dos trabalhadores do campo. Hoje, mesmo depois de
mais de 30 anos da execução do militante, o crime infelizmente continua impune,
corroborando assim com a estatística da impunidade71
, apontada pela supracitada pesquisa da
CPT (2017).
A leitura da apresentação do livro, produzida por Fontelles Filho, denota o grau de
encadeamento da discussão didática operacionalizada pela docente nessa ação de ensino. Pode-
71 A execução de militantes no Brasil ainda pode ser considerada recorrente no Brasil. Marielle Franco, mulher,
negra, moradora da favela da Maré, vereadora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, no dia 14 de março de
2018, foi executada, treze tiros atingiram o carro onde ela, a assessora e o motorista transitavam em uma área
central da cidade do Rio de Janeiro. O crime continua impune. De acordo com a Diretoria de Análise de Políticas
Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV Dapp), houve 567,1 mil menções ao crime em 19 horas - entre as
22h do dia 14 de março, minutos depois do crime, e às 17h do dia 15 de março. Conforme o levantamento, os
termos "negra", "mulher", "execução" e "executada" foram algumas das dez mais utilizadas para se referir à
vereadora. Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-43437479. Acesso em: 13 nov. 2018.
148
se perceber que é necessário acompanhar o trabalho de leitura de um texto formal, informativo,
argumentativo, que, certamente, demandaria mais concentração e abstração no sentido de
compreender a língua utilizada, identificar a tese defendida e todo o aparato argumentativo
mobilizado para convencer o leitor sobre a importância do conteúdo da obra e da necessidade
de leitura para entender a história dos movimentos de resistência na Amazônia paraense. A
professora inicia a discussão da seguinte maneira:
Quadro Sinóptico
3
Nível 1.10
Marcador
59’50’-1’43’’02’’’
____________
Questões
linguísticas,
discursivas
e históricas
P- Isso a primeira coisa que ele começa a dizer pra ti é que os livros de história não dizem o que
aconteceu, [...] ele diz que é importante porque através do livro do João a gente vai saber o
que aconteceu e o que não aconteceu, por que ele é um historiador; isso, aí ele pega e conclui
essa tese através da intriga que ele tem, que intriga foi essa?
Aluna- Foi a, a de uma chacina.
P- Exatamente, ele pega a história lá do brigue palhaço, em 1823 com a morte de 257
paraenses, e estabelece uma comparação entre a chacina que acontece agora nos anos 2000 com
o Eldorado dos Carajás, e diz que [...] em 1823 nunca houve um retorno essa também não e ainda
te incluo mais a do, da terra firme também [...], assim como lá houve morte de 257 pessoas
inocentes [...], a mesma coisa aconteceu aqui na TF (terra firme), [...] lembra de uma roda de
conversa que nós fizemos, que choram os cravos, a mãe do Eduardo... a tia do Bruno
choraram aí com o microfone na mão, dizendo que eles não eram bandidos, [...]
O excerto da aula possibilita compreender informações relativas à construção da
argumentação do texto da apresentação: contexto de produção da pesquisa e do livro, a
relevância da obra no sentido de contar a história do Pará, a partir de outra perspectiva para
compreender os fatos históricos. A equiparação que o produtor da apresentação faz entre a
tragédia do Brigue Palhaço, Eldorado dos Carajás e a comparação da professora com a chacina
da Terra Firme ocorrida em 2014 e o contexto de impunidade que cerca estes casos.
Além disso, o fragmento aponta para as opções didáticas e para a constituição da coerência
destas escolhas: a eleição dos textos concorre para a tentativa de compreensão dos históricos
de massacres e chacinas no estado do Pará; a fim de que percebam a chacina ocorrida no bairro
em novembro de 2014, como parte constitutiva dessa sangrenta narrativa, marcada pela
impunidade, pela falta de julgamento, pelo sumiço de documentos importantes, não
comparecimento de testemunhas em audiências e desaparecimento de corpos de vítimas.
É necessário compreender para questionar por justiça, é preciso compreender para
contrapor a história oficial e não oficial, é preciso identificar a tese, os argumentos, o texto
“dissertativo” para compreender como (re)ler e (re)escrever esta história do Pará e do Brasil.
Nesse momento, mais uma vez percebemos que a docente tenta avançar a fronteira entre a
forma ou tradição escolar e institui o que ela, de fato, faz em sala de aula, embora seja
perceptível que a estrutura escolar estabilizada permanece, mas a forma é atravessada pelo
149
conteúdo temático vernacular, que é protagonista na construção da narrativa docente em sala
de aula neste episódio.
De alguma forma, é preciso demonstrar para o aluno que os temas e as disciplinas estão
interligados, isto é, é preciso propor reconfigurações ao imposto, ao instituído, ao processo de
disciplinarização que se concatena aos eixos macro e micro estrutural de formas de
configuração do trabalho ora proposto. Talvez, a priori, esta interligação não esteja evidente,
por conta disso, é necessário unir estes elos discursivos, a fim que as disciplinas possam
convergir ou não, nesses eixos de tensão e de ação, para a formação do leitor e do produtor do
texto, mediante as reais condições de realização do trabalho do professor.
Quadro Sinóptico 3
Nível 1.10
Marcador
59’50’-1’43’’02’’’
____________
Questões linguísticas,
temáticas
e curriculares
P- Ta? É até bom tu fazeres esse levantamento, e em 2014, novembro de 2014, reproduz agora
na tua, no teu bairro, tu consegues perceber que tá tudo interligado? Ta? Os assuntos eles
estão tudo interligados, e isso daqui a gente vai trabalhar com latifúndios, concentração
de terra, com a questão da reforma agrária popular, com a questão da desigualdade
social, com a questão da crise econômica política vivida no teu país hoje, em decorrência a
essa crise econômica política que vivi teu país hoje, qual é a maior crise do momento, qual é
maior crise contemporânea? A crise ética, nós estamos vivendo uma crise de ética e dos
valores, vai da lá no que o Guilherme (professor de Filosofia da escola) tá dando pra vocês,
ética
Janks (2012) sinaliza a necessidade dos alunos estarem cientes e conscientes da
constante interação, negociação, discussão de questões locais e globais. Elas não se excluem,
muito pelo contrário, estão em constante e permanente condição de interação e negociação. É
interessante lembrar que um dos tópicos de avaliação da Redação do ENEM está relacionado à
possibilidade do aluno mobilizar conceitos das várias áreas do conhecimento para construir o
texto dissertativo solicitado nesta avaliação.
Este dado indicia que o episódio “Caminhada”, de certo modo, constitui uma etapa de
preparação para trabalhar o desenvolvimento dos níveis de abstração e de problematização dos
demais temas que possam vir a ser abordados, futuramente, seja para a escrita, seja para a
prática de leitura, ainda que isto seja por via da intensa exposição oral, que pressiona o sujeito
por intermédio de uma elocução professoral letrada, intensa, inflamada no sentido de tentar
promover uma reconstituição de uma linha histórica do não oficial por via dos instrumentos
discursivos essencialmente escolares e tradicionais: como os seminários escolares, estruturados
a partir da enunciação discente e dos posicionamentos docentes que se sucedem às exposições,
a fim de aprofundar e institucionalizar os saberes negligenciados, silenciados, subalternizados
na construção da história afroindígena na Amazônia.
150
São as interseções entre as (re) configurações atuais e permanentes que moldam e
constituem os formatos escolares que se assentam ao já instituído para a consolidação do
processo de “novos” objetos e de objetivos outros demandados às formas escolares, as quais se
instituem em virtude dos contextos específicos se (re)constituem e avançam frente à
necessidade de inserção dos textos, dos saberes e dos posicionamentos vernaculares no trânsito
disciplinar, escolar, institucional.
Este estágio do trabalho pode ser observado com mais precisão ao longo dos
seminários, desenvolvidos com a turma sobre Rei Congo, Cabanagem, Brigue Palhaço e
Cônego Batista Campos. Nesse âmbito, atentamos para a mobilização de uma forma escolar
secular, para a atualização e inserção de temáticas de resistência ao poder instituído.
As equipes72
puderam escolher uma opção, pesquisar e socializar em sala de aula.
Nesse momento, tentamos trazer os posicionamentos dos alunos e a tentativa de discussão
acerca das informações levantadas pelos alunos, selecionamos um trecho da exposição da
primeira equipe:
Quadro 4
Nível 1.2
Marcador
5’’46 - 13’’14
____________
Questões
linguísticas
discursivas
e históricas
A6 – A6 – Bom dia gente! A gente vai falar um pouquinho sobre o Rei Congo, vocês conhecem a
Alcinda, a Bianidas, o Vander e a Elimara. Primeiro a gente levantou umas pesquisas, duas
histórias. Uma de uma entrevista de um homem que eu não identifiquei quem era [...] que pra mim
não ficou coerente com a história que é contada pela umbanda. É a primeira história vai falar do
um Rei Congo, que ele foi até aprisionado e numa tempestade foi trazido pra cá pro Brasil, e nessa
tempestade a esposa dele e a filha dele morreram, ele só veio pra cá com o filho, e ficou 40 anos
escravos e tal e começou a trabalhar como mineiro e ele fez com que o latifundiário, ele ganhasse
muito dinheiro, enriquecesse [...] só que aí o império começou a entrar em conflito com isso, pois
tinha muitos negros livres, [...], mas eu não achei essa história tão coerente quanto a que é contada
pela umbanda, que é um site chamado: Umbanda grátis, que fala que na verdade o nome dele era
Otacílio, ele era um negro que curava muitas doenças, ele era um curandeiro pode-se dizer, e uma
delas era tuberculose, em uma dessas curas, ele curou uma, a filha do dono da fazenda, e pra
divulgar mais essas coisas dele, ele começou a viajar, e nessas viagens ele viu que os negros eles
eram muito humilhados e tal, e isso começou a trazer revolta pra ele. Então o que ele fez? Ele
planejou uma fuga e nessa fuga ele encontrou um monte que foi chamado como “o monte dos
perdidos”, [...] onde, o interessante é que pra achar o cume né?! Que é o único lugar, [...], digamos
que tinham vários caminhos, e todos esses caminhos levavam pro nada, por exemplo, pegavam
qualquer caminho pra chegar ao monte dos perdidos e chegavam no nada, só tinha um caminho que
levava a cume, onde tinha um lugar muito bonito, flores, rios e tal, e ele consegui chegar lá graças a
festividade de lá, os orixás, ele conseguiu chegar lá, ele ficou muito feliz. Então o que ele pensou?
Vou começar a ir atrás desses negros humilhados e vou trazer eles pra cá, pra eles construírem
famílias, construir o quilombo lá, ele começou a fazer isso. Todas as noites ele fazia isso, corria atrás
dos negros que estavam nas fazendas e tal, e ele pegava os negros mais fortes pra servir como os
guerreiros, e somente os negros que pertenciam ao monte dos congos perdidos é que sabiam o
caminho verdadeiro pra chegar a esse congo, as outras pessoas se perdiam, quem tentava ir atrás
deles se perdiam pra chegar lá. Aí, certa vez, diante disso, ocorreu uma historinha, a Bianidas vai
contar pra gente.
72 Foram formadas sete equipes e cada uma tinha 3 ou 4 alunos.
151
A fala do aluno sinaliza a seguinte estruturação: saudação para turma, apresentação dos
membros da equipe, exposição do tema, apreciação das narrativas apresentadas e transferência
do turno para a próxima integrante, o que denota certo domínio destes alunos em relação à
defesa de suas ideias para um público. Mas, o que nos parece substancial de ser atentado diz
respeito ao processo de formação destes sujeitos como pesquisadores, indiciado por três
características presentes no fragmento: o processo de escolha, de apreciação de dados e de
apropriação.
Pode-se perceber que a equipe pesquisou na internet em diferentes sites e a partir de um
“site de macumba” conseguiu perceber que não havia apenas uma versão da história que
procuravam, mais que isso, puderam apreciar e avaliar o conteúdo mais coerente “mas eu não
achei essa história tão coerente quanto a que é contada pela umbanda, que é um site
chamado: Umbanda grátis”. A apropriação é marcada ao longo do todo o excerto pelo modo
encadeado de narrar o que compreenderam e ainda chama a atenção o uso da palavra
“latifundiário” na produção oral, o que indicia uma dada apropriação do aluno em relação ao
que foi trabalhado pela professora em sala de aula, de algum modo, o discurso professoral
atinge o alunado que já faz uso do vocabulário no processo de exposição de suas ideias em
uma situação escolar, formal, acadêmica.
O ensino da história das populações afrodescendentes no Brasil serve de palco para a
apropriação da exposição oral, da apreciação em pesquisa e da construção do ponto de vista
sobre a narrativa da história por intermédio de outras vozes além do material didático oficial-
escolar. A exposição dos alunos tem prosseguimento:
152
Quadro 4
Nível 1.2
Marcador
5’’46 - 13’’14
____________
Questões
linguísticas,
discursivas
e históricas
A8. Antes de acontecer isso que a Bia falou, o Rei Congo foi falar com o velho Malaquias que era
tipo um vidente. Aí o velho Malaquias falou assim: olha, essa noite tu tem que ir sozinho, porque se
tu for sozinho pra lá buscar os negros, os libertar, tu vais gerar várias mortes, vai ocorrer várias
mortes, mas tu vai trazer um membro muito importante pra cá pro Quilombo, aí ele disse tá, tudo
bem, então ele foi lá sozinho, e foi capturado, e esse feitor Amadeu, ele reconheceu ele, e perguntou:
é você que cura as doenças né? Ele disse é. Olha, minha amada, minha esposa, ela tá com
tuberculose, se tu curar ela pra mim, eu te liberto, tipo assim, entendeu? Aí ele curou a Rosa e como o
feitor tinha que entregar o corpo do Rei Congo lá pro Coronel, dono da fazenda, ele disse assim: ele
não teve escolha a não ser fugir com o Rei Congo, e aí o membro importante que ia pro quilombo, e
levou a Rosa junto também, e ficaram muito agradecidos, e desde aí o Rei Congo ficou conhecido
com esse nome, porque ele se tornou como um Rei de lá do quilombo que era chamado de Congo, e
até hoje ele é um membro muito reconhecido pela umbanda, ele é chamado de preto velho, é
membro muito importante da umbanda, enfim, aí surge aí o Brigue Palhaço, membros que estavam
lá gritavam: Viva o Rei Congo! Como uma pessoa que era reconhecida pela sua humildade, pela sua
serenidade e por libertar os negros e os escravos. Aí a gente fala um pouquinho mais sobre a Congada
que era uma manifestação religiosa, que até hoje é muito conhecida, é a afro-brasileira. E as
referências que a gente pesquisou em Umbanda grátis, aquela primeira história foi uma entrevista
chamada “famosa história do Rei Congo”, e o livro73
.
Uma aluna retoma o turno para continuar a exposição, acrescenta informações e explica
a suposta relação entre a tragédia do Brigue Palhaço - narrada pelo professor de história da
escola no livro Rei Congo- e o Rei Congo. Segundo algumas versões dos relatos históricos
analisados pelo professor, as pessoas presas no porão do Brigue Palhaço morreram gritando
“Viva o rei congo”, lutavam por liberdade e faziam referência ao líder negro, libertador de
escravos, também, reconhecido como Preto velho pela Umbanda. É válido perceber que o
grupo acrescenta uma informação nova, até então, não trabalhada diretamente pela professora
“chamado de preto velho”.
Assim, o tabu em torno da ideia de macumba é, de certa forma, repensado, tendo em
vista a atribuição de certa heroicidade a um elemento relevante desse universo, muitas vezes,
depreciado, discriminado. Eles agregam macumba e heroicidade, a partir da construção da
história dos negros vs ideia de escravidão, o que denota um dado amadurecimento dos alunos
em relação ao tema abordado.Nesse sentido, as versões investigadas possibilitavam fazer o
aluno visibilizar a história de lutas e de disputas em busca de poder e de conhecimentos,
construídas historicamente entre grupos sociais dominadores e dominados na narrativa de
constituição dos movimentos populares de resistência no Estado do Pará.
Além disso, a aluna é questionada quanto aos elementos de constituição discursiva que
a levaram a seleção da defesa das informações apresentadas, na sequência, o questionamento é
lançado pela docente que instiga o aluno a dizer o critério de pesquisa por ele adotado
mediante o conteúdo pesquisado. Vejamos o fragmento que ilustra este acontecimento:
73 O livro a que a estudante faz referência é o livro de autoria do professor e historiador João Lúcio Razzini, Viva
o Rei Congo, que foi apresentado como proposta de leitura pela professora.
153
Quadro 4
Nível 1.3
Marcador
13’’28-
15’’11
Questões
linguísticas,
discursivas
e históricas
P. Perguntas? Nenhuma? Perguntas lá? Não? Tá. Eu vou fazer uma pergunta, Elimara, quando tu falas
que não consideras aquela outra história coerente, por quê?
A6 (E). Porque a Umbanda contou a história dele e ela acredita nele como uma entidade religiosa, não
sei se é bem essa a expressão, então eu acredito mais neles, por eles considerarem, não essa
primeira história, mas eu acho bem mais coerente, bem mais abrangente a história da umbanda
né?! Tanto que eu pesquisei em sites de umbanda, não só esse, mas é a mesma história, a história da
“famosa história do Rei Congo”, eu achei num site.
P – Então na verdade, dentro da pesquisa de vocês, o que te leva a considerar a coerência dessa
história que vocês apresentaram, é que a outra história tem menos referência...
Aluno 6 – É a mesma história, só que a Umbanda conta com mais detalhes a história.
A apresentação da segunda equipe recapitula elementos já apresentados pela primeira
equipe e revela a necessidade de preparação, de estudo, de envolvimento para o momento da
exposição escolar, bem como para a pertinência do assunto em questão. Para este público, falar
de negritude, de história, de resistência é relevante não só para compreender a história, mas,
sobretudo, para que possam entender a realidade que os circunda.
Quadro 4
Nível 1.4
Marcador
16’’15 - 25’’22
____________
Questões
linguísticas
históricas
identitárias
A8. Bom! Bom dia, praticamente ela falou tudo, a primeira eu achei no mesmo site que ela, também
concordo com ela que a Umbanda fala muito mais, fala melhor do Rei Congo, é, como diz lá, ele foi
escravo no século XVI E XVII, e ele também curava a tuberculose, depois que ele curou a mulher do
coronel, ele ficou mais conhecido, e ele também fez a fuga, achou o monte, achou o monte dos perdidos,
e lá ele começou a resgatar todos os seus companheiros, e daí como ela falou né?! Ele foi capturado, e
quando ele ia ser chicoteado, o mal feitor viu que ele era o homem que curava a tuberculose, então ele
falou: se você curar a minha mulher, eu te liberto. Ele sabia que se ele fizesse aquilo, ele ia romper com
o coronel dele, mas assim mesmo ele pensou primeiramente na mulher que ele amava, aí ele libertou, ele
foi e curou, aí nesse tempo, ele levou a mulher e o mal feitor pro quilombo. [...]
A9 – Vamos falar um pouquinho sobre a relação do Brigue Palhaço. O massacre do Brigue palhaço
aconteceu em 1823, quando os soldados negros e os caboclos se rebelaram.[...] Eles se rebelaram contra
os portugueses, aí eles usaram a justificativa de ter acontecido esse massacre, por conta deles serem
anarquistas, serem soldados sem poder. O Brigue Palhaço, nome do navio, antes era José Diligente, foi
denominado Brigue Palhaço depois dos massacres que aconteceram.
P. Dos massacres dos paraenses?
A9. Sim!
P– Só foi chamado Brigue Palhaço depois dos massacres?
A9 Sim!
P – Foi?! Não sabia.
A9. Tragédias, eles não denominam tragédias, porque foi um ato decorrente a Cristo, então eles
denominam como morte cívica.
A10 – Primeiramente, bom dia! Acredito que pra gente falar sobre uma história dessa, a gente tem
que tá bastante respaldado né?! A gente tinha que estudar, uma história de resistência, uma (.....)
A12 .Vou falar um pouco das origens e entidades, mas esse praticamente ao cristianismo, afro. O
cristianismo e o catolicismo foi um ato do povo para como de sobrevivência, eles usavam os rios, as
pescas, como a “salvação” pro, no futuro, há uma liberdade. As entidades que eles denominavam
santos era Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Nossa senhora do Rosário foi considerada pelos
negros e pobres, a santa branca e coroada, que o mito dela foi quando ela apareceu do lado da senzala
deles, tava tudo, um sofrimento todinho, ela apareceu chorando e as lágrimas dela se transformavam em
pétalas. O São Benedito foi considerado pra eles pelo fato de que ele era um negro, escravo,
cozinheiro dos coroneis, e por ele ser cozinheiro, ele sentia dó dos escravos que sentiam fome, e
fazia escondido e dava comida pra eles. Daí como o coronel descobriu, foi mandado que o chicoteasse.
Mas, na hora em que ia chicotear ele [...], aí as correntes se quebraram , foi aí que denominaram o Santo
Benedito como irmão e Nossa Senhora do Rosário como mãe deles [...], a festa deles eram
comparados com, ainda são, como uma festa muito simbólica pra eles, com danças, cantos e etc.
154
A segunda equipe aborda a questão do Rei Congo, apresenta algumas origens, faz
alusão ao Brigue Palhaço, estabelece uma relação com o que foi dito pela equipe anterior e
acrescenta dados, demonstrando assim um repertório mais consistente. Dessa maneira,
percebe-se a ampliação da discussão e o incremento do elemento regional, pois São Benedito é
o santo da marujada bragantina e santo cultuado na capital paraense, também, tendo suas
comemorações concentradas, em especial, no bairro do Jurunas e nos terreiros espalhados pela
cidade, portanto, mais próximo de sua realidade, atrelando história, memória, narrativa e
território.
Note-se que a ampliação das informações trazidas pela equipe é relevante, porque
demonstra o quanto os alunos ultrapassaram as expectativas da professora, revelando não só
um repertório mais desenvolvido, mas uma pesquisa sobre o assunto mais detalhada e mais
exploratória, o que revela também o nível de apropriação do conteúdo e da palavra falada ou,
em outros termos, o considerável domínio de uma oralidade letrada. A partir disso, a
professora abre ao debate:
Quadro 4
Nível 1.5
Marcador
25’’26 - 42’’30
____________
Questões
linguísticas,
identitárias
históricas
P– Tem perguntas?
A11. Tem!
P – Faça!
Aluno 11 – Assim, um dos membros daí como eu tava dizendo, falou o termo “ser anarquista”,
eu queria saber o que seria um “ser anarquista”? P – Alguém falou?
A12 Pessoa que tem poder. Ele usa o termo pra denominar que ele era bandido e tal, que ele
não tem poder pra falar.
P– Respondeu?
A12 – Sim!
P. Alguma pergunta a mais? [...] A primeira equipe apresentou que a versão da Umbanda no que diz
respeito ao Rei Congo, ela é mais coerente, mais abrangente. A segunda equipe entra e confirma essa
informação [...] e a pergunta é pra todos: Por que que vocês acham que a umbanda ao falar do Rei
Congo, ela se demonstra mais cuidadosa?
A13 – Porque ela tem todo o respeito... Porque assim, a meu ver n é?! Eu achei mais interessante
porque ela tá fazendo representação diretamente pro Preto velho e na minha família eu tenho
pessoas que frequentam esse tipo de lugares, e eu já fui entendeu? Já frequentei esse tipo de
lugares, por isso que eu disse que tem todo respeito, toda aquela coisa, eu acredito que por isso e
também de forma mais detalhada, a gente acha que se a gente for num terreiro, com certeza eles
vão contar a história do Rei Congo relacionada a Preto Velho, entendeu?
Este fragmento é muito significativo para o processo de descrição dos dados, porque
percebemos a construção da interação didática74
, revelando a posição do aluno quanto ao
termo anarquista neste contexto histórico de 1823. A conexão estabelecida pelo aluno entre a
narrativa do Rei Congo, Preto Velho e a própria vivência dele em ambientes que cultuam
74 Compreendemos interação didática como “o processo discursivo mobilizado para a didatização de um dado
objeto de ensino e transformação do mesmo em objeto ensinado” (FERREIRA, 2008, p. 134).
155
práticas religiosas afins aos temas em debate funda uma relação direta com estas narrativas
“não oficiais”, pois ele também participa de práticas religiosas estigmatizadas pelo simples
fato de não ser o “oficial” ou a vertente do colonizador, por isso o aluno credita “respeito” e
“mais detalhamento” à versão atribuída à Umbanda, por ser aquilo, provavelmente, a que ele
confere legitimidade. Este processo do modo como os alunos se apropriaram daquilo que foi
trabalhado em sala de aula pela professora evoca a compreensão responsiva, evoca a dimensão
enunciativa da palavra:
Qualquer palavra existe para falante em três aspectos: como palavra da língua neutra
e não pertence a ninguém; como palavra alheia dos outros, cheia de ecos de outros
enunciados; e, por último, como minha palavra, porque, uma vez que eu opero com
ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva determinada, ela já
está compenetrada da minha expressão. Nos dois aspectos finais, a palavra é
expressiva, mas essa expressão, reiteramos, não pertence à própria palavra: ela nasce
no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condições de uma
situação real, contato esse que é realizado pelo enunciado individual. Nesse caso, a
palavra atua como expressão de certa posição valorativa do homem individual (de
alguém dotado de autoridade, do escritor, do cientista, pai, mãe, amigo, mestre, etc)
como abreviatura do enunciado. (BAKHTIN, 1997, p. 294).
Quadro 4
Nível 1.5
Marcador
25’’26 - 42’’30
____________
Questões
linguísticas,
históricas
identitárias
conscientização
P. Tá. A Laisa, ela fala assim: que a relação da história do Rei Congo e da própria congada em si,
a relação dessa tradição com a igreja católica, foi uma condição de resistência e sobrevivência.
[...].O quê que vocês acham disso? [...] Então presta atenção que quando ele pega e coloca Santa
Branca protetora dos pretos, eu não tou entrando no mérito da religião, tá? Eu tou aqui te
ajudando a refletir sobre a representação simbólica disso. É uma santa branca que vai agora
proteger os pretos, o que tu achas que isso significa ou representa? Por que será que essa santa
branca vai lá ao lado da senzala e chora pelos pretos e essas lágrimas se transformam em
pétalas? Como é que se constrói o inconsciente, olha aqui, inconsciente, não vou falar nem do
consciente, como é que se constrói o inconsciente coletivo de um povo? Quer dizer, eu tou lá na
senzala, eu tou sofrendo, eu tô sendo maltratado pelas mãos brancas, eu tou sendo impedido de
exercer e de praticar as minhas, as minhas, os meus ritos, o que eu acredito. Mas eu não desisto!
E pra que eu possa ter a liberdade e a autorização, olha o que eu tou dizendo, a autorização de
praticar os meus rituais, da minha religião, do Deus que eu acredito, eu preciso modificar esse
Deus eu preciso modificar o meu rito, camuflar alguma coisa, e ficar subordinada a uma outra
religião que é tida como oficial de um país [...]. Tu consegues entender? A resistência? Aí a
pergunta porque senão não vou calar a boca, vou acabar respondendo. A pergunta é ela diz
assim: a aliança entre essa história com a igreja católica, foi uma postura de resistência e
sobrevivência. Por quê? O quê que tu pensas disso?
A13 – O que eu li, o que eu entendi, foi que os Congos, não foi evidentemente, não é essa a
palavra, mas que ela usou a Santa Nossa Senhora do Rosário como um... Os servos lá tomavam
conta dos escravos, ao ver que a Santa não saía dali do templo dos escravos, eles tiravam,
colocavam em uma capela, mas a Santa voltava para aquele mesmo lugar chorando em volta de
lágrimas, usaram essa história para colocarem como se fosse a Santa que dependesse dos
negros, aí que veio a Santa Branca coroada que é a Santa dos pretos, foi dessa história que veio
Este trecho é bastante significativo para a inserção da descrição dos dados, pois
demonstra a exposição de posicionamentos da professora e dos alunos ao longo da discussão.
O texto tecido pela professora aborda questões de formação do sincretismo, de resistência, da
156
condição de sobrevivência do negro em um país estrangeiro, colocando em evidência que a
narrativa da história do negro no Brasil é marcada por uma constante “negociação" pela
sobrevivência física, cultural, religiosa, nesse último caso, muitas vezes, foi necessário fazer
uma “aliança” a favor de “uma postura de resistência e sobrevivência”, afinal de contas, “o
novo não está no que é dito, mas no acontecimento à sua volta” (FOUCAULT, 1999, p. 26).
O aluno apresenta uma versão da narrativa que pesquisou para responder aos
questionamentos da relação sincrética estabelecida entre os santos “brancos” e “negros”. A
docente retoma o turno:
Quadro 4
Nível 1.5
Marcador
25’’26 - 42’’30
____________
Questões
linguísticas,
históricas
identitárias
curricular
P. [...] Eu sou pesquisadora tanto quanto vocês, então assim, o que eu falo, é o que eu reflito, não é
certeza, não é ciência, só vai ser ciência depois que eu escrever sobre isso e publicar um artigo [...]
Mas por enquanto eu tou dividindo só raciocínio com vocês[...] nós somos todos pretos nesse
contexto, [...] eu tou falando de formação de indivíduo, eu tou falando de lógica pro mundo [...],
pras existências que virão, [...], [...] Porque não vai tá num livro de história. Porque o livro de
história vai dizer que a Santa é a padroeira nacional, é a padroeira oficial, que todos
reverenciavam a Santa, não, tinha um povo que reverenciava a fitinha que tava no manto da
Santa. A Santa não era importante, foi esse povo que quando a pele derreteu, pega na mão do outro
e grita: Viva o Rei Congo, [...] Inclusive, se tu fores estudar nas referências, tem uma galera que diz
que eles não gritaram isso, que é mentira, [...] A gente precisa conhecer a nossa história, a gente
precisa conhecer quem nós somos, nós precisamos respeitar o sangue que corre em nossas veias. E
não apenas ir na igreja e continuar perpetuando uma história dos opressores, porque a história
que eles contam sempre vai ser a mesma. Aquela que vai pro livro de história, que vai chegar na
tua escola, e tu vais estudar como a verdade. Mas tu precisas saber a história da fita do manto da
Santa que não foi pro livro de história. Que foi velado nesse povo, negro, que é resistente e que
ainda existe, basta a gente saber ir atrás das fontes verdadeiras. Tu entendes?
[...] Que paz é essa que não me permite fazer axé pros meus orixás? Que paz é essa que eu tenho
que colocar uma Santa branca para proteger os negros? Que paz é essa que eu tenho que colocar
um manto que é simbologia de uma religião europeia, no meu orixá? Porque se não tivesse manto
como a permissão de brancos, não é de Deus, é do demônio. [...], tás aqui no último ano do Ensino
Médio, naturalmente tu vais estar no ensino superior, e tu precisas entender essa história
Este excerto serve para mostrar a existência de uma história oficial e uma história não
oficial. Também, sinaliza a necessidade do aluno e da própria professora pesquisarem para
tentar (re)contar a narrativa já instituída pelo livro didático, pela igreja, ou seja, pelas agências
de letramento “autorizadas”. O predomínio do turno professoral mais uma vez remete a
categorização foucaultiana verdadeiro x falso (vontade de verdade). “A vontade de verdade,
como outros sistemas, apoia-se sobre um suporte institucional” (FOUCAULT, 1999, p.17).
Podemos perceber que o suporte institucional é reforçado e reconduzido para um
conjunto de práticas e “modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado,
distribuído, repartido e de certo modo atribuído” (FOUCAULT, 1999, p.17). Então, os
sistemas de exclusão social - interdição, razão x loucura, verdadeiro x falso - estão assentados
em um suporte institucional - nesse caso, a escola, a igreja - e coloca, em jogo o poder e o
157
desejo, a história do dominador e do dominado, as formas de institucionalização, de ritos, de
oficialização, de valores do que é verdade ou não.
Nesse sentido, podemos constatar que esta é uma discussão cara e imprescindível de ser
realizada em uma escola que pretende formar para a criticidade, para a formação cidadã,
participativa, agentiva, pois conhecer a própria história é condição necessária para a
compreensão dos processos sócio-históricos que encaminham rumos à segregação espacial,
territorial, cultural, institucional, curricular - sua história não é escrita pelo livro didático; rumo
à renúncia de atendimento a direitos básicos assegurados pelas instâncias de legitimação
oficial, mas que são negligenciados e contribuem para que a histórica injustiça social dos que
sofreram e ainda sofrem. Muito embora, hoje, alguns de nós já estejamos a galgar nos
caminhos paradoxais da resistência e da sobrevivência a essa secular conjuntura (JANKS,
2004, 2016).
Em virtude disso, realizar um seminário escolar com estes alunos do terceiro ano do
EM, nessas condições de trabalho, sem dúvida, constitui uma tática de resistência e de
sobrevivência destes sujeitos nesta instituição, pública, periférica, frequentada por um público
de maioria negra, parda, mulata, mameluca, que agoniza por higiene, refrigeração, iluminação,
acesso à internet, biblioteca, laboratórios, merenda e água. Condições mínimas e básicas para
matar a fome e a sede da juventude que deveria chegar aos bancos da universidade, suposta
finalidade do Ensino Médio brasileiro, e protagonizar, de fato, uma história de continuidade
dos estudos, consecução de direitos e de acesso à sociedade escriturária a que se reporta Rama
(1985).
Enfim, é preciso “entender essa história”, mais que isso, é necessário “saber a história
da fita do manto da Santa que não foi pro livro de história”. A história não legitimada, não
inventariada pelo suporte institucional sustentáculo do trabalho dos professores, a história não
autorizada e, ainda, não reconhecida pelas vozes de todos aqueles que deveriam conhecê-la,
divulgá-la e contrapor a outras versões ditas verdadeiras. Nesse ponto, reside a necessidade da
pesquisa, do acesso, do reconhecimento de fontes que possam trazer a diversidade à tona e
interligá-la às questões de poder, de hegemonia, de design e redesign destas formas
constituídas e daquelas ainda em processo de (re)construção (JANKS, 2010, 2014).
A terceira equipe apresentou os dados referentes à tragédia do Brigue Palhaço, o
contexto histórico, econômico da Província do Grão Pará. Os processos que encaminharam ao
movimento cabano, a situação de exploração das populações locais no processo de colonização
portuguesa e a discussão foi voltada ao massacre e a ocultação destes fatos históricos, do
número de mortos e a impunidade, porque não houve julgamento, nem julgados pelas mortes
158
ocorridas no Brigue Palhaço. É interessante ver como os alunos apresentam, explicam,
reformulam suas falas e chamam a atenção para a seriedade dos acontecimentos históricos que
eles buscaram investigar, correlacionar aos fatos atuais.
Embora o trecho seja longo, acredito que a leitura é válida para que possamos
compreender esta cena didática em que os alunos dominam a interlocução didática,
apropriando-se da palavra letrada para a construção de uma forma essencialmente escolar, pois
“O discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito
do discurso, e fora dessa forma não pode existir.” (Bakhtin, 1997, p 274). Vejamos:
159
Quadro 5
Nível
1.2
Marcador
3’’27 – 28’’30
Questões
linguísticas,
discursivas
e históricas
A7. Nós vamos falar basicamente sobre o que foi Brigue Palhaço, em que período histórico foi o Brigue Palhaço, como era a
economia do Pará [...]
A8. Vou falar do contexto político-econômico do Pará... nesse momento do Brasil Império da economia do Pará era
regido em freguesias, povoado e vilas, freguesias pra quem não sabe eram paróquias civis representando Portugal.... no
caso Belém tinham 11 freguesias... 20 povoados que eram aquelas malocas que tinham no máximo 6 a 10 casas eram
considerados povoados e as vilas tinham um grande aglomerado de pessoas em espaço pequenos tá.... nessa época era o
Brasil e o Pará conhecido pela agricultura como hoje também cana de açúcar, algodão e café75 e em meados do século XIX o
Brasil tem um grande surto de exportações até então o Pará fica mais próximo a Europa e os Estados Unidos... então fica muito
fácil de mandar as coisas daqui de Belém ... do norte.. Belém... Macapá do que de São Paulo prá lá... então nesse surto teve um
aumento da nossa economia de cerca de 30% da nossa economia... da produção agrícola local.
A8. Bom dia... eu vou falar das classes ricas... alguns comerciantes na Província de Belém como no resto do Brasil no geral
lucravam muito com o comércio direto com Portugal... eles ganhavam muito em cima disso... só que nessa época teve a
revolução do povo... então qual foi a proposta da classe rica que defendia a manutenção das relações com Portugal e a
instalação de um governo ... então eles queriam implantar uma ideia de independência porque assim eles teriam maiores
lucros pra fazer o seu comércio direto com Portugal.
A9. Eu vou falar um pouco do projeto das classes menos abastardas... no caso das classes pobres [...] eles esperavam assim que
com a independência haveria uma mudança de vida.. esses povos eram os índios, os cafusos, os negros, mulatos e tudo que
eles produziam praticamente era levado pela coroa portuguesa... então era assim exploração total mesmo literalmente..
porque a classe pobre o pouco que ganhava era só pra sustentar o interesse deles... muitos escravos preferiam não pagar a
sua alforria né .... eles preferiam ficar vivendo escravos sendo escravos porque tinham direito a moradia, a alimentação e
eles sendo livres nos povoados mas eles não tinham certeza de nada... de trabalho... se iam conseguir se alimentar... [...]
por um lado era bom...mas eles ficavam nesse meio termo. tá
A10. Bom o jornal O Paraense foi fundado em primeiro de abril de 1822 por Felipe Patroni ... Patroni estava em
Portugal ele veio pro Brasil na bagagem dele com a imprensa... a tipografia de lá de Portugal... o jornal O Paraense
contribuiu muito pra formação de ideais de independência porque o jornal o Paraense [...] faziam críticas ao governo e ao
governador do Estado... então aquelas pessoas que liam o jornal e tinham como ideal assim de independência [...] porque
ele estabelecia muito isso daí... isso gerou um grande número de deserções e uma massa de descontentes dentro da
própria elite e entre os trabalhadores e aí começou o processo de revolução dentro de Belém.
P. Fabiano explica isso um pouquinho mais devagar porque tu estabeleceste uma tese de que o jornal como (inaudível)
A10. É assim naquela época [...] a maior fonte de informação que tinha era o jornal... ai tá vivendo num país que vive em
crise... o pouco que aparece mal dá pra comer... aí aparece uma publicação de crítica ao governo... tudo aquilo que as
pessoas queriam colocar pra fora sua opinião... então vai acabar tenho uma revolução... uma forma de revolta como
solução... no caso O Paraense ele criticava muito muito o governo ... Felipe Patroni ele se programou pra fazer isso em Belém
por volta de 1822 já havia o cônego João Batista e outras pessoas fazendo revoluções então no caso o jornal era assim tá
mostrando... tu já viu a alienação que a mídia faz hoje em dia é tipo isso só que o jornal O paraense não tava buscando
alienar o povo ele tava buscando mostrar uma ideia ... que povo podia sair daquela situação que não podia ficar do jeito
que estava... é basicamente isso... e isso naquela época gerou um número de pessoas descontentes, dos trabalhadores... da classe
pobre... Ficou melhor?
Professora balança a cabeça sinalizando que sim. [...]
A11. Vou falar sobre o Brigue Palhaço era uma espécie de navio [...] tinham três porões... eles levavam basicamente
mercadoria... o nome dele era [...] São José Diligente e desses 256 prisioneiros que foram levados pelo Brigue Palhaço e lá as
condições que eles ficavam era... sem condições... falta de ar... pedindo água e assim os soldados começaram a jogar cal.
A12. Eu creio que essa informação ela foi omitida tanto que sinceramente eu não conhecia essa história e assim é um fato
que conta a nossa história drasticamente e é muito importante todos vocês terem noção do que é isso prestando atenção
porque isso é um fato que omitiram de nós [...]
A13. Isso é uma informação que todo paraense tinha que levar em consideração.
A14. Já pensou um parente teu ser morto [...] ser jogado gasolina essas coisas... eles tiveram os corpos dilacerados pelos
militares e dizerem que esse fato não ocorreu... isso é muito sério... então bora dar uma atenção aqui... porque isso mudou
a vida aqui...se não fosse esse ocorrido hoje não teria depois o movimento cabano então deveríamos ter noção que
aconteceu... a escola deveria nos passar isso... hoje realmente a gente noção o governo realmente não quer criar alunos
críticos, ele só quer alienar... o que é pensar? Eu não gostava de fazer esse tipo de trabalho eu não queria nem saber...
então se não fosse esses trabalhos... Bia muito obrigado...não ia nem saber o que foi Brigue Palhaço... se você não busca...
isso não vai cair no ENEM... o governo omitiu ele não vai te pagar pra estudar uma coisa que tá falando contra ele.
A15. [...] Ninguém foi responsabilizado ninguém foi preso por aquele massacre, julgado ou condenado.
A16. Pra você ter noção do quanto é grave isso, eles não foram julgados pelo governo paraense...foi no Rio de Janeiro e não teve
pena... se você atrás de documentos você não encontra nada... na internet é tão superficial é aquela história construída pelos
vencedores como disse o João Lúcio ... a história é construída por quem comanda por quem tá ali alienando essa massa
[...] e se tu não souber melhor ainda... tu não vai lá cobrar do governo cadê os documentos? Isso faz parte da minha
história isso faz parte da construção do meu estado do meu país tá entendendo.... esses documentos sumiram de lá e
ninguém sabe.
A17. Só fazendo uma relação com hoje em dia... o porão do Brigue Palhaço não é muito diferente das ... como são os
presídios hoje em dia superlotação... não tem estrutura pra alimentar todo mundo lá dentro eles estão super apertados lá
dentro.... pessoas que morrem dentro do presídio não acontece nada.. quem matou quem não matou então só fazendo
uma relação o Brigue Palhaço tem o descaso da autoridade ter com a pessoa que tá dentro do presídio.
75 A origem do cultivo de café no Brasil teve início no século XVIII. As primeiras mudas de grão foram
cultivadas por volta de 1720, na Província do Grão Pará. Mais tarde, espalhou-se para outras regiões do país e, a
partir de 1837, tornou-se a principal cultura de exportação do Brasil Império. Fonte:
https://revistacafeicultura.com.br. Acesso em: 15 abr. 2019.
160
Um diferencial considerável da apresentação desta equipe diz respeito à pesquisa sobre
a tentativa de situar o contexto histórico, político e econômico da Província do Grão Pará e do
país no início do século XIX, evidenciando como a província era organizada, bem como a
articulação dos interesses das diferentes classes sociais ao processo de independência do Brasil
e da Amazônia. A equipe apresenta a contribuição do jornal O paraense, de Felipe Patroni, e
seu papel para a construção do processo revolucionário que culminou em eventos históricos
como o massacre do Brigue Palhaço e a Cabanagem.
Além disso, eles correlacionam o papel da mídia exercido naquela época e na
atualidade, a situação dos prisioneiros do Brigue Palhaço e a situação de violência e das
péssimas condições dos presídios brasileiros. Enfim, os alunos questionam a validade da ação
didática por eles operacionalizada. A dimensão do alcance do dispositivo mobilizado para fins
da apropriação do conteúdo e dos efeitos para a compreensão da realidade social de lutas na
Amazônia. A partir de uma pesquisa, que busca reconstituir informações, interligar fatos que
pareciam desvinculados, a fim de construir versões mais elaboradas para histórias importantes
que não foram abordadas pela escola, pela internet, pelos governos devido à complexidade e
seriedade necessárias à formação histórica, crítica, social dos povos amazônicos.
Ao trazer à tona o “novo” objeto, a temática da história das populações afroindígenas
na Amazônia, a forma genuinamente escolar é também revitalizada, ressignificada,
reconfigurada aos propósitos de uma formação letrada em que outros saberes, outras histórias,
outros acontecimentos, demandas e posicionamentos são instituídos, institucionalizados e
legitimados por intermédio do dispositivo escolarizado, pedagogizado, disciplinarizado
mobilizado, que serve para que o aluno acesse o que não lhe tinha sido permitido e, ao mesmo
tempo, serve para que o próprio discente atente para a importância do exercício e do alcance
do “megainstrumento” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004; VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001;
SOARES, 1999) para o desenvolvimento da sua formação letrada, crítica, cultural, histórica
“Eu não gostava de fazer esse tipo de trabalho eu não queria nem saber... então se não fosse
esses trabalhos... Bia muito obrigado...não ia nem saber o que foi Brigue Palhaço.”. A
professora recapitula:
161
Quadro 5
Nível
1.3
Marcador
28’’35 - 47’’28
____________
Questões
linguísticas
históricas
identitárias
curriculares
conscientização
P. [...]. Gente presta atenção, presta atenção. O que tá acontecendo aqui, é que vocês tão começando
a olha a história com identificação, e [...], o nome disso é senso de pertencimento, [...] quando a
gente se coloca no lugar, a gente ainda é diferente, [...] Aí a coisa muda de figura, então, eu acho
que o que tá acontecendo agora é esse choque, [...] quando a gente começa de fato pesquisa e
pesquisa não é ler livro didático [...] pegar várias fontes e entender o ocorrido, Todos esses
questionamentos, eles são pertinentes, isso aí é o que faz o pesquisador ser pesquisador, por
quê? [...] Houve dados de corpos afogados, [...] Ou só falaram?
A8 – (inaudível)
P. [...] Essa é a diferença na vida, a diferença é que amanhã tu podes fazer a diferença nos
livros didáticos, que amanhã tu vais participar de um clip que vai ser documentado a chacina
que aconteceu, e ainda que depois os livros didáticos coloquem essa chacina de uma maneira
banalizada, há um clip que documenta isso que tá lá, essa é a diferença. Tá entendendo? Se, essa
história do Brigue Palhaço não passou em branco, foi porque os cabanos fizeram revolução,
mas se os cabanos ficassem na internet, ou vendo o que vai passar na globo, talvez ninguém
nunca soubesse o que foi o Brigue Palhaço. Tu tá entendendo? Esse é o papo.
Os fragmentos sinalizam dados referentes à prática de pesquisa neste contexto de
ensino: levantar diferentes fontes, contrapor dados, analisar contradições. Consultar diferentes
fontes de dados contribui para compreender a própria história para além do livro didático, mais
que isso, serve para que os fatos não sejam esquecidos, é importante ter memória, é relevante
não esquecer o Brigue Palhaço, a Cabanagem, a chacina da Terra firme, é preciso fazer a
história, em outras palavras, fazer a caminhada para construir a própria história.
Novamente, este movimento reporta Foucault (1999), como essa verdade é
manipulada para atender a um suporte institucional (o LD, a escola, o MEC). Por isso, ela fala
do lugar da vontade de verdade. Desse modo, a docente revela autonomia no manuseio do LD
e ensina isto aos alunos, ela não utiliza o livro em nenhum momento deste episódio, mas faz
uso deste instrumento no segundo episódio, o que sinaliza o lugar deste instrumento na
instituição do ensino. Muito embora, Tomlinson (2013) atente para o fato de que a produção
do material didático é, muitas vezes, divorciada da(s) realidade (s) da prática de sala de aula,
desvinculada de motivações ao alunado, não condiz com o tempo adequado ao trabalho
docente a ser desenvolvido, com a falta de recursos e, ainda, a expressa necessidade de
preparação para exames.
Para Tílio (2016), o LD é um produto de uma indústria cultural que veicula
ideologias e uma das características é o caráter autoritário, impõe verdades e formas de
aprendizagem. Nesse sentido, uma das desvantagens do LD é essa forma autoritária de
apresentar a informação, é a “condição de autoridade do saber”: corpo de conhecimento
canônico, conteúdos tidos como fatos indiscutíveis, verdades universais. Desta forma, o autor
considera que o LD cria uma barreira entre o saber e o aprender - saber dado factual- não é
coconstruído; aprender é o processo-, já que sua forma de apresentar uma informação pode ser
mais factual e menos factual.
162
Nessa mesma direção, a docente finaliza o turno fazendo uma crítica à manipulação
de massas que a globo e a internet também fazem. O modo como as notícias são veiculadas e a
massificação das informações e, por fim, conclama o aluno a atuar, a agir, a fazer a história, tal
como os cabanos e os integrantes dos movimentos sociais historicamente fizeram. Em outras
palavras, é preciso ler, é preciso problematizar, é preciso caminhar rumo ao esclarecimento do
dito pelo não dito e em pró dos direitos negados e de justiça aos que vivem e, também, aos que
não sobreviveram para contar a história.
A seguir, apresentamos um recorte da discussão do seminário da quinta equipe sobre
a Cabanagem. O trecho aborda sobre a escolha do termo vingança para qualificar o movimento
cabano e incita uma reflexão sobre os sentidos dos termos e a possível correlação com os
eventos da Cabanagem, Brigue Palhaço, Chacina na Terra firme. A evidente contraposição da
versão oficial e da não oficial. A convocação da avaliação oficial, da disciplina escolar Língua
Portuguesa e outras disciplinas para a construção da leitura:
Quadro 5
Nível
1.7
Marcador 1’57’’39 -
2’09’’35
__________
Questões linguísticas
discursivas
históricas
identitárias
curriculares
A45. [...] Vocês colocaram por vocês mesmo ou tava em algum lugar vingança popular? P. [...] O que que tu achas que significa chamar o movimento da cabanagem de vingança?
A43. Eles se vingaram por quê? Por que o governo tava tomando aquilo pensando que era deles entendeu?
A44 . No meu ponto de vista professora, não foi exatamente vingança.
A45. Eu no meu ponto de vista eu achei que fosse vingança, pra eles não foi vingança.
P. Entendi, entendi. [...] a gente tem que começar a tratar isso com seriedade [...]. Só que os livros didáticos ensinaram
a gente a banalizar isso, entendeu? A gente não para pra pensar, que estamos falando de corpos que nem enterrados
foram, então, por exemplo, amanhã, a Dona Ana das Dores vai tá aqui com a gente, o que motiva a Ana das Dores a
estar na ponte, não é o mesmo que te motivas, porque foi o sangue do filho, a perspectiva é outra pra ela, ela tá ali pra cobrar, ela tem esperança ainda de ver esse assassino na cadeia, porque vai ser dia 20 de julho, o julgamento do
assassino do filho dela, então ela vem pra cá com esperança, quando ela levantar o banner, ela tá levantando a força,
a fé dela, entende? [...] Vocês acham que é pertinente chamar de vingança?
A46– Assim, eu acho que seja negativo, porque vingança não seria eu acho que fez parte do processo. Então eu acho que o
Brigue Palhaço fortaleceu o massacre, os cabanos fizeram a revolta, mas eu não acho que essa revolta seja vingança.
P. [...] olha, quando a gente fala em vingança e atenta pra um vocabulário, um vocábulo da língua portuguesa, [...] mas olha
como o ENEM, quando ele tenta juntar as disciplinas, [...] o que os cabanos queriam não era vingar mortes, o que os
cabanos queriam e querem até hoje porque nós temos herança aqui, é justiça, nós queremos fazer valer a lei, que diz
que todo individuo é livre e tem direitos iguais, desde o nascimento. Será que temos? Será que somos livres? Então
que constituição é essa que vem dizer uma mentira pra mim? Eu quero justiça! E justiça não tem haver com
vingança, vingança tem haver com você colocar uma arma na cintura e sair matando gente, você tá sendo assassino
tanto quanto. Chamar esse histórico de vingança, talvez seja querer igualar os cabanos a junta militar, e eu nem tô
dizendo que a culpa é do soldado [...] ele acredita que matar, ele tá contendo a violência, é por isso que o Eder Mauro da
vida pode ainda ser eleito, porque existem pessoas dentro da periferia que ainda acreditam que o extermínio é a
melhor solução, porque quando eu extermino um jovem, eu tou tirando a culpa da falta de condições que esse jovem
não teve, pra poder chegar no direito dele, é direito dele ter escola, é direito dele ter comida, é direito dele muita coisa, [...] mas a gente pode fazer pra frente, chamar de vingança, recolocar mais uma vez nas costas desses paraenses, de
que eles são arruaceiros, beberrões e inconsequentes, eles queriam justiça e não vingança [...] Tu tens todo direito de
ir contra essa teoria, porque essa tese é minha, inclusive nenhum livro didático me respalda, eu tou indo contra eles, pode me chamar de louca, mas a gente precisa analisar esses vocabulários da Língua Portuguesa e [...] associar História,
Filosofia e Ética.
Mais uma vez, a professora faz uma reflexão que vai entre o ideal e o real imposto pela
tirania do LD o que demonstra que ela pretende transgredir essas normas impostas “pode me
chamar de louca”. Para Foucault (1999), a loucura era segregada, porque sua palavra não era
acolhida, não tinha importância e por isso era considerada nula. No entanto, essa palavra do
163
louco, considerada sem relevância, é aquela que transgride ao dizer uma verdade escondida,
camuflada, escamoteada: “os cabanos queriam e querem até hoje porque nós temos herança
aqui, é justiça, nós queremos fazer valer a lei, que diz que todo individuo é livre e tem direitos
iguais, desde o nascimento. Será que temos? Será que somos livres?”.
Dessa forma, a palavra do “louco” é aquela que transgride no sentido de que cria
possibilidades (e poderes), porque pode levar a enxergar de forma ingênua ou astuciosa,
inclusive do ponto de vista curricular/ disciplinar: “nenhum livro didático me respalda, eu tou
indo contra eles, [...] mas a gente precisa analisar esses vocabulários da Língua Portuguesa e
[...] associar História, Filosofia e Ética”. Essa análise se faz necessária para sinalizar que tais
disciplinas não são campos estáticos, demarcados, fechados. Pelo contrário, são lugares de
produção de saberes, portanto, constituem “domínios dinâmicos de conhecimento”
(PENNYCOOK, 2006, p. 72).
Assim, a professora faz uma ponte entre a loucura e a razão, o vernacular e o
institucional, a estabilidade e a instabilidade, explicando, desse modo, os fatos atuais por meio
de fatos históricos. Nessa direção, o processo de ensino veiculado pode contribuir para
compreender o extermínio da juventude negra, a partir de uma ótica diferente daquela que
responsabiliza o próprio jovem. Desse modo, compreender a Cabanagem, como um
movimento social não constituído por bêbados, arruaceiros, inconsequentes, contribui para que
muitos comecem a perceber que quando um familiar, que perdeu um ente querido em uma
chacina, vai a um evento como a caminhada, na verdade, ele vai em busca de que a justiça
venha a acontecer e para reafirmar que seu filho não era bandido ou “errado”. O que a mãe, a
avó, a família, os amigos anseiam é justiça e não vingança.
Esses encaminhamentos concorrem a fim que se possa entender que, embora os
direitos sejam enunciados e proclamados a todos, a perversa ordem social constitutiva da
realidade funciona em sentido contrário à lógica do direito à vida, à escola, à alimentação, à
moradia, à dignidade, à continuidade dos estudos para os níveis mais complexos de acesso ao
conhecimento. Esta última conclamada como uma das supostas finalidades da educação
secundária no país.
Por fim, apresentamos o recorte da sétima equipe que pesquisou sobre a Cabanagem.
Trata-se de um trecho em que o aluno faz uma apreciação do processo de preparação para a
exposição e, em seguida, faz uma comparação entre os cabanos e os atuais moradores das áreas
de baixada da cidade de Belém.
164
Quadro 5
Nível
1.11
Marcador
2’45’’35 - 3’02’’42
__________
Questões linguísticas
históricas
identitárias
conscientização
A. Uma coisa interessante que a gente passou a noite lendo, a gente ficou até meia noite
vendo um monte de coisa, a gente ficava pensando, égua, [...], é isso que o Gabriel falou, a
gente tem força, e é isso que o cabano realmente mostra pra gente, se a gente se unir, a
gente consegue aquilo que a gente quer, [...] se a gente se unir, num objetivo, pode ser até em
casos diferentes, porque tem vários cabanos[...] A gente vai falar um exemplo dos cabanos que
existem hoje [...] como os índios do Rio Xingu, em Altamira do Estado do Pará, está sendo
construída a usina hidrelétrica de Belo Monte, [...] foram consultados uma vez que eram
moradores da comunidade, onde a usina estava sendo construída, a luta da etnia negra, que
ainda vive excluída das decisões políticas, vivendo às margens da sociedade sendo alvo de
assassinato e violência... Os cabanos que moram em algumas casas [...] que ficam rios na frente
das casas, então a gente se sente cabano ali, eu sou uma que mora, quando chove muito, fica
um rio.
Nesse trecho, percebemos o depoimento do aluno sobre o processo de exposição oral,
que requer preparação, leitura, reflexão, análise. Para além da leitura dos textos pesquisados, o
aluno consegue estabelecer comparações com situações contemporâneas semelhantes às lutas
travadas pelos cabanos. Os objetivos são diferentes de cada grupo, mas a luta por direitos e
melhores condições de vida é semelhante. No fragmento, a aluna percebe a sua condição como
uma cabana suburbana da atualidade, pois mora na área de baixada, de várzea, de encharcado,
sem saneamento básico76
, exposta a toda sorte de consequências das enchentes que
transformam a rua em rio: “a gente se sente cabano ali, eu sou uma que mora, quando chove
muito, fica um rio”. Portanto, observamos que as exposições dos alunos, quanto às finalidades
de ensino:
Seu objetivo não é fazer a descrição de algo a ser memorizado. Pelo contrário, é
problematizar situações. É necessário que os textos sejam em si um desafio e como
tal sejam tomados pelos educandos e pelo educador para que, dialogicamente,
penetrem em sua compreensão. [...] “As classes de leitura” [...] devem ser verdadeiros
seminários de leitura. Haverá sempre oportunidade, nestes seminários, para se
estabelecerem as relações entre um trecho do texto em discussão e aspectos vários da
realidade do “asentamiento”. (FREIRE, 2007, p. 29).
Após as leituras de letras de música, da primeira parte do livro Rei Congo e dos
seminários de leitura em que foram socializados os textos levantados pelos alunos sobre os
movimentos sociais na Amazônia, houve a realização da caminhada no dia 24 de junho de
2016. Nesse dia, a aula começou na escola e foi desenvolvida pelas ruas do bairro da Terra
Firme.
76 Conforme o Instituto Trata Brasil, órgão vinculado ao Ministério das Cidades em seu Sistema Nacional de
Informações sobre Saneamento (SNIS) - ano base 2016, Belém é hoje a 98ª no ranking das 100 maiores cidades
brasileiras. A capital apresenta índices alarmantes em relação aos três quesitos que compõem o saneamento
básico: no atendimento em água tratada para a população, está entre as dez piores; no acesso de serviço de coleta
de lixo, é a 95ª pior do Brasil; e, no indicador de tratamento de esgoto, está entre as dez piores do Brasil.
165
Foto 4 - Auditório da escola Foto 5 - Boneco: homem chacinado
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016. Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Fotos: Jair Mendes
A concentração do evento foi realizada no auditório da escola: integrantes dos
coletivos culturais - Casa Preta, Bloco firme, Gon, Capoeira Angola, Tela Firme-, familiares
dos chacinados e a comunidade escolar. Os materiais usados ao longo do percurso - cartazes,
banners, arte- foram levados para o auditório da escola, alguns foram confeccionados pelos
alunos antes do evento. A professora toma a palavra para iniciar os trabalhos:
Fala de Bia Paiva no
auditório para o público
que iria à caminhada,
Filmagem de Campo,
24.06.2016.
Questões
linguísticas
históricas
identitárias
conscientização
[...] quero que tu te concentre no momento histórico que vai acontecer daqui a pouco e
quem vai escrever essa história é tu mesmo, tu tens aqui na frente não é só um boneco
pintado (foto 6) o que tu tens aqui na frente é um boneco que simboliza uma barbárie
na periferia. Momento histórico na terra-firme o qual tu podes escrever essa história
diferente [...] a dona Antônia pra quem não sabe... gostaria de apresentar, [...] o filho dela,
[...] foi nosso aluno é a vítima mais jovem da chacina com apenas 16 anos [...] desde
quando houve a chacina a gente tá chamando atenção da importância do jovem ter a
ver com essa história, [...] eu tou estudando eu tou garantido. Será? [...], mas o que corre
no meu sangue e deveria correr no teu é sede de justiça [...] tem pena de morte no
Brasil, eles estão exterminando [...], desde o Brigue palhaço, desde mil oitocentos e
vinte e três, [...] ai vem o massacre do Eldorado dos Carajás [...] A culpa é de quem?
[...] a nossa história ela nunca é contada como deveria ser a chacina aconteceu em
novembro de dois mil e catorze e ninguém foi punido [...] o julgamento deveria ter
acontecido em maio a testemunha não apareceu, simplesmente jogaram agora a audiência
para vinte de julho sabes que significa isso nego?”
Cabe atentar à recorrente crítica aos LDs, ou outros instrumentos didáticos
institucionalizados, para contar a história de acordo com os interesses sociais, econômicos,
políticos, ideológicos hegemônicos. O discurso da professora sinaliza a importância de
construir uma outra versão da história, por isso rememora os fatos trabalhados relacionados ao
contexto de assassinatos, impunidades e injustiças no Pará.
Além disso, ela chama a atenção para a desigualdade social, reitera o contradiscurso
dos que desconsideram esta situação de desigualdade de classe e creditam ao indivíduo a
166
“culpa” dos massacres. Por fim, a docente atenta para o fato de que a chacina de 2014 está
sendo encaminhada para uma possível impunidade, tendo em vista que a testemunha não
compareceu na última audiência em maio de 2016 e o julgamento foi adiado para o mês de
julho daquele ano. Este mês não só coincide com as férias escolares, mas também, é a época
do chamado “verão amazônico”77
.
Nessa época do ano, devido às elevadas temperaturas e, também por uma questão
cultural, uma boa parte da população da capital viaja para as áreas interioranas em busca dos
banhos de rio, de praia, de igarapé. Em outras palavras, a possibilidade de um grande protesto
seria quase inviável, daí um dos motivos para a realização do ato de manifestação naquele fim
de junho, para pedir a punição dos culpados pelos vários assassinatos de jovens nas periferias
de Belém-PA. A professora continua:
Fala de Bia Paiva no
auditório para o público
que iria à caminhada,
Filmagem de Campo,
24.06.2016.
Questões discursivas,
de resistência,
de sobrevivência
[...] são seis escolas da USE78
ou mais ....esse auditório deveria estar explodindo de gente, mas
não é qualquer gente é gente indignada, cansada, gente quer dizer chega tá bom eu quero
terminar meu Ensino Médio, quero ingressar numa faculdade eu não tenho culpa da
minha pele ter mais melanina que a tua, eu não tenho culpa de não nascer em berço
esplêndido lá no centro da cidade eu não tenho culpa de que quando saio de casa para pegar
minha condução eu tenho que enfrentar lama e água até a [...] a gente precisa ser resistente a
gente precisa encarar a lama, a gente precisa enfrentar a água [...] nós não temos direitos
iguais, mas a constituição prega direitos iguais tu estas entendendo? Então nego o papo não é
esse aqui, isso aqui vai só cobrir uma nota o fato é isso aqui ta, porque esse tiro aqui pode
ser amanhã na tua cabeça infelizmente eu só precisava que tu te conscientizasse no que tu
vais fazer agora, ir para rua é uma responsabilidade muito grande”
Apesar da importância histórica atribuída à Caminhada, a professora sinaliza que a
maioria dos interessados não está presente, apesar do cansaço, da indignação, das
desigualdades étnicas, sociais, econômicas, ela reitera a importância de ser resistente, de lutar
por direitos ditos universais, de ter consciência da responsabilidade de fazer uma caminhada
para questionar por justiça “a gente precisa ser resistente a gente precisa encarar a lama, a
gente precisa enfrentar a água [...] nós não temos direitos iguais”.
Mais que resistir diante das dificuldades e de lutar por direitos que, em tese, são
universais, é enunciado que estes indivíduos precisam pensar na própria sobrevivência,
porque qualquer um dos presentes pode ser a próxima vítima, por isso cada um dos cartazes,
77 O chamado verão amazônico ocorre entre os meses de junho a novembro.
78 Unidade Seduc na Escola (USE) é uma unidade administrativa da Secretaria Estadual de Educação do Estado
do Pará, sediada em uma dada unidade escolar, tem como objetivo contribuir para melhor viabilizar a
comunicação entre a sede administrativa da SEDUC e as escolas jurisdicionadas a esta unidade, a fim de
otimizar e realizar lotação, matrícula, abertura de processos, dentre outros procedimentos. Informações
disponíveis em http://www.seduc.pa.gov.br. Acesso em: 22 mar. 2018.
167
das faixas, do banner (foto 6), que foram reunidos e divididos entre os participantes, resguarda
uma representação simbólica específica: “[...] tu estás carregando a memória dessas vítimas,
carregar a memória dessas vítimas [...] é carregar sentimentos dos familiares”.
Carregar estas memórias simbolizaria, então, carregar a própria sobrevivência nas
mãos, a luta para continuar a ter o direito de viver. Direito este que foi negligenciado aos que
foram vitimados, assassinados, chacinados. Portanto, cabe salientar que a fala da professora
remete a manutenção de um discurso que legitima como a vítima é tratada e como as relações
de poder esmagam as classes sociais mais baixas. O discurso aqui é de resistência, a partir da
conscientização, a favor da sobrevivência destes sujeitos de direito.
Foto 6 - Banner com fotos dos jovens chacinados
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016. Fotos: Jair Mendes.
Enquanto ouviam o discurso da professora que antecedeu ao ato, alguns integrantes
da caminhada e aproveitavam o tempo da concentração para produzir pequenos cartazes.
Alguns cartazes tinham frases de efeito, outros já tinham sido confeccionados com trechos da
letra de música lema da caminhada. Alguns cartazes foram (re) aproveitados de outras
manifestações, recortes de jornais também serviram para compor os textos escritos levados ao
protesto (ver fotos 8, 9 e 10).
A simbiose dos usos da escrita, da oralidade e de outros sistemas multissemióticos -
musical, dança/corporal, artes plásticas-, oriundos de diferentes matrizes socioculturais, é
mobilizada para a construção da caminhada e reportam à acepção de letramentos de
sobrevivência, cunhada por Lopes et al., (2017, 755), que os concebem do seguinte modo:
são rastros que resistem – rastros indiciadores de que aqueles que foram
subalternizados pela modernidade não se entregam pacificamente à escrita, mas dela
se apropriam, transformando seus significados e reinventando formas de sobreviver
culturalmente.
Logo, a realização da caminhada evidencia não só o fato de que a escola constitui um
dos importantes portos de ancoragem de um complexo processo de socialização em que estes
168
sujeitos integram e se movem em pró da luta pela sobrevivência, como também revela que as
práticas letradas remontam a socialização de formatos dominantes e vernaculares dos
letramentos - ou multiletramentos - ancorados nestes portos e que estão, consequentemente,
naufragados nas acepções políticas, ideológicas, culturais dos meios em que resistem no
cotidiano da periferia, território de habitação, de origem, de produção e de reinvenção de
linguagem, de cultura, de saberes (LOPES et al., 2017, 2018).
Consoante os mesmos pesquisadores: “Nesse trânsito, a Baixada também é
ressignificada: ela deixa de ser o lugar da “violência” e das “mazelas” e passa a ser
entextualizada como o território “da criatividade”, da “potência juvenil” e da “poesia de carne
e osso” que se escreve nas ruas” (LOPES et al., 2018, p. 699). A rua como território é
ocupada, é reterritorializada, é reconfigurada e cede espaço para a luta, para a manifestação da
arte, da cultura, da música, da beleza singular da juventude periférica, que clama por justiça,
por transformação para a escrita de uma história de vida.
Foto 7 - Cartaz 1 Foto 8 - Cartaz 2 Foto 9 - Cartaz 3
33
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016. Fonte: Pesquisa de Campo, 2016. Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Fotos: Jair Mendes
Ao som dos tambores do Bloco firme, por volta das 10h da manhã, do dia 24 de junho
de 2016, a caminhada saiu da escola rumo à ponte do rio Tucunduba, palco de luta, um
Tucunduba de protesto, de reivindicação por direitos por tantas vezes negligenciados. Alunos,
professores, integrantes dos coletivos culturais, parentes das vítimas, o cantor e compositor da
letra de música que usaria os registros da caminhada para a construção de um clip saíram na
ensolarada manhã junina para pedir justiça.
169
Foto 10, 11 e 12 - Imagens do início da Caminhada
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016. Fotos: Jair Mendes
A passagem da caminhada despertou a atenção de populares, as pessoas paravam
para perguntar o que estava acontecendo, o porquê da andança, quais eram os motivos da
movimentação. A descrição dos vídeos e dos registros fotográficos gerados demonstram as
atividades de dança, de capoeira e de tocar instrumentos pelos jovens do bairro.
Foto 13 - Populares assistem à caminhada
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016. Foto: Jair Mendes
170
Foto 14, 15 e 16 - Sons e performances da caminhada
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Fotos 14 e 15: Jair Mendes, Fotos 16 e 17: Jean Brito.
A andança foi marcada pelos sons dos tambores, pela música, por palavras de ordem,
pelo vigor e alegria dos jovens que apresentavam pelas ruas do bairro as suas produções e
manifestações culturais, muitas vezes, invisibilizadas e silenciadas no contexto escolar e
social mais amplo (SANTOMÉ, 2009). Mas, esta sociedade, quase sempre, visibiliza e
divulga amplamente ações ilícitas e criminosas, ocorridas no bairro, em detrimento da
divulgação da imensa riqueza cultural- em termos de música, dança, teatro, audiovisual-
produzida por essa população periférica, situada literalmente do outro da linha e de outras
epistemologias de formas de conceber o conhecimento e a própria organização social a que se
reporta Boaventura de Sousa Santos no conjunto de sua obra (OLIVEIRA, 2012).
Ao lado destas produções culturais, a comoção dos familiares que reviviam a dor da
perda de seus entes queridos, a presença das lideranças dos coletivos culturais que
coordenavam o desenrolar das ações, os olhares curiosos dos transeuntes que percorriam rumo
à feira, ao comércio, aos seus afazeres cotidianos. Todo o percurso realizado foi acompanhado
por carros da polícia militar, conforme evidenciam as fotos 16, 17 e 18. Não houve nenhum
incidente. Mas, as imagens sugerem que estes sujeitos “transitam por contextos que
transbordam divisões como vida e morte, escola e sociedade, estado democrático e estado
penal” (LOPES et al., 2017, p. 756).
171
Fotos 17 - Profa. na
caminhada
Foto 18 - PM2023 Foto 19 - PM2024 Foto 20 - PM1449
Foto: Jean Brito Foto: Jair Mendes
Por volta das 11h da manhã, a caminhada chegou ao ponto final: a ponte do rio
Tucunduba. Ao som dos tambores, das buzinas, ao sol de quase meio-dia do verão amazônico,
foi feito um círculo, para que os presentes que quisessem tomar a palavra para dizer dos
motivos do ato, da importância simbólica da caminhada, das desigualdades sociais, das
injustiças, das impunidades, dos direitos negligenciados, da relevância dos movimentos
sociais, comunitários, culturais para a construção de uma história para a juventude e para as
populações da baixada. As fotos 19, 20, 21 e 22 são alguns dos registros da finalização da
aula-caminhada ou caminhada-aula.
Fotos 21 -
Caminhada na
ponte
Foto 22 - Círculo de
falas finais
Foto 23 - Aluna da
turma
Foto 24 - Dispersão do
ato
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Fotos: Jair Mendes
Acreditamos que a construção da caminhada convida a pensar sobre a diversidade
social, cultural, política, linguística, inscrita no contexto local, circunscrita aos problemas
locais, construída através do diálogo e do entrelaçamento destes letramentos escolares,
vernaculares, forjados no contexto de resistência, (re)criados por agentes de letramento desta
comunidade, engajados com questões sociais, culturais, políticas, educativas contra-
172
hegemônicas, participativas, emancipatórias, conformados nestas cenas reais de resistência e
de sobrevivência nas ruas de uma das periferias mais violentas da capital paraense.
A efetivação deste evento, coadunado à prática de ensino de Português e
retroalimentado pela interação discursiva tecida pelos agentes envolvidos, sinaliza para a
necessidade de “construção de currículos mais dialógicos – tanto em escolas, quanto em
universidades: onde se reconheça os diversos significados e usos da leitura e da escrita,
criando nas instituições de ensino territórios de empoderamento, formas de reexistir e de
sobreviver culturalmente” (LOPES et al., 2018, p. 700).
A última aula do episódio Caminhada foi realizada no auditório da escola, porque a
professora precisou unir duas turmas - uma turma do primeiro ano e uma turma do segundo
ano do EM- devido à falta de professores na manhã daquela segunda-feira. As duas turmas
foram acomodadas, foi realizada a leitura e a análise de mais uma letra de música Cantilena,
do compositor Rafael Lima (Anexo B), a história dos movimentos sociais no Pará e alguns
conceitos foram recapitulados.
Os primeiros questionamentos foram voltados à leitura do texto da música, em
seguida, a professora lê em voz alta os slides que apresentam as estrofes do texto e inicia a
discussão para recapitulação conceitual (tipo, gênero).
Quadro 6
Nível
1.4
Marcador
4’’47 - 28’’28
____________
Ensino de tipologia
P. [...] bora rapidinho pra tipologia. Eu sei que é chato, pow, a gente tá ali, na onda da, né? A gente
tava ali, aí fala assim: pow, ela pega o bisturi e vem pra tipologia? [...] Mas só pra gente se situar né?
[...] olha, primeiro ano se manifestando ali, desculpa.
A3. O que é tipologia?
P. Olha a pergunta dela, que linda! A gente vai chegar lá, para o ano. Ela perguntou: o que é tipologia?
Vocês podem responder já. O terceiro ano já pode responder pro primeiro ano. [...]
A4 .Tipologia é o tipo do texto, se ele é narrativo, dissertativo, descritivo, argumentativo,
entendeu?
P . É aquela coisa assim tu respondestes, agora se eu entendi é outro papo.
A4 .Pois é!
[...]
P. Eu tou diante da letra de música que contém lirismo por isso tem a poética. Tá, beleza. Então eu tou
diante de três estrofes que eu já posso sinalizar a base da tipológica, da tipologia textual. O que tu
falarias que é isso aí?
Alunos. Narrativa!
P. É narrativo, né? Tu já conseguiste situar a história aí?
A entrada da leitura tem como ponto de partida a categorização da tipologia do
texto. Os alunos do terceiro ano tentam responder aos discentes do primeiro ano. A partir
disso, iniciam o processo de construção do entendimento da narrativa escrita em três estrofes.
173
Quadro 6
Nível
1.4
Marcador
4’’47 - 28’’28
____________
Leitura,
Correlação da
realidade
local,
história
P. [...] se a narrativa conta uma história? Que que tá acontecendo aí?
A8. Ele tá chamando a garota que tá na janela. Ele diz: sai da janela, vem pra dentro, pra ele contar a
história.
A9. Ela é filha de um cabano.
P. É interessante porque tu estás diante de três estrofes, e tu já estás falando de cabana aí. Né? [...] Talvez
se tu não tivesses apresentado aquele trabalho sobre a Cabanagem, tu poderias ler essa letra de
música e jamais pensar em Cabanagem. Concorda comigo?
A8 – Sim!
A9 – Ele fala que ela nem lembra.
P– Exatamente! Olha que interessante, [...] a gente associa com o conhecimento prévio que é aquele que
não está no texto, um conhecimento extra textual, tá? [...] essa figura que tá na janela, já existia e era
pequena né verdade? Então aproxima essa figura do fato histórico. [...] alguém chama a menina da
janela, e diz que ela vai ouvir uma história, né isso? [...] E o que é mais interessante que lembra nossa
mãe e vai buscar o tempo da infância, né? [...] ser criança era estar na rua, não era assim? Tu fazias uma
relação entre brincar e ocupar a rua, [...] geralmente as famílias de periferia, elas têm muitos filhos, e
aquele quadrado que lembra até o porão do Brigue palhaço, aquele quadrado [...] aquele barraco é a
nossa casa, [...] E aí o moleque ficava quase a tarde inteira na rua. Era papagaio, era fura-fura, era
amarelinha, era cemitério.
A discussão do texto correlaciona o possível intertexto com a Cabanagem. O aluno
consegue construir isto, porque já trabalhou em aulas anteriores: encontramos aqui a memória
didática servindo para dar continuidade ao episódio. O costume das crianças brincarem na rua
é rememorado. A rua era (ou ainda é) ocupada pelos moradores de periferia. Em Belém, em
virtude do intenso calor e das péssimas condições dos “barracos”, que mais pareciam ou
parecem os porões do Brigue Palhaço. Em virtude da histórica situação de exclusão social e
segregação socioespacial das populações das periferias da capital paraense. A professora
continua a leitura, abordando a questão da Cabanagem.
Quadro 6
Nível
1.5
Marcador
28’’29 - 55’’00
____________
Leitura,
Contextualização
histórica,
Figuras de
linguagem
P. [...] contextualizando esse fato histórico, que diz respeito a um conflito armado, e esse conflito armado está subordinado a
uma reação de uma minoria, aliás, a reação de um grupo de pessoas que vai contra um sistema de governo, me parece que tu sabes
como foi que isso aconteceu, quando ele fala assim, dessa nação, e ele fala tirania dessa nação, presta atenção nas informações que ele
te disse antes, ele disse que eram homens fortes, brados e valentes, que se levantaram contra a tirania, [...] ele fala assim: guerra de
homens bravos, fortes e valentes, contra a tirania dessa nação, eu te pergunto: que nação é essa? Pode falar.
A15 – Belém!
P. Belém? É isso? Belém? Gente, tu tá vendo como é importante a gente ter, a nação paraense? O que era que tava acontecendo nesse
momento? Bora buscar lá um pouco o conhecimento fora, primeiro, em 1822, o Brasil estava independente, em 1822 foi independência
do Brasil, porém, o Pará, ele não era considerado Brasil, tou mentindo? O Pará era o quê? Ele era uma província, ele era a província do
Grão-Pará dominado pelos Portugueses, lembra disso? [...] Então ele fala assim: guerra de homens bravos, fortes e valentes contra a
tirania dessa nação, guerra de gente cabocla, negros, índios, uns humildes, humildes, humildes, luta pra fazer revolução, então esses
humildes lutavam pra fazer revolução.
Leitura de um trecho do texto
P. O que é breu? Lá dos cafundós né? A gente sabe inclusive que os índios, os negros dentro desse confronto, eles tinham essa
única vantagem, enquanto a guarda militar, enquanto a junta militar era fortemente armada, os índios e os negros dominavam o
breu da mata, e isso era uma proteção pra eles, era onde eles se enfiavam, né? Os cabanos se enfiavam na mata. aqui já sinaliza a
história do governo cabano, eles vêm lá do breu da mata, pra poder governar. [...] aqui temos uma figura de linguagem, quando
ele pega e fala assim mesmo: “vieram se chegando de mansinho, como guarás no mangal a pousar”. Me diz uma coisa, qual é a
figura de linguagem que está aí bem explicita? Eu consigo olhar e dizer: égua não, é essa a figura.
A16 – Comparação!
P – Por que que tu achas que essa figura é uma comparação?
A16 – Porque ele tá comparando [...] Ele compara com o pássaro
P– Com o pássaro, ok! Que mais?
A17 – Eu acho que é metáfora.
P – Isso! [...]. Eu tenho de um lado o pássaro, pousando no mangal, isso é uma imagem, essa imagem do pássaro pousando no mangal,
ela é comparada com uma outra imagem, que imagem é essa?
A. Dos cabanos!
P– Dos cabanos chegando em Belém. Como é que eles chegavam? Bem mansinho, bem de mansinho, [...] então eu tenho a
imagem do guará andando no mangal, e tenho a imagem dos cabanos chegando a Belém [...] e eu tenho a metáfora. E a metáfora
também pega duas imagens distintas e estabelece uma relação de comparação.
174
O trecho aborda a contextualização histórica do movimento cabano, do modo como a
cidade foi ocupada pelos cabanos. Estes últimos chegaram a capital do Grão Pará, andando
como o guará no mangal. Chegaram no escuro e no silêncio para fazer a revolução cabana. As
figuras de linguagem são usadas para fazer a analogia entre os guarás do mangal e os cabanos
na floresta. Trazer a discussão deste texto para a sala de aula é uma forma de inserir nas
práticas de ensino de Português no EM uma linguagem, uma versão da história de negros e de
indígenas na Amazônia paraense.
Uma versão em que estas populações encenam como protagonistas no processo de
enfrentamento do colonizador, como agentes em um processo desigual de disputa pelo poder.
A interação didática constrói por intermédio de um discurso institucionalizado, entremeado
pelo ensino de figuras de linguagem, a tentativa de implementação do enfrentamento de
convocar para a sala da educação secundária as questões étnicas no processo de invenção da
nação (BERENBLUM, 2003).
A efetivação deste currículo em sala de aula constitui uma prática docente instituída
em um campo de disputa, de negociação, de tensão no seio do próprio sistema de ensino; seja
do ponto de vista curricular, seja do ponto de vista da mobilização de materiais didáticos
voltados a este propósito; seja do ponto de vista da construção de uma formação, que atenda à
necessidade de compreensão das interdições e de cerceamentos a que as populações
brasileiras foram subjugadas e até hoje refletem.
Por exemplo, no acesso aos níveis de ensino mais complexos e na própria realização
de práticas educativas que optam por abordar tais temas e elegê-los como objeto de ensino
para a aula de português no EM, para fins de formação de um sujeito conhecedor das
trajetórias históricas das populações amazônicas, capaz de repensar a condição atual destas
populações, do ponto de vista, social, cultural, político, educacional (SOUZA; SITO, 2010).
Quadro 6
Nível
1.4
Marcador
4’’47 - 28’’28
____________
Leitura,
História
P. Conta teu pai que foram três guerras, foram três guerras? Tu sabes me dizer qual foi a primeira
guerra?
A16 .O Brigue palhaço?
P.O Brigue, o Brigue foi a primeira guerra, inegavelmente. Só que ela quase não é contada, ela quase
não é sinalizada, mas o Brigue foi a primeira guerra. Aí tu vais dizer assim mesmo: eu posso considerar
guerra aquilo? É um massacre né? É um massacre. Porque eles estavam ali, os paraenses estavam ali
guerreando ideologicamente, mas tu te lembras que eles saquearam, foi o estopim pra colocar no porão,
eles saquearam né? Então, a primeira guerra. E as outras duas tu sinalizas? [...] É a parte do cônego
que inclusive colocou a cabeça dele lá no canhão, lembra disso? Né? O Angelim foi preso [...] Aí o
terceiro confronto já foi a tomada do poder.” [...] Ei, tu te lembras que quando acabou o movimento
cabano, 75% da população paraense tinha sido acabada, tinha sido exterminada, a junta militar
quando conseguiu reprimir a revolução, quase não tinha gente, velho, os paraenses quase todos foram
detonados[...] trazendo no peito a saga da união, querendo justiça
175
A Cabanagem foi gestada por aproximadamente dez anos. Por isso, o compositor faz
referência a três possíveis guerras. O primeiro levante é ligado ao descontentamento que
levou a população aos saques em estabelecimentos de portugueses e culminou no trágico
acontecimento do Brigue Palhaço. O segundo levante culminou na prisão do cônego Batista
Campos, considerado uma liderança popular e uma ameaça ao governo local, foi preso e por
pouco não foi atirado de um canhão. O terceiro levante foi a explosão da revolução cabana
que levou a tomada do poder provinciano por líderes populares.
Quadro 6
Nível
1.4
Marcador
4’’47 - 28’’28
____________
Leitura,
Referenciação
Língua,
história e
cultura
P. [...] Quando tu pedes justiça, em quais condições tu estás? Tu pedes justiça quando tu estás em alguma
condição, que condição é essa? [...] Pode falar Lena. Ele tá numa posição de injustiçado, houve uma
injustiça muito grande com esse povo [...] o verso anterior fala assim: “já se passaram 200 anos”, já se
passaram, passaram do quê?
A. Da guerrilha
P. Da guerrilha, da revolta. Ok! Aí ele fala assim: “coisas que já nem se ouvem mais falar”, coisa é um
substantivo que faz uma referenciação, tá? Coisa aí, refere-se a algo, não é verdade? Me esclarece aí. Ele
retoma o quê coisa?
Aluno 20 – A revolta!
P. A revolta. O momento histórico. O conhecimento de tudo isso. Aí ele fala assim: “coisa que já nem se
ouve mais falar, boca de abiu fizeram esse tempo”, o que é isso? Ah! Mas bora pensar, bora pensar porque
eu não vou te dar a resposta.
A21. O que é Abiu?
P – [...] É uma fruta, [...] sabe que o abiu tem uma propriedade que é extremamente excêntrica e peculiar,
tu comes abiu, qual é a sensação que tu tens?
Alunos – A boca fica pregando!
P – A boca fica o quê? Pregando. [...]. É uma característica dessa fruta, tu ficas assim, aí ele pega e fala
assim ó: “Já se vão quase 200 anos e coisa que ninguém se ouve mais falar, boca de abiu fez esses anos”, o
que ele tá dizendo? Que todo mundo ficou como se tivesse comido abiu, [...] essa letra é do Rafael Lima
tá? Aquele cara que tava lá (caminhada) com a gente. É brilhantemente ele consegue mais uma vez
estabelecer uma relação entre toda essa construção da letra da música com a nossa cultura, [...] Boca
de abiu, fizeram esse tempo pra nossa história ninguém contar, então foi proposital, ninguém contar.
A docente reforça a tese de que os cabanos clamavam por justiça social e isto é
apagado pela história oficial, inclusive, rememora a discussão realizada em sala de aula sobre
a possibilidade da vingança levantada por um aluno em sala de aula, já que há versões de que
os primeiros cabanos eram parentes de pessoas assassinadas no Brigue Palhaço. Há 200 anos
a dita história oficial tenta silenciar a injustiça social sofrida por este povo, real motivo da
revolta popular, por isso fizeram “boca de abiu”79
, para mais uma vez buscar silenciar. Por
conta disso, ninguém houve falar em Cabanagem, em revolta, em sede de justiça social, em
extermínio da população cabana, ribeirinha, suburbana, amazônica.
79 Abiu é uma fruta nativa da Amazônia, tem uma coloração amarela, formato ovoide e casca lisa. A polpa é
mucilaginosa e muito doce, podendo ser consumida in natura. A casca do abiu destila um leite branco e viscoso
que é aderente à boca, fazendo com que a pessoa não consiga abri-la com tanta facilidade, surgindo daí a
expressão “fazer boca de abiu”, que significa calar, silenciar. Fonte: http://descobrindoaamazonia.blogspot.com
176
Quadro 6
Nível
1.4
Marcador
4’’47 -
28’’28
___________
Leitura,
História
Cabanagem
Rei Congo
Oficial e o
não oficial
A22. Lá no começo fala que o pai contava, será se ele não escutou essa história de outra pessoa, ele já
seria muito velho.
P. Aí que massa essa observação velho, muito massa, olha essa observação dela, é, como ele fala que já se
passaram 200 anos, essa menina que tá na janela, se a gente for considerar esses 200 anos passados que ele
fala assim: tu tavas sempre de trança, tu eras pequenininha, como é que fica a história da cronologia agora?
Bora resolver isso? Como é que fica agora o tempo? Porque olha gente, eu tava fazendo um levantamento
assim feito uma árvore, minha, e a minha mãe é de Bragança e eu lembro que a marujada acontece em
Bragança. Quando a gente pensa vai atrás do Rei Congo, e o Rei Congo, a congada não tem no Pará,
só tem a marujada, que é muito parecido com a congada, aí eu fico pensando assim, eu já tava intrigada
um tempo, porque que essa história me emociona tanto? [...] Vamos, bora lá, sinaliza isso aí, essa história
do tempo da cronologia, como é que a gente resolve essa menina que tá na janela e de repente já passaram
200 anos, aí a ancestralidade, essa palavra ancestral, resolve isso de fato. Pelo menos justifica pra nossa
história ninguém contar. Nossa verdadeira história olha que interessante quando eu falo nossa
verdadeira história, o que implicitamente isso tá sendo dito aí?
A22 . Que eles contam uma história que não é verdade.
Mais uma vez a contraposição entre história oficial e não oficial é sinalizada. A
“verdadeira” história sobre a cabanagem seria contada de pai para filho e esta, sim, seria a
versão verdadeira dos fatos, por sinal, a versão narrada na letra da música analisada em sala
de aula. Um dado interessante apresentado é a correlação entre Marujada - movimento
popular em culto a São Benedito, santo negro- e a Congada. Há aproximadamente 200 anos a
marujada bragantina é realizada, praticamente, o mesmo tempo em que o movimento cabano
teve início, o que talvez seja um indício de que há outras histórias que precisariam ser
narradas sobre nós.
Ao longo deste episódio Caminhada, percebemos a tentativa de construir estas outras
versões da história deste movimento histórico, político, militante na Amazônia paraense, bem
como a tentativa de demonstrar a importância do reconhecimento e visibilidade desta
narrativa não oficial para a compreensão da realidade atual em que as populações menos
favorecidas (sobre)vivem ao drama das chacinas, dos extermínios, das execuções em praça
pública, seja nas periferias das grandes cidades, seja no campo onde a disputa por terra e por
outras formas de poder nutrem a ganância e a certeza da impunidade que ainda imperam, até
mesmo, para crimes de repercussão nacional e internacional, como foi o caso da missionária
norte-americana Dorothy Stang, 73 anos, assassinada com seis tiros em fevereiro de 2005, em
uma estrada rural do município de Anapu (PA), em uma área denominada como Projeto de
Desenvolvimento Sustentável Esperança (PDS).
Por fim, o vídeo da letra da música foi exibido para a turma.
**************
177
5.7 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O EPISÓDIO 1
Observa-se uma prática de ensino de Português em que há uma tentativa de pesquisar
fatos históricos concernentes à formação do movimento popular no Pará, a fim de (re)contar as
lutas sociais na Amazônia. Para isso, são recapitulados, especificamente, a tragédia do Brigue
Palhaço e a Cabanagem, que, por sua vez, são interligadas ao massacre de Eldorado dos
Carajás e à chacina ocorrida no bairro da Terra Firme em novembro de 2014. Nesse sentido, o
processo de seleção, de constituição, de articulação dos conteúdos disciplinares não está
sujeito somente à referência instituída, mas também à demanda local emergente e oriunda de
um determinado contexto social e histórico para a aprendizagem de outras formas de
apropriação (SCHNEUWLY, 2011).
Por conta disso, os textos selecionados - letra de música, livro, pesquisa via internet,
vídeos caseiros- para as atividades de leitura são preferencialmente de agentes de letramento
situados no contexto social - músicos, ativistas, professores. Alguns destes agentes estão
ligados a instituições formais. Outros estão ligados aos coletivos culturais e aos movimentos
sociais populares ou comunitários do bairro. A conceituação teórica convocada para a análise
dos textos não é aprofundada, mas é instituída e, de certa forma, serve para sinalizar que o
conteúdo de um currículo escolar formalizado não pode ser desvinculado da prática escolar
delimitada ao campo disciplinar da Língua Portuguesa.
Nessa direção, compreendemos que há um investimento no sentido de apresentar a
construção da história não oficial, uma tentativa de criação de espaço de interlocução, de
eleição de um tempo específico ao entendimento da história local, do movimento social do
negro e dos indígenas no Brasil, mais precisamente, na Amazônia paraense, para fins de
entender uma narrativa pouco conhecida para repensar o lugar das populações amazônicas em
um contexto de colonização que constrange estes povos a negligência de direitos sociais, a
situações de racismo, de segregação e lhes coloca no limiar da sobrevivência.
Pode-se constatar que, embora os textos vernaculares estejam em foco, eles são
“infiltrados” pela cultura escolar e eivados por um determinado estatuto institucional,
pedagógico, dominante, legitimado que termina por analisar estes textos, também, a partir de
categorias constitutivas de um currículo escolar, institucionalizado, homogeneizante, balizado
pelo aval de uma representante formal da cultura escrita e do aparelho ideológico escolar, que
legitima, seleciona e (re)configura o que deve ser ensinado, até mesmo, quando o local, o
vernacular, o não escolar é o objeto de análise, de estudo, de debate.
178
Hooks (2017) sugere que é dever dos docentes buscar estabelecer o confronto dos fatos
e das parcialidades intrínsecas às práticas educativas, em tempos de crise, é preciso fazer da
nossa prática de ensino um foco de resistência, tendo em vista que nenhuma educação é neutra,
do ponto de vista, político. Segundo Mohanty (1990 apud HOOKS, 2017, p. 36):
a resistência reside na interação consciente com os discursos e representações
dominantes e normativos e na criação ativa de espaços de oposição analíticos e
culturais. Evidentemente, uma resistência aleatória e isolada não é tão eficaz quanto
aquela mobilizada por meio da prática politizada e sistêmica de ensinar e aprender.
Descobrir conhecimentos subjugados e tomar posse deles é um dos meios pelos quais
as histórias alternativas podem ser resgatadas.
Para a construção do trabalho de ensino em questão, a interação didática é construída
ora pelo domínio docente, mas os alunos são chamados a participar do jogo discursivo, muitas
vezes, assimétrico que se constrói as cenas didáticas apresentadas. Ora percebemos o
predomínio docente, notavelmente, interligado à condição do esclarecimento, da tentativa de
informar os alunos sobre o que eles precisam acessar, bem como a recorrente necessidade de
buscar desestabilizar a ordem estabelecida, desconstruir as “verdades” institucionalizadas,
oficializadas, muitas vezes, assumir a voz do “louco” no sentido foucaltiano para dizer o que
não foi dito, o ocultado, o silenciado nas entrelinhas. É a voz do “louco” no sentido de romper
e vislumbrar uma outra possibilidade, uma disputa de discursos, de sentidos, de verdade e de
poder (FOUCAULT, 1999).
Durante os seminários de preparação, observamos que os alunos têm um maior domínio
do processo interativo, isto ocorre, sobretudo, porque eles precisam expor, discutir, apresentar
suas leituras a respeito do levantamento de fontes sobre fatos históricos dos movimentos
sociais no Pará. Nessas ocasiões, a exposição de diferentes versões a respeito destes fatos, a
construção de opiniões, de pontos de vista, de avaliação e/ou apreciação dos fatos pesquisados,
correlação entre fatos históricos, fatos contemporâneos e com a própria realidade circundante
para fins de tentar compreender a própria história local, a realidade de exclusão social da qual
ele é parte integrante.
No entanto, é importante frisar que mesmo nos seminários de preparação para a
caminhada, há um domínio considerável do turno por parte da docente, o que revela a natureza
assimétrica da interação ora estabelecida, mas também aquilo que se coloca acerca do trabalho
docente: a conscientização sobre a palavra dita como um “mantra”, o que estaria articulado a
possíveis resquícios de uma prática de ensino no EM ligada à trajetória de constituição
disciplinar relacionada aos métodos comunicativos e no dizer dos próprios alunos que
concebem “a boa explicação” da professora como um dos meios para aprender um dado
179
conteúdo. Porém, cabe ressaltar que “esta boa explicação” é endossada por via de uma série de
outros elementos como o considerável investimento docente no sentido de promover a
articulação com outras disciplinas, a seleção de textos pertinentes à realidade brasileira e local,
a tentativa de concatenar a uma realidade situada e à (re)construção de uma história não
oficial, mas latente ao contexto em que os sujeitos estão inseridos (MENDONÇA, BUNZEN,
2006).
Para além da questão de constituição do Português como disciplina curricular,
percebemos que o discurso da professora é engendrado neste cenário didático, não só pela
“legitimidade” do discurso pedagógico decorrente do seu estatuto institucional, mas também
por ela ser considerada nesta comunidade, dentro e fora da escola, uma agente de letramento
“chave” no processo de atuação no processo de questionamento e de debate a respeito dos
problemas locais, seja nos atos; seja nas rodas de conversa ocorridas em instituições como a
escola.
Além disso, muitos destes estudantes são integrantes destas agências de letramento e
atuam na construção de ações culturais, revelando que estes sujeitos trazem suas experiências
de letramento, que trabalham com música, teatro, dança, capoeira, meios de comunicação de
massa, cultura afrodescendente. Pode-se, então, dizer que a realização do ensino de português
neste contexto e descrita nesta investigação é possível porque se alia a experiências de
socialização (LOPES et al., 2017), mediadas pela escrita e outras linguagens e tecnologias,
acessadas por intermédio da mobilidade dos sujeitos (alunos e professora) nestas agências e
nesse trânsito entram em contato com diferentes maneiras de ler, de escrever, de interagir,
portanto, “há diferentes letramentos associados a diferentes domínios da vida” (BARTON;
HAMILTON, 2000, p. 11).
Diante deste contexto, a docente, então, busca atender a demandas concatenadas às
diferentes finalidades da educação de nível médio: formar para a vida, para a cidadania, para a
continuidade dos estudos, ainda que esta tentativa de implementação deste currículo “mínimo”
(ROJO, 2000) seja uma experiência hercúlea, solitária, de resistência, de reinvenção de uma
realidade marcada pela falta de infraestrutura, que busca parcerias externas à escola, com
material didático inventariado pela professora e providenciado pelos recursos dos próprios
alunos e da docente, a fim de construir um objeto de ensino essencialmente discursivo, a partir
dos conflitos vivenciados pela comunidade: extermínio, segregação, impunidade,
desigualdade, preconceitos.
Não obstante, este investimento docente não aborda de modo mais acurado um
determinado tópico de conhecimento discursivo, linguístico ou gramatical, tendo em vista que
180
o componente curricular disciplinar, curricular, hegemônico é gotejado na construção do
discurso docente: a menção às tipologias textuais, às variações linguísticas, às figuras de
linguagem, à morfologia, ao vocabulário empregado, à dinâmica de uma exposição oral. Esta
progressão convoca às perspectivas mobilizadas para realizar a aula de português no EM a que
se reporta Mendonça (2006, p. 218) “uma progressão que ora segue critérios estruturais,
tradicionais, ora segue critérios discursivos”.
Conforme Schneuwly (2011), quando um objeto de ensino adentra em um sistema em
que há outros objetos “consolidados”; ele é atingido, “infiltrado” e, até mesmo, readaptado ao
sistema já existente. Assim, percebemos que os objetos de ensino construídos no seio da
prática de ensino de português no EM interagem com aquilo que é constituído ao longo do
processo de disciplinarização e de escolarização para incorporar outros elementos.
O “novo” se constitui a partir de discursos e práticas já legitimados, “autorizados” e
assim o antigo também é remodelado, é revitalizado pelo dito novo objeto. Certas vezes, é
possível contemplar a entrada de novos objetos que precisam de remodelagens e rearranjos
mais complexos, levando em conta as fases em que os sistemas de objetos refletem mudanças
sociais que anunciam transformações de base estrutural, de paradigmas, transgressoras das
relações de poder estabelecidas, consolidadas, hegemônicas (PENNYCOOK, 2006).
Nessa perspectiva, a interação didática assentada em aspectos já arraigados na
configuração da construção da disciplina escolar e em aspectos articulados a uma demanda
local emergente, resistente, que sobrevive nas formas de reexistência, de transgressão, de
disputa, de tensão no âmbito escolar, que reverbera o componente curricular, social, cultural,
identitário.
Para Hooks (2017), transgredir é trazer à tona a oposição, a resistência e atravessar os
limites que oprimem por via da raça, gênero e classe, por isso os docentes que transgridem as
fronteiras da prática pedagógica ensinam também os seus alunos o direito à escolha, a
vislumbrar verdades, a reconhecer as limitações e incitam a vontade de conhecer e saber para
além do notório.Trata-se, então, de “transgredir, política e teoricamente, os limites do
pensamento e da ação tradicionais, não somente entrando em território proibido, mas tentando
pensar o que não deveria ser pensado, fazer o que não deveria ser feito” (PENNYCOOK,
2006, p. 82).
A partir do modelo de letramento crítico de Janks (2010, 2014, 2016), podemos fazer
alguns questionamentos em relação aos dados, a fim de que possamos observar o que se
ensina, para que se ensina e como os sujeitos se inscrevem nesse processo efetivamente.
181
Embora estejam entrelaçados, a autora faz menção aos seguintes pilares de sustentação do
mencionado modelo: acesso, diversidade, poder, (re) design.
Pensando nos dados descritos, quanto ao acesso: quem tem acesso aos textos, à língua
de poder, em que variedade? Que versão da história é contada na escola? Quem
ensina? Qual é o estilo de ensino? Como as práticas de ensino impactam os acessos?
Quanto à diversidade: qual é a língua (gens) da comunidade? Quais são os textos que
circulam na comunidade? Qual é a visão sobre nós, o nosso povo e eles? A diferença
acarreta hierarquização? Quem domina a variedade de prestígio está mais propenso a
ter mais poder e influência? O trabalho intelectual é mais valorizado que o braçal?
Quanto ao poder: a linguagem pode ser usada para manter ou desafiar as diferentes
formas de poder? Há conexões entre linguagem e poder? Categorias como raça, etnia
idade, gênero e outras diferenças se espraiam no conjunto de dados?
A questão da educação como prática de liberdade: desenvolver, agir, mudar formas de
pensar, de agir, de conceber, de falar, de argumentar, de questionar, um redesign dos
textos e, sobretudo, das práticas.
Quadro 23 - Acesso, diversidade, poder para resistir e ensinar Português no EM
ACESSO
Quem tem acesso aos textos, à
língua de poder?
Alunos do EM, de uma escola pública, da periferia
da cidade de Belém-PA.
Em que variedade? Textos em língua Padrão e não padrão.
Que versão da história é contada
na escola?
A versão oficial e a não oficial da história sobre a
constituição dos movimentos sociais na Amazônia.
Há uma tentativa de ensinar a história de
afrodescendentes e indígenas por via da leitura de
textos e de produção de seminários, pesquisa escrita,
cartazes, exercícios de leitura de letras de música. A
articulação das atividades culminam na construção
de uma caminhada pelas ruas do bairro.
Quem ensina?
Professora: moradora do bairro, integrante de
coletivos culturais, militante de questões da
comunidade, negra.
Alunos: estudantes do EM, moradores do bairro,
integrantes dos coletivos culturais.
Coletivos culturais: pessoas ligadas aos
movimentos culturais do bairro de música, capoeira,
comunicação, teatro, cultura afrodescendente;
Comunidade: ex-alunos, parentes das vítimas da
chacina, músicos, professores da escola.
A língua é usada para desafiar a
ordem social estabelecida?
As categorias foucaultianas podem ser percebidas na
abordagem de textos e práticas locais, vernaculares,
menos visíveis e valorizadas, mas que servem de
ponto de partida para debater questões de espectro
local e global, a fim de resistir e reexistir na
182
Quais são as práticas de ensino
e como impactam os acessos?
construção de um evento de letramento que integra
comunidade, escola, linguagens e culturas.
A prática de ensino de língua busca, de certa forma,
transgredir o institucionalizado, oficial,
homogeneizante. As práticas efetivadas em sala de
aula são: ler textos, comparar fatos atuais e
históricos, interpretar fatos e opiniões, pesquisar,
selecionar e expor informações, relacionar com fatos
e situações do dia a dia, tomar a iniciativa de
manifestar-se para a resolução de problemas reais,
conscientizar-se da situação a sua volta; resgatar
categorias de um currículo prescrito no processo de
leitura e de compreensão de textos vernaculares.
DIVERSIDADE
Qual é a língua(gens),
modalidades, os textos e
gêneros que circulam na
comunidade escolar?
Linguagens: verbal – oral e escrita-, musical, visual,
corporal, arte plástica;
Gêneros: Letra de música, apresentação de livro,
livro, seminário, apresentação em power point,
pequenos vídeos, cartazes, banners, recortes de
notícias de jornais, aula expositiva, pré-teste escolar.
Qual é a visão sobre nós, o
nosso povo e eles?
A diferença acarreta
hierarquização?
“Nós”: Lutam por justiça, estão em situação de
desigualdade social, histórica, de direitos, são
resistentes, sobreviventes;
“Eles”: Classes dominantes detêm as formas, os
instrumentos e as instituições de poder, legitimam os
modos de acesso e de permanência no poder, mesmo
que seja necessária a força simbólica ou física;
A diferença acarreta a disputa de classes, de
interesses, de acesso, de poder, de terra, de moradia,
de saneamento, de linguagens, de culturas.
Quem domina a variedade de
prestígio está mais propenso a
ter mais poder e influência?
Quem domina a variedade de prestígio pode está
mais propenso a ter acesso e permanecer em
instituições dominantes, oficiais, detentoras de poder
e de “verdades”, como escola, universidade, igreja.
Também, para contestar estas formas de poder
podemos ter o direito de ter acesso à língua (gens)
que constrói e constitui estas “verdades”. Por isso, as
práticas sociais de uso das linguagens são
convocadas para a construção dos eventos, pois
nestas práticas os usos vernaculares e dominantes e
de demais sistemas simbólicos são convocados para
a constituição do episódio em questão.
REDESIGN
O que é foi (re)construído? Caminhada pelas ruas do bairro, cartazes, tarefas
escolares, exposições orais, performances de dança
pelas ruas do bairro, aulas expositivas, bem como no
se refere às relações sociais, outras formas de se
organizar, argumentar, de falar sobre a realidade em
transformação.
Fonte: Elaboração própria.
183
Tardif e Lessard (2005) assinalam que o trabalho docente é “uma das chaves para a
compreensão das transformações atuais das sociedades do trabalho” (TARDIF e LESSARD,
2005, p. 17). A partir da descrição da prática docente, é possível perceber que, embora o papel
de parede de ordem sociológica da escola como instituição da modernidade esteja impresso na
prática docente, observa-se a militância docente que procura implementar um processo de
redesenhamento dos limites da educação como território de lutas e de disputas de poder. Este
movimento contemplaria a tentativa de realização de um currículo de Língua Portuguesa no
EM mestiço, diaspórico destas vinculações emergentes, filiadas ao trabalho de ensinar para
atender a uma demanda complexa, híbrida, contingente, sincrética, movediça, contraditória que
ora busca fins formativos para a cidadania, para a vida, a fim valorizar o componente local; ora
intenta instituir o componente escolar, curricular necessário à continuidade dos estudos, ao
mercado de trabalho e à própria atuação cidadã (FAIRCLOUGH, 2000; KRAWCZYK, 2014;
GOMES-SANTOS, 2014).
Assumir o risco e ter a coragem necessária para implementar a supracitada prática de
ensino, neste referido contexto de atuação, destituído de quase todo o aparato necessário a
formar cidadãos para um mundo global, aproxima-se de uma educação transgressiva no
sentido anunciado por Rocha e Maciel (2013, p. 25):
o caráter transgressivo da educação plurilíngue revela-se, também, pela subversão de
discursos e funcionamentos sociais conservadores e opressores, a partir de dinâmicas
denominadas carnavalizadoras, à luz do pensamento bakhtiniano, que possibilitam a
(re)apropriação crítica de dizeres e fazeres e, assim, possibilitam experiências de
recriação da realidade.
Cabe lembrar que um trabalho de ensino desta natureza, mesmo considerando as
ressalvas necessárias - como o predomínio discursivo docente, pouca ênfase a produção escrita
ou especificação mais acurada de conhecimentos linguísticos ou de um dado gênero-, constitui
uma iniciativa no sentido de mobilizar estes sujeitos aos seguintes movimentos preconizados
por Kleiman, Tinoco e Ceniceros (2013).
(i) a desenvoltura da ação individual e coletiva: é indiscutível o domínio de
interlocução oral das exposições realizadas pelas equipes de alunos nos
seminários escolares propostos para a discussão do entendimento das história
de lutas sociais na Amazônia; a própria realização da caminhada constitui por
si só esta desenvoltura. Trata-se de uma ação social, realizada essencialmente
pelos esforços individuais e de todo um grupo de pessoas da comunidade, que
contribuiu com aquilo que era viável: as leituras e discussões realizadas em
184
pela professora e alunos no âmbito escolar sobre a realidade de impunidades na
história da Amazônia; a produção dos cartazes no auditório com frases de
efeito, a organização e seleção e veiculação de materiais de outros eventos já
construídos por estes sujeitos na comunidade; a mobilização dos alunos
participantes dos coletivos para levar e tocar instrumentos no momento do ato
expressando assim o potencial artístico e cultural desenvolvido por estes
jovens neste contexto,
(ii) as articulações da professora com os coletivos, com o músico e compositor
Rafael Lima, com os parentes das vítimas da chacina que possibilitou a
concentração de todos no auditório da escola. Para além disso, toda essa
articulação e mobilização culminou na efetivação da caminhada sem nenhuma
intercorrência ou tumulto.
(iii) a especificação dos objetivos da leitura no EM anunciado pela
regulamentação vigente, por exemplo, no sentido de formulação e
contraposição em relação aos pontos de vista, opiniões, levando em
consideração a circulação de diferentes linguagens – música, dança, sons, artes
plásticas como o boneco que representa as populações exterminadas como
sugerem os registros da caminhada aqui relatada- e suas manifestações
particulares, bem como o uso e mobilização de diferentes gêneros do discurso:
letra de música, livro, exposição oral, apresentação de slides, produção de
pequenos vídeos, cartazes, banners, recortes de notícias de jornal;
(iv) a convocação da complexa e heterogênea história do povo brasileiro e de seu
patrimônio como recursos para a reflexão, apreciação e (re) invenção de
atividades, valorizando assim os saberes constituídos sociohistoricamente e
que são pertinentes à formação de um sujeito letrado: como as histórias ligadas
aos movimentos sociais de lutas na Amazônia: Brigue Palhaço, Rei Congo,
Preto Velho, Cabanagem, construção do processo de independência do Pará.
A participação dos tocadores de instrumento do coletivo Casa Preta, as
encenações dos participantes do coletivo Capoeira Angola, a cantoria das
letras de música do compositor Rafael Lima também evocam este rico e
heterogêneo patrimônio para a realização e constituição da caminhada pelas
ruas do bairro.
185
Desse modo, os trechos apresentados buscam reconstituir a prática docente de ensino
de Português no EM e, de certo modo, recapitulam aquilo que era colocado pela professora no
sentido de atender a (re)configurações do trabalho docente neste contexto específico. Em
relação a uma anunciada demanda escolarizada para fins do atendimento de um protocolo de
natureza escolar-disciplinar típico do nível médio, percebemos a recorrente exposição e
recapitulação de conteúdos tradicionais; a aplicação de pré-testes; a realização de várias horas
de seminários para fins de garantia de uma avaliação somativa - cada equipe contabilizou três
pontos para a avaliação bimestral, por exemplo.
Por outro lado, é perceptível, também, uma tentativa de contribuição a uma formação
escolarizada no sentido de uma breve iniciação ao processo de pesquisa, o que implicou
leitura, seleção, apreciação, comparação, levantamento de diferentes fontes de pesquisa,
avaliação de um dado conteúdo a ser organizado em esquemas, slides, roteiros para ser
apresentado a uma plateia que também faria comentários, questionamentos, elogios,
acréscimos de informações, contribuindo assim para efetivação do enfrentamento de cursar a
escola de EM tendo em vista o desafio de alcançar suas múltiplas finalidades nesta conjuntura
de realização da ação docente.
Um outro aspecto anunciado estaria inter-relacionado às finalidades estabelecidas
quanto a uma demanda contratual potencial entre docente e discentes para fins dos sentidos
de ensinar Língua Portuguesa nessa conjuntura, levando em conta textos e estudos da cultura
local, relacionados ao cenário geo-socio-linguístico em que estes sujeitos estão
circunstanciados (MOITA-LOPES, 2013).
Os textos do compositor Rafael Lima, a pesquisa do historiador que é professor da
escola, o levantamento de textos em fontes que não fossem tão somente o livro didático de
Português, o diálogo com outras linguagens que circulam pela comunidade, constituem o dia a
dia e as vidas destes indivíduos que estão em interação com o mundo por via de suportes
como a internet e pela sua atuação social, cultural e formativa dos coletivos culturais do bairro
o que nos conduz a pensar na criação de outros cenários, na produção de outros saberes,
linguagens, fazeres que já vêm se construindo no seio de práticas escolares.
Tais práticas deveriam ser configuradas por outras éticas, estéticas e, principalmente,
arquitetadas por outros sujeitos nestes contextos peculiares, territórios de disputas, de tensão,
de vulnerabilidade, de resistência e, até mesmo, de limiar de sobrevivência diante da polícia,
das milícias, das próprias condições acachapantes de realização do trabalho docente.
A terceira demanda estaria, então, concatenada a uma agenda da professora que estaria
voltada a um compromisso político, ideológico, educativo no sentido de promoção de uma
186
responsabilidade social com esta comunidade, constituída por um elevado número de pessoas
menos favorecidas no sentido de acesso a direitos básicos - saúde, educação, moradia,
alimentação, saneamento básico.
A possibilidade de ofertar um trabalho de ensino capaz de pensar e refletir o papel da
Língua Portuguesa como um instrumento de poder, de ação efetiva para o processo de ação e
de transformação social neste cenário de resistência e de sobrevivência é a aposta necessária
para incutir e instigar este público a vislumbrar a educação como um caminho para a mudança
individual e coletiva, como um instrumento de acesso a esclarecimento e a conclamação destes
direitos, como um possível caminho a trilhar para tecer uma narrativa de vida em que a
juventude periférica venha ser a protagonista viva, real, atuante e intelectual da sua condição
por si mesma.
Nesse sentido, tais demandas se entrecruzam, mesclam e coadunam no processo tenso,
contraditório, híbrido, mestiço, assimétrico, interdependente, indissociável que se corporifica e
materializa nas práticas de uso da linguagem em uma instituição letrada que ainda serve como
palco a um processo de formação no campo do letrado, do acadêmico, do crítico, do complexo.
Estas demandas se instituem e são gestadas no processo de enfrentamento da força
institucional - escolar, acadêmica, policial-, da força da violência das ruas, das ações ilícitas
que circundam a escola e a vida destes jovens e desta professora, moradora do bairro e real
conhecedora da vida do povo, da cultura e das produções e coleções culturais ali construídas e
constituídas.
5.8 “UMA HORA A GENTE TEM QUE LARGAR UM... E GERALMENTE O QUE SE
LARGA É O LOCAL”: O ENEM E O ENSINO DE PORTUGUÊS NO ENSINO MÉDIO.
No início do segundo bimestre passado, a professora inicia com uma exposição sobre a
necessidade de dedicação aos estudos e de focar todos os esforços possíveis em virtude da
preparação para o ENEM. A partir dos resultados dos pré-testes realizados no bimestre
anterior, ela constrói um quadro de desempenho dos alunos, apontando as colocações dos
estudantes e, em função deste resultado, ela chama a atenção para a proximidade temporal dos
exames e para a necessidade de concentração nos estudos nos próximos meses (agosto,
setembro e outubro).
A docente enfatiza a importância de valorizar a escola pública, daquilo que é ensinado
nesta instituição. Segundo a docente, este alunado quer entrar na universidade e sinaliza que
para além das avaliações, os discentes precisam ter uma postura diante da vida e da realidade
187
que lhes circunda, a fim de que possam construir uma sociedade mais responsável. A
professora expõe:
Quadro 7
Nível 1.1
Marcador
0’’00 a 24’’03
___________
Ensino Médio
Conscientização
Currículo
Lá vem ela de novo com esse papo, mas é importante, [...]. Mas eu imagino que a maioria aqui
pretende pisar no solo de um ensino superior [...] se tu começares a ler e construir maturidade na
discussão, vai te servir como conteúdo pra elaborar o teu tema, [...] Mas tu já pensaste que dentro do
é, dentro do contexto atual [...] aí tu vais fazer vestibular. [...] A base da violência contra a mulher, o
alicerce, a discussão todinha, é a questão da misoginia, e aí, você se considera um homem misógino? [...]
Então tudo isso eu acho, não só por uma questão de que tu vais fazer uma prova escrita que tu vais
ter que escrever um texto, que tu vais ter que defender um ponto de vista com argumentos, é
convincentes, né? Não só por isso, mas eu acho assim que até pela tua postura diante da vida, [...].
Então tu precisas ter um posicionamento [...] tu fizeste recentemente um trabalho, no qual o teu livro
de história ignora, porque a história ela é contada pelos vencedores, nunca se conta o lado dos
vencidos, [...] a gente tá dentro do processo acadêmico, [...] você tem por obrigação, é um dever seu,
construir posturas e mentalidades e atitudes que venha contribuir para a formação de uma
sociedade melhor.
Para além de ter repertório, de defender um ponto de vista, de construir argumentos
para tecer uma avaliação escrita, é necessário que os discentes tenham um posicionamento
para a vida, compreender a realidade em que ele está inserido. Construir um ponto de vista, ter
uma atitude, ter uma leitura sobre a realidade, sobre a história, sobre os temas contemporâneos
é uma obrigação para a construção da vida e para a construção da sociedade. Isto indicia um
processo de ensino da redação escolar atravessado, de certa forma, pelas perspectivas de
agentes de letramento vinculados às questões locais e ao contexto da escola pública, urbana,
periférica, que precisa cumprir com o seu compromisso de “preparar” para as avaliações
externas e, consequentemente, para uma possível continuidade dos estudos.
Mas, mesmo diante dos avanços das investigações no campo do ensino de Português,
decorrentes do investimento de práticas de (multi/novos/trans) letramentos no âmbito escolar e
não escolar, a afirmação de Kleiman (1995) de que o modelo de letramento escolar autônomo
predomina na conjuntura educacional do país, ainda, ressona na discussão sobre o ensino de
línguas(gens). O reconhecimento da condição do não escolarizado ou menos escolarizado em
instituições formais; a eleição de objetos de ensino na regulamentação oficial de ensino; a
mobilização de um conjunto de normas, de práticas, de regulações e de discursos para o
processo de elementarização de determinados objetos de ensino na cadeia discursiva de
didatização (SCHNEUWLY; DOLZ, 2009; SIGNORINI, 2006; GOMES-SANTOS, 2004).
Os resquícios de permanência deste conjunto de fatores, que evocam ao supracitado
modelo, sobrevivem na corporificação, conjugação, (re)alinhamento, atualização de práticas de
ensino de Língua Portuguesa no EM (KLEIMAN, 1995; FERREIRA, 2017b; STREET,
2014;). Na sequência, a docente orienta sobre como será realizado o trabalho para a segunda
avaliação.
188
Quadro 7
Nível 1.4
Marcador
51’’45 – 54’’03
___________
Currículo
Instrumento
Didático
A nossa segunda avaliação vai ser assim, uma redação, e uma redação. A nossa segunda avaliação
vai ser assim uma redação e um pré-teste parecido com esse, só que com mais questões, tá? Então,
vai ser basicamente voltado pro ENEM né? E aí a redação, ela vai ter esse peso até 5, e o pré-teste
também 5, tá? [...] não deixa de trazer teu livro [...] outra coisa procura trazer um dicionário... E aí
a gente vai tentar levar o trabalho mais focado pra isso, produção de texto, e análise textual, mas
mais pra produção, porque eu não tenho dúvida que o nível de discussão de vocês é um nível elevado,
[...] Falar, vocês sabem falar muito bem, expressar mais ainda. Mas na hora que tem que estruturar
isso num texto escrito.
Nesse sentido, observamos resquícios do registro da assertiva supracitada no sentido de
que a preparação para o ENEM gotejaria princípios que convocam o que Street (1985)
categoriza como modelo autônomo de letramento, a saber: (i) a ênfase no esforço individual
para o aprendizado, (ii) aprendizado da escrita, de um modelo de escrita que independe do
indivíduo, que, em tese, é isenta de uma realidade social, (iii) o uso de instrumentos didáticos
específicos, como gramáticas, livros, dicionários, modelos; (iv) a aplicação de uma série de
(pré)testes, tarefas e exercícios para fins de regulação da aprendizagem.
Cabe atentar que para ensinar a redação escolar são convocados dois bons e velhos
instrumentos didáticos do professor de português: o livro didático80
e o dicionário, o que
sugere uma seleção de textos mais ligados à esfera didático-escolar, aos modelos escolares e
aos usos linguísticos mais próximos à variedade considerada padrão. Cabe notar que os
motivos que conduzem ao uso do LD são diferenciados, nesse caso, a utilização do mesmo
perpassa por certa dualidade, mas com a mesma raiz, o discurso hegemônico, unilateral, e
factual (o que é dado e não coconstruído), perpassando por vozes que envolvem uma teia
discursiva: o LD, a política pública do PNLD, a voz do autor, do editor que divulga o discurso
do dominador.
Então, a dualidade do discurso dela em relação ao LD está no fato de: a) tentar
desconstruir as verdades universais propagadas, por isso o letramento crítico, o trabalho a
partir de uma conscientização crítica da linguagem veiculada no LD; b) o uso do LD como
movimento de didatização em torno da produção textual (estrutura, formas canônicas,
modelos, regras).
Dessa forma, a dualidade está na ideia do Novo x Dado, que é imputada no discurso
dela acerca do material didático utilizado, o que denota um movimento antagônico que ora está
a serviço da desconstrução de um discurso hegemônico, ora está a serviço de tentar usar este
mesmo discurso para servir ao ensino de uma escrita que, em tese, possibilitaria a construção
80 Segue a referência do livro de Língua Portuguesa adotado: ABAURRE, M.L. et al. Português: contexto,
interlocução e sentido. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2013.
189
de uma aprovação que lhes levaria a transgredir, resistir e sobreviver à realidade de exclusão
que lhes circunda e, muitas vezes, nega o direito de dar continuidade aos estudos.
No quadro sinóptico 9, é possível observar três momentos interessantes da prática
docente: (i) a especificidade do alunado da escola pública, (ii) a reiteração do discurso da
necessidade de estudar para o ENEM e (iii) a exposição oral do texto dissertativo e do modelo
de redação solicitado pelo referido processo avaliativo a partir do que é apresentado no LD.
Segue abaixo um trecho sobre o primeiro aspecto referenciado:
Quadro 9
Nível 1.1
Marcador0’’00 a 27’’40
___________
Resolução de problemas
Crítica
Consciência
P. [...] Olha uma situação como essa [...] O menino chega pra assistir a aula dele, ele tem que
ir atrás do cara que liga o ar condicionado e aí se o ar condicionado tá quebrado, o cara que
liga diz que o problema não é dele, porque ele só liga. E aí ele vai ter que ir atrás de um
profissional [...] e tudo isso, constrói, interfere, isso constrói, eu fico colocando assim, sabe,
quando eu dava aula na Escola X (instituição privada) eu sempre colocava o menino de Nazaré
(bairro nobre) e o menino da Cremação (bairro da periferia), é óbvio que esse garoto [...] que vai
solucionar um problema que não é da alçada dele,[...] ele vai amadurecer muito mais do que
aquele que senta e tá tudo pronto pra ele, né verdade? Ele vai começar a construir soluções
práticas pra vida.
Nesse dia, mais uma vez, a falta de estrutura do prédio interfere no desenvolvimento
dos trabalhos: o aparelho de refrigeração não estava funcionando e o aluno, representante da
turma, precisou ir em busca de solução. Isto diferencia este sujeito, ele precisa tentar resolver
um problema que, por sinal, não compete ao alunado assumir. A desigualdade da infraestrutura
dos prédios intervém na cadeia de trabalho do professor e obriga o aluno a tomar uma atitude
diante da realidade que constrange o direito de chegar em sala de aula, sentar e estudar.
No próximo nível, a professora situa a condição deste aluno que persiste na escola: “tu és
árduo, tu és duro, [...] desde pequenininho tu és duro. [...] infelizmente por uma falta de
infraestrutura e por uma desigualdade social tu já estás mesmo que preparado pra esse campo
[...] de batalha, de guerra, de competição”, contexto típico das situações de grandes avaliações
como a prova que este aluno teria que enfrentar. Em função disso, este sujeito precisa estudar,
focar, persistir nos últimos meses de preparação para o ENEM:
Quadro 9
Nível 1.2
Marcador
28’’00 - 45’’00
______
Resolução de problemas
Consciência Resistência
P. [...] a gente é tragado pelas atividades cotidianas, e [...] não estão atreladas a leitura,
formal, a escrita. E aí tu precisas te forçar a isso, [...], tu tens que começar a reservar tempo
dentro do teu tempo que tu não tens, tu tens que te forçar a ler, pelo menos esses 3 meses,
porque é só assim que a gente vai conseguir garantir um bom texto. [...] Eu preciso ler.
Eu tenho que ler.[...] eu prestei vestibular três vezes gente, [...] eu fiz a primeira vez, não
passei, todo mundo achava que eu ia passar. Eu fiz a segunda vez, não passei, [...] e o terceiro
ano foi quando eu passei, [...] ninguém acreditava, [...], depois disso na vila onde eu
morava, todo mundo disse que ia prestar vestibular [...] Baixa aula, baixa vídeo - aula, e
começa, tu tá ali trabalhando, porque tem alguns que trabalham, tu tás ali trabalhando
e tá ouvindo aula.
190
Este excerto apresenta dados sobre o (não) lugar da escrita padrão no cotidiano deste
aluno. Ele precisa organizar um tempo e inserir em algum momento do seu cotidiano um
espaço para “transitar” na língua e nos conhecimentos oficiais, institucionais, legitimados,
escriturários. A história de vida da professora - mulher, negra, moradora de um bairro da
periferia da Belém, professora, efetiva, concursada-, revela o “sucesso do improvável”
(LAHIRE, 1997). Ela passou no vestibular e ainda serviu de exemplo para os moradores da
“vila” onde residia e hoje para os moradores da atual periferia em que mora e atua como
professora da escola pública e coordenadora de um atuante coletivo cultural do bairro.
Por isso, o aluno precisa focar, acreditar e estudar, mesmo que ele seja consumido por
outras demandas cotidianas, como o trabalho informal que alguns deles exercem no comércio
do bairro, mesmo que não tenham lugar adequado aos estudos em casa ou na própria escola.
Resta o questionamento: a realidade social desigual vivenciada por este aluno pode ser vencida
somente por via do esforço pessoal deste indivíduo no sentido de baixar e ouvir aulas?
A aula prossegue com a apresentação da institucionalização conceitual do texto
dissertativo, enfocando para o que viria a ser um tópico frasal. Percebe-se a ênfase atribuída à
necessidade de identificação da estrutura constitutiva do texto dissertativo. A construção do
repertório e a apropriação da estrutura tipológica parecem configurar como duas etapas
importantes, para que os alunos produzissem a redação. Nesse sentido, é lançado o exercício
de leitura dos textos e a análise dos trechos para fins de identificar e compreender estes
mecanismos de constituição textual:
Quadro 9
Nível 1.3
Marcador
45’’05 -1’24’’34
________
Uso LD
P. [...] Agora eu quero que tu faças isso com essas partes do texto dissertativo, argumentativo,
onde é que tá a tese? Onde tá o tópico frasal? Existe um período que concentra o tópico frasal,
qual é a ideia do desenvolvimento? O argumento 1, ele desenvolve qual ideia, e o argumento 2?
A conclusão? Qual a proposta de intervenção nesse texto? A gente vai pegar um bisturi e vai
sair retalhando o texto [...]
A. 08h41min
P1 – Pega teu livro, abre teu livro na pagina 383, concentra só no primeiro parágrafo, como
eu te disse a gente vai retalhar o texto agora né? [...] me responde às seguintes perguntas: Há tese
no primeiro parágrafo? Se há, qual essa tese e em que período ela se concentra?
A breve descrição do quadro sinóptico 9 possibilita atentar para três aspectos
supracitados e recorrentes ao longo da construção do episódio: (i) a crítica ao contexto social,
(ii) o incentivo ao empenho nos estudos, (iii) o ensino do modelo estrutural. Componentes
estes, que contribuiriam para a preparação deste grupo de alunos no sentido de obter um bom
desempenho na prova de redação e, assim quem sabe, ter uma chance de ingressar no ensino
superior.
191
Um dado interessante deste fragmento da interação didática diz respeito à iniciativa do
aluno “lembrar” o tempo destas aulas de “preparação específica”. Muito embora, a professora
não tenha questionado sobre a hora exata. Essa “iniciativa” do aluno não foi observada, por
exemplo, durante as horas e horas dedicadas aos seminários de preparação relatados no
episódio anterior, sendo que algumas exposições foram realizadas nos últimos horários de
aula, o que corresponde ao horário de 11h30min às 14:00h.
Esta manifestação do aluno denota o cansaço do alunado depois de quase uma hora e
meia de exposição oral intensa, mas também faz recordar o que a docente cita nas entrevistas
sobre o que “funciona” em sala de aula, isto é, o que aluno mais aceita, o que tem melhor
recepção do alunado no sentido de assumir tarefas, posicionamentos. Mesmo que a relevância
deste conteúdo seja evocada, recorrentemente, o aluno cansa.
De certa forma, eles resistem ao trabalho de ensino mais voltado ao conteúdo, ao livro
didático, à intensa exposição do conteúdo livresco para fins de memorização do conteúdo, do
modelo, a ter que fazer o “exercício” de análise escritural. Exercício este, considerado como
contraparte fundamental neste processo de didatização, delimitado fortemente pela “instância
da aula”. Sobre a relação existente entre essas duas instâncias, Batista (1997, p. 88) tece o
seguinte comentário:
Grande parte da organização da interlocução realizada na instância da aula provém da
organização dos textos em torno dos quais se estrutura a instância do exercício, cujas
unidades e formas de progressão coincidem com as possibilitadas pela instância: são
correspondentes os dois desenvolvimentos de discurso possibilitados por uma e outra,
os mecanismos de articulação e progressão de uma e outra.
É importante notar que tanto uma instância como outra estão interligadas ao livro –
instrumento didático central no trabalho da professora neste episódio –, estabelece-se uma
cadeia que articula os enunciados da docente com aqueles do material didático. Nesse tipo de
aula, o aluno permanece, nessa cena didática, como o espectador privilegiado, a troca
interacional que se constrói com o aluno é acessória em relação àquela cadeia. Eles precisam
solucionar a tarefa imposta pela professora, passam a fazer solitariamente ou buscam interagir
com um ou outro colega e nem sempre a interação estabelecida é voltada ao objetivo didático
ora solicitado.
A professora faz a leitura em voz alta dos primeiros parágrafos do texto. Trata-se de
uma redação do ENEM 2012 que obteve nota máxima e é apresentada pelo livro didático de
Língua Portuguesa. Uma análise é apresentada pela docente e a mesma procura identificar a
tese, o tópico frasal, o modo como o tema é desenvolvido, a disposição dos argumentos, a
192
natureza da argumentação. A docente sinaliza as fragilidades do texto e não considera o texto
como nota 1000. Os alunos precisam dar continuidade ao exercício de análise deste texto.
No dia 26/08/16, a professora apresentou os tipos de argumento e solicitou que os
alunos finalizassem esta tarefa em sala de aula. Na semana seguinte, a prova da segunda
avaliação foi aplicada. A exemplo do exercício proposto, a prova era composta por uma
redação do ENEM 2015 e um conjunto de questões subjetivas sobre a estrutura do texto
dissertativo (Anexo C). A aula do dia 01/09/16 foi dedicada à leitura e análise deste texto e a
resolução das questões propostas na avaliação escrita.
Pode-se perceber que os alunos apresentam dificuldades para responder aos
questionamentos propostos na avaliação aplicada, quando lhes é cobrado o conteúdo mais
limitado à estrutura do texto dissertativo argumentativo. O modelo de avaliação externa baliza
o trabalho do professor no sentido de restringir a um objeto de ensino e, ao mesmo tempo, de
certo modo, limita o trabalho de ensino ao treinamento, à memorização, à imitação de um
modelo ou formato de escrita para uma dada circunstância docimológica que, em tese, estaria
concatenada a um objetivo de ter um desempenho mínimo ou razoável, a fim de concorrer a
uma vaga em uma IES.
Quadro 10
Nível 1.2
Marcador
15’’34-51’’00
_________
Uso
LD
Apostila
Discussão de
modelo escrita
P1: Olha galera, bora fazer o seguinte aqui, a gente vai ficar com a nossa prova e com a apostila, tá?,
[...]. Nós temos a prova da Amanda que, égua, ela segue, tu pegas aquele resumo lá do caderno, ela
segue, catedraticamente aquele resuminho lá, parece que ela pegou o teu caderno e estudou pra fazer
essa prova, só que ela fez essa prova em 2015,
[...] então ela tem um, dois, três, quatro parágrafos, sendo que destes quatro parágrafos, um já é
introdução e no outro ela constrói a conclusão, e dois para o desenvolvimento,[...] quando tu pegas
e lê a redação da Amanda é como se ela tivesse colocado numa forma o texto dela [...] aí o ENEM vem
e lança a nota dela como nota mil.[...] E se atende os critérios, a nota é mil, atendeu tudinho, é mil, [...]
O que te dá garantia é tu leres, se tu sabes tudo isso aqui, tu começas a ler, tu tens garantia do
que estás fazendo, se tu não leres, tu não vais conseguir, não adianta, vai ficar com aquela
redação presa cheia de termos coesivos, né?
É interessante atentar a presentificação dos dois dispositivos didáticos elementares para
o desenvolvimento da aula: a prova e a apostila, os quais serviriam para nortear as
considerações gerais a serem realizadas ao processo de elementarização do objeto de ensino
(SCHNEUWLY; DOLZ, 2009). Sinalizado isto, as primeiras considerações a respeito do texto
da prova são anunciadas. A primeira diz respeito ao caráter normativo da estrutura considerada
nota 1000 pelo INEP.
Por conta disso, este modelo estrutural “aquele resuminho” é institucionalizado,
presentificado, recomendado, reafirmado, mas só terá sucesso se tiver um componente
fundamental: leitura, uma leitura crítica dos fatos, dos acontecimentos, dos problemas que
193
devem ser problematizados pelos alunos. Assim, a aula prossegue com a leitura em voz alta de
trechos da redação para a identificação da mencionada base estrutural.
Quadro 10
Nível 1.2
Marcador
15’’34-51’’00
Uso
LD
Apostila
Discussão de
modelo escrita
P1: “A violência contra a mulher no Brasil tem apresentado aumento significativo nas últimas décadas,
de acordo com o mapa da violência de 2012, o número de mortes por esta causa aumentou em 230% no
período de 1980 a 2010.” É, isso tudinho aqui é uma apresentação, uma introdução, é preparar
terreno pra poder lançar uma tese [...] Ela tá sendo precisa [...] o âmbito dos dados estatísticos, o
levantamento do índice de violência, todas essas afirmações que ela fez que não é dela, agora ela
vai lançar uma tese. [...] tenho duas ideias, eu tou dizendo que a violência tem raiz, o quê é raiz? [...]
Então ele fala assim: “A violência contra a mulher tem base, tem origem em duas questões, uma é
histórica, a outra é ideológica”, eu tenho duas ideias aí sobre a questão da violência contra a
mulher, automaticamente, obrigatoriamente ela terá que desenvolver um parágrafo para a questão
histórica e outro parágrafo para a questão ideológica.
Pode-se perceber que o texto serve para a exemplificação do modelo de redação
apresentado. A aluna faz um preâmbulo, apresenta a tese e desenvolve as duas ideias lançadas
nos parágrafos seguintes. Após a identificação do conteúdo estrutural, a docente passa a
contextualizar a temática, ela narra situações do cotidiano e acontecimentos muito próximos da
realidade das mulheres da periferia de Belém-PA, situações vivenciadas por estes sujeitos, no
cotidiano suburbano amazônico, e que revelam bem a situação de desigualdade de gênero, da
condição das mulheres, em especial, as mais jovens nesta conjuntura social brasileira, minada
de machismo, misoginia e violência –física, simbólica, sexual, patrimonial- contra mulher.
Quadro 10
Nível 1.2
Marcador
15’’34-51’’00
_________
Uso
Questão de
gênero
Crítica à
condição da
mulher na
sociedade
brasileira
Discussão de
modelo escrita
P1: Olha, se tu fores perceber, sabes o que ela faz, ela faz um levantamento histórico, de fato o que pesa
mais é o histórico, mas ela está inteligentemente, ela está justificando o ideológico, tá ou não tá? [...]
estava conectada, aí pula lá a mensagem de fulano de tal se retratando no face e explicando que
pertencia a um grupo, é de whatsapp e que naquele grupo tinha desmerecido uma pessoa e era
uma mulher [...] eu fui machista, eu fui imbecil, eu fui babaca né?[...] olha como a sociedade é
machista, no momento em que ele vai pro face e pede perdão publicamente, todo mundo vai, uau,
olha parabéns, né parabéns cara, só que a Renata estava online, [...] lá do PSOL, ela finaliza lá assim
mesmo, machismo é crime, violência contra a mulher é crime, perdão não resolve nada, ela fechou
né? [...] o cara, ele maltrata a menina, ele ridiculariza a menina, ele expõe a menina, ele coloca no grupo
de whatsapp, grupo que são várias pessoas né? [...] Quando a menina fica com raiva, ele vai lá pro
face e se retrata, e todo mundo aplaude, é interessante isso né? Porque faz o contrário, se a menina
faz isso, se a menina começa a falar coisas de alguém que ela namorou, e fica falando, fazendo
ofensas relacionadas a sexo, por exemplo, ela é vagabunda, ela é motosserra, [...] tudo aquilo que
não presta, porque a mentalidade, a cultura brasileira, ela é machista, e outra coisa, [...] quando a
menina faz alguma merda, é motivo pra ele não falar nunca mais com ela, ele é o escrotão né? [...]
acabou amizade pra sempre. A menina quando ela sofre esse tipo de violência, quando ele pede perdão
ainda publicamente, se ela não aceita, poxa que coração ela tem? Que tipo de ser humano ela é?
Como é que pode gente? Todo mundo erra! Mas quando ela erra com ele e vai pedir perdão, que
ele não aceita, todo mundo [...] diz: mas também foi [...] complicado cara, difícil perdoar desse jeito,
ela foi muito sem noção. Eu tô mentindo? [...] no que diz respeito à vida conjugal [...]. A menina tá
namorando com o menino, tá maior amor, né? No meio da relação descobre-se que ele engravidou
outra, mas ele ama muito essa namorada dele, e ele pede perdão pra todas as amigas, pra todos os
parentes, pra todos os familiares, ele ama essa mulher, perdoa, imagina, assim, faz o contrário, a
menina tá namorando com o menino, eles estão no auge da relação, ela engravida de outro, poxa,
assume essa criança, tá tão lindo o relacionamento de vocês e ela te ama tanto, olha aqui que ele
assume, porra nenhuma, a família dela, vagabunda, vai criar teu filho só, pra ti deixar de ser
vagabunda, tu não tava com o rapaz? Um rapaz direitinho…
194
A partir da leitura do fragmento, é possível criar um quadro para que possamos
visibilizar a construção social identitária atribuída ao homem e à mulher em determinadas
situações sociais que, por sinal, parecem, mas não são hipotéticas. Podemos perceber que a
construção discursiva delega a figura feminina um lugar social desigual, depreciativo,
preconceituoso, violento. Estes dados remetem a alguns posicionamentos do Ensino Crítico da
Linguagem: 1) propõe-se a explicar e não apenas a descrever o discurso de uma sociedade ou
de uma instituição social, demonstrando a conexão entre seus determinantes estruturais e seus
efeitos; 2) Então, podemos dizer que o discurso aqui tem um efeito dialético, estruturado e
estruturante. Estruturado, moldado para relações sociais particulares dentro das quais são
gerados; estruturante, porque tem efeitos sobre as relações sociais, reproduzindo-as e
transformando-as; 3) Alguns posicionamentos denotam como as conexões ideológicas
particulares são impostas entre determinantes estruturais e discursos, e entre discursos e efeitos
estruturais, através da luta entre forças sociais; 4) O discurso é em si mesmo uma prática de
luta, e não simplesmente uma questão de seguir convenções, pois tem implicações reflexivas
(FAIRCLOUGH et al, 1996, p.46). Assim, desenvolver a (auto)consciência dos dominados,
implica em torná-la, necessariamente, crítica. A consciência seria, então, um modo como as
práticas sociais são moldadas, em suas dimensões linguísticas, pelas relações exploratórias de
poder.
O quadro 24 demonstra como a diferença de construção de gênero da mulher e do
homem é configurada no discurso enunciado:
Quadro 24 - Alusão à figura masculina e feminina na construção discursiva docente
Homem Mulher
“tinha desmerecido uma pessoa e era uma mulher”
“eu fui machista, babaca, imbecil”
“machismo é crime, violência contra a mulher é crime,
perdão não resolve nada, ela fechou né?” (voz da
ativista)
“ele vai lá pro face e se retrata, e todo mundo aplaude,
é interessante isso né”
“se a menina faz isso, se a menina começa a falar
coisas de alguém que ela namorou, e fica falando,
fazendo ofensas relacionadas a sexo ela é vagabunda,
ela é motosserra, [...] tudo aquilo que não presta”
“quando a menina faz alguma merda, é motivo pra ele
não falar nunca mais com ela, ele é o escrotão né?
“Mas quando ela erra com ele e vai pedir perdão,
que ele não aceita, todo mundo [...] diz: mas também
foi [...] complicado cara, difícil perdoar desse jeito”
“No meio da relação descobre-se que ele engravidou
outra, mas ele ama muito essa namorada dele, e ele
pede perdão pra todas as amigas, pra todos os parentes,
pra todos os familiares, ele ama essa mulher, perdoa,
imagina”
“Um rapaz direitinho…”
“ela engravida de outro, poxa, assume essa criança, tá
tão lindo o relacionamento de vocês e ela te ama
tanto, olha aqui que ele assume, porra nenhuma, a
família dela, vagabunda, vai criar teu filho só”
“pra ti deixar de ser vagabunda, tu não tava com o
rapaz?”
“faz o contrário, aí tá lá, o sonho é do casal, o cara tá a mulher sai, e dá uma, sei lá, está estressada porra,
195
cuidando, é presente, é paizão”
“O dele é só picotezinho diferente”
leite vazando por aqui, vai dar uma diferente, volta,
que filha da porra, quer dizer que o cara cuidando da
criança em casa, ela sai pra dar na rua, mas que
vagabunda (risos dos alunos)
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
Ao retomar as ideias defendidas por Martin Luther King em relação à necessidade de
uma “verdadeira revolução de valores”, Hooks (2017) reporta a incerteza de viver no caos, no
naufrágio moral, intelectual, espiritual em tempos de incorporação e apelo à continuação de
um sistema de dominação – étnico, sexual, econômico, colonial-, de uma naturalização da
violência, de reafirmação favorável e retorno a um passado (ideal) com tradições que
prometem estabilidade a partir da noção de família ligada a uma noção de segurança, de
preservação de valores de um dado grupo, raça, classe, religião proclamados por uma Nova
Direita e grupos neoconservadores.
A mencionada autora diz sentir-se perplexa ao perceber que mesmo diante das
estatísticas de violência doméstica - simbólica, virtual, física, estupro, pedofilia, feminicídio-,
ainda que o agressor, quase sempre, seja uma pessoa do dito “lugar seguro”, mesmo diante da
rejeição social de um número considerável de pessoas a esse modelo idealizado de família
patriarcal, os ultrajados e atuais mitos conservadores são perpetuados (HOOKS, 2017). Os
dados estatísticos do Atlas da violência (2018) confirmam as assertivas de Hooks (2017):
Uma subseção que começamos a tratar no documento deste ano diz respeito ao
grande problema dos estupros no país. Trouxemos dados estarrecedores sobre esse
fenômeno bárbaro, em que 68% dos registros, no sistema de saúde, se referem a
estupro de menores e onde quase um terço dos agressores das crianças (até 13 anos)
são amigos e conhecidos da vítima e outros 30% são familiares mais próximos como
pais, mães, padrastos e irmãos. Além disso, quando o perpetrador era conhecido da
vítima, 54,9% dos casos tratam-se de ações que já vinham acontecendo anteriormente
e 78,5% dos casos ocorreram na própria residência (IPEA, 2018, p.04).
De fato, não experimentamos a supracitada revolução de valores, os dados gerados
revelam o universo discursivo em que a voz da ativista, revozeada pelo discurso da professora
em sala de aula, reitera que a mulher ofendida e exposta nas redes sociais é alvo de um crime:
“machismo é crime, violência contra a mulher é crime, perdão não resolve nada”. O
posicionamento da militante vai de encontro ao pedido público de perdão endossada pelos
pedidos dos supostos amigos: “ele vai lá pro face e se retrata, e todo mundo aplaude”.
Os posicionamentos reportam a uma das propriedades dialéticas do discurso: o discurso
estruturante, o efeito aqui é não só o de reproduzir, mas tentar transformar, afetar a estruturada
formação histórica machista, violenta, invasiva, corrosiva. Este discurso é corporificado por
intermédio da língua em meios de comunicação e de circulação dos fatos instantânea,
196
interativa, colaborativa, os quais possibilitam o processo de instauração do embate ideológico
convocado para a construção do discurso pedagógico que também tem como meta dissolver
por via de uma dialética discursiva o que está estruturado e é perpetuado pela sociedade no
âmbito público e privado (FAIRCLOUGH et al, 1996 ).
Esse contraponto de posições vai servir de apoio para irônica e longa teia discursiva
tecida pela docente, que elenca situações que sempre desfavorecem a mulher, a partir de uma
moral forjada, que a coloca sempre em situação depreciativa “vagabunda, motosserra, [...]
tudo aquilo que não presta, ela foi muito sem noção, filha da porra” e favorecem a figura
masculina, até mesmo, pelo uso linguístico que marca superioridade “escrotão”, “paizão” ou
pelo uso do diminutivo que também o eleva ou justifica uma traição “um rapaz direitinho”,
“picotezinho diferente”. Ao estabelecer de modo muito irônico tais relações comparativas a
partir de novelas da vida real suburbana, o discurso estruturante da docente buscaria,
novamente por intermédio do elemento da dialética discursiva, não somente reproduzir o que
está edificado por sistemas ideológicos há muito instituídos, mas, de algum modo, cindir a
histórica edificação social brasileira e, ainda, tão atual da Casa Grande e Senzala freiriana
(FAIRCLOUGH, 1996 et al).
Mesmo que esta desigual realidade não ocupe um espaço de debate efetivo e de
discussão com os alunos. No diário de campo do dia 1 de setembro de 2018, a professora relata
que a maioria destas situações levantadas são vivenciadas por mulheres da comunidade- negras
ou pardas, suburbanas, oriundas de uma situação de considerável vulnerabilidade financeira.
Realidade esta vivenciada, inclusive, por algumas das alunas presentes naquela aula. Trazer
esta demanda real para o seio do movimento didático pode constituir como uma prática de luta,
a medida que incita uma prática reflexiva acerca do cotidiano da opressão feminina naquele
contexto social (FAIRCLOUGH, 1996 et al).
A finalidade da fala docente é buscar por via do discurso pedagógico “desnaturalizar”
estas situações vivenciadas por estas jovens, colocando em xeque os lugares ocupados por
essas meninas, a postura e os discursos da sociedade, da família, dos amigos diante destas
circunstâncias referenciadas, que reforçam e perpetuam relações de preconceito, de machismo,
de violência, de misoginia, os quais estão, intimamente, relacionados aos alarmantes números
de feminicídios no Brasil: “a taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3) que
entre as não negras (3,1) – a diferença é de 71%. [...] a taxa de homicídios para cada 100 mil
mulheres negras aumentou 15,4%, enquanto que entre as não negras houve queda de 8%”
(IPEA, ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2018, p. 40, p. 51).
197
A professora retorna ao processo de resolução das cinco questões do exercício e reforça
o conteúdo, usando a memória didática do conteúdo e das leituras já expostas, além da
presentificação dos tipos de argumentos em um dos dispositivos didáticos utilizados: a apostila
sobre tipos de argumento. No nível 1.4, encontramos a resolução das questões da prova:
Quadro 10
Nível 1.4
Marcador
56’’42 –
1’31’’36
Resolução de
exercícios
P1: Então, na primeira questão eu deveria dizer que era dados concretos, provas concretas, levantamentos
estatísticos, né? que é esse tipo, na apostila, ele é, tá aqui, ele é o quarto argumento, argumento de provas
concretas ou princípio , aí eu tinha que dizer, [...] tu colocastes meio certo, mas tu tens que dizer sobre a
estratégia argumentativa, o quê que isso provoca dentro de uma redação. A segunda questão: ainda no
primeiro parágrafo. [...] Transcreva o tópico frasal que sustenta sua tese. Era pegar lá no primeiro
parágrafo e trazer pra cá [...], pegava de lá, coloca as aspazinhas, as reticências, [...] O segundo parágrafo,
agora a gente vai pro desenvolvimento, o segundo parágrafo apresenta dois tipos de argumentos, [...] diga
que argumento é, e quer que eu explique por que é esse argumento, tá certo?
A seguir, selecionamos um trecho da fala da professora a respeito da quinta questão da
avaliação referente à construção da proposta de intervenção e posição da mulher na vida
pública em uma sociedade machista. As duas propostas de intervenção da redação considerada
nota “1000” são dissolvidas pela docente, que, ainda, aproveita o ensejo para fazer mais uma
contextualização sobre a questão do machismo no Brasil:
Quadro 10
Nível 1.4
Marcador
56’’42 –
1’31’’36
Crítica à
condição da
mulher
no Brasil
Modelo
escrita
P1: [...] sobre a proposta de intervenção [...] Ela diz que tem que lançar um projeto de lei, lá, lá, lá, lá…
pow, isso aqui a gente tem, projeto de lei, não tem só projeto, tem leis, tá certo? A gente tem leis
sancionadas, em vigor.
[...] Então o problema não é só, porque também não pode se desmerecer o fato, o projeto de lei tem o seu
valor, tem a sua importância, tem o seu significado, mas não é só escrever o projeto de lei, não é só
aprovar essa lei, mas é fazer com essa lei se cumpra, eu preciso de algum sistema, eficaz, não é só ter
um sistema, eu preciso ter uma eficácia no sistema de vigilância [...] Ei gente! Isso é um problema dessa
solução dela, por quê? Porque quem faz a propaganda? A equipe que gerencia isso, já tem essa
mentalidade histórica, então me parece gente, que se a gente for empurrar goela abaixo essa proposta
de intervenção, não vai funcionar muito não. Onde é que tá a base dessa mudança? É na preparação
dessas pessoas que vão trabalhar no meio da propaganda. É educação. [...] tem que se desconstruir
enquanto machista [...] Tu tás entendendo o que eu tou te dizendo? Traz a prova agora, dentro da
política, do que adianta a gente conseguir eleger uma mulher presidenta se quando chega lá o
governo e o parlamento todo é machista e tira ela de lá? Não adianta.
Nesta questão, a tarefa dos alunos deveria ser a elaboração de um parágrafo
argumentativo, contestando as ideias conclusivas apresentadas pela autora da redação nota
1000, sinalizando as possíveis inconsistências da possível solução da questão-problema (a
violência contra mulher). Trinta e sete alunos fizeram a prova, seis alunos não responderam ao
questionamento, mas o restante se posicionou, embora muito alunos não tenham contestado o
texto base da prova, a maioria apresentou uma possível solução mais efetiva ao problema
proposto. Vejamos um breve mapeamento de respostas sugeridas pelos discentes na avaliação
escrita:
1.“estratégias de fiscalização que garantissem o cumprimento de leis”;
198
2. “criação de um projeto de lei que aumente a punição dos agressores”;
3. “as leis precisam ser colocadas em prática de maneira justa aplicação das leis”;
4. “leis mais severas, rigorosas, rígidas”;
5. “pedir ajuda às mídias para criar campanhas governamentais para a denúncia da
violência contra mulher, crie comerciais de encorajamento”;
6. “visita surpresa na casa dos agressores de mulheres”;
7. “a necessidade da mulher denunciar o agressor e procurar seus direitos, criar
coragem”;
8. “conscientização das mulheres a denuncia-los, a mulher deve se impor”;
9. “deixar de apresentar comportamento machista que dita que as mulheres servem
apenas para o prazer e deveres domésticos”;
10. “a educação é uma ótima proposta”;
11.“criar projetos nas escolas para quebrar essas raízes históricas e ideológicas e assim
nossos pequenos
cidadãos possam ter a mentalidade de direitos iguais”;
12. “aumentar a penalidade como obrigar o agressor a fazer campanha contra a agressão
feminina”.
Um dado interessante das respostas discentes diz respeito à recorrente menção ao fato
da necessidade de denunciar o agressor. Ter coragem de buscar seus direitos, de se “impor”.
Parece que a impunidade deste tipo de crime ainda é muito recorrente. Outro aspecto frisado
em muitos textos está relacionado ao aumento de rigor e de severidade das leis que, de fato,
precisam ser colocadas em prática. Também, chamou atenção à recorrência de um
comportamento machista que conduz a mulher ainda ter que “servir” ao companheiro e está
submissa às situações violentas que parecem fazer parte de um cotidiano muito próximo a
estes sujeitos.
Talvez, por isso, algumas propostas como a “visita surpresa” dos agentes públicos de
segurança aos agressores e uma maior punição atrelada ao fato de obrigar o criminoso a ter que
fazer campanha contra a violência às mulheres. Na ótica dos alunos, tais medidas poderiam ser
mais eficientes para tentar coibir este crime, tendo em vista que as leis existentes, inclusive a
lei 13.104 ou lei do feminicídio, sancionada em março de 2015, ainda não foram suficientes
para frear o crescimento do número de ocorrências81
, lamentavelmente, ainda mais recorrentes,
81 “Dados referentes a 2016 revelam que 4.645 mulheres foram assassinadas no país no ano, o que representa
199
conforme os dados publicado pelo Ipea (2019) sobre o aumento do número de feminicídios no
país. De acordo com o Atlas da Violência (2019), “houve um crescimento dos homicídios
femininos no Brasil em 2017, com cerca de 13 assassinatos por dia. Ao todo, 4.936 mulheres
foram mortas, o maior número registrado desde 2007”.
As estatísticas do estudo conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) sinalizam o aumento do número de
assassinatos e apontam o Pará como um dos três estados mais violentos nesse tipo de crime e
indicam as mulheres negras como o grupo mais vulnerável a esta situação de agressão. Os
dados do Atlas apontam mais um dado alarmante: o fato das vítimas de feminicídio já terem
sido expostas a uma série de outros tipos de violência de gênero, a saber: a violência
psicológica, patrimonial, física ou sexual antes de terem sido uma vítima fatal, coadunando
assim com os posicionamentos dos nossos alunos em relação à necessidade da mulher ter
coragem suficiente para denunciar antes que Inês seja, literalmente, morta (IPEA, 2018, 2019).
No quadro sinóptico 8, há uma atividade de leitura que aborda sobre a estrutura do
texto dissertativo, o contexto de desigualdade e de preconceito enfrentados por homens e
mulheres em relação ao mundo do trabalho. O texto (Anexo D) aborda as diferenças
relacionadas às profissões consideradas “masculinas” ou “femininas”, “leves” ou “pesadas” – e
que implicam diferenciações salariais e de prestígio, que interferem nas escolhas das
carreiras.Esta desigualdade é contextualizada para os alunos, em relação às profissões
informais recorrentes ao campo social em que eles se encontram. A leitura possibilita perceber
não só a “divisão sexual do trabalho” (título do texto), mas o contexto de desigualdade e de
exploração do trabalho das mulheres nas periferias da Amazônia paraense.
Esta denúncia não está limitada ao campo do trabalho informal, os alunos citam o caso do
profissional de Educação Física, o homem trabalharia como personal trainer, as mulheres
iriam para a dança e para as escolas da educação básica. No curso de Pedagogia, eles lembram
que as mulheres predominariam no campo da educação infantil e os homens para o serviço de
orientação, de coordenação, de direção. Em tese, estes setores de trabalho em cada uma dessas
uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Em dez anos, esse número aumentou em 6,4%, de
acordo com os números do Atlas da Violência 2018, estudo conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), órgão do governo federal, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Os estados com as taxas de homicídios mais altas foram Roraima (10), Pará (7,2) e Goiás (7,1). Em relação aos
dez anos analisados, os assassinatos de mulheres negras aumentaram em 15,4%, enquanto que entre as não
negras houve queda de 8%.” Fonte: Fonte: https://www.globo.com/Mulheres-do-
Mundo/noticia/2018/06/assassinatos-de-mulheres-aumentaram-64-nos-ultimos-10-anos-revela-estudo.html
200
áreas apresentariam diferenças salariais consideráveis, os setores ocupados por homens
receberiam melhores salários.
Para além da questão econômica, também, é sinalizada a correlação entre a escolha de
determinadas profissões e a opção sexual das pessoas que terminam por seguir uma dada
carreira. Isto é replicado tanto no campo da formalidade, quanto no campo da informalidade.
Em relação a este aspecto, é interessante atentar para o seguinte trecho em que um aluno da
turma faz o seguinte relato:
Quadro 8 Nível
1.5
Marcador 19’’30
– 38’’54
_____
Posicionamento de
aluno em relação à
discriminação de
gênero no âmbito
profissional
A15. No meu caso eu trabalho como cabeleireiro, e sou dançarino, e quando eu fui falar isso pro meu pai,
que eu queria cursar dança, que eu queria ir pra essa área, ele falou que não era pra eu fazer isso, porque
isso não era uma profissão, aí eu peguei, a gente discutiu feio, aí depois ele acabou aceitando. Aí quando foi
esses tempos agora que eu tava começando a fazer um curso de cabeleireiro, eu fui contar pra ele, aí ele
pegou fez outra onda, aí começou a falar um monte de coisa, queria saber se eu tava virando fresco e tal,
aí eu...[...] Aí ele perguntou se eu tava virando fresco, eu peguei e falei assim: olha, primeiro que não é
porque eu sou dançarino que eu tenho que ser veado, e também não porque eu sou cabeleireiro que eu
vou ter que ser homossexual, aí ele falou, mas isso é profissão pra mulher né?! como ele falou, é mas isso
não é profissão pra homem, não sei o que e tudo mais, aí que foi que eu me estressei com ele, falei é, um
dia o senhor ainda vai ser bancado por mim, por essas duas profissões que trabalho [...] O sonho dele
era que eu fosse militar.
A aula de Língua Portuguesa do EM é um espaço também de construção de identidades
dos alunos e dos docentes. Nessa fase, os alunos precisam fazer escolhas, nesse caso, muitos já
estão inseridos no mundo do trabalho, de modo a aprender um ofício no campo do exercício
informal, não é incomum ver nossos alunos atuando em pequenas lojas do comércio do bairro,
no setor de prestação de pequenos ofícios e, muitas vezes, aprendendo a exercer tais ofícios.
Este exercício profissional não é considerado como um trabalho propriamente dito, até mesmo,
pelos próprios alunos. É o caso deste estudante que já vinha aprendendo estes dois ofícios,
porém para o pai isso não poderia nem ser considerado como “uma profissão”, muito menos
“uma profissão de homem”, porque é considerado “profissão de mulher”, “de veado”, “de
homossexual”.
Para Pennycook (2006, p. 80), “as identidades são performadas em vez de pré-
formadas” e, a partir das ideias defendidas por Butler (1990), o autor considera que esta
performatividade pode ser entendida como a maneira de desenvolver “atos de identidades” em
um contínuo processo de performances sociais e culturais, tendo em vista que os sujeitos se
constroem e se constituem no discurso (idem, p.80, 81). Nesse sentido, o posicionamento do
aluno aponta para o conflito, o embate de concepções, o conflito geracional, o preconceito de
gênero relacionado ao campo de atuação profissional neste contexto social em que ele encena
suas profissões.
Consideramos que estes atos de identidade configuram-se nos posicionamentos,
decisões e situações de embate, de enfrentamento, como este vivenciado por este sujeito em
201
que o próprio genitor se opõe às escolhas do filho e propõe a ele que siga uma profissão, em
tese, masculina e bem remunerada: “militar”: “eu me estressei com ele, falei é, um dia o
senhor ainda vai ser bancado por mim, por essas duas profissões que trabalho [...] O sonho
dele era que eu fosse militar”. Nesse caso, a aula de Português do EM configura, como arena
de letramentos, para a construção de tensões, de conflitos, de embates socioideológicos, que
serviriam, ainda, como palco para a (re) configuração destes atos de identidade, de tomada de
posição, de vislumbrar possibilidades para a vida em cenários futuros que levem em
consideração outras percepções diante da vida, do trabalho, das relações familiares.
Adiante, a professora segue a aula, direcionando à exposição sobre a estrutura dos
parágrafos do texto. Ela prossegue atrelada à discussão da polêmica em torno das carreiras
consideradas masculinas e femininas. Pode-se perceber que o tema levantado incita os alunos
que sempre retornam aos exemplos do seu cotidiano. A docente volta ao texto, à tessitura do
texto dissertativo, à construção dos argumentos e à necessidade de atrelar leitura, repertório,
estrutura e a importância de um posicionamento crítico:
Quadro 8
Nível 1.6
Marcador
38’’56 – 1’55’’35____
Importância
leitura
crítica
P. a gente tem que olhar [...] ler com olho clínico, tanto pra temática quanto para a estrutura. Porque
quando eu percebo como isso é estruturado, tá? Quando eu tenho conteúdo pra poder debater, pra poder
explorar, então fica fácil, pra eu fazer, tá? [...] não é só um conteúdo de reprodução, é um conteúdo
crítico, por isso que a gente faz a entrada pelo debate, tá? Leia esse conteúdo com um olhar reflexivo,
informativo, [...] é um texto que eu leio para informar e refletir, porque eu não vou só engolir a
informação [...] não, nós somos seres pensantes, tá? [...] porque daqui a gente vai pra universidade, tá?
Acredita-se que a compreensão do aspecto estrutural, articulado ao repertório temático,
facilitaria, consideravelmente, o caminho para a apropriação da escrita de um texto
dissertativo-argumentativo. Chama a atenção para a ênfase relacionada ao teor crítico
necessário ao debate instaurado, não basta informar, é necessário estimular a reflexão, até
mesmo, porque o destino acadêmico universitário está vinculado a esta demanda. A escola
precisaria, então, ser o palco privilegiado do pensamento crítico, analítico, reflexivo.
Para finalizar a seção, selecionamos mais dois recortes: o uso de modalizadores e a
natureza do argumento que deve ser construído em um texto dissertativo e a especificidade da
construção da conclusão da redação do ENEM.
202
Quadro 8
Nível 1. 6
Marcador
38’’56 –
1’55’’35
___
Importância
leitura
crítica
P. Vamos pegar enfim, a conclusão, [...] Então no último parágrafo, a gente vai bater lá pra inquietação do
Caique no primeiro parágrafo, entendeu, como é que se constrói? [...] Esse artificialismo mostrando que o
autor não concorda com essa divisão, que divide as carreiras masculinas e femininas ... muitas vezes,
marca isso [...] Quando ele coloca muitas vezes, ele tá querendo dizer que há exceção, [...] Esse muitas
vezes, ele vai resultar no que nutri o argumento do Caique [...] Porque na minha família tem pessoas que
exercem essa função e não atende a essa expectativa que tá no, ah. Mas presta atenção, a família do Caique é
uma família entende? [...] porque a construção do argumento, ele só vai se fortalecer a partir do momento
que [...] o meu argumento é pertinente, ou seja, que ele é fortalecido por outros fatos que eu comprovo,
tá entendendo? [...] Tu tens que ter esse bom senso, senso crítico, de que o teu ponto de vista, ele é um
ponto de vista que se deve considerar, partindo de como você vai defender, mas ele não é verdade
absoluta... se a temática é um problema, o teu argumento ou o teu ponto de vista, ele precisa, ele vai ser
uma solução para esse problema, [...], e são nessas expressões que a gente vê muitas vezes,
prioritariamente, é possível que, provavelmente, isso é muito importante... o nome disso é modalização
O texto faz referência à Enfermagem como uma profissão considerada “feminina”. Um
dos alunos da turma discordou desta informação, ao longo da aula, ficou bastante incomodado
com o encaminhamento da leitura e citou o exemplo da sua família, pois vários integrantes
seguiam a profissão, tanto homens, quanto mulheres. Por isso, a interpretação dos
modalizadores do texto é alinhada ao posicionamento do aluno e à construção do argumento,
que precisa ser pertinente, coerente e, embora apresente o ponto de vista do produtor, está
longe de ser uma “verdade absoluta”, por isso a docente sinaliza a importância do uso de
modalizadores no processo de construção das redações. Outros pontos são enfatizados, a saber:
a necessidade de aprofundamento da leitura para a construção do repertório temático, a
importância da boa, velha e reiterada estrutura do texto dissertativo - introdução,
desenvolvimento, conclusão -, a necessidade de evitar radicalismos, dados pessoais,
generalizações, crenças e apelo moralista.
No quadro sinóptico 11, é solicitada a primeira tarefa de produção de redação. A escolha
do tema para a produção de texto foi motivado por um acontecimento que ocorreu na sala de
aula do terceiro ano do Ensino Médio. O fato ocorreu com a turma da tarde, o fragmento
abaixo relata o ocorrido e a gênese do redirecionamento da atividade de recuperação a ser
proposta pela professora:
Quadro 11
Nível 1. 1
Marcador
0’’00 -
17’’15
___
Apresentação
da proposta
de produção
textual.
P1: A minha recuperação ia ser outro papo, inclusive eu tava com o material pra fazer a recuperação.
Mas quando eu entrei pra dar aula, eu encontrei essa situação aqui da sala de aula, e aí eu pedi pra Talia
que é da 02 da tarde, pra que ela fosse até a direção e comunicasse o que tava acontecendo, [...] a gente tá
com a porta aberta, o ar não tá funcionando [...] às 14:00h isso aqui tá um inferno, [...] Então tava muito
calor, tava muito escuro, e aí ela foi lá falar [...] Segundo, olha o que eu vou te dizer, a gente vai já ver
isso aí, os operadores e modalizadores, segundo eles [...] que era pra gente dar o nosso jeito pra cá,
porque quem tinha roubado as lâmpadas teria sido um aluno da tarde, e que aconteceu a tarde
mesmo, que a gente viabilizasse uma solução, aí ela até sugeriu; ou vocês ficam no escuro ou vocês vão
pra aquele prédio lá de trás. [...] nós estávamos no calor e no escuro, e aí eu peguei e olhei pro
material da recuperação, inviável, não tem como, mas a recuperação precisa ser feita, o que foi que eu
fiz? Nós estamos, e aí eu já tou aqui introduzindo a recuperação de vocês, [...] nós estamos no meio
de um conteúdo, que tá tratando a dissertação argumentativa, [...] é um conflito, diante desse
conflito você precisa se posicionar, ou seja, formular uma tese, e a partir daí desenvolver para no final
propor uma solução.
203
Em relação às condições materiais (infraestrutura) dos estabelecimentos de EM no
Brasil, o Censo Escolar INEP/2015 mostra que apenas 23% das escolas possuem a
infraestrutura adequada prevista na meta 7 do Plano Nacional de Educação, PNE, Lei 13.005
(2014-2024). O relatório do TCU destacou as disparidades regionais relacionadas à
infraestrutura, por exemplo, a região sul, apresenta 36% das unidades de EM com todas as
condições previstas no PNE. Enquanto que as escolas da região Norte contemplam somente
5% desses itens. O TCU considerou a infraestrutura precária para atender a meta parcial de
escolarização líquida de jovens de 15 a 17 anos projetada para o ano de 2016, exatamente, o
ano em que estes dados foram gerados em uma sala de aula de escola secundária, pública,
situada no coração de um centro de tensão social da região metropolitana de Belém-PA
(BRASIL, 2014).
O roubo de lâmpadas usadas em uma sala de aula da escola denota o extremo nível de
vulnerabilidade em que estão circunstanciados estes sujeitos da pesquisa; diante do “conflito”
de ter que cumprir uma agenda institucional que estipula um período avaliativo; diante do
“conflito” de ter que ensinar uma dissertação argumentativa para uma avaliação externa, em
uma sala de aula, que mais parece “um inferno” - quem sabe um porão do Brigue Palhaço?-
escura e quente. Diante do “conflito” e da impotência da escola em responder a um reiterado
problema: o roubo das lâmpadas, os atos de vandalismo e de depredação do prédio escolar
efetivado pelos próprios alunos, a falta de manutenção do aparelho de ar condicionado, a
bomba queimada, a falta de água, a falta de infraestrutura do prédio. O conflito tornou-se o
tema da produção textual para a atividade avaliativa “formular uma tese, e a partir daí
desenvolver e propor uma solução”. A docente começa, então, a expor a situação.
204
Quadro 11
Nível 1. 2
Marcador
18’’00 -
36’’50
___
Apresentação
da proposta
de produção
textual.
P1: qual é a realidade que nós temos? Nós estamos diante de uma sala de aula que tem 6 bocais e esses 6
bocais, eles estão sem lâmpada, essas lâmpadas, elas foram, elas sumiram, elas foram roubadas pelos
próprios alunos [...] olha só, as lâmpadas, elas foram compradas, elas foram colocadas aí [...] é a 3º vez que
isso acontece. Quando o aluno me informou eu disse, gente pelo amor de Deus, mas pra quê tirar a
lâmpada? Aí o menino daqui da turma disse assim, exatamente, ele falou, pra vender, eu disse, mas quem é
que vai comprar uma lâmpada sem o lacre lá daquela, daquele negócio? Aí ele falou assim; P1, se bater na
minha porta, eu compro. [...] Aí ele disse: porque essa lâmpada é cara. [...] Aí, olha só, nós vimos um
texto, recentemente do Renato.... Não, era um texto do Renato Janine.... Ninguém lembra? Era macro e
micro corrupção do Renato, era? [...] Como é que a gente resolve isso? Qual é a solução pra isso? A culpa
é de quem? É do aluno? É da direção? É do sistema como um todo? [...] fiquei muito chateada, e mais
chateada ainda eu fiquei com a indiferença dos alunos, eu perguntei, o que vocês vão fazer? Como
assim? Vocês vão lá pro andar de cima, pro calor, pro barulho, [...] mas essa sala de aula aqui se
comparada às outras salas, elas ainda têm algum privilégio, ela é climatizada, ela é fechada pra tentar
vedar o barulho [...] destinada prioritariamente para o Ensino Médio, especificamente o 3º ano, porque a
escola como um todo decidiu em uma reunião que o 3º precisa de uma estrutura básica pra se estudar, e aí
tu vais perder aquilo que a gente conquistou com luta, eu lembro que foi em 2014 que a gente
quebrou o pau dentro dessa escola pra conseguir a sala do 3º todas com central de ar, eu lembro que
eu me confrontei com os professores do Ensino Médio, do Ensino Fundamental, que eles diziam que
tudo agora era pro Ensino Médio, não é pro Ensino Médio, pelo menos pro 3º ano, e aí o que vai
acontecer? [...] Então, basicamente o texto escrito, ele vai passar pela mesma formatação de um texto
dissertativo argumentativo, eu tenho um conflito, tá? Eu tenho um conflito, P1, [...] Eu não preciso me
focar no roubo da lâmpada, mas eu preciso entender que a temática, ela permeia essa depredação do
prédio, da estrutura, tá?
A docente faz uma longa fala sobre o acontecimento, os possíveis motivos do roubo, da
questão da corrupção micro e macro de um texto lido em sala de aula (memória didática), da
indiferença dos alunos diante da situação de conflito. Ela rememora que aquele espaço, a sala
de aula do terceiro ano do EM (fechado e climatizado), foi resultado de um processo de “luta”,
uma conquista de alunos e professores do terceiro ano do EM. Por conta disso, a “indiferença
dos alunos” é motivo de profunda angústia e incômodo para a docente. Tendo em vista estas
circunstâncias, ela apresenta a problemática da depredação do prédio escolar.
Quadro 11
Nível 1. 2
Marcador
18’’00 - 36’’50
___
O conflito, a depredação do prédio, a depredação da tua escola, é conflituosa por conta da defesa,
do posicionamento do culpado, é aqui que entra o conflito, a culpa é de quem? [...] por que isso não
acontece nos outros prédios públicos? Que as lâmpadas estão lá, o prédio é tão público quanto esse
daqui, mas de repente a gente não percebe as lâmpadas sumindo, me parece que a gente tá num momento
em que o aluno se sente à vontade de se posicionar dentro da casa da mãe Joana, por quê? Por que
o aluno se sente à vontade pra tocar o terror? Pra tu teres uma ideia, existem algumas coisas que
eles fazem por puro prazer de desequilibrar o ambiente como por exemplo, soltar bombas, [...],
mas pera lá, esse espaço, ele me deveria ser um espaço sagrado, porque imagina, [...] ainda que seja uma
escola sucateada, depredada, mas é a escola que eu tenho, porque tem aluno que não tem essa
escola, porque tem criança agora em cima do lixão do Aurá.
Aliada à falta de infraestrutura do estabelecimento do ensino, é constatada, ainda, uma
triste realidade: a escola como palco de depredação por parte dos alunos que agem como se o
espaço fosse “a casa da mãe Joana” e, em decorrência disso, “tocam o terror”, “soltam
bombas”, “roubam as lâmpadas”, quebram carteiras, riscam as paredes, dentre outras ações
de depredação e de delito cometidas nas dependências do estabelecimento escolar, embora este
205
bem cultural pertença a eles e a toda comunidade que cerca a escola. Em seguida, a orientação
geral para a construção do texto é direcionada:
Quadro 11
Nível 1. 2
Marcador
18’’00 -
36’’50
___
Modelo de
escrita
então, a primeira coisa, tem a parte escrita, é o texto, tu vais ter que construir uma tese dentro desse
contexto, tá? Por que isso acontece? Qual é a origem disso? Tu vais ter que defender isso aí, pra ti,
qual é a verdadeira razão disso acontecer? [...] tu vais ter que defender com argumentos, tá? Tu
podes inclusive acrescentar no 1º parágrafo, isso acontece por uma indiferença da direção e do aluno,
tu vai juntar lá no parágrafo, desenvolver a questão do aluno, no outro a direção, tu podes jogar 3,
tu podes dizer que é o aluno, a direção e o sistema como um todo, a questão do sistema educacional,
como é que é vista, não sei como tu vais fazer, tá? Tu podes colocar, tu podes defender a tese, dizer que o
aluno é totalmente vítima, o aluno não tem nada a ver com isso, ou tu podes defender a tese e dizer que o
aluno é completamente o vilão, [...] Então isso, olha como tu vais ver isso aí, é um abismo de
possibilidade, é um abismo de possibilidade, mas eu quero que tu tomes isso [...] é um problema teu,
porque quem tá agora no escuro és tu, [...] literalmente tu tás no escuro, entende? [...] E no final, propor
soluções.
Este é o fragmento em que a professora faz a precisa orientação para a produção textual
em sala de aula tendo em vista a conjugação do modelo de escrita da redação do ENEM, a
estrutura sugerida perpassa pela introdução - lugar da tese-, desenvolvimento -organização dos
argumentos-, conclusão -proposição de soluções ao conflito- já apresentada e associada ao
conhecimento das tipologias, tema reiterado ao longo do percurso escolar, presentificado por
intermédio de diferentes dispositivos ao longo do episódio - livro didático, anotações do
caderno, textos, folhas avulsas, exercícios- e elementarizado por certos aspectos selecionados
como objeto de estudo específicos em aulas anteriores: tópico frasal, tipos de argumentos,
estrutura da redação do ENEM.
Tudo isto aliado ao problema local que atinge diretamente aos alunos daquele terceiro
ano do EM: a depredação, o sucateamento, a falta de estrutura da sala de aula da escola
pública, secundária, que culmina na solicitação de um dado modelo de escrita ligada aos fins
de atendimento a uma exigência de um aparelho docimológico externo à escola e exigido
como requisito obrigatório para o ingresso em instituições de ensino superior e em vários
empregos do funcionalismo público, justificando, portanto, a perpetuação deste objeto de
ensino na aula de Português no EM.
A implementação desta prática de ensino parece vinculada a uma dinâmica de
transmissão intensiva do modelo, leitura de textos para a construção de repertório necessário à
elaboração da redação escolar, ao mesmo tempo, que intenta fazer o aluno escrever sobre a
situação de degradação da escola, a fim de atender a um fim específico e situado no contexto
escolar em questão.
A encenação didática não só reporta a formulação de escrita como redação “recorrente
dissertação escolar” a que se refere Gomes-Santos (2010), circunstanciada ao trabalho com os
tipos textuais - narrativo, descritivo, dissertativo-, ligada à ideia de clareza, de precisão, de
206
avaliação (GOMES-SANTOS, 2010), em que a escrita de textos e os fins interativos são
favoráveis a um exercício de um modelo de escrita que precisa ser apropriado, para fins
institucionais específicos e, em virtude de uma agenda local também, pois é preciso que os
alunos tenham um bom desempenho para tentar um lugar no nível superior.
De acordo com Batista (1997), a aula de português não é realizada somente em função
do seu objeto, ela está subordinada às condições e constrições de natureza histórica, social,
institucional em que o evento escolar ocorre. Por conta disso, cabe lembrar que o dispositivo
didático está alienado a um contexto socioinstitucional específico – a escola-usina82
- que
intenciona preparar os discentes para a redação de vestibular, de ENEM e demais concursos e
avaliações que utilizem este instrumento avaliativo, prometendo aos mesmos a aprovação, a
partir da devida apropriação deste saber redacional-escolar.
Por fim, os discentes são alertados novamente sobre a importância de estudar, da
importância pessoal e social deste ingresso no ensino superior, o que nos reporta ao
compromisso de tentar “fazer educação” na comunidade e, de certa forma, se associa à própria
história de vida da docente.
Quadro 10
Nível 1.4
Marcador
56’’42 – 1’31’’36
Incentivo
aos estudos
P1: [...] dedica esses dois meses da tua vida, pra se preparar pra essa prova, começa a te olha no
espelho e dizer assim: eu estarei em janeiro na UFPA. Aquele corredor é meu. [...] eu fiz de tudo pra
estar aqui, e aqui estou, a tua vida vai mudar, não é tudo, mas ela vai mudar, tuas amizades, tua
mentalidade, tuas relações sociais, vai ser tudo diferente, vai ser tão bacana, não vai lá pra beira
do rio (risos) só não deixa de parar de estudar, paciência, a gente tá fumando toda hora aqui essa
fumaça de ônibus, mas assim, volta pra cá,[...] conclui teu curso e volta pra comunidade, aqui é
teu gueto, constrói tua casa, compra teu sítio, compra tuas coisas, mas volta pra comunidade, pra
limpar o pé de muitas crianças que estão atoladas na lama, é tu que vai fazer a diferença.
Nesse sentido, a escola seria a instituição social responsável pelo ensino da variante
padrão, o aluno seria aquele que deveria buscar plena dedicação à preparação para os exames
finais, o professor seria o representante formal encarregado de levar a sua audiência a
apropriação de tal variante, que estaria diretamente relacionada à progressão social do
indivíduo, ao desenvolvimento de habilidades cognitivas mais complexas, à credencial de
circulação destes sujeitos por outras instituições letradas, como a universidade que lhes
proporcionaria a continuidade aos estudos e à profissionalização e futuro ingresso no mercado
82 A partir das contribuições teóricas de Tardif e Lessard (2005), sugerimos a expressão escola-usina em nossa
dissertação de mestrado e para fazer referência a um contexto típico da realidade brasileira, em especial, da
chamadas escolas modulares, caracterizada por: (i) tratar grupos numerosos de indivíduos, ao longo de vários
anos, conforme um padrão uniforme para alcançar resultados parecidos; (ii) subordinar estes sujeitos a “regras
impessoais, gerais, abstratas, fixadas por leis e regulamentos” (idem, p.24); (iii) impor um “sistema de vigilância,
de punições e recompensas” (idem) que extrapola os limites dos conteúdos a serem assimilados; (iv) o trabalho
escolar- executado pelos agentes escolares: alunos, professores, inspetores- é padronizado, dividido, planificado
e controlado (TARDIF e LESSARD, 2005; FERREIRA, 2008).
207
de trabalho formal, em tese, isto implicaria uma dita ascensão social, política, econômica.
Mesmo não sendo condição suficiente, o conhecimento dessa língua prestigiada, aliada a
outros saberes, possibilitaria a legitimidade necessária para o acesso e permanência do
indivíduo em instituições sociais, como a supracitada universidade, as repartições públicas e a
própria escola (KLEIMAN, 1995; SIGNORINI, 2006).
Abaixo, o quadro 25 apresenta um resumo de uma provável mudança de vida do aluno
que possivelmente ingressaria na universidade e a expectativa do retorno social, profissional,
político, cultural para o local de origem e o papel de sujeito agora empoderado para a
comunidade.
Quadro 25 - Universidade e comunidade: mudanças de vida e compromisso a assumir.
Mudanças resultantes do ingresso IES Retorno para comunidade
Amizade
Mentalidade
Relações sociais
Condição: estudar e ingressar na universidade “eu fiz de
tudo pra estar aqui”.
Gueto
Construção da casa
Compra do sítio
Compromisso: “limpar o pé de muitas crianças que
estão atoladas na lama”
Condição: fazer a diferença
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
5.9 “A SALA FOI SAQUEADA E [...] O ACUSADO É O ALUNO DA INSTITUIÇÃO, DE
QUEM É A CULPA?”: OS POSICIONAMENTOS DE ALUNOS EM RESPOSTA ÀS
PRÁTICAS EDUCATIVAS EM UM TERRITÓRIO DE EXTREMA VULNERABILIDADE
SOCIAL.
Muito embora não seja o foco desta pesquisa abordar, de modo mais acurado, o polo do
aluno e de demais agentes escolares. Nesta última seção do capítulo, buscamos descrever
dados dos posicionamentos dos discentes em resposta à prática docente ora realizada. Por
conta disso, são apresentados recortes das atividades de produção escrita e de produção oral do
episódio 2 e alguns dados obtidos em entrevistas e por via dos questionários aplicados a
disciplina Língua Portuguesa no EM.
Aproveitamos o ensejo para trazer alguns recortes de posicionamentos de outros
sujeitos envolvidos no desenrolar da prática escolar, como os representantes dos coletivos
culturais e dos gestores escolares entrevistados por ocasião da pesquisa de campo. Esta última
inserção de dados tem como finalidade tentar compreender pelos olhares destes sujeitos os
208
significados do trabalho desenvolvido pela professora de Português neste contexto social, ora
marcado por extremo processo de vulnerabilidade social, ora marcado pelas múltiplas e
inúmeras produções culturais em franco florescimento pelas ruas e becos do bairro.
Nesse sentido, acredito que fazer referência à existência das Associações de Moradores
e da Associação de Feirantes do bairro seja pertinente, porque expressa a importância das
ações históricas de existência e de resistência destes trabalhadores no âmbito do processo de
ocupação da área e do processo de transformação desta terra encharcada de vida, de cultura, de
trabalho e de história em território de habitação, de trabalho, de produção econômica, política,
artística, ideológica destas populações83
que resistem para transformar e ocupar lugares sociais,
historicamente, dominantes, como a escola secundária e as instituições de ensino superior.
A seguir, apresentamos as escritas de três alunos, relacionadas à proposta de produção
textual sobre a depredação do prédio escolar e articulada pela professora, para que pudessem
refletir sobre o conflito local, literalmente, vivenciado pelos agentes escolares e anunciado no
título desta seção. Esta atividade de produção é um ponto de confluência entre as demandas
formativas já supracitadas neste trabalho: uma voltada ao atendimento das demandas locais ou
vernaculares que busca atender às necessidades da comunidade; outra demanda dominante ou
institucionalizada que procura atender às necessidades do ENEM. No processo de constituição
desta última, buscamos atrelar o ponto de fricção entre esses dois pontos nevrálgicos da
investigação.
Assim, buscamos observar como eles respondem a este processo de ensino de escrita e
tentam dar conta de uma dupla demanda:
(i) o atendimento a uma obrigatoriedade institucional e docimológica - interna e externa
-, que engloba a realização da recuperação estipulada pela escola, bem como o
ensino da dissertação escolar para o ENEM;
83 Alguns exemplos destas várias iniciativas comunitárias são as ações realizadas pelos integrantes do Ponto de
Memória em conjunto com o Museu Emílio Goeldi que promovem eventos, debates e apresentações das
manifestações culturais do bairro. Os grupos de Pássaros juninos, de quadrilha junina, que ensaiam e apresentam,
em especial, na quadra junina nas escolas, terreiros, nas festas de rua dos bairros e em concursos diversos. Os
representantes do teatro popular, educadores e artistas em parceria com as igrejas do bairro e adjacências
realizam anualmente a encenação da Paixão de Cristo pelas ruas do bairro de Canudos, evento que atrai cada vez
mais e mais participantes e visibilidade na mídia local. Nos dias 18 e 19 de março de 2017, foi realizada a I
Conferência Livre de Cultura da Terra Firme, em que vários segmentos tiveram a oportunidade de debater,
discutir, propor e apresentar suas ações de trabalho. A programação do evento demonstra a diversidade de
atividades culturais do bairro: Mesas de debate: A Terra Firme e os equipamentos culturais que queremos e A
sustentabilidade das manifestações culturais na periferia. Programação cultural: banda 3 ML, JP tubarão, Boi
Marronzinho, Bloco firme, show de encerramento, com Adilson Alcântara, Erick Monteiro e hip hop.
209
(ii) a resposta a uma demanda local interligada aos problemas emergentes do contexto
de encenação da prática de ensino, a falta de infraestrutura do prédio, a indiferença
dos discentes em relação ao problema, a responsabilização dos possíveis “culpados”
e as soluções propostas à resolução do conflito, literalmente, instaurado.]
Abaixo, é possível encontrar os três textos de alunos da turma observada e digitamos
para melhor visualização das redações:
Texto 1. Depredação da escola : produção textual 1
A degradação de objetos na rede pública de ensino vem se tornando uma problemática constante. Tal problema não afeta
somente os indivíduos vitimizados, em relação ao ensino, como
também nos leva a refletir nas causas do problema. Existe uma
significativa escassez quanto a conscientização dos alunos ao bem público, assim como o descaso persistente da escola
pública.
Infelizmente, observa-se que padrões éticos se tornaram
objetos de ensino cada vez mais raros no meio social. Ainda assim, a escola é um dos meios de aprendizado quanto aos
padrões morais. Porém, roubos de lâmpadas, quebrar mesas e
cadeiras e o detrimento da escola, em termos gerais, são reflexos
de um aluno que não teve uma conscientização do que, de fato, lhe pertence. Ainda pior, tal aluno não tem certa ideia de
altruísmo, o que lhe leva, por diversão ou outros fins, a cometer
tais infrações. Não se trata apenas de roubo de lâmpadas, mas
sim da escuridão intelectual e moral em que muitos convivem. Certamente, também, a pouca importância dada ao ensino
público torna difícil que os próprios alunos deem genuíno valor
a escola. Afinal, qual o grau de valorização um aluno dará a
escola pública quando até as autoridades superiores a desvalorizam? Tal aluno pode até mesmo criar, erroneamente,
uma ideia de deteriorar aquilo que poucos dão valor.
Portanto, a falta de conscientização e o descaso em relação
ao ensino público são fatores que podem, com esforço, ser resolvidos com campanhas e movimentos que promovem uma
idealização positiva da escola pública, como também
conscientizar que a escola pública é um bem de todos e que,
cujo o dever, é cuidar. Assim, haverá significativas melhoras no bem público, feita por todos.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
(I) Escrita como redação do ENEM: O texto está
estruturado em molde típico da redação escolar,
organizado em quatro parágrafos em que é possível
perceber indícios de introdução, desenvolvimento e
conclusão.
(II) O primeiro parágrafo apresenta a tese proposta pelo
aluno sobre a recorrente degradação da escola pública
devido à falta de consciência do aluno e do descaso
delegado à escola.
(III) O segundo parágrafo discorre sobre a postura do
alunos sinalizada, pois muito vivem em uma “escuridão
intelectual e moral”.
(IV) O terceiro parágrafo aborda a ideia de que a
desvalorização do aluno está articulada ao descaso das
autoridades em relação ao devido valor que deveriam
dar ao patrimônio público. Ambos – alunos e
autoridades - não valorizam a escola pública. Não são
apresentados dados estatísticos, nem depoimentos, nem
números para fundamentar as informações apresentadas.
(V) O quarto parágrafo inicia com conectivo conclusivo
e apresenta duas possíveis soluções para os dois
problemas apontados: campanhas e movimentos não
especificados para conscientizar sobre a necessidade e o
dever de ter zelo com a escola pública.
210
Texto 2. Depredação da escola: produção textual 2
9
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Texto 3. Depredação da escola: produção textual 3
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Basicamente, os três textos atendem aos propósitos da demanda institucional e avaliativa,
instituída pelo aparelho escolar local, tendo em vista que o aluno, apesar de todas as
dificuldades impostas, consegue responder ao questionamento proposto pela professora sobre o
conflito por eles vivenciado. Quanto aos sentidos de uma possível apropriação do protótipo
textual dissertativo – conteúdo obrigatório do programa disciplinar, didatizado naquele
(I) Escrita como redação do ENEM: O texto está
estruturado em molde típico da redação escolar título, que
sugere uma solução ao conflito instaurado e quatro
parágrafos em que é possível perceber indícios de
introdução, desenvolvimento e conclusão.
(II) O primeiro parágrafo apresenta a problemática do
abandono do governo e da depredação dos prédios escolares
feita por parte do alunado. E lança o questionamento-tese
para encontrar os possíveis responsáveis
(III) O segundo parágrafo expõe o drama vivenciado pelos
alunos em função da sobrevivência, devido à negligência de
direitos básicos, a comunidade clama por alguma ajuda ao
cometer este ato ilícito nas dependências da escola.
(IV) O terceiro parágrafo aborda sobre a dificuldade de
gerir e reconhece o esforço ora empreendido pelos gestores
para controlar uma escola de grande porte,
(V) O quarto parágrafo aponta uma única e viável solução:
o diálogo com a família e este aluno que saqueia a escola, o
que sinaliza a necessidade de dialogar mais com a
comunidade.
(I) Escrita como redação do ENEM: o aluno tenta seguir os
moldes propostos, não apresenta um título, mas faz três
parágrafos que tentam reproduzir a clássica fórmula
supracitada. A escrita apresenta muitos desvios do padrão.
(II) O primeiro parágrafo lança os dois questionamentos
centrais que serão respondidos ao longo do texto: o sistema ou
os alunos seriam os responsáveis pela degradação da escola
(III) O segundo parágrafo tenta responder aos dois
questionamentos iniciais, dando enfoque à figura do aluno no
sentido de justificar o porquê do roubo.
(IV) O terceiro parágrafo expõe uma possível solução que
estaria relacionada a uma reforma da estrutura escolar. A
solução recairia essencialmente na gestão escolar, que deveria
promover uma melhor interação com a comunidade escolar.
Por vezes os problemas estruturais de uma escola é relacionado aos seus alunos. Será que a culpa é só do aluno? Não seria de
todo um sistema? Esse aluno que por vezes é julgado pode ser
o mesmo que não tem atenção e nem espaço dentro de casa melhor que julgar esse aluno, é chamar sua atenção da melhor
forma possível para saber o que levou a cometer tal ato.
Sabemos que a estrutura das escolas públicas não é a melhor e
muito menos a mas confortável, isso incomoda muito e nem todos os alunos tem a conciencia de ir questionar o porque,
alguns quando questionam nem são atendidos pela própia
direção, os demais vendo isso tem atitudes de ir e destruir com
o que já estava “destruído”, isso não acontece só por sua vontade, mas por vários problemas existentes que na maioria
das vezes vem de sua base, sua estrutura mental, ou até mesmo
da própia direção da escola por não ouvir os alunos.
Diante do quadro exposto, é preciso uma reforma na estrutura escolar relacionada a direção, precisamos de uma direção,
precisamos de uma direção onde os alunos tinham espaços, um
envolvimento com os pais é de suma importância, quem sabe
assim podemos cuidar melhor da escola.
A Solução
Não há de como negar o quanto as escolas públicas estão
abandonadas pelo governo, e que os alunos não aproveitam o mínimo o que tem, e fazem o que bem querem, há um caso de
uma escola, cuja a sala foi saqueada e que o acusado é o aluno
da instituição , de quem é a culpa? Da gestão escolar ou do
aluno? Como será a vida deste aluno? Passa necessidade em casa?
Culpamos os pais? Não, vemos e estamos presenciando o nosso
país com recursos mínimos, e nos perguntamos, cadê nossos
direitos? Com o desespero ela falta, vem pensamentos de onde irei buscar um mísero trocado? Venha solução furtando
lâmpadas e outras coisas? Para que tenha a sobrevivência
necessária.
Seria culpa da gestão escolar? Sempre culpando a escola, mas não vemos o esforço que fazem para controlar uma escola, mas
que não é reconhecido seu trabalho pelos alunos, um trabalho
difícil de se lidar, mas os gestores fazem o máximo para manter
a escola na rédea. Assim para melhorar a situação do descaso é o diálogo com
os responsáveis e com os alunos, para que assim deixe de ser
um caso e ser exemplo por aí a fora.
211
bimestre- com enfoque especial ao ensino do modelo escolar institucionalizado pelo livro
didático, ENEM e, consequentemente, pelo MEC.
Pode-se dizer que o alunado, apesar das limitações de necessidades básicas, como a
iluminação da sala de aula e das limitações impostas pelo próprio modelo avaliativo que,
também, responde ao conflito local e ao intenso e extenso trabalho de exposição do conteúdo
exercido pela docente pertinente à necessidade de apropriação do formato ora didatizado, a fim
de dar conta do que a professora considera como “garantir o mínimo para entrar, garantir o
acesso”.
No que diz respeito a uma demanda alienada aos conflitos cotidianos vivenciados por
estes sujeitos, nesta instituição, arena de disputas de letramentos, de linguagens, de poder, de
disputas por legitimidade epistemológica, conceitual, histórica e, sobretudo, de resistência e de
sobrevivência destas populações, destacamos alguns aspectos sinalizados pelos discentes do
terceiro ano do EM em suas escritas escolares sobre as condições daquela conjuntura: (i) a
depredação efetivada pelos alunos, o descaso e abandono por parte do poder público
concorrem para a instauração de um caos diário vivido pelos agentes escolares; (ii) a
necessidade do estado assumir a responsabilidade de gerir e de zelar pela escola como um
espaço que disponibilize o básico necessário ao funcionamento de uma instituição educacional;
(iii) a percepção dos discentes terem a consciência de cuidar e de preservar a escola e, ao
mesmo tempo, exigir do poder público que conceda à atenção necessária em termos de
propiciar uma estrutura básica de manutenção dos prédios e de condições de salubridade aos
sobreviventes dos limbos escolares paraenses ; (iv) a tentativa de justificar os atos de
depredação feitas pelos alunos percorre as escritas discentes, denunciando que eles fariam tais
“saques” em função das condições de abandono, de (sobre)vivência, de marginalização, de
fome e de pobreza a que estão assujeitados; (v) o reconhecimento dos alunos em relação às
dificuldades enfrentadas pelos agentes escolares –gestores, professores, agentes de pátio- no
sentido de gerir e de manter “a escola na rédea”, para que não se instale o caos total; (vi) uma
maior proximidade, diálogo e interação entre instituição escolar - eles sinalizam, em especial, a
gestão/direção- e a comunidade escolar - responsáveis, alunos - parecem ser elementos
imprescindíveis, para que possíveis soluções e ações sejam delineadas e voltadas às ações de
manutenção do bem público, institucional, simbólico da maior agência de letramento escolar
do bairro.
Nessa perspectiva, a efetivação da atividade parece alcançar o objetivo de ensino
proposto pela professora, ilustrados nos recortes de entrevistas supracitados na seção 4.2 deste
capítulo, isto é, a docente busca fazer educação, fazer com que o aluno tenha uma visão mais
212
crítica sobre a realidade que o circunda, perceber a língua como instrumento de poder para
compreender e propor transformações sociais a estas situações vivenciadas no cotidiano da
comunidade.
Não obstante, a docente reconheça que aquela primeira etapa de incitar ao alcance da
leitura – conscientização - ação- reflexão acerca da própria realidade é a parte mais
significativa do processo educativo e isso é o que ela intenta empreender nesse contexto de
atuação profissional, marcado por um processo de extrema vulnerabilidade social.
Ao mesmo tempo, o trabalho docente precisa ser articulado para responder às
solicitações institucionais escolares, oficiais, que impõem ao aluno o domínio de determinadas
práticas letradas legitimadas que lhe garantiriam, em tese, o “passaporte” de acesso a
instituições sociais que requerem o efetivo domínio de tal capital simbólico e constrangem o
trabalho docente a didatização de um conteúdo e de modelos de escrita, de língua, de
conhecimentos, de temas que devem ser apropriados pelos alunos oriundos dos mais diversos
estratos sociais do multifacetado e desigual contexto educacional brasileiro. Monte Mór
(2013b, p. 220) aborda a respeito das políticas linguísticas voltadas ao ensino e à formação de
professores de línguas. Ao analisar a política linguística articulada aos programas educacionais
sobre orientação da ação docente, a formação continuada, a qualidade do material didático, a
autora assinala que
Ao examinar políticas linguísticas e currículos escolares vigentes, Luke (2013)
percebe haver dois fundamentos problemáticos na orientação desses. O primeiro
refere-se à premissa de que ‘as habilidades e conhecimentos são universais’. O
segundo sustenta a ideia de que ‘as habilidades e conhecimentos são universalmente
transferíveis e de valor de troca no campo do trabalho, na vida civil e na
comunidade.” (MONTE MÓR, 2013b, p. 226).
Nesse momento, percebemos que a docente parece dar conta de didatizar um modelo
escritural imposto pela mencionada instância docimológica, normativa, que regulamenta as
escolas brasileiras. Assim, a professora parece também “atender ao MEC”, encaminhando a
consecução da supracitada dupla demanda anunciada na primeira entrevista concedida no
processo de geração de dados no campo de pesquisa.
É interessante atentar que quando perguntamos aos estudantes desta turma do último ano
da educação básica, quais foram as experiências mais significativas em termos de projetos
didáticos implementados ao longo do EM? E o que eles aprenderam em termos de ensino de
Português para a vida e para o mundo do trabalho nestas circunstâncias didáticas? Os
posicionamentos deles concorrem para refletirmos sobre o que, de fato, a professora diz ao
fazer referência sobre o que “mais funciona”, do ponto de vista didático e, principalmente, do
213
ponto de vista das aprendizagens e das apropriações relevantes e funcionais a estes discentes.
Para melhor visualização dos dados84
, organizamos as respostas mais recorrentes no quadro
26.
Quadro 26 - Projetos, experiências e aprendizagens mais significativas
Quais foram as experiências
mais significativas?
O que foi aprendido para a vida e para o trabalho?
1 Ações sociais para aprender sobre a realidade e a
diversidade social.
Como trabalhar em equipe.
2 Pesquisas para a preparação de seminários e o
aluno propor seu próprio posicionamento.
Uma base necessária para enfrentar o que virá no futuro/
Novos olhares sobre nossas raízes e certa revolta pelas
descobertas sobre o assunto.
3 O projeto do teatro e a apresentação de peças
teatrais.
Conhecimentos gerais para formação.
4 Seminários sobre História do Pará. Lidar com problemas imprevistos e tomar decisões.
5 Sarau para desenvolver poesias próprias;
Projeto de incentivo à leitura, “foi gratificante
ver meu texto lido por diversas pessoas”.
Olhar mais crítico diante das situações, como encarar a
vida, uma crítica mais apurada.
6 Roda de conversa sobre a condição como
mulher negra, a questão da aceitação como
funciona esse processo.
Trazer inquietações e outra visão de mundo.
7 Fechamento da Perimetral para não redução da
CH dos professores das escolas estaduais.
Lidar com pessoas, com os medos, falar em público,
perder o medo de falar em público, Apresentação em
público, já que na IES será cobrado.
8 Projeto de doenças sexualmente transmissíveis
para previnir os alunos contra doenças.
Como agir, comportar, saber para poder se preparar.
Diferentes opiniões, discussão de temas variados.
9 Projeto de dança de salão onde tive o primeiro
contato com a Dança.
Não aprendeu o conhecimento necessário: não cai no
ENEM nem serve para emprego.
10 Não tem nenhuma experiência significativa.
“Um lado bom e um lado ruim, reconheço o
valor, são significativas, mas cada um tem seu
conhecimento isolado”.
Prepara, mas não para o mundo do trabalho.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
Percebemos que as responsivas dos alunos dialogam diretamente com o que é
sinalizado pelos dados referendados pelo posicionamento docente no sentido de preparar para
uma leitura mais crítica da vida, a um futuro exercício de ações de cidadania em busca de
84 Dados obtidos através da aplicação de questionários.
214
direitos, para um possível ingresso em uma IES e uma futura atuação profissional. No primeiro
caso, cabe atentar que o aluno é exposto a uma série de experiências didáticas que servirão
para complexificar um olhar, uma leitura da vida e dos fatos ao seu redor que eles já percebem
a partir de uma ótica crítica.
Nesse sentido, a escola e o ensino de Português parecem aguçar uma demanda já latente,
as “inquietações” lançadas incitariam a uma “crítica apurada”, a uma possibilidade de enxergar
uma “outra visão de mundo” que implicaria, até mesmo, “uma certa revolta pelas descobertas”
acerca da realidade em que estão inseridos. Esses olhares seriam construídos por intermédio
não só do ensino de leitura e de escrita no âmbito da disciplina curricular Português, mas por
um conjunto de ações didáticas promovidas por um grupo de professores da escola.
Mas, embora tais ações sejam de extrema relevância para a formação e permanência
dos alunos na instituição escolar. Cabe atentar que há um dado interessante sinalizado por um
aluno quanto aos projetos desenvolvidos no âmbito escolar. Segundo o discente, tais
constructos didáticos teriam “um lado bom e um lado ruim, reconheço o valor, são
significativos, mas cada um tem seu conhecimento isolado”.
Em outras palavras, não haveria um grande eixo norteador que propiciasse a
concatenação das ações didáticas ora efetivadas pelos docentes da instituição: um projeto
institucional, integrador, “guarda-chuva” e norteador desta prática já efetivada pelos
professores, de modo “isolado”, no seio da solidão docente a que se referem Tardif e Lessard
(2005). Este dado dialoga com um trecho da última entrevista concedida pela professora para a
construção desta investigação:
P2 – [...] como é que tu qualificas a natureza metodológica desse trabalho? É muito
recorrente a gente falar em projeto, né? Ao longo daquela geração dos dados. Tu
qualificas essa prática como um projeto? Esse movimento anunciado, de fazer esse
trabalho.
P1 – Sim. Qual é o problema? Considero sim o projeto, qual é o problema? O
problema é que a realidade que eu tenho, nas quais eu aplico as ações desse
projeto, que eu já estou chamando de projeto, é uma realidade na qual os
projetos não acontecem, porque não se trabalha com projetos, se trabalha com
ações, e ações, é, desvinculada, soltas, e cada ação se chama de projeto, então, o
quê que acontece? Isso vai cair lá naquela fala, [...], que eu falo assim, mas isso é
uma coisa minha, não é da escola, fica parece que um segredinho meu, um trabalho
meu, e isso não vai dar certo, porque tem que envolver a escola, porque isso tem
que ser articulado com outras disciplinas, tem que ser articulado dentro, com a
gestão, porque isso facilmente é boicotado, é o que eu vivo hoje, [...] É um jogo
duplo, sabe? [...] eu tenho que fazer uma máscara, [...] eu sei o que eu tô fazendo,
mas eu não tenho o suporte da escola, eu não tenho o apoio dos outros
professores, o máximo que eu posso fazer, envolver alguns professores em
determinadas ações, mas costurar esse projeto do início ao fim, eu não consigo
fazer, por quê? Porque a escola não trabalha com projeto, a escola trabalha com
ação, e ação é, ela é digamos assim, inserida dentro de uma agenda da use, que
eles chamam do escolar. (Entrevista concedida pela professora Bia Paiva, realizada
em 30/11/16).
215
Pode-se conjecturar que são ações de (sobre)vivência destes trabalhadores, a favor de
sua (re)existência profissional, orientadas pelas escolhas didáticas, epistemológicas,
curriculares, (trans)disciplinares destes professores, mas também, a favor daquilo que eles
percebem que é possível fazer na supracitada, descrita e desprovida infraestrutura designada ao
exercício da docência. A fim de tentar atingir, de modo pertinente e eficiente, uma parcela
considerável dos discentes e fazer com que a prática docente ora desenvolvida seja coerente e
significativa ao exercício do próprio ofício e a uma parcela significativa da comunidade.
Estes professores usam a máscara de uma racionalidade do fazer pedagógico gestada na
experiência, agem com a consciência da incompletude da opção metodológica mobilizada e,
ainda, suscetíveis ao risco do boicote. Entretanto, a certeza da eficiência da ação docente
realizada, mesmo que, muitas vezes, seja vinculada ou desvinculada daquilo que o calendário
letivo oficial considera como “escolar” é o que lhes permite continuar a tecer os fios que unem
as ações educativas efetivadas por estes educadores e dão formas as memórias discentes sobre
o que foi mais significativo em sua trajetória escolar, uma vez que foram no seio de realização
destas iniciativas que os alunos dizem ter aprendido a encarar o medo de falar em público,
aprenderam a trabalhar em equipe, construíram repertório informativo a respeito de DSTs,
tiveram acesso ao mundo da Dança de Salão, dentre outros.
A maioria do público estudantil afirma que as supracitadas ações lhes possibilitaram
aprender a falar em público, “perder” o medo de se expor, “aprender a fazer” uma exposição a
uma dada audiência, trabalhar em equipe, isto é, aprender a “lidar” com o outro, em outros
termos, “aprender a conviver”. Eles acreditam que estas aprendizagens, decerto, serão
cobradas, por exemplo, no ensino superior, etapa de preparação dos jovens para o exercício de
uma dada profissão e, consequentemente, de aprofundamento do que já começou a ser
apropriado na educação básica, isto é, ser “mais crítico”, “tomar decisões”, “agir, comportar-
se” em diferentes situações e circunstâncias que vão requerer a convocação da diversidade de
temas, de posicionamentos, de discussões, de diferentes conhecimentos para “aprender a
conhecer”. E, desse modo, construir, aliado a outras competências e habilidades, o tão
necessário repertório - linguístico, epistemológico, técnico, ético, emocional, profissional –
suficiente, consistente e adequado para propor a construção de cenários futuros cada vez mais
complexos, híbridos, heterogêneos, globais, transnacionais, multissemióticos, transletrados -
de capital relevância à formação dos trabalhadores do século XXI (DELORS, 1998; COPE;
KALANTZIS, 2000, MOITA LOPES, 2013a).
Porém, cabe lembrar que uma minoria do público estudantil considera estas ações
didáticas - seminários, pesquisas, saraus, peças teatrais, atos de protesto, caminhadas, rodas de
216
conversa, atividade de dança de salão - não preparariam para o ENEM, nem serviriam como
forma de preparação para o mundo do trabalho, não cumprindo, portanto, os propósitos
concernentes à educação secundária proposta por via de uma regulamentação oficial que, por
sinal, sugere a realização de muitas destas orientações de trabalho mencionadas (BRASIL,
1999; OCEM, 2006; BNCC, 2018).
Como já mencionado, no dia 06 de outubro de 2016, a aula foi direcionada à discussão
de temas variados. Para dar conta deste objetivo, foi utilizado um jogo enviado para as escolas
participantes das Olimpíadas de Língua Portuguesa, em uma das primeiras edições da
competição. A turma foi dividida em três equipes para exercitar argumentação por via do jogo
cassino da argumentação. A aula foi dividida da seguinte maneira: houve um tempo destinado
ao entendimento do jogo, leitura das regras de funcionamento do jogo, apresentação de um
representantes de cada equipes sobre o funcionamento do instrumento didático e, em seguida,
foi designado um tempo ao jogo. Realizamos a gravação do jogo de cada equipe e fizemos o
registro fotográfico das atividades.
O objetivo da tarefa é exercer a argumentação. Isto é considerado pela docente como
uma boa estratégia para aliviar a tensão da proximidade das avaliações e, ao mesmo tempo,
exercitar o poder de argumentar, a mobilização de repertórios, a defesa de um argumento na
modalidade oral. No diário de campo de 06.10.16, registramos um relato em que ela afirma
para pesquisadora que já possui esse material há algum tempo e como os alunos perdem peças
do jogo só utiliza esse material com as turmas do terceiro ano.
A professora aproveitou o ensejo para comentar sobre um dado interessante que ela
observou no início da aula. A mediadora conta que distribuiu para cada uma das três equipes
apenas uma caixinha, contendo as instruções necessárias ao funcionamento da atividade. Em
função disso, percebeu que somente uma equipe teve a ideia de fotografar as instruções,
possibilitando assim que todos os membros realizassem a leitura, para que todos tivessem
acesso aos procedimentos de funcionamento. Ela correlaciona isto ao fato do ENEM propor
solução a um problema, portanto, o jogo exercita essa proposição de tomada de atitude para
resolução de problemas. Cada representante das equipes explicou o funcionamento do jogo
para a turma. No trecho a seguir, um dos alunos que era membro da primeira equipe fez a
exposição para a turma sobre a instrução geral do instrumento:
217
Aula do dia 06
de outubro de
2016
Questões
instrucionais
para realização
de atividade
escolar
o mediador é o carinha que vai, que vai girar esse bagulhinho aí, a roleta, tá, [...], o jogo começa
assim: são distribuídos pra cada componente duas plaquinhas, sim e não, e cada componente também,
ganha seis pontos, e 1 ponto [...] Aí começa a partida, o cara vai rolar ... a cor que cair, ele vai
escolher a carta e ler a situação problema, ele vai ler, o da direita dele vai ser o opositor sim e o da
esquerda o não, sempre vai ser nessa ordem, sim e não. [...] o sim e não vão fazer suas
argumentações, primeiro o sim, depois o não, se o sim quiser, é, depois da resposta do não, se o sim
querer afirmar algo a mais, ele vai ter que comprar mais uma carta de argumentação, se o não quiser
debater de novo, ele vai ter que comprar outra carta e debater, com os pontos, simples, quando
terminar assim, os dois já decidiram, tá, vai ficar nisso, acabou o jogo, só nessa partida, acabou, os
outros que não estão jogando, sem ser o sim e o não, eles vão votar em qual argumento for melhor, o
do sim ou do não, o sim e o não, eles não podem argumentar, só entre o resto dos jogadores, cada, aí
o jogo, cada vez que aparecer o sim, o que deu argumento sim, ganha 3 pontos, e cada vez que
aparecer não, o argumento do não ganha 3 pontos também, com isso passa pra esquerda, pro jogador
da esquerda, vai ser o próximo mediador [...] quando acabar, quando todo mundo for mediador aliás,
vai somar quem tem mais pontos.Agora a questão da carta laranja, deve girar de novo
A professora fica impressionada com a explicação feita pelo representante da primeira
equipe e pelas complementações realizadas pelas demais equipes sobre as regras da tarefa. De
fato, o domínio de interlocução do primeiro representante foi determinante, para que todos os
presentes pudessem compreender o modo de funcionamento das regras do jogo. A docente
chama a atenção para o objetivo de exercitar a construção da argumentação, a partir de cada
situação - problema proposta pelo jogo. Quanto ao funcionamento, a docente assevera a
importância de cada aluno atuar no jogo em todas as funções - mediador, defensor do sim,
defensor do não. Ao final, todos devem ocupar todas as posições na ordem de realização da
atividade, de discussão a respeito do problema e cogitar soluções às situações propostas para o
debate.
Fotos 25, 26 e 27 - Aplicação do jogo da argumentação.
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
218
As equipes debateram as seguintes temáticas propostas pelas cartas do jogo estilo
cassino da argumentação: a questão da internet como recurso para a obtenção de informações;
a intervenção policial para coibir a violência na escola; Os usuários de drogas devem ser
responsabilizados pela violência ocasionada pelo narcotráfico? O sistema de cotas pode tornar
a sociedade mais justa? Deveria ser permitido o trabalho de crianças e adolescente com menos
de 14 anos para contribuir com o sustento da família? Venda de armas para cidadãos sem
antecedentes criminais deve continuar ser permitida no Brasil? Consumir produtos piratas deve
ser considerado tão grave quanto comercializá-los?
A funcionalidade da tarefa é perceptível pelo envolvimento e entusiasmo dos alunos na
realização das discussões desenvolvidas pelas equipes. Os alunos manifestam e defendem o
que pensam, correlacionam à realidade deles, às leituras e aos discursos a que têm acesso na
escola e em outras instituições em que estão inseridos, mobilizam informações para a
construção de argumentos mais consistentes, avaliam a validade dos argumentos propostos por
seus pares para as situações polêmicas colocadas em xeque.
Isto permitiu exercitar o conteúdo ora proposto, mobilizar repertórios e colocar em
prática a argumentação no plano de uma oralidade letrada, reflexiva, colaborativa em que os
sujeitos procuram formar uns aos outros no seio de uma prática escolar, que se reconfigura
entre o formato genuíno “a preparação para os exames preparatórios” e o formato que instaura
uma maior atuação e protagonismo dos alunos no processo formativo, a partir da discussão
efetiva de temas sensíveis ao contexto de ensino, a saber: a pirataria, a intervenção da polícia
nas dependências da escola, consumo de drogas, narcotráfico. Recortamos os posicionamentos
de uma das equipes para a apresentação. Os dados estão organizados e o debate com as falas
dos alunos de uma equipe está roteirizada no quadro 27.
219
Quadro 27 - Posicionamentos dos alunos no jogo da argumentação: equipe 1
Equipe 1 (Tempo de duração 51 minutos e 28 segundos)
Deveria ser permitido o
trabalho de crianças e adolescente
menores de 14 anos
Permissão de venda de armas para
cidadãos sem antecedente criminais
Consumir produto pirata deve ser
considerado tão grave quanto comercializá-
los?
Os pais podem dar conselhos
diferentes aos filhos que fazem a
mesma coisa?
A favor. O peso do trabalho não precisa
ser tão pesado, os jovens podem trabalhar
nos projetos sociais, ele pode fazer um
filho, pode trabalhar para ajudar em casa.
O jovem pode ter competência para
ajudar nas tarefas domésticas e outras
atividades remuneradas não formais em
que boa parte dos pais atua e o jovem
pode contribuir com os pais e isso não
prejudicaria. Eles têm poucas atividades
no contraturno da escola, o que ele tá
fazendo? Dando o direito de trabalhar pra
ajudar a família ou pra ele mesmo, ele
ganha responsabilidade.
Contra. Antes de mais nada quem tá atrás
disso é o capitalismo. Primeiramente, a
criança com 14 anos está na rua , por que?
Por falta de atividade na escola. Você
deveria se colocar no lugar, porque você
também faz parte de uma instituição que
tem um capitalismo sem investimento na
escola que você trabalha (palmas e risos),
além de mais nada, isso aqui é um
trabalho e a criança não precisa ficar na
rua, catando lixo, fazendo várias coisas
porque não teve oportunidade na
A favor. Cada cidadão deve ter o direito
de se defender, em função dos altos
índices de criminalidade, induzir o uso
para autodefesa assim como artes
marciais para autodefesa por lei a pessoa
poderia usar uma arma de fogo para se
defender.
Contra. Sou contra a venda porque, um
jovem com 18 anos já poderia ter uma
arma e nem todos têm a consciência e o
psicológico controlado para o uso.
Quanto às Artes Marciais, há um critério
que você não pode usar fora do local de
treinamento.
A favor. Contesta porque o mesmo que
pode vender a um jovem, pode vender a
um adulto e ele pode ter problema
psicológico e não teria consciência.
Quanto à arte marcial não é proibida para
ser usada só na academia, pode ser usada
para lazer, competição e autodefesa.
Contra. Quem tem o porte de uma arma
de fogo pode agir em defesa pessoal ou
em defesa de seus bens, porque não quer
perder tuas coisas, não quer ser
violentado, não quer ser agredido, não
A favor. É mais barato, a maioria da
população não tem condição de comprar os
originais que são muito caros. Com a crise
econômica, o preço das coisas aumentaram85
.
A pirataria tem uma demanda, por exemplo, o
DVD, que é a maioria, na minha opinião. Não
é a cópia de uma empresa e montam numa
banca qualquer pra vender mais barato, eles
fazem o download em HD da própria internet
e põem no CD virgem e mandam fazer uma
capa e vendem para população comprar e ter
mais acesso e informação.
Contra. Quando uma pessoa faz o download
está cometendo um crime e ainda leva pra
vender na feira. Aí tu acha que as produtoras
de filme que gastam milhões e milhões
fazendo os filmes, tu achas que elas iam
disponibilizar assim na internet de graça pra
todo mundo ver. Claro que não! Falou com
relação ao DVDs que baixa da internet, não
baixa direto da empresa, não é a internet que
produziu o filme. Não é a internet que produz
o filme, a empresa disponibiliza o filme na
internet e fica lá milhões de visualizações,
tipo um canal do youtube, se a empresa não
colocar como vai parar lá? É um modo mais
A favor. É o seguinte, a mulher ela tem
facilidade de ser estuprada. Proteção,
tem que proteger as mulheres, não
facilitar, esses pais [...] A Carol fez uma
cagada aí, eu quase fiz, mas não fiz. O
papai e a mamãe proibiram ela de fazer
um bocado de coisa, mas se fosse eu,
eles só iam conversar. Eu posso sair que
não corro muito perigo, mas a Carol
não. Os caras podem pegar, sequestrar,
levar pra outro lugar. E pode também
ficar mal falada.
Contra. Mas essa visão só existe
porque existem pessoas como você que
acreditam que a gente precisa de
proteção (risos e palmas). Essa visão
além de machista, ela é histórica. A
gente não precisa de proteção. A
gente precisa é de igualdade. E vocês
não precisam de proteção também?
85 Preservamos o registro utilizado pelo sujeito de pesquisa.
220
sociedade em que ela está inserida.
Entendeu? (risos e palmas: Só tem
comunista aqui!) Eu sou completamente
contra porque criança deveria está sendo
educada em casa e dentro da escola, mas
quem não oferece isso é o próprio
capitalismo. O capitalismo oferece a
criança ao trabalho. Sem investimento, as
crianças não têm a mesma oportunidade.
Se a criança pudesse escolher, entre o
trabalho e a escola, ela ia escolher a
escola, porque ela tá no processo de
formação intelectual, mas se a família tá
em condições precárias, eles vão aceitar o
trabalho.
quer ser xingado na rua, vai tentar te
defender, e você com porte pode reagir
da mesma maneira. Ela pode achar que
ninguém vai mexer com ela. Mas, na
verdade, a pessoa fica mais vulnerável ao
perigo. Cada habitante será responsável
pela arma e nem todos têm essa
responsabilidade e nem o psicológico.
fácil de adquirir as coisas, não é idêntico ao
original, mas é mais barato.
Contra: Tu falou da pirataria, mas o que tu
entende por pirataria? A pirataria é uma cópia
do original sem o outorgado do autor ou de
quem tem a autorização né, autoria, sei lá que
diabo é. Sim, é isso que é pirataria, é uma
cópia do original certo. Então, como é fazer
uma cópia se tu não tem o original? Vou
recorrer a meios mais fáceis de adquirir
aquilo, sonegando imposto que é uma maneira
mais barata e no momento que tu compra o
pirata tu deixa de contribuir pro teu estado e
isso faz aumentar o original. É melhor roubar
de uma vez. Pirataria é crime.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016.
221
Mais uma vez cabe atentar para o fato de que os alunos ficaram muito envolvidos no
desenvolvimento desta atividade. O uso do instrumento didático incitou a efetivação do
exercício do argumentar acerca de temas diversos, a partir de uma dinâmica didática que
colocava o elemento da possibilidade de competir, do ponto de vista discursivo, por via do
debate de ideias sobre temas concernentes ao contexto local e global.
O debate colocado sobre temas sensíveis à comunidade escolar como: a pirataria, o
armamento da população, o trabalho infantil e o machismo levam os grupos a compartilharem
posicionamentos, experiências e mobilizar o repertório temático, linguístico e composicional
para a realização do exercício da defesa de uma posição na modalidade oral, o que pode
contribuir para uma possível e futura produção escrita ou oral de outros gêneros do discurso ou
à outra situação do cotidiano escolar ou não escolar que requeiram o domínio de gêneros orais
do campo argumentativo (ROJO, 2000; 2004; DOLZ; SCHNEUWLY, 2004; MENDONÇA,
LEAL; 2007).
Assim, os alunos se posicionam a favor e contra o trabalho infanto-juvenil, é veemente
o posicionamento da aluna em torno de não ser favorável ao trabalho de crianças e de
adolescentes na faixa etária de 14 anos de idade, colocando em voga um argumento de
espectro global- o capitalismo seria o verdadeiro responsável pelo processo de inserção de
menores no mundo do trabalho- em conexão com um argumento de espectro local. A pobreza
das famílias seria a real motivação para a inserção de crianças e de adolescentes precocemente
no mundo do trabalho, pois se houvesse escolha, a escola seria a opção, de fato, destes jovens,
inclusive, de alguns alunos daquela turma que já trabalham e estudam, mesmo antes de atingir
a maioridade, muitos precisam dividir o tempo entre a escola e o trabalho.
Cabe ressaltar que a possibilidade de trabalhar mais cedo é direcionada aos filhos da
periferia, aos herdeiros de trabalhadores suburbanos que residem nos barracões tão quentes
quanto os porões do Brigue Palhaço. O filho do pobre é a mão de obra necessária para suprir a
demanda do capital, por sinal, mão de obra de baixo custo, suscetível a perpetuar o ciclo da
reprodução social e educacional a que se reportam Bourdieu e Passeron (1992). Nesse sentido,
a voz da aluna, eleita como vencedora daquela rodada de discussão, insiste no sentido de que
as crianças devem estudar.
Em outras palavras, só assim seria possível “romper com a lógica do capital se
quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente”
(MÉSZÁROS, 2008, p. 27). Para o autor, os processos educacionais estão extremamente
222
interligados aos processos sociais mais amplos de reprodução social, sob a égide do
capitalismo.
Nessa perspectiva, o pensador sinaliza que para ir além deste capital precisamos
recorrer, também, a soluções não formais. Trata-se, então, de construir um pensamento
educacional contra-hegemônico, pautado no questionamento da internalização e da consciência
de subordinação aos ditames mercantis por via da possibilidade de construção de uma prática
emancipadora, capaz de abordar as contradições e se instituir nas fissuras do próprio sistema
instituído (MÉSZÁROS, 2008).
Desse modo, o posicionamento discente parece ressonar o discurso quase desesperado
da professora pela necessidade e urgência dos filhos da periferia estudarem, ainda que seja
com o fone de ouvido, escutando aula em frente a uma loja da feira do bairro86
, trabalhando, é
claro, para ajudar a família.: “[...], tu tens que começar a reservar tempo dentro do teu tempo
que tu não tens, tu tens que te forçar a ler, [...] Baixa aula, baixa vídeo - aula, e começa, tu
tá ali trabalhando, porque tem alguns que trabalham, tu tás ali trabalhando e tá ouvindo
aula.”87
(Quadro 9, Nível 1.2, Marcador 28’’00 - 45’’00).
Em relação à permissão de venda de armas para cidadãos sem antecedente criminais,
foi interessante o processo de tentativa de construção e de desconstrução de argumentos no
debate de ideias do lado favorável e não favorável. Mais uma vez, o aluno contrário apresentou
os melhores argumentos “nem todos têm a consciência e o psicológico controlado para o
uso”, “a pessoa fica mais vulnerável ao perigo. Cada habitante será responsável pela arma e
nem todos têm essa responsabilidade” e, ainda, demonstrou a fragilidade dos alunos a favor do
armamento de cidadãos não fichados “o mesmo que pode vender a um jovem, pode vender a
um adulto e ele pode ter problema psicológico” e “Quanto à arte marcial não é proibida para
ser usada só na academia, pode ser usada para lazer, competição e autodefesa”.
A escuta de todo o diálogo dos alunos faz referência ao fato de que eles acreditam que a
maior flexibilidade de circulação de armamento implicará o aumento da violência em situações
triviais - como briga de vizinhos, de casal, discussão no trânsito caótico do bairro. Na verdade,
o dito “cidadão de bem” estaria ainda mais vulnerável a situações de perigo, de fragilidade e de
exposição a atos violentos como os crimes e as chacinas que já ocorrem no bairro. O diário do
Pará, de 26 de maio de 2019, apresenta uma matéria, mostrando que nos últimos oitos anos
86 Esta imagem evoca a fotografia de Sebastião Salgado eleita como imagem de capa da obra A Educação para
além do capital, de Istvan Mészáros (2008), a captura cotidiana da criança que estuda, ao mesmo tempo, que
realiza outras tarefas cotidianas, como a prática das meninas que ajudam a cuidar dos irmãos menores. 87
Quadro 9, Nível 1.2, Marcador, 28’’00 - 45’’00.
223
aconteceram doze chacinas na Região Metropolitana de Belém. A periferia foi o principal
palco deste show de violência que coloca Belém como a capital mais violenta do país,
conforme já mencionado e reportado pelo Atlas da Violência 2018 (IPEA, 2018).
Lamentavelmente, este jovem periférico, que debate nessa rodada escolar, dinâmica,
colaborativa, cheia de vida e alegria, é a principal vítima dessa barbárie urbana desenfreada na
capital paraense. Portanto, a discussão e o posicionamento do aluno coadunam com a fala da
professora que antecedeu a caminhada realizada no primeiro semestre para pedir a punição dos
envolvidos em uma chacina ocorrida no bairro em 2014, a fim de chamar a atenção de todos
sobre o combate à violência no bairro e a favor do envolvimento deste jovem em práticas
sociais, culturais, educativas de ação contra esta situação de extermínio da juventude
periférica: “foi nosso aluno... é a vítima mais jovem da chacina com apenas 16 anos [...] desde
quando houve a chacina a gente tá chamando atenção da importância do jovem ter a ver com
essa história, [...] eu tou estudando... eu tou garantido. Será?”.
Quanto à gravidade pertinente à comercialização e ao consumo de produto pirata, foi
interessante perceber nesta rodada de posicionamentos, a seleção de argumento
operacionalizada pelos alunos e a correlação em relação à construção do argumento pelo uso
da definição. Mais uma vez, o aluno contrário à questão proposta apresenta os argumentos
considerados como mais relevantes na rodada de debate.
Nesse caso, o discente propõe considerar que quem baixa ilegalmente um conteúdo e
“ainda” leva para feira, portanto, comete dois crimes, porque (i) “rouba” um conteúdo sem
autorização legal e (ii) o disponibiliza em um lugar público a um preço muito acessível,
incitando outros a cometerem o crime relativo ao consumo do material sem licença, sem
autorização, sem permissão. As implicações disso estariam ligadas à sonegação de impostos e
ao acesso a um produto de qualidade duvidosa.
Entretanto, o que chama a atenção no desenvolvimento da fala deste aluno que,
inclusive, compra mais fichas para alongar sua exposição diz respeito à organização
discursiva, retórica, composicional do texto na modalidade oral. O discente faz uso de uma
estratégia argumentativa reiterada pela professora nas longas exposições sobre argumentação,
tipos de argumentação, texto dissertativo e na própria tessitura da fala dela em sala de aula,
pois a pergunta retórica é uma estrutura recorrente em muitos trechos das longas exposições
para o ensino da redação do ENEM. O estudante faz uso da pergunta retórica e da exposição
por via de definição do objeto de explanação:
224
Tu falou da pirataria, mas o que tu entende por pirataria? A pirataria é uma cópia
do original sem o outorgado do autor ou de quem tem a autorização né, autoria,
sei lá que diabo é. Sim, é isso que é pirataria, é uma cópia do original certo. Vou
recorrer a meios mais fáceis de adquirir aquilo, sonegando imposto que é uma
maneira mais barata e no momento que tu compra o pirata tu deixa de contribuir pro
teu estado e isso faz aumentar o original.
O domínio enunciativo deste sujeito, a segurança, a precisão e o considerável e
convincente nível de apropriação da palavra falada deste aluno arrebata a votação a seu favor e
demonstra que o discurso pedagógico docente, enfático, insistente, persistente, quase que
mântrico parece surtir algum efeito. Esta construção discursiva- institucional parece ter
contribuído para complexificar o desenvolvimento linguístico, discursivo, enunciativo,
argumentativo deste indivíduo, o qual já está integrado a uma série de outras situações de
interação em contextos diversificados, institucionais ou vernaculares, mediados por diferentes
tecnologias.
Na verdade, eles estão inseridos em diferentes processos de socialização, mobilizam e
imbricam letramentos diversos, que concorrem à incursão e constituição de práticas sociais,
culturais, letradas, históricas, linguísticas, que estão em constante interação, movimentação,
fluidez, sedimentação, ruptura, inclusive, no cenário escolar. Para Barton e Hamilton (2000, p.
09):
[...] em muitos eventos de letramento há uma mistura da língua escrita e falada.
Muitos estudos sobre práticas de letramento têm mostrado o letramento e os textos
escritos como ponto de partida, mas é claro que em eventos de letramento as pessoas
usam a língua escrita de maneira integrada, como parte de um conjunto de sistemas
semióticos; esses sistemas semióticos incluem sistemas matemáticos, notação
musical, mapas e outros textos não-verbais.
Este entrecruzamento de letramentos mobilizados por intermédio dos sistemas
semióticos, ou melhor, “multi” semióticos, relacionado à multicultura, multimodalidade como
gerando um novo conceito: os multiletramentos (ROJO; MOURA, 2012, p. 13). A partir de
então, a autora chama atenção para multissemiose de textos contemporâneos, que exigem os
multiletramentos, “muitas linguagens (ou modos, ou semioses) e, consequentemente,
capacidades e práticas de compreensão e de produção de cada uma delas (multiletramentos)
para fazer significar. Esses novos e multiletramentos levam em conta diversas e diferentes
semioses: “escrita manual (papel, pena, lápis, caneta, giz e lousa) e impressa (tipografia,
imprensa)- de áudio, vídeo, tratamento da imagem, edição e diagramação” (ROJO; MOURA,
2012, p. 21).
Os dados gerados nesta investigação mobilizam esta multiplicidade de semioses
(cartazes, vídeos, música, dança, apresentações em power point, seminários, jogos educativos,
tambores, redações, livros). Então, neste caso, é melhor atender a ideia de multissemioses, que
225
constituem a teia discursiva enunciada nestes eventos de letramento reconstituídos nesta
narrativa-tese. A consecução do jogo ilustra a mobilização de linguagens, semioses e
modalidades de uso, bem como os posicionamentos discentes e o grau de empoderamento, de
apropriação e de agência dos alunos no jogo argumentativo, mediado em cada uma das equipes
com convicção, seriedade, envolvimento, responsabilidade e descontração. O último tema
abordado e roteirizado acima aborda a enunciação de um tema muito pertinente ao contexto, o
modo diferenciado como os pais educam as meninas e os meninos.
A fala do primeiro aluno, favorável à diferença de tratamento dos pais em relação aos
filhos, sinaliza a situação das meninas no contexto. Ele faz menção a um fato ocorrido no seio
familiar para tentar convencer os seus pares da necessidade de impor proibições à irmã, a fim
de para proteger de uma possível violência física, mas também de um outro tipo de violência, a
violência simbólica, ou seja, a difamação da própria comunidade, enfim, “ela pode também
ficar mal falada”. Caso ele tivesse cometido o mesmo, o discente tem certeza, que não seria
punido do mesmo modo.
As alunas do grupo ficaram muito incomodadas com a escuta do exemplo e uma delas
toma a palavra para tecer sua contraposição ao dito. A estudante é categórica ao afirmar que a
mulher precisa é ser tratada com igualdade e a atitude do colega é machista, é histórica, é
desigual. Essa responsiva retoma alguns dos argumentos usados por um texto escrito, uma
redação do ENEM, considerada como nota 1000, utilizada como exemplo pelo livro didático,
tema de uma longa exposição da professora em sala de aula sobre a condição das mulheres na
periferia paraense.
O discurso discente ressona sobre o machismo e a desigualdade suplantadas entre os
próprios pares - pais, amigos, vizinhos - evocada pela professora naquela ocasião e aqui
corporificada pela fala do aluno que defende com exemplos do cotidiano familiar a faina da
mulher suburbana, sujeita à violência física, mas também à violência simbólica, ao machismo,
à desigualdade de gênero determinantes dos limites daquilo que as meninas podem ou não
podem fazer, sob o jugo da punição dos pais que direcionariam, inclusive, sanções
diferenciadas, de acordo com o gênero dos sujeitos supracitados.
O conflito de posicionamentos, o embate de perspectivas, a evocação discursiva do
familiar, do escolar, do cotidiano, do comunitário, o olhar crítico sobre a realidade social mais
ampla e local constituem a arena letrada que se configura na cena institucional em questão. A
partir do uso de um instrumento didático “lúdico”, a ação docente convoca o discente para o
centro do debate, concedendo-lhe a palavra, a oralidade letrada, que eles tão bem se apropriam,
apreciam e assim também se constituem, se constroem, em um processo de contradições, de
226
divergências, de denúncias, de mobilização de saberes, de resistência, de avanços e, sobretudo,
de apropriação da leitura e da escrita sob o jugo da apropriação do conteúdo necessário ao
exercício da cidadania e ao exercício de apropriação da forma, do modelo necessário à palavra
escrita, por tantas vezes, interditada aos seus pares, mas que constitui uma possibilidade deste
indivíduo, quem sabe, ser o primeiro de sua família a pisar em uma IES.
5.10 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O EPISÓDIO 2
No episódio 2, o trabalho docente está estruturado a partir de uma produção discursiva
que tem por finalidade a acumulação de conhecimentos, considerados suficientes e eficientes,
para a produção de uma redação escolar em um evento específico: o ENEM; é caracterizado
pela reiterada preocupação no sentido de convencer o aluno sobre a importância da
apropriação deste conhecimento legitimado, institucionalizado, homogeneizante para a
continuidade dos estudos, o que conduz a um predomínio de interlocução por parte da
docente.
A interação didática é produzida, a fim de atender a um objetivo didático específico,
ou seja, apresentar a maior quantidade de informações pertinentes ao ensino de uma
dissertação escolar. O ensino é caracterizado pela exposição do mestre ou do manual
(exposição do conteúdo, uso da apostila, do LD), a repetição (a professora reitera os conceitos
e exemplificações), aplicação de exercícios (o exercício é a contraparte essencial no
desenvolvimento do trabalho), avaliação (a professora reitera a necessidade de prestar atenção
e entender para que o aluno obtenha boas notas nas avaliações bimestrais).
A aprendizagem está vinculada a um posicionamento do professor como aquele que
sabe e, nessa ocasião, deve e precisa ensinar. Nesse processo, a principal atividade cognitiva a
ser mobilizada é a memorização, o discente é instigado a exercitá-la, seja pelo incentivo do
próprio professor, seja pela orientação do material didático. Em Chervel (1988, p. 40), é
possível encontrar uma síntese deste modo de funcionamento da disciplina escolar:
A disciplina escolar é formada por um conjunto de proporções variáveis e
selecionadas por vários constituintes, um ensino de exposição, exercícios, práticas de
estímulo, de motivação e um aparelho docimológico, os quais, em cada estado da
disciplina, funcionam evidentemente em estreita colaboração, assim como cada um
deles, à sua maneira, em ligação direta com as finalidades88
.
88 La discipline scolaire est donc formée par um assortiment à proportions variables suivant les cãs, de plusieurs constituants, un
enseignement d’ exposition, des exercises, des pratiques d’incitation et de motivation et un appareil docimologique, lesquels, dans chaque état
de la discipline, fonctionnent évidemment en étroite collaboration, de même que chacun d’ eux, á sa manière, en liaison directe avec les
finaliletés.
227
No processo de ensino destes conteúdos considerados mais “fechados”, mais
“estabilizados” no processo de escolarização da disciplina, o aluno encena como um
expectador privilegiado e, muitas vezes, é “convidado” a participar do jogo assimétrico que se
configura, enquanto que no trabalho de ensino com um objeto de ensino de perspectiva
essencialmente temática e discursiva que mobiliza dispositivos filiados ao campo vernacular, o
“convite” à interação é fundamental. Isto sugere que a natureza da interação didática que se
constrói é afetada pelo objeto de ensino, pela natureza da tarefa implementada, pelos
dispositivos didáticos mobilizados e pelas finalidades a eles articulados.
Nesse cenário, as questões de natureza temática são convocadas para a construção do
episódio. Então, percebemos que por esta fresta há a inserção de problemas locais ou questões
sociais que atingem a audiência em questão, a saber: a abordagem sobre a situação da
violência contra mulher e as caóticas condições de convivência e de funcionamento da escola.
No entanto, grande parte disto é realizado a partir de uma longa exposição por parte da
professora e por momentos de ruptura em que a palavra falada ou escrita é concedida aos
discentes, como na apresentação do texto escrito sobre as condições escolares e os debates
realizados no jogo cassino da argumentação.
Esta dinâmica sinaliza para o fato do aparelho docimológico externo influenciar - ou
provocar “efeitos retroativos” VICENTINI (2014)- nas escolhas dos objetos de ensino, nos
modos de (re)constituição destes objetos, na determinação dos objetivos didáticos e
mobilização de determinados dispositivos didáticos - livro didático, folha avulsa, redações de
anos anteriores do certame- balizados a este fim (BATISTA, 1997; BRITTO, 1997).
Batista (1997, p. 04) sinaliza outros fatores relacionados às práticas de ensino de
português:
Os pontos de vista assumidos pelos professores e pelos envolvidos nessa prática
podem ser considerados elementos dessas condições. Há outros, entretanto, de igual
peso: o campo social mais amplo, o estatuto social e profissional dos docentes e as
formas de exercício profissional dele decorrentes; o livro didático escolhido e o
mercado editorial; a socialização primária dos alunos e as expectativas de seu grupo
social em relação ao ensino de português e à escola, e assim por diante. Há ainda,
porém, elementos dessas condições que frequentemente são esquecidos: as relações
sociais escolares, as formas de avaliação e de exercício, a demarcação do tempo e do
espaço escolar- aspectos, dentre outros, da organização do trabalho na sala de aula.
Todos esses elementos constituem condições para o exercício da transmissão de
saberes na escola, que, ao que tudo indica, interferem nesses saberes que nela se
transmitem.
Levando em consideração as condições anunciadas pelo autor e o contexto específico de
geração dos dados da pesquisa, percebemos que a inserção de uma prática de ensino voltada a
atender a uma demanda escolarizada, institucional, voltada aos fins avaliativos, interligada às
228
características de um letramento dominante (BARTON, 2000). Muito próximo, aos traços de
um modelo autônomo (STREET, 2014, 2010b), realizado em um dado momento do ano letivo
neste contexto e por esta docente, tem um objetivo concatenado também ao que ela considera
como “fazer educação”, a uma estratégia de resistência e de sobrevivência inerente às práticas
de ensino da professora, no sentido de que é necessário agir, mesmo que por caminhos
considerados “autônomos”, “dominantes”, “tradicionais” e, até mesmo pelo uso de um
discurso de fundo quase “apelativo”, para que estes alunos tenham a consciência da
necessidade de êxito no aparelho docimológico externo, o que lhes asseguraria à circulação por
outras agências de letramento, outros modos de socialização e o alcance da finalidade do
famigerado EM: a continuidade dos estudos, acesso ao mundo trabalho, à formação para a
cidadania.
Campos (2004), discutindo programas de educação de jovens e adultos no meio rural
brasileiro, chama a atenção para o significado da evasão escolar das camadas populares como
forma de resistência e ruptura em face aos sistemas ideológicos instituídos. Muitas vezes, o
sujeito abandona, porque não há construção de relações identitárias entre o sujeito e o que é
dito e ensinado na entidade escolar. A fim de que esta resistência dos alunos, que se faz
presente, por exemplo, no cansaço expresso pelos alunos ao longo das aulas expositivas, que
tinham por fim didatizar o currículo escolar “baseado na cultura dominante”, “expresso na
linguagem dominante” e “transmitido através do código cultural dominante” (SILVA, 1999, p.
35).
Nesse sentido, a professora seleciona textos que convocam temáticas concernentes às
problemáticas locais, usa situações do dia a dia e o vocabulário não formal, para que pudesse,
de algum modo, resgatar e conjugar a articulação das demandas formativas anunciadas, neste
episódio, especificamente, a demanda institucional voltada a ensinar o modelo de redação do
ENEM e a demanda local voltada a trazer para a sala de aula por intermédio de uma dialética
discursiva os problemas que atingem diretamente aquele grupo de alunos: as péssimas
condições estruturais da escola, a condição de violência, de preconceito, de opressão da mulher
suburbana, negra, periférica, brasileira.
A tentativa de implementação desta dupla articulação de demandas é reconfigurada em
algumas das produções textuais escritas de alguns alunos que conseguem responder à tarefa de
modo adequado e suficiente, um sinal da necessidade de aperfeiçoar este texto para garantir
uma nota mínima, a fim de eles pudessem garantir o tão necessitado acesso a uma IES. Nesta
ocasião, somente os alunos em situação de recuperação de nota, ou seja, aqueles que
229
apresentaram dificuldades na prova de segunda avaliação, que cobrava este conteúdo
considerado “mais fechado”, deveriam fazer a tarefa.
Por conta disso, dez alunos responderam à primeira atividade de produção textual,
deste universo, ilustramos com três textos. Quanto à segunda produção textual sobre a
desigualdade étnica e de gênero no Brasil, realizada após a palestra de um advogado da OAB
sobre estratificação social, foram produzidos vinte e dois textos, que seguiram os moldes da
redação de ENEM e apresentaram níveis de apropriação razoável, quanto ao modelo, a
exemplo da primeira produção.
Quanto à retextualização destas produções, não houve um investimento didático
voltado à realização desta etapa do ensino, o que nos demonstra as opções da docente em
relação aos propósitos anunciados para a construção das ações didáticas neste contexto, bem
como revela os limites do trabalho docente, que é constrangido e pressionado em decorrência
das condições de atuação a que este profissional é submetido, a saber: a significativa carga
horária do professor na rede estadual, o número de alunos em cada sala de aula, o não
cumprimento de uma HP que garantisse um tempo remunerado a ser dedicado à correção desta
demanda de textos e ao planejamento de atividades, as péssimas condições dos prédios e de
funcionamento de espaços pedagógicos que, por sinal, estavam fechados no ano de 2016,
possibilitassem a esse professor fazer trabalhos em parceria, por exemplo, com outros
profissionais, como os professores de sala de leitura, a fim de que negociassem o processo de
correção e de refacção dos textos dos alunos, assegurando assim quem sabe uma processo de
retextualização e melhoria da escrita dos discentes.
Por outro lado, neste episódio, a apropriação do alunado foi (re)configurada nas formas
de como estes discentes desenvolvem um jogo de argumentação de temas diversos em que
toda a turma é convocada a participar, revelando assim o domínio da palavra falada, já
indiciada por um repertório mais complexo e pelo domínio de estratégias argumentativas mais
elaboradas, concatenando assim o debate em torno de problemáticas de espectro locais e
globais, conhecimentos de outras áreas do conhecimento e se posicionando criticamente sobre
os problemas que afetam o cotidiano deles.
Por isso, a docente, mesmo consciente dos limites de suas escolhas didáticas em face
das condições de realização de sua prática de trabalho, persiste na necessidade de apropriação
dos conteúdos considerados hegemônicos em correlação à necessidade de colocar em pauta um
olhar mais elaborado para os problemas. Assim, eles continuariam a luta pelo direito à
continuidade dos estudos e ao exercício de uma cidadania plena Pois, esta seria uma das vias
230
para encaminhar a potencialidade desta juventude periférica para resistir e sobreviver às
mazelas sociais e ao extermínio das sucessivas chacinas ocorridas nas periferias do país.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da descrição geral dos dados desta investigação, as aulas ministradas a uma
turma do terceiro ano do EM, ao longo do ano de 2016, em uma escola pública da periferia de
Belém-PA, é possível delinear uma caracterização geral da aula de Língua Portuguesa. A
caracterização compreende duas direções complementares: uma perspectiva local - relativa a
um ensino voltado à compreensão da história afroindígena e dos problemas locais, em especial,
a chacina ocorrida no bairro no ano de 2014, às condições de infraestrutura de encenação do
trabalho docente e às condições de desigualdade social e de gênero- e uma perspectiva
institucional – concernente ao processo de didatização de conteúdos curriculares prescritos por
um aparelho docimológico externo (o ENEM), que baliza o que deve ser ensinado no nível
médio e interfere nos modos de interação, de escolha de dispositivos didáticos e de
procedimentos metodológicos mobilizados. Para Bunzen (2010, p. 104), a escola, como um
espaço discursivo se constitui a partir de cenários que visibilizam “duas dimensões”:
De um lado, encontramos as questões institucionais movidas por um
conjunto de regras e normas que buscam unificar e delimitar a ação
dos seus sujeitos; de outro lado, o cotidiano escolar com seus
conflitos e redes de significações construídas por seres humanos
concretos nas mais diversas alianças, transgressões e acordos.
(BUNZEN, 2010, p. 104)
Nessa direção, a primeira perspectiva contempla uma série de atividades, articuladas ao
eixo de leitura de uma coletânea de textos vernaculares, ligada à exposição dos conteúdos
curriculares paralela à discussão destes textos. O histórico de desigualdades sociais é frisado, o
vocabulário dos textos e alguns conceitos voltados aos conteúdos estabelecidos são
mobilizados como pauta para a compreensão sobre os possíveis sentidos interligados à
atualização referente ao contexto e território amazônico, paraense e palco das sucessivas
chacinas de impunidades, historicamente, recorrentes.
Os instrumentos didáticos centrais convocados para a realização do trabalho são letras
de música de um compositor local e um livro de um pesquisador/ historiador e professor da
escola. A partir destas leituras e de pesquisas realizadas pelos alunos, é organizado um longo
seminário para a problematização acerca da história dos movimentos sociais na Amazônia,
231
etapa de preparação, para a realização de uma caminhada pelas ruas do bairro para requerer
justiça pelos jovens chacinados.
Os seminários de leitura deveriam funcionar como um momento para tentar “conceder”
a palavra ao aluno, a fim de que a aprendizagem estivesse mais pautada em uma postura mais
ativa, tendo em vista a eloquência do discurso docente ao longo das aulas. Esse discurso tem
por fim abordar a problemática da chacina, a partir da (re) constituição de uma história não
oficial sobre as lutas sociais na Amazônia. Tudo isso revela o objetivo da ação docente quanto
ao investimento da conscientização crítica deste público como uma necessidade vital à
natureza desta prática docente e, também, eleva o local ao palco institucional para a construção
de saberes e a favor do desenvolvimento de um processo de apreciação, coadunando assim ao
vernacular um dado estatuto ou “lugar” de integração ao escolar, de valorização às práticas de
linguagem, de cultura e de produção do conhecimento não oficiais. Lugar este que a escola,
ainda, negligencia, conforme um dos líderes dos coletivos culturais:
C1, Entrevista 1,
concedida em
04.11.16, 00:29:08
P.Há uma parceria desses coletivos e a escola?
E – Sim. Não propriamente a escola, são alguns professores que entendem e
alguns que fazem parte desses coletivos, é que trazem os coletivos pra fazerem
parceria, né? E aí turmas de alunos já vieram fazer pesquisa com o nosso
trabalho, já foi fazer pesquisa com o Tela firme, com o Casa preta, preta,(....)
mas é tudo assim, a partir de um professor... (...) É. Uma experiência que não
tem muito a ver com a escola (...) apesar de quando tem as atividades que a
gente diz culturais da escola, a festa junina, sempre convidam os coletivos
culturais, mas participar de maneira abrilhantar a festa, digamos assim, sem
ter uma discussão sobre, sobre (...) e aí é engraçado isso, porque quem não
conhece um terço da coisa, acha que a escola apoia os movimentos culturais
(....) mas, na verdade, na realidade... Ainda é muito tensa essa relação.
Conforme Kleiman e Sito (2016), ao visibilizar estes grupos e seus letramentos
vernaculares, levando em consideração os letramentos emergentes destes grupos como práticas
de multiletramentos, forjadas no seio das tradições orais, artísticas, musicais, corporais,
comunitárias em que são construídos textos multimodais e, até mesmo, aquelas realizadas em
correlação com práticas consideradas hegemônicas, o solitário trabalho de alguns professores,
mais especificamente, de uma professora - e não da escola, como frisa a liderança-, já favorece
o fortalecimento de novos discursos acerca das realidades, o reconhecimento de saberes de
grupos estigmatizados, ou, ao menos, coloca em voga a tensão existente entre o oficial e não
oficial na arena de letramentos que se (re)configura no ambiente escolar (TARDIF, 2005;
KLEIMAN; SITO, 2016).
Este confronto encarna a reexistência que pode permitir a expansão de horizontes
linguísticos, discursivos, epistemológicos, a partir de uma perspectiva crítica; bem como o
autorreconhecimento de si, o reconhecimento dos próprios saberes, a (re)valorização dos
232
viveres, dos saberes, das coleções culturais existentes e resistentes, e, ainda, dos territórios em
que a violência difere e extermina a diferença, principalmente, a pobre, preta e periférica. Estas
práticas de letramento escolar tecidas pela professora e a comunidade do bairro implementam a
subversão a favor dos seus objetivos, relegam a sua condição de subalternidade e de alienação
total ao sistema imposto. A construção da caminhada é uma fissura latente desta transgressão à
ordem. Então, acreditamos que tais práticas são (re)configurações, sim, de letramentos de
reexistência em ecos de resistência e de sobrevivência em tempos líquidos e de incertezas
(CANCLINI, 1998; BAUMAN, 2007; SOUZA, 2011; KLEIMAN; SITO, 2016; JANKS,
2016; LOPES et al, 2017). Maia (2018, p. 967) conceitua estes letramentos de sobrevivência
nestes termos:
Letramentos de sobrevivência são, portanto, práticas sociais que,
fundamentalmente, testemunham violações de direitos humanos e
culturais e que, enunciados, questionam polaridades, contaminam a
homogeneidade de iniciativas hegemônicas e, assim, entextualizam
histórias contadas e escovadas a contrapelo, nos termos postos por
Walter Benjamim na tese 7 de seu texto Sobre o conceito de história
(2012 [1985], p. 245).
Estes letramentos de sobrevivência são (re)constituídos em ecos de coragem, de
denúncia, de movimento educativo construídos no trabalho da professora investigada e ressona
no discurso inflamado, empoderado pelas leituras da palavra escrita e das vivências na
comunidade, endossado pelo vigor militante, que leva a vida, a cultura, a língua e os reais
conflitos e violações aos direitos enfrentados por estes jovens periféricos para o seio da prática
docente. Na última entrevista concedida pela professora, ela relata a seguinte situação
articulada ao empreendimento pedagógico nesta conjuntura:
Entrevista P1,
concedida em
30.11.16, 1:56:51.
P. (...) aquela história do palco, quando o Maca veio, que ele lançou um livro ¨A
gramática da ira¨ em Jabatiteua, que a gente tinha que montar, a gente emprestou
o palco da escola que eram aquelas estruturas de ferro, lá na Jabatiteua, (...), a
gente montou o palco, estruturou o palco, pra subir no palco, e aplaudir o
que tava sendo apresentado, no dia seguinte a gente desconstruiu o palco, foi
lá carregar, então quer dizer, olha como é que muda isso, quem subiu ali fui
eu, porque era Gramática da ira que vem falando sobre o pretoguês, então
tá falando da minha vida, tá falando do extermínio, tá falando do que eu
vivo, tá falando do que eu presenciei, do que eu construí, é a minha história,
né?
Este discurso pedagógico, pautado em experiências vivenciadas no coração da
comunidade, que remete ao louco foucaltiano e ao moleiro Menocchio, em certa medida, é o
mesmo que tenta se infiltrar no endurecido processo de didatização do conteúdo considerado
necessário à aprovação no ENEM, o que possibilitaria aos alunos a continuidade dos estudos e,
ao mesmo tempo, incitaria a formação crítica para a atuação cidadã, atendendo assim uma das
finalidades da referida etapa de ensino. Nesse sentido, o segundo episódio descrito é
233
veementemente marcado por uma perspectiva institucional interligada ao processo de
didatização de uma gama de conteúdos que concorrem para o ensino de uma redação nos
moldes exigidos pela avaliação externa.
Essas características são atualizadas na interação verbal, que passa a constituir a
interação didática. O objeto de ensino, os instrumentos didáticos mobilizados e os
procedimentos didático-metodológicos adotados concorrem para a constituição de uma
polêmica discursiva muito limitada. Como a interação didática é criada a partir de um objetivo
didático específico, nesse caso, levar a maior quantidade de informações acerca do que vem a
ser necessário à apropriação do “modelo redacional”, o processo interativo é marcado pelo
predomínio de interlocução do mestre (ou manual, apostila, LD) (CHERVEL, 1988). Isto
porque, há um tempo determinado nesse espaço institucional para ditar determinada porção de
conhecimento, visto que é necessário terminar o conteúdo em uma data especificada. Desse
modo, o instrumento avaliativo atua para dois fins: uma função de controle e uma função de
verificação de desenvolvimento e de aprendizagem da disciplina. Acerca desse ponto, Chervel
(1988, p 40) assinala que:
O último ponto importante da arquitetura das disciplinas: a função que ela
ocupa nas provas de natureza docimológica. As necessidades de avaliação dos
alunos nos exames internos e externos engendraram dois fenômenos que
pesam nos cursos das disciplinas de ensino. O primeiro é a especialização de
certos exercícios que desempenham uma função de controle (...). O segundo
fenômeno é o peso considerável que as provas finais exercem sobre o
desenrolar da turma e sobre o desenvolvimento da disciplina, ao menos em
algumas de suas formas89
.
Mesmo no seio do mundo usineiro, em condições de trabalho pouco ou quase nada
favoráveis, pressionada pelo tempo escolar e pela demanda histórica e oficial dos exames
finais, percebemos que a docente tenta fazer parte do discurso das políticas linguísticas. Aquilo
que ela institucionaliza como conteúdo do ENEM e aquilo que intervém e constitui a
sociedade por meio da língua(gem). Nessa direção, a professora se vê entre duas polaridades
antagônicas: da política linguística que afeta por via de programas norteadores da ação
docente, programas relacionados à avaliação, distribuição e qualidade do material didático
enviado para uso na escola e da transgressão por meio de um letramento mais crítico ao
89 Dernier point important dans l’architecture des disciplines: la fonction qu’y remplissent lês épreuves de nature
docimologique. Les necessities de l’evaluation des éleves dans les examens internes e externes ont engendré deux
phénoménes qui pésent sur le cours des disciplines enseignées. Les premier, c’est la spécialisation de certains
exercises dans leur fonction d’exercises de contrôle. La <<dictée d’ orthographe>> est du nombre, et doit sans
doute son origine à cette fonction, même si son utilisation dans les classes, au XIX et au XX siècle, excède très
largement ce rôle. Le second phénoméne, c’est le poids considérable que les épreuves de l’examen final exercent
parfois sur le déroulement de la classe et donc sur le développement de la discipline, du moins dans certaines de
ses formes.
234
abordar problemas sensíveis à audiência e que tocam em questões de gênero, violência,
desigualdades no sentido de instaurar uma dialética discursiva capaz, ao menos, de cindir a
ótica da camuflada neutralidade que resguarda relações de machismo e de violação de direitos
constitucionais (MONTE MÓR, 2013b; MÉSZAROS, 2008; PENNYCOOK, 2006).
Dessa maneira, compreendemos que, apesar das inúmeras dificuldades relativas ao
contexto de atuação profissional, das possíveis escolhas voltadas a um modelo autônomo de
letramento (STREET, 2014), a professora tenta contemplar as duas polaridades supracitadas,
alcançando assim o dito paradoxo do acesso a que faz referência Janks (2010), o que se
caracteriza, sem dúvida, como mais uma forma de resistir, sobreviver e transgredir a um
sistema voltado a oprimir os menos favorecidos economicamente, inclusive, no sentido de
prosseguir aos níveis mais avançados de acesso ao conhecimento formal, historicamente, uma
formação de caráter mais propedêutica foi cerceada às classes populares no Brasil.
Essa contradição é refletida, por exemplo, no valor atribuído aos textos de diferentes
gêneros discursivos produzidos nesse processo contraditório, tenso, conflituoso. Os cartazes da
caminhada não possuem o mesmo peso das redações do ENEM no processo de avaliação
escolar, mas estas produções refletem os diferentes processos de socialização assumidos por
estes sujeitos em cenas de letramento social fundadas por aqueles que emergem de diferentes
status sociais, que exercem funções e papeis diferenciados na engrenagem social e educacional
(GOMES, 2000; BUNZEN, 2010; SOUZA, 2011; LOPES et al, 2017).
Por fim, cabe considerar que a interação didática estabelecida está intimamente
articulada aos objetivos educacionais, assumidos também a partir de uma “agenda” da docente,
educadora, militante, liderança de coletivo cultural, como um projeto de atuação em um
território de extrema vulnerabilidade social. Se o interesse da educação formal secundária é
formar para uma situação avaliativa específica, para a professora, parece que a maior
preocupação do trabalho de ensino de português é contribuir para formar sujeitos críticos,
conscientes da situação de opressão, de desigualdade, de injustiça social, mas, principalmente,
é contribuir para formar sujeitos de direito (ARROYO, 2012).
Direitos estes, inclusive, assegurados, do ponto de vista, constitucional, que podem e
devem ser requeridos por estes jovens pelo uso da língua como instrumento de poder, como
forma de ação e de interação no bojo das reais demandas sociais. Ensinar a ler, ensinar a
argumentar, ensinar a reivindicar modos de intervenção por via da língua(gens) parece ser um
compromisso profissional, filiado a uma postura filosófica e educativa, a fim de a juventude
periférica possa gozar da quase utópica cidadania plena no Brasil contemporâneo.
235
Tendo em vista esta realidade descrita e analisada nesta tese, acreditamos que investigar
a epistemologia do conhecimento escolar e da prática do professor é fundamental e estratégico
para a compreensão dos processos que, de fato, estão em jogo em diferentes ambientes
institucionais escolares da educação secundária no país, a saber: as dificuldades estruturais e as
condições de trabalho do professor, os desafios relativos à realização de ensino e à
concatenação dos eixos de ensino ao longo do processo didático, os entrecruzamentos das
demandas locais e institucionais conjugadas aos citados eixos de trabalho de ensino de
Português, o atendimento às finalidades do nível de ensino e às necessidades de formação para
um mercado de trabalho cada vez mais exigente e competitivo, dentre outros.
Estas constatações estampadas nestes dados investigados podem ser relevantes para o
processo reflexivo conduzido ao longo da formação de professores - tanto inicial, quanto
continuada - para a realização do ensino de Português em territórios de extrema
vulnerabilidade social, a fim de que os docentes possam cogitar e conhecer estratégias de
ensino para dirimir as problemáticas interligadas ao trabalho docente de resistência e de
sobrevivência, vivenciados no decorrer da escolarização de grupos não majoritários.
Problematizar acerca do trabalho docente implementado nestes territórios pode contribuir para
a formação de educadores para a construção e efetivação de projetos de ensino que
vislumbrem o acesso a processos de leitura, de produção, de análise e de circulação de práticas
letradas multissemióticas em ambientes escolares (ou não).
Além disso, cabe salientar que é necessário formar professores cientes de que as práticas
pedagógicas efetivadas nestes contextos não podem se eximir da concepção de que a escola,
como nos lembram Souza e Sito (2010), é um espaço ideológico privilegiado de disputas de
poder, de rupturas com narrativas de conciliação, de instauração de práticas educativas
voltadas à valorização da heterogeneidade e da singularidades dos letramentos.
Acreditamos que esta produção ativa, criativa, crítica e polêmica possa conceder lugar à
instauração da tensão discursiva constitutiva da produção de arenas de letramentos, de saberes,
de conhecimentos, de posicionamentos, de sentidos, de língua(gens), de cultura, de interação,
que venham a constituir o tenso, multifacetado, contraditório, híbrido, movediço Letramento
escolar no Ensino Médio. Penso que a (re)invenção do cotidiano escolar da escola pública
brasileira, bem cultural de capital importância para a sociedade, é uma das alavancas para
contribuir no complexo processo de conscientização crítica tão necessário e urgente, para que
possamos resistir, reexistir e (sobre) viver nas periferias brasileiras e conquistar a tão sonhada
transformação social no atual caos em que estamos a resistir (FREIRE, 2018; CERTEAU,
1994).
236
REFERÊNCIAS
ALENCAR, A. I. L.; MENDES, R. V. Reforma do ensino médio brasileiro: questões
relevantes para o debate e implementação. In: FERREIRA, M. M.; PAIM, J. H. (org.). Os
desafios do ensino médio. Rio de Janeiro: FGV, 2018.
ALVES, G. L. As reformas pombalinas da instrução pública no Brasil colônia: mapeamento
prévio para a produção do estado da arte em história da educação. Revista HISTEDBR,
[2006?]. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/artigos_frames/
artigo_043.html. Acesso em: 30 ago. 2017.
ALVES, J. M. A apropriação do gênero oral formal público: a exposição por alunos da 3ª
série do Ensino Fundamental. Dissertação (Mestrado em Linguística). Belém: UFPA, 2009.
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado (1918). Tradução: Walter José
Evangelista e Maria Laura Castro. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
AMARAL, T. C. I.; SECO, A. P. Marquês de Pombal e a reforma educacional brasileira.
Revista HISTEDBR, [2006]. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/
periodo_pombalino_intro.html. Acesso em: 30 ago. 2017.
ANDRADE, J. A. Redação escolar: aspectos cognitivos de um gênero textual peculiar. In:
SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DE GÊNEROS TEXTUAIS, 4., 2007,
Tubarão, SC. Anais eletrônicos [...]. Tubarão: Unisul, 2007.
ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia da prática escolar. 12. ed. Campinas: Papirus, 1995.
ARAÚJO, I. F. Letramento na educação do campo: contribuições da Pedagogia da
Alternância no Projovem Campo Saberes da Terra. Monografia (Especialização).
Paragominas: UEPA, 2012.
ARROYO, M. G. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012.
BACCEGA, M. A. Redações no vestibular: uma abordagem sociolinguística. Cadernos de
Pesquisa, n. 23, p. 73-82, dez. 1977.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
BARBOSA, T. M. F. Dinâmica dos sistemas de produção familiares da Ilha de Marajó: o
caso do município de Cachoeira do Arari. Dissertação (Mestrado em Ciência Animal)
UFPA, Belém, 2005.
237
BARROS, K. S. M. Redação escolar: produção textual de um gênero comunicativo? Leitura:
Teoria e Prática, v. 18, n. 34, p. 13-22, dez. 1999.
BARROSO, W. C. Educação e cidadania no republicanismo paraense: a instrução pública
primária nos anos de 1889-1897. Dissertação (Mestrado em Educação). Belém: UFPA, 2006.
BARTON, D.; HAMILTON, M. Local literacies. London: Routledge, 1998.
BARTON, D.; HAMILTON, M. Literacy practices. In: BARTON, D.; HAMILTON, M.;
IVANIC, R. (ed.). Situated literacies: reading and writing in context. Londres: Routledge,
2000. p. 7-15.
BATISTA, A. A. G. Aula de português: discurso e saberes escolares. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007.
BERENBLUM, A. A invenção da palavra oficial: identidade, língua nacional e escola em
tempos de globalização. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
BEZERRA, S. S. Letramentos em questão: um resgate histórico. Linguagem em Foco, v. 9, n.
1, p.131-139, 2017.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. Tradução: Sergio Miceli et al. 5. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1999.
BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de
ensino. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (org.). Múltiplas linguagens para o Ensino Médio. São
Paulo: Parábola, 2013.
____; MENDONÇA, M. (org.). Português no Ensino Médio e formação do professor. São
Paulo: Parábola Editorial, 2006.
____. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no Ensino
Médio. In: MENDONÇA, M.; BUNZEN, C. (org.) Português no Ensino Médio e formação
de professor. São Paulo: Parábola, 2006. p.139-161.
____; MEDEIROS, R.R.A. O ensino de gramática na primeira república (1889-1930): uma
análise da gramática expositiva, de Eduardo Carlos Pereira. Linha D'Água, v. 29, n. 1, p. 119-
141, jun. 2016.
____. Os Significados do Letramento Escolar como uma prática sociocultural. In: VÓVIO, C;
SITO, L; GRANDE, P. Letramentos: rupturas, deslocamentos e repercussões de pesquisa em
linguística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 2010. p. 99-120.
238
BURKE, P. Linguagens e comunidades nos primórdios da Europa moderna. São Paulo:
Unesp, 2010.
BRASIL. Tribunal de Contas da União (TCU). Relatório de Auditoria (Fiscalização nº
177/2013), Secretaria de Controle Externo da Educação, da Cultura e do Desporto (Secex
Educação), Brasília, 2014.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União: seção
1, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/
L9394.htm. Acesso em: 03 jan. 2016.
BRASIL. Decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931. Dispõe sobre a organização do ensino
secundário. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-
19890-18-abril-1931-504631-publicacaooriginal-141245-pe.html. Acesso em: 25 jul. 2018.
BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e
2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 ago.
1971. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5692-11-agosto-
1971-357752-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 25 jul. 2018.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil.
Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-
outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 25 jul. 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular: ensino médio. Brasília:
MEC, 2018. (Versão entregue ao CNE em 03 de abril de 2018).
BRITO, C. M. C. A Linguagem do vestibulando: três aspectos. Belém: Edufpa, 1995.
BRITO, C. M. C. Um estudo de regência na linguagem do vestibulando. Belém: Edufpa,
1995.
BRITTO, Luis Percival Leme. A sombra do caos: ensino de língua x tradição gramatical.
Campinas: Mercado de letras, 1997.
BRONCKART, J. P.; PLAZAOLA GIGER, I. La transposition didactique : histoire et
perspectives d’une problématique fondatrice. Pratiques, n. 97-98, p.35-58, jun. 1998.
CAMPOS, S. P. Projetos de educação de jovens e adultos: concepções, problemas e
resultados de praticas educativas. In: ANDRADE, M. R. et al. A educação na reforma
agrária em perspectiva: uma avaliação do programa nacional de educação na reforma
agrária. São Paulo: Ação educativa; Brasília: PRONERA, 2004. p. 139-154.
CAMPOS, S. P. Práticas de letramento no meio rural brasileiro: a influência do
movimento sem terra em escola pública de assentamento de reforma agrária. Tese
(Doutorado em Linguística Aplicada). Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2003.
239
CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: Edusp, 1998.
CARRAHER, D. W.; CARRAHER, T. N.; SCHLIEMANN, A. D. Na vida dez, na escola
zero. 10 ed. São Paulo: Cortez, 1995.
CARONE, F. B. O desempenho linguístico dos candidatos ao vestibular: concordância verbal.
Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 19, p. 39-52, 1976.
CAVALCANTE, A. B. et al. Terra Firme Digital: proposta de implementação de um Bairro
Digital para o território da Terra Firme em Belém do Pará. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL
DE INOVAÇÃO EM MÍDIAS INTERATIVAS, 4., 2016, Goiânia. Anais [...]. Goiânia: Media
Lab; UFG, 2016.
CAVALCANTI, M. C. A propósito da Linguística Aplicada. Trabalhos em Linguística
Aplicada, v. 7, p. 5-12, 1986.
CAVALCANTI, M. C. Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em
Linguística Aplicada: implicações éticas e políticas. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por
uma Linguística Aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006.
CAVALCANTI, M. C.; MOITA LOPES, L. P. Implementação da pesquisa na sala de aula de
línguas no contexto brasileiro. Trabalhos em Linguística Aplicada, n. 17, p. 133-144, 1991.
CERTEAU, M. A Invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
CERVETTI, G.; PARDALES, M. J.; DAMICO, J. S. A tale of differences: comparing the
traditions, perspectives, and educational goals of critical reading and critical literacy. Reading
Online, v. 4, n. 9, apr. 2001. Disponível em: http://www.readingonline.org/articles/art_index.
asp? HRE F=/articles/cervetti/index.html. Acesso em: 15 jun. 2017.
COPE, B.; KALANTZIS, M. (ed.). Multiliteracies: literacy learning and the design of social
futures. London: Routledge, 2000.
COPE, B.; KALANTZIS, M. ‘Design’ in principle and practice: a reconsideration of the
terms of design engagement. The Design Journal, v. 14, n. 1, p. 45-63, 2011. Disponível em:
http://newlearningonline.com/_uploads/Design_in_Principle_and_Practice_A_Reconsidera.pd
f. Acesso em: 15 jun. 2018.
COSTA, E. G. M. Práticas de letramento crítico na formação de professores de línguas
estrangeiras. RBLA, v. 12, n. 4, p. 911-932, 2012. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbla/v12n4/v12n4a12.pdf. Acesso em: 06 fev. 2016.
COUTO, A. C. Narcotráfico na metrópole: das redes ilegais à “territorialização perversa”
na periferia de Belém. Dissertação (Mestrado Planejamento do Desenvolvimento) –
Universidade do Estado do Pará, Belém, 2010.
COUTO, A. C. A geografia do crime na metrópole: das redes ilegais à territorialização
perversa na periferia de Belém. Belém: Eduepa, 2014.
240
COX, M. I. P.; ASSIS-PETERSON, A. A. Transculturalidade e transglossia: para compreender
o fenômeno das fricções linguístico-culturais em sociedades contemporâneas sem nostalgia. In:
BORTONI-RICARDO, S. M.; CAVALCANTI, M. C. (org.). Transculturalidade, linguagem
e educação. Campinas: Mercado de Letras, 2007. p. 23-43.
CURY, C. R. J. O ensino médio no Brasil: histórico e perspectivas. Educação em Revista,
Belo Horizonte, n. 27, p. 73-84, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
Curriculares Nacionais (Ensino Médio): Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília:
MEC, 1999.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
Curriculares Nacionais: primeiro e segundo ciclos do Ensino Fundamental: língua
portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1997.
CURY, C. R. J. Educação básica como Direito. Cadernos de Pesquisa, v. 38, n. 134,
maio/ago. 2008.
CHARTIER, A. M. A ação docente: entre saberes práticos e saberes teóricos. In: ______.
Práticas de leitura e escrita: história e atualidade. Tradução deFlávia Sarti e Teresa Van
Acker. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2007.
CHERVEL, A. L. Histoire des disciplines scolaires: réflexions sur un domaine de recherches.
Histoire d L’ Éducation, Paris, v. 38, n. 1, p. 59-119, 1988.
CHAUÍ, M. Cultura e democracia. 8. ed. São Paulo: Cortez, 1989.
CHAVES, M. H. O gênero seminário escolar como objeto de ensino: instrumentos
didáticos nas formas do trabalho docente. 2008. Dissertação (Mestrado em Letras – Estudos
Linguísticos) – Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará, Belém,
2008.
DELORS, J. et al. Educação um tesouro a descobrir: relatório para a UNESCO da comissão
internacional sobre educação para o século XXI. São Paulo: Cortez, 1998.
DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita: elementos
para a reflexão sobre uma experiência suíça (Francófona). In: DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B.
Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado das Letras, 2004. p. 41-70.
ERICKSON, F.; SHULTZ, J. “O quando” de um contexto: questões e métodos na análise da
competência social. In: RIBEIRO, B.; GARCEZ, P. M. Sociolinguística Interacional. 2. ed.
São Paulo: Loyola, 2002. p. 215-234.
ERICKSON, F. Qualitative methods. In: LINN, R. L.; ERICKSON, F. (ed.). Quantitative
methods; Qualitative Methods. New York: Macmillan, 1990. v. 2.
FAIRCLOUGH, N. Multiliteracies and language: orders of discourse and intertextuality. IN:
COPE, B.; KALANTZIS, M. (ed.). Multiliteracies: literacy learning and the design of social
futures. London: Routledge, 2000. p. 162-181.
241
FAIRCLOUGH, N.; CLARCK, R.;;IVANIC, R.; JONES,M. Conscientização crítica da
linguagem. TLA. n. 28, p.37-57, jul/dez, 1996.
FERNANDES, M. S. N. O desempenho linguístico dos candidatos ao vestibular: distribuição
dos demonstrativos. Estudo das formas este / esse. Cadernos de Pesquisa, n. 19, p. 11-37,
1976.
FERREIRA, D. C. N. Práticas de letramento e variação linguística: um estudo sobre a sala de
aula de uma escola pública de periferia. Trabalho de Conclusão de Curso. Belém: UFPA,
2005.
FERREIRA, D. C. N. Aula de português no ensino médio: a institucionalização de objetos
gramaticais no trabalho docente. 2008. Dissertação (Mestrado em Letras – Estudos
Linguísticos) – Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará, Belém,
2008.
FERREIRA, D. C. N. et al. Alfabetização e letramento: conceitos e práticas. In: FERREIRA,
D. (org.). Letramento escolar: saberes e fazeres da docência. Belém: Cromos & Graphitte
Editores, 2014. p. 11-30.
FERREIRA, D. C. N. Proposta de produção textual para o Ensino Médio: Como o professor
tece este instrumento didático? Raído, v. 11, n. 25, jan./jun. 2017.
FERREIRA, D. C. N. Letramento escolar: processos de institucionalização na aula de
português. Travessias Interativas, São Cristóvão, n. 14, v. 7, p. 239-258, jul./dez. 2017b.
FERRETI, C. J.; SILVA, M. R. Reforma do Ensino Médio no contexto da medida provisória
n o 746/2016: estado, currículo e disputas por hegemonia. Educação e Sociedade, Campinas,
v. 38, n. 139, 2017.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 5. ed.
São Paulo: Loyola, 1999.
FONSECA, C. L. W. Quando cada caso NÃO é um caso: pesquisa etnográfica e educação.
Revista Brasileira de Educação, n. 10, p. 58-78, 1999.
FRANÇA, M. P. S. S. A. Raízes históricas do ensino secundário público na Província do
Grão Pará: o Liceu Paraense (1840- 1889). Dissertação (Mestrado em Filosofia e História da
Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.
FRANÇA, M. P. S. S. A. História da Escola Normal da Província do Grão-Pará no Império.
Revista Cocar, Belém, v. 6, n. 11, p. 29-40, jan./jul. 2012. Disponível em: https://paginas.
uepa.br/seer/index.php/cocar/article/download/211/182. Acesso em: 19 set. 2017.
FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018. [1921-
1927]. p. 136-138.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
242
FREIRE, P. Ação cultural para liberdade e outros escritos. 12. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2007[1968].
FREIRE, A. M. Analfabetismo no Brasil. São Paulo: Cortez, 1989.
FREIRE, P. Educação e Mudança. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
FREITAS, M. Resenha do artigo “Práticas de letramento”, de Barton e Hamilton.
FERREIRA, D. (org.). Letramento escolar: saberes e fazeres da docência. Belém: Cromos &
Graphitte Editores, 2014.
FRIGOTTO, G. Concepções e mudanças no mundo do trabalho e o Ensino Médio. In:
FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M.; RAMOS, M. (org.). Ensino médio integrado: concepção
e contradições. São Paulo: Cortez, 2005. p. 57-82.
FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. (org.). Ensino médio: ciência, cultura e trabalho. Brasília:
MEC/SEMTEC, 2004.
GADOTTI, M. Educação popular, educação social, educação comunitária: conceitos e
práticas diversas, cimentadas por uma causa comum. Proceedings Scielo, v. 2, n. 4, 2013.
Disponível em: www.proceedings.scielo.br/pdf/cips/n4v2/13.pdf. Acesso em: 27 maio 2018.
GARCEZ, P., SCHULZ L. Olhares circunstanciados: etnografia da linguagem e pesquisa em
Linguística Aplicada no Brasil. DELTA: Documentação de Estudos em Linguística
Teórica e Aplicada, v. 31, n. spe, p.1-34, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/
delta/v31nspe/1678-460X-delta-31-spe-00001.pdf. Acesso em: 20 jan. 2016.
GARCIA, M. M. A.; HYPOLITO, A. M.; VIEIRA, J. S. As identidades docentes como
fabricação da docência. Educação e Pesquisa, v. 31 n. 1, p. 45-56, jan./mar. 2005.
GARCIA, E. F. O projeto pombalino de imposição da língua portuguesa aos índios e a sua
aplicação na América Meridional. Tempo, v. 12, n. 23, p. 23-38, 2007. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a03. Acesso em: 06 set. 2017.
GALVÃO, A. M. O.; BATISTA, A. A. G. Oralidade e escrita: uma revisão. Cadernos de
Pesquisa, v. 36, n. 128, p. 403-432, maio/ago. 2006.
GEE, J. P. Oralidad y literacidad: de el pensamiento salvaje a ways with words. In:
ZAVALA, V.; NIÑO-MURCIA, M; AMES, P. (ed.). Escritura y sociedad. Nuevas
perspectivas teóricas y etnográficas. [S. l: s. n.], 2004. p. 23-55.
GEE, J. P. Social linguistics and literacies: ideology in discourses, critical perspectives on
literacy and education. London: [s. n.], 1990.
GOMES, C. A. O Ensino Médio ou a história do patinho feio recontada. Brasília:
Universa, 2000.
GOMES-SANTOS, S. N. A questão do gênero no Brasil: teorização acadêmico-científica e
normatização oficial. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.
243
GOMES-SANTOS, S. N. Gêneros como objetos de ensino: questões e tarefas para o ensino.
Salto Para o Futuro, v. 03, p. 41-62, 2007.
GOMES-SANTOS, S. N. A escrita nas formas do trabalho docente. Educação e Pesquisa, v.
36, n. 2, p. 445-457, maio/ago. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v36n2/
a02v36n2. Acesso em: 15 abr. 2015.
GOMES-SANTOS, S. N.; FERREIRA, D. O professor e seus instrumentos didáticos: um caso
de trabalho docente no Ensino Médio. In: GOMES-SANTOS, S. N. et al. (org.). Trabalho
docente e linguagem em diferentes contextos escolares. Belém: Paka-Tatu, 2014. p. 51-69.
GOMES-SANTOS, S. N. et al. (org.). Trabalho docente e linguagem em diferentes
contextos escolares. Belém: Paka-Tatu, 2014.
GUSMÃO, L. H. A. Cartografia dos Distritos Administrativos de Belém/PA com Google
Earth. Geocartografia Digital, maio 2013. Disponível em: http://geocartografiadigital.
blogspot.com.br/2013/05/cartografia-dos-distritos.html. Acesso em: 24 set. 2015.
GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
HALL, S. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
HALL, S. Introdución: quien necessita “identidad”? In: HALL, S.; GAY, P. (org.). Cuestiones
de identidad cultural. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.
HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução: Adelaine Resende et al.
Belo Horizonte: UFMG, 2009.
HAMILTON, M. Sustainable literacies and the ecology of lifelong learning. In: HARRISON,
R. R. F.; HANSON, A.; CLARKE, J. (orgs.). Supporting lifelong learning, v. 1: perspectives
on learning. London: Routledge; Open University Press, 2002.
HEATH, S. B. What no bedtimes story means: narratives Skills at home and school.
Language in Society, v.11, p. 49-76, 1982.
HEATH, S. B. Ways with words: language, life and work in communities and classrooms.
Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
HYMES, D. Models of the interaction of language and social life. In: GUMPERZ, J.;
HYMES, D (ed.). Directions in sociolinguistics: the ethnography of communication. New
York: Holt, Rhinehart & Winston, 1972. p. 35-71.
HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2017.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO
TEIXEIRA (INEP). Notas estatísticas do censo escolar. Brasília: MEC, 2017.
244
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Atlas da violência 2018.
Rio de Janeiro: IPEA; FBSP, 2018.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Atlas da violência 2019.
Rio de Janeiro: IPEA; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.
IZA, D. F. V. et al. Identidade docente: as várias faces da constituição do ser professor.
Revista Eletrônica de Educação, v. 8, n. 2, p. 273-292, 2014.
JANKS, H. Panorama sobre letramento crítico. In: JESUS, D. M.; CARBONIERI, D. (org.).
Práticas de multiletramentos e letramento crítico: outros sentidos para a sala de aula de
línguas. Campinas: Pontes, 2016. p. 21-39.
JANKS, H. Critical literacy in teaching and research. Education Inquiry, v. 4, n. 2, p. 225-
242, june 2013.
JANKS, H. The importance of critical literacy. English Teaching: Practice and Critique
Information, v. 11, n. 1, p.150-163, may 2012.
JANKS, H. Literacy and power. Nova York: Routledge, 2010.
JANKS, H. The access paradox. English in Australia, n. 139, p. 33-42, feb, 2004.
JORDÃO, C. M. No tabuleiro da professora tem… Letramento crítico? In: JESUS, D. M.;
CARBONIERI, D. (org.). Práticas de multiletramentos e letramento crítico: outros sentidos
para a sala de aula de línguas. Campinas: Pontes, 2016. v. 1, p. 41-56.
JORDÃO, C. M. Abordagem comunicativa, pedagogia crítica e letramento crítico: farinha do
mesmo saco? In: ROCHA, C. H.; MACIEL, R. F. (org.). Língua estrangeira e formação
cidadã: por entre discursos e práticas. Campinas: Pontes, 2013. p. 69-90.
JORDÃO, C. M. O que todos sabem... ou não: letramento crítico e questionamento
conceitual. Revista Crop 12, 21-46, 2007. Disponível em:
https://docs.ufpr.br/~clarissa/pdfs/QuestionConceitual_CROP_Jordao.pdf. Acesso em
06.02.2018.
KALMAN, J. Querido Santo Antônio: escrita vernácula e instabilidade social. In:
MARINHO, M.; CARVALHO, G. T. (org.). Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2010. p.125-155.
KLEIMAN, A. B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In:
KLEIMAN, A. B. (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a
prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p. 15- 61.
KLEIMAN, A. B.; SIGNORINI, I. O ensino e a formação do professor: alfabetização de
jovens e adultos. Porto Alegre: Artmed, 2000.
KLEIMAN, A. B. O conceito de letramento e suas implicações para o trabalho escolar. [S.
l.: s. n.], 2004a. (Digitalizado).
245
KLEIMAN, A. B. Processos identitários na formação profissional: o professor como agente
de letramento. [S. l.: s. n.], 2004b. (Digitalizado).
KLEIMAN, A. B.; TINOCO, G.; CENICEROS, R. C. Projetos de letramento no Ensino
Médio. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (org.). Múltiplas linguagens para o Ensino
Médio. São Paulo: Parábola, 2013. p. 110-125.
KLEIMAN, A. B.; SITO, L. Multiletramentos, interdições e marginalidades. In: KLEIMAN,
A.; ASSIS, J. A. (org.). Significados e ressignificações do letramento: desdobramentos de
uma perspectiva sociocultural sobre a escrita. Campinas: Mercado de Letras, 2016. p. 169-
198.
KUENZER, A. Z. A formação de professores para o Ensino Médio: velhos problemas, novos
desafios. Educação & Sociedade, v. 32, n. 116, p. 667-688, jul./set. 2011.
KUENZER, A. Z. (org.) Ensino Médio, construindo uma proposta para os que vivem do
trabalho. São Paulo: Cortez, 2009.
KUENZER, A. Z. O Ensino Médio no Plano Nacional de Educação 2011-2020: superando a
década perdida? Educação & Sociedade, v. 31, n. 112, p. 851-73, jul./set. 2010.
KUENZER, A. Z. Ensino Médio e profissional: as políticas do Estado neoliberal. 4. ed. São
Paulo: Cortez, 2007.
KRAWCZYK, N. O Ensino Médio no Brasil. São Paulo: Ação Educativa, 2009. Disponível
em: http://www.bdae.org.br/dspace/bitstream/123456789/2342/1/emquestao6.pdf. Acesso em:
15 abr. 2015.
KRAWCZYK, N. Sociologia do Ensino Médio: crítica ao economicismo na política
educacional. São Paulo: Cortez, 2014.
LEMOS, C. T. G. Redações no vestibular: algumas estratégias. Cadernos de Pesquisa, n. 23,
p. 61-71, 1977.
LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo:
Ática, 1997.
LEVIN, H.; HOPFENBERG, W. The accelerated schools resource guide. New York:
Maxwell Macmillan, 1993.
LIMA, H. R. V. Redações no vestibular: figuras de retórica. Desvios da língua comum?
Cadernos de Pesquisa, n. 23, p. 17-28, 1977.
LOPES, A. R. C. Conhecimento escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1999.
LOPES, I. Cenas de letramentos sociais. Tese (Doutorado em Linguística) – Programa de
Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006.
LOPES, A. C. et al. Desregulamentando dicotomias: transletramentos, sobrevivências,
nascimentos. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 56, n. 3, p. 753-780, 2017.
246
LOPES, A. C. Letramentos de sobrevivência: costurando vozes e histórias. Revista da ABPN,
v. 10, p. 678-703, jan. 2018.
LOPES, A. C. Discursos curriculares na disciplina escolar química. Revista Ciência e
Educação, v. 11, n. 2, p. 263-278, 2005.
LUKE, A. Defining critical literacy. In: PANDYA, J; AVILA, J. (org.). Moving critical
literacies forward: a new look at praxis across contexts. New York: Routledge, 2014.
LUKE, A. Critical literacy: foudational notes. Theory Into Practice, v. 51, n. 1, p. 4-11, 2012.
LUKE, A.; DOOLEY, K. Critical literacy and second language learning. In: HINKEL, E.
(ed.). Handbook of research in second language teaching and learning. New York:
Routledge, 2011. v. 2.
MACHADO, M. L. C. A. A língua materna no Ensino Médio: finalidades e organização
curricular. Teias, v. 18, n. 49, p. 40-58, 2017.
MAHER, T. M. A Educação do Entorno para a Interculturalidade e o Plurilinguismo. In:
KLEIMAN, A. B.; CAVALCANTI, M. C. (org.). Linguística aplicada: faces e
interfaces. Campinas: Mercado de Letras, 2007. p. 255-270.
MAIA, J. O. Letramentos de sobrevivência em redes digitais: caminhos possíveis na luta por
direitos humanos. Trabalho em Linguística Aplicada, v. 57, n. 2, p. 954-974, 2018.
MAMIZUKA, R. B. Redações no vestibular: estudo do parágrafo, problemas de organização.
Cadernos de Pesquisa, n. 23, p. 37-42, 1977.
MATTOS, C. L. G. A abordagem etnográfica na investigação cientifica. 2001. Disponível
em: www. ines.org.br. Acesso em: 29 nov. 2004.
MEDINA, J. Speaking from elsewhere: a new contextualist perspective on meaning, identity,
and discursive agency. New York: State University of New York Press, 2006.
MENDONÇA, M. Análise linguística no Ensino Médio: um novo olhar, um outro objeto. In:
BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (org.). Português no ensino médio e formação do
professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 199-226.
MENDONÇA, M.; LEAL, T. F. Progressão escolar e gêneros textuais. In: SANTOS, C. F.;
MENDONÇA, M. (org.). Alfabetização e letramento: conceitos e relações. Belo Horizonte:
Autêntica, 2007. p. 57-71.
MÉSZAROS, I. A educação para além do capital. 2. ed. Tradução: Isa Tavares. São Paulo:
Boitempo, 2008.
MOITA LOPES, L. P. (org.). O português no século XXI: cenário geopolítico e
sociolinguístico. São Paulo: Parábola, 2013a.
MOITA LOPES, L. P. (org.). Linguística aplicada na modernidade recente: Festschrift
247
para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola, 2013b.
MOITA LOPES, L. P. Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola,
2006.
MOITA LOPES, L. P. Identidades fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e
sexualidade em sala de aula. Campinas: Mercado de Letras, 2002.
MOITA LOPES, L. P. Oficina de linguística aplicada: a natureza social e educacional dos
processos de ensino aprendizagem. 2. ed. Campinas: Mercado de Letras, 1996.
MOITA LOPES, L. P. Pesquisa interpretativista em linguística aplicada: a linguagem como
condição e solução. DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e
Aplicada, v. 10, n. 2, p. 329-338, 1994.
MOCKLER, N. Beyond ‘what works’: understanding teacher identity as a practical and
political tool. Teachers and Teaching: Theory and Practice, v. 17, n. 5, p. 517-528, oct.
2011.
MONTE MÓR, W. Crítica e letramentos críticos: reflexões preliminares. In: ROCHA, C. H.;
MACIEL, R. F. (org.). Língua estrangeira e formação cidadã: por entre discursos e práticas.
Campinas: Pontes, 2013. p. 31-50.
MONTE MÓR, W. As políticas de ensino de línguas e o projeto de letramentos. In:
NICOLAIDES, K. et al. (org.). Política e políticas linguísticas. Campinas: Pontes Editores,
2013b. p. 219-236.
MOTTA, V. C.; FRIGOTTO, G. Por que a urgência da reforma do Ensino Médio? Medida
provisória nº 746/2016 (lei nº 13.415/2017). Educação e Sociedade, v. 38, n. 139, p. 355-
372, abr./jun. 2017.
NEGRÃO, E. V. Redações no vestibular: utilização do léxico: estudo dos adjetivos. Cadernos
de Pesquisa, n. 23, p. 9-15, 1977.
NISKIER, A. Educação Brasileira: 500 anos de História. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2001.
OBSERVATÓRIO DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (OPNE). 3 anos de plano
nacional de educação. OPNE, jun. 2017. Disponível em: http://www.observatoriodopne.
org.br/pne/saiba-mais/3-anos-de-plano-nacional-de-educacao. Acesso em: 20 jul. 2017.
OLIVEIRA, D. A. As políticas educacionais no governo Lula: rupturas e permanências.
RBPAE, v. 25, n. 2, p. 197-209, maio/ago. 2009.
OLIVEIRA, I. B. Contribuições de Boaventura de Souza Santos para a reflexão curricular:
princípios emancipatórios e currículos pensados praticados. Revista E-Curriculum, v. 9,
2012.
ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO (OCEM). Linguagens,
códigos e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação; Secretaria de Educação Média e
Tecnológica, 2006.
248
OSAKABE, H. Redações no vestibular: provas de argumentação. Cadernos de Pesquisa, n.
23, p. 51-59, 1977.
PAIVA, V. História da educação popular no Brasil: educação popular e educação de
adultos. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2003.
PASTANA, M. P. S. D. Leitura e produção do gênero carta de leitor: os desafios de uma
proposta de ensino. 2007. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal do
Pará, Belém, 2007.
PÉCORA, A. A. B. Redações no vestibular: estudo do período: uma proposta pragmática.
Cadernos de Pesquisa, n. 23, p. 29-36, 1977.
PÉCORA, A. A. B. Problemas de Redação. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
PENNYCOOK, A. Uma linguística aplicada transgressiva. Tradução: Luiz Paulo da Moita
Lopes. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São
Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 67-84.
PEREIRA, W. J. A base Nacional e o novo Ensino Médio brasileiro: breve histórico e
principais impactos. In: FERREIRA, M. M.; PAIM, J. H. (org.). Os desafios do Ensino
Médio. Rio de Janeiro: FGV, 2018.
PIETRI, E. Sobre a constituição da disciplina curricular de Língua Portuguesa. Revista
Brasileira de Educação, v. 15, n. 43, jan./abr. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/
pdf/rbedu/v15n43/a05v15n43.pdf. Acesso em: 03 mar. 2015.
RAJAGOPALAN, K. Política linguística: do que é que se trata, afinal? In: NICOLAIDES, C.
et al. (org.). Política e políticas linguísticas. Campinas: Pontes Editores, 2013. p. 19-42.
RAMA, A. A cidade das Letras. São Paulo: Brasiliense, 1985.
RAMOS, M. N. O "novo" Ensino Médio à luz de antigos princípios: trabalho, ciência e
cultura. Boletim do Senac, 2007. Disponível em: http://www.senac.br/INFORMATIVO/
BTS/292/boltec292c.htm. Acesso em: 12 out. 2007.
RAMPTON, B.; MAYBIN, J.; ROBERTS, C. Methodological foundations in linguistic
ethnography. Working Papers in Urban Language and Literacies, paper 125, 2014.
RAZZINI, M. O espelho da nação: a antologia nacional e o ensino de português e de
literatura (1838-1971). 2000. 442 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da
Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.
RIBEIRO, M. L. S. História da educação brasileira: a organização escolar. 15. ed.
Campinas: Autores Associados, 1998.
ROCHA, C. H.; MACIEL, R. F. (org.). Língua estrangeira e formação cidadã: por entre
discursos e práticas. Campinas: Pontes, 2013.
249
RODRIGUES, I. C. F. S. Retextualização e intertextualidade em textos de alunos de 5ª
série do Ensino Fundamental. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal
do Pará, Belém, 2006.
ROJO, R. Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula: progressão curricular e
projetos. In: ROJO, R. A prática de linguagem em sala de aula. Campinas: Mercado de
Letras, 2000.
ROJO, R.; CORDEIRO, G. S. Apresentação: gêneros orais e escritos como objetos de ensino:
modo de pensar, modo de fazer. In: SCHNEUWLY, B; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos
na escola. Tradução e organização: Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado
de Letras, 2004.
ROJO, R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola, 2009.
ROJO, R.; MOURA, E. (org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012.
ROMANELLI, O. O. História da educação no Brasil (1930/1973). 37. ed. Petrópolis: Vozes,
2012.
ROSA, M. I. P.; RAMOS; T.A. Identidades docentes no Ensino Médio: investigando
narrativas a partir de práticas curriculares disciplinares. Pro-Posições, v. 26, n. 1, p. 141-160,
2015.
SANTIAGO, S. Uma literatura nos trópicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
SANTOS MARQUES, I. B. A. A formação de professores de Língua Portuguesa: projetos de
letramento, agência e empoderamento. In: KLEIMAN, A.; ASSIS, J. A. (org.). Significados e
ressignificações do letramento: desdobramentos de uma perspectiva sociocultural sobre a
escrita. Campinas: Mercado de Letras, 2016. p. 111-142.
SANTOMÉ, J. T. As culturas negadas e silenciadas no currículo. In: SILVA, T. T (org.).
Alienígenas na sala de aula. 8. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 159-177.
SAUTCHUK, I. A produção dialógica do texto escrito: um diálogo entre escritor e leitor
interno. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
SHIGUNOV NETO, A. S.; MACIEL, L. S. B. O ensino jesuítico no período colonial
brasileiro: algumas discussões. Educar, n. 31, p. 169-189, 2008.
SILVA, A. Práticas de ensino de leitura e escrita no Programa Alfa e Beto: entre estratégias e
táticas. Revista Educação em Questão, v. 49, n. 35, p. 99-126, maio/ago. 2014.
SILVA, G. B. A educação secundária: perspectiva histórica e teórica. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1969.
SILVA, M. R. O Ensino Médio após a LDB de 1996: trajetórias e perspectivas. Revista Pátio:
Ensino Médio, Profissional e Tecnológico, 2012.
250
SILVA, M. R. Direito à educação, universalização e qualidade: cenários da Educação Básica e
da particularidade do Ensino Médio. Jornal de Políticas Educacionais, v. 9, n.17-18, p. 61-
74, 2015. Disponível em: http://revistas.ufpr.br/jpe/article/view/41441. Acesso em: 20 jul.
2017.
SILVA, S. P. Leitura e formação docente nas vozes de futuros professores. Dissertação
(Mestrado em Linguística) – Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará,
Belém, 2007.
SILVA, S. S. F. A apropriação do gênero debate por alunos de 4 série do Ensino
Fundamental. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) – Universidade Federal do
Pará, Belém, 2008.
SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.
SIGNORINI, I. Letramento e (in) flexibilidade comunicativa. In: KLEIMAN, A. B. (org.). Os
significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas:
Mercado de Letras, 1995. p. 161-199.
SIGNORINI, I. A questão da língua materna na sociedade democrática: um desafio para a
linguística aplicada contemporânea. In: MOITA LOPES, L. P. et al. (org.). Por uma
linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 169-190.
SITO, L. R. S. Ali está a palavra deles: um estudo sobre práticas de letramento em uma
comunidade quilombola do litoral do Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em
Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2010.
SOARES, M. Português na escola: história de uma disciplina curricular. In: BAGNO, M.
(org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. p. 155-177.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
SOARES, M. Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, V. M. (org). Letramento no Brasil:
Reflexões a partir do INAF 2001. 2 ed. São Paulo: Global, 2004b. p. 89-113.
SOARES, M. Práticas de letramento e implicações para a pesquisa e para políticas de
alfabetização e letramento. In: MARINHO, M.; CARVALHO, G. T. (org.). Cultura escrita e
letramento. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p. 54-67.
SOARES, M. A escolarização da Literatura Infantil e Juvenil. In: EVANGELISTA, A.;
BRINA, H.; MACHADO, M. Z. (org.). A escolarização da leitura literária: jogo do livro
infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 17-48.
SOARES, M. O ensino no período colonial: passagens da história da educação brasileira.
Percursos históricos, v. 1, n. 1, maio, 2011. Disponível em: http://percursoshistoricos.blogs
pot.com.br/2011/05/o-ensino-no-periodo-colonial-passagens.html. Acesso em: 20 jul. 2017.
251
SOUZA, A. L. S. Linguagem e letramentos de reexistências: exercícios para reeducação das
relações raciais na escola. Linguagem em Foco, v. 8, n. 2, p.67-76, 2016.
SOUZA, A. L. S. Letramentos de reexistência: poesia, grafite, música, dança: hip-hop. São
Paulo: Parábola, 2011.
SOUZA, A. L. S.; SITO, L. Letramentos e relações raciais em tempos de educação
multicultural. In: VOLVIO, C. L. et al. (org.). Letramentos: rupturas, deslocamentos e
repercussões de pesquisa em Linguística Aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 2010. p. 29-
50.
SOUZA, R. M. Protagonismo juvenil: o discurso da juventude sem voz. Revista Brasileira de
Adolescência e Conflitualidade, v. 1, n. 1, p. 1-28, 2009.
SHOR, I. What is critical literacy? Journal for Pedagogy, Pluralism and Practice, p. 1-27,
1999.
SCHNEUWLY, B. Les outils de l’enseignant: un essai didactique. Repères, n. 22, p. 19-38,
2000.
SCHNEUWLY, B. La tâche: outil de l´ enseignant. métaphore ou concept? In:
SCHNEUWLY, B. et al. (dir.). Les taches et leurs entours em classe de français. Actes du
8º Colloque International de la DFLM. Neuchâtel, 26-28 september, 2001. Neuchâtel: IRDP,
2001. 1 CD-ROM.
SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução: Roxane Rojo e
Glaís Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004.
SCHNEUWLY, B.; DOLZ, Joaquim; RONVEAUX, Christophe. Le synopsis: um outil pour
analyser les objets. Didactique dês langues, FAPSE, Genève-Suisse. 2005, p.1-11 (mimeo).
SCHNEUWLY, B.; CORDEIRO, G. S.; DOLZ, J. A la recherche de l’objet enseigné: une
démarche multifocale. Les Dossiers des Sciences de L’éducation, n. 14, p. 77-93, 2006.
SCHNEUWLY, B. L’objet enseigné. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (org.). Des objets
enseignés en classe de français: le travail de l’enseignant sur la rédaction de texts
argumentatifs et sur la subordonnée relative. Rennes, FR: Presses Universitaires de Rennes,
2009. p. 17-28. Tradução: Sandoval Nonato Gomes Santos. Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo, 2011. [Uso restrito].
SCRIBNER, S; COLE, M. The psychology of literacy. Cambridge, MA: Harvard University
Press, 1981.
STREET, B. Letramentos sociais. São Paulo: Parábola, 2014.
STREET, B. Dimensões “escondidas” na escrita de artigos acadêmicos. Revista Perspectiva,
Florianópolis, v. 28, n. 2, p. 541-567, jul./dez. 2010.
STREET, B. Novos estudos de letramento. In: MARINHO, M.; CARVALHO, G. T.
(org.). Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010b. p. 33-53.
252
STREET, B.; BAGNO, M. Perspectivas interculturais sobre o letramento. Filologia e
Linguística Portuguesa, n. 8, p. 465-488, 2006.
STREET, B. Literacy in theory and practice. Cambridge, UK: Cambridge University Press,
1984.
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
TARDIF, M.; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência
como profissão de interações humanas. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 10 e
20graus. São Paulo: Cortez, 1996.
TERZI, S. B. A oralidade e a construção da leitura por crianças de meios iletrados. In:
KLEIMAN, A. B. (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a
prática social da escrita. Campinas: Mercado de letras, 1995. p. 91-117.
TILIO, R. O livro didático no ensino de línguas: caracterização do objeto, função e critérios de
escolha. In: BARROS, A. L. E. C.; TENO, N. A. C.; ARAUJO, S. D. (org.). Manifestações:
ensaios críticos de língua e literatura. Curitiba: Appris, 2016. p. 215-237.
TOMLINSON, B. Introduction: applied linguistics and materials development. In:
TOMLINSON, B. (ed.) Applied linguistics and materials development. London:
Bloomsbury, 2013.
TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
THOMAS, J. Doing critical ethnography. Newbury Park, CA: Sage Publications, 1993.
VASCONCELOS, H. et al. A formação do professor para a escola básica no Pará. Belém:
UFPA,1992.
VAL, M. G. C. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
VIANNA, H. M. Redação e medida da expressão escrita: algumas contribuições da pesquisa
educacional. Cadernos de Pesquisa, n. 16, p. 41-47, 1976.
VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação
em Revista, n. 33, jun. 2001.
VICENTINI, M. P. A redação no ENEM e a redação no 3º ano do Ensino Médio: efeitos
retroativos nas práticas de ensino da escrita. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto
de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.
VOLPI, M; SILVA, M. S.; RIBEIRO, J. 10 desafios do Ensino Médio no Brasil: para
garantir o direito de aprender de adolescentes de 15 a 17 anos. Brasília: UNICEF, 2014.
253
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário: Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
VÓVIO, C. L.; SOUZA, A. L. S. Desafios metodológicos em pesquisas sobre letramento. In:
KLEIMAN, A. B.; MATENCIO, M. L. M. (org.). Letramento e formação do professor:
práticas discursivas, representações e construção do saber. Campinas: Mercado de Letras,
2005. p. 41-64.
ZAVALA, V.; NIÑO-MURCIA, M.; AMES, P. (ed.). Escritura y sociedad: nuevas
perspectivas teóricas y etnográficas. Lima: Red para el desarrollo de las Ciencias Sociales en
el Peru, 2004.
ZIBAS, D. M. L. A reforma do Ensino Médio nos anos 1990: o parto da montanha e as novas
perspectivas. Revista Brasileira de Educação, n. 28, p. 24-36, 2005.
ZIBAS, D. M. L. Breves anotações sobre a história do Ensino Médio no Brasil e a reforma dos
anos de 1990. In: PARDAL, L. et al. Ensino Médio e ensino técnico no Brasil e Portugal:
raízes históricas e panorama atual. Campinas: Autores Associados, 2005.
ZOTTI, S. A. Sociedade, educação e currículo no Brasil: dos jesuítas aos anos de 1980.
Campinas: Autores Associados. Brasília: Ed. Plano, 2004.
ZOTTI, S. A. O ensino secundário no império brasileiro considerações sobre a função social e
o currículo do Colégio D. Pedro II. Revista HISTEDBR, n.18, p. 29-44, jun. 2005. Disponível
em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/revis/revis18/art04_18.pdf. Acesso em: 06 set.
2017.
254
ANEXOS
255
ANEXO A – LETRA DE MÚSICA PAU TORANDO, DE RAFAEL LIMA
PAU TORANDO!
Levanta juventude vem pra luta;
Acorda, tá na hora de lutar.
Agora temos mais é que ir pra cima, levanta bora por pau pra torar!
Pau canta toda hora, vem pra tora!
Vumbora, bora por pau pra torar!
milícia da polícia, tá matando na perifa; Levanta quero ver... perifa levantar!
(Refrão)
Eo, eo, eea... Eo, eo, eea...
Milicia da polícia, tá matando na perifa;
Levanta quero ver... perifa levantar!
Agora tá na vez da juventude;
As cartas tão na mesa, vem pra cá.
Vumbora separar joio do trigo,
farinha que não presta, vai dançar!
Cabano que é de luta, vem pra tora!
Vumbora, prum levante popular.
Vumbora sacudir todas essas estruturas....
Fazer reforma agrária popular!
RAPA
Polícia que mata na periferia congresso roubando de noite, de dia; 'colarinho branco'... uma
patifaria... e a conta quem paga??? É sempre a mesma via!
É o pobre que é preto, é o preto, que é pobre; é o imposto que é caro, no feijão que sobe. No
açúcar, no arroz, na carne e no pão, e a conta quem paga? É sempre o cidadão!
Latifúndio que ataca matando posseiro, justiça disfarça, prende o pistoleiro; e o safando
mandante, que é o fazendeiro, continua soltinho, contando dinheiro. A justiça que é cega, só
enxerga o que quer! A polícia que é 'neutra', só prende quem quer! E a cadeia que sempre, só
pra pobre é, é um inferno que queima, só João e José!
(Refrão)
Eo, eo, eea... Eo, eo, eea...
Milicia da polícia, tá matando na perifa;
Levanta quero ver... perifa levantar!
Rafael Lima
256
ANEXO B – LETRA DE MÚSICA CANTILENA, DE RAFAEL LIMA
CANTILENA
Passa pra dentro moça descalça,
vem com a tua graça, assim reviver,
sai da janela, anda depressa,
ouve as histórias dos ancestrais
Gente que lutou, lutou, lutou...
por todo um sonho que era bom;
gente que sofreu, que sofreu, que sofreu...
e tanto sangue derramou
Tu nem te lembras eras criança,
sempre de trança a choramingar,
teu pai lembrava um longe distante...
Chegavam homens prum guerrear
Guerra de homens bravos, forte e valentes,
valentes, valentes, valentes, valentes...
Contra a tirania dessa nação;
Guerra de gente cabocla, negros, índios, uns humildes,
humildes, humildes, humildes, humildes,
luta de fazer revolução.
Teu pai contava que eram cabanos,
homens, mulheres, nesse lutar,
vinham de longe, do breu da mata,
tomar Belém para governar.
Vieram se chegando assim bem de mansinho,
mansinho, mansinho, mansinho, mansinho...
como que guarás no mangal a pousar;
vieram se entricheirando assim devagarzinho,
devagarzinho, devagarzinho, devagarzinho...
como uma jiboia num só sussurar
Conta teu pai que foram três guerras,
Contra os demandos desta nação;
eram mulheres, homens, crianças,
todos fazendo a rebelião.
Era gente, gente, gente, gente,
com fé em dias melhores,
trazendo no peito a saga da união,
querendo justiça, bradando suas certezas,
certezas, certezas, certezas, certezas...
257
Fazer do Pará uma grande nação!
Já se vão quase uns duzentos anos,
coisa que já nem se ouve mais falar;
boca de abiu fizeram esse tempo,
pra nossa história contar
Nossa verdadeira história, feita de cabanos,
cabanos, cabanos, cabanos, cabanos,
gente que lutou engrandecendo essa nação;
gente que morreu lutando, lutando,
lutando, lutando, lutando....por um Pará livre!
Um Pará com a saga da libertação!
Um Pará com a saga da libertação!
Rafael Lima
258
ANEXO C – PROVA DE SEGUNDA AVALIAÇÃO
259
260
ANEXO D – DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO
Sabe-se, por exemplo, que a universidade reproduz a ideia de que existe uma divisão sexual do
trabalho, uma vez que existem carreiras consideradas masculinas e carreiras consideradas femininas
.Engenharia, principalmente mecânica, é carreira masculina, assim como Geologia e Agronomia. Enfermagem e
serviço social são carreiras essencialmente femininas. .
O que estará por trás dessas associações sexistas? Lembram-se daquela ideia constante na educação
feminina de que a mulher nasceu para servir? Pois essa ideia se projeta com toda força no nível do trabalho
profissional, razão pela qual ela consegue mais facilmente empregos subalternos. O reflexo disso dentro da
universidade merece alguns estudos. Carreiras que implicam constante prestação de serviços são seguidas quase
exclusivamente por mulheres. É o caso de enfermagem (com mais de 95% de estudantes mulheres) e serviço
social (com percentual entre 80 e 90%).
Aqui encontramos a primeira contradição do processo ideológico que afirma a “fragilidade feminina”.
Numa sociedade em que a mulher é considerada tão frágil, por que reservam a ela, quase exclusivamente,
profissões tão árduas? E se realmente é preciso conciliar o lar e a profissão, temos aqui mais uma falácia. A
socióloga Cristina Bruschini, comparando enfermeiras e engenheiras, descobriu que as engenheiras harmonizam
melhor seus horários de trabalho com as exigências domésticas.
Vemos, nesse exemplo, que a suposta fragilidade da mulher pouco tem a ver com as “profissões
femininas”. Engenharia, que implica comando e prestígio (até quando?) é carreira para os homens. Enfermagem,
que implica prestação de serviços ao médico, ao doente, à família do doente etc., é carreira para mulheres.
Mas, a engenharia tem vários ramos. Mulher não deve frequentar construções ou parque industrial (a não
ser como operária mal paga). Já a engenharia química é um bom caminho. A idéia de laboratório – mulher entre
quatro paredes, “prisioneira da casa” – facilita o trânsito por certas carreiras do tipo química, biologia,
bioquímica. Já a geologia é desaconselhável. A Petrobrás nem emprega mulheres. Parecem preocupados com a
saúde da mulher (o que não impede que ela se mate lavando roupa). Mulher que faz geologia vai trabalhar em
paleontologia, campo em que se obviamente ganha menos.
O caso mais espantoso, porém, é o da agronomia. A agricultura foi, em sociedades tribais – e ainda é em
muitas regiões do mundo -, uma atividade predominantemente feminina. Na zona rural, mesmo em países
avançados, mulheres trabalham a terra lado a lado com seus maridos. Em alguns países africanos, mulheres
permanecem trabalhando a terra enquanto seus maridos vão para a cidade em busca de empregos domésticos. Por
que se teria criado, na sociedade industrial, o mito de que agrônomo deve ser homem, afastando as moças desse
curso universitário?
Esse artificialismo que divide as carreiras masculinas e femininas muitas vezes impede rapazes e moças
de realizarem suas verdadeiras tendências profissionais, em função dos preconceitos que orientam suas escolhas.
Quando um número equivalente de homens e mulheres cursarem enfermagem ou engenharia, haverá maior
probabilidade de que as pessoas estejam realmente se preparando para a realização profissional.
OLIVEIRA, A. et al. Relações de Gênero e ascensão feminina no ambiente organizacional: um ensaio teórico.
Revista de Administração da UFSM, v. 2, n. 1, 2009. Disponível em
http://periodicos.ufsm.br/reaufsm/article/viewFile/1279/752.