Miriam Bettina Paulina Bergel Oelsner AS 'DIREITAS' E A ... · antidemocrática. É também sabido...
Transcript of Miriam Bettina Paulina Bergel Oelsner AS 'DIREITAS' E A ... · antidemocrática. É também sabido...
1
Miriam Bettina Paulina Bergel Oelsner
AS 'DIREITAS' E A ALEMANHA CEM ANOS ATRÁS1
Em recente peça de teatro adaptada do texto do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt
[1921-1990] 'O juiz e seu carrasco' saltou-me à vista que o tema apresentado estava
moldado para ressaltar quase exclusivamente o obscurantismo e as injustiças sociais que
vivemos no presente, espalhadas em várias partes do mundo.
A peça 'Diálogo noturno com um homem vil' muito bem representada por Aílton Graça
e Celso Frateschi tem como foco o momento atual, não se relacionando tanto com o
livro. O herói de 'O juiz e seu carrasco', como descrito em rápidas pinceladas por
Dürrenmatt, assumiu atitudes antinazistas em pleno regime nazista, o que lhe valeu ser
expulso da Alemanha, já em 1933, ano do início do regime. Considerando quão pouco
essa temática é lembrada hoje, tomo a liberdade de discorrer sobre a questão.
Surge a discussão: - 'Como foi possível que um dos regimes políticos mais atrozes de
todos os tempos se instalasse na Alemanha? Por essa razão sempre quis estudar a
história da Alemanha anterior ao período nazista, matéria pouco conhecida na busca das
origens do nacional-socialismo. Encontramos historiadores que também se debruçaram
sobre o tema, como George Lachmann Mosse [1918-1997] e Fritz Stern [1926-2016]
que estudaram o fenômeno dos reforços negativos e nocivos da ideologia völkisch na
mentalidade alemã, rumo ao pensamento racista, ao antissemitismo, e à pureza racial.
Há outros autores como Thomas Mann, Golo Mann, Gerschom Scholem [1897 - 1982],
Victor Klemperer [1881- 1960], Stefan Zweig [1881- 1942], Lucy Dawidowicz, Yehuda
Bauer, Hans-Ulrich Wehler [1930-2014], Saul Friedländer [1932- ], Ângela Mendes de
Almeida, Robert S. Wistrich [1945-2015], Jonathan Israel, Daniel Arãao Reis Filho, o
eminente historiador David Bankier [1947-2010], Götz Aly [1947- ], Hadassa Ibn-Ito,
Renato Lessa, João Ribeiro Jr, Daniel Goldhagen, e outros.
1Miriam Bettina P. B. Oelsner - Doutora em Ciências pelo Departamento de História Social - USP
2
Falar sobre o fim do século 19 pode arejar as mentes que se encontram hoje voltadas aos
fatos ocorridos exclusivamente nos últimos trinta anos, ou seja, fins dos anos 80 do
século passado. O discurso do momento se articula somente entre 'nós e eles' e reviver o
antigo sketch do 'mocinho e bandido', esquivando-se de perceber a dimensão histórica
de como os acontecimentos atuais foram construídos.
Meu interesse pelo tema provém do fato de eu pertencer ao grupo de descendentes de
imigrantes alemães que fugiram do regime de Hitler. Familiares próximos que optaram
por permanecer na sua pátria, e não abandonar a terra de seus ancestrais dos últimos 500
anos foram assassinados em Auschwitz simplesmente por serem judeus, como a mãe da
minha mãe, entre muitos outros.
Os horrores do nazismo são sobejamente conhecidos. Meu interesse sempre se ateve em
entender as origens dessa ideologia racista e assassina, voltada à pureza da raça, à
intolerância religiosa e política, ao totalitarismo e que permitiu a existência de barbárie
nunca antes praticada por meio de uma ditadura intimidadora e extremamente perigosa,
o que levou Norbert Elias a cunhar a expressão 'colapso da civilização'.
Elencando fatos esmaecidos no momento apresento o desenrolar de como consegui
compreender acontecimentos históricos na Alemanha, que podem ser considerados
prováveis indutores das duas guerras mundiais, quer em 1914, quer em 1939.
Na esteira do Iluminismo surgiu o Iluminismo judaico na segunda metade do século 18
conduzido especialmente pelos filósofos, ditos populares, Moses Mendelssohn [1729 -
1786] e Efraim Gottfried Lessing [1729 - 1781], não judeu.
A nova corrente de pensamento trouxe forte alteração na vida judaica, culminando com
a 'queda das paredes do gueto', no período aproximado entre os anos de 1806 a 1812,
durante a dominação napoleônica na Alemanha, cuja intenção era exportar os ares da
Revolução Francesa a toda a Europa e dominá-la.
Os conflitos internos que atingiram a comunidade judaica, ao final do período da vida
coletiva no gueto, e sua entrada na sociedade de um modo geral, no mercado de trabalho
3
e no mundo acadêmico são tratados em profundidade por Gerschom Scholem [1897 -
1982]2. Foram momentos de intenso impacto e contradições na vida dos judeus, cujas
consequências permanecem ainda como motivo de discussão. Trata-se de um equívoco
histórico supor que a Shoá3 somente estava esperando uma oportunidade para surgir a
partir da época de Martinho Lutero.
Meu interesse nessa apresentação é localizar em que ponto da história surgiu a
mentalidade e o espírito belicista alemão descritos por Stefan Zweig em sua
autobiografia. Após o assassinato do Príncipe Ferdinando da Áustria em junho de 1914
grande parte da população alemã e austríaca se deixaram mobilizar em julho do mesmo
ano e partir para a guerra. Zweig descreveu sua perplexidade ao constatar que poucos
pensadores se opuseram à sua entrada na guerra, cujos estragos se fizeram sentir para
sempre. Faz menção em especial ao escritor francês Roger Martin du Gard4 e à
Baronesa Berta von Suttner, como pacifistas solitários. Os livros de história relatam que
o Kaiser Wilhelm II ao invés de ouvir a voz do povo, em relação à entrada na guerra,
ouviu exclusivamente seus generais, que eram belicistas, por gosto e profissão. O
interesse aqui pela vontade de guerrear está voltado para entender o 'por quê' de partir
para a guerra. Supunham que ela seria curta. Não imaginavam o avanço do poderio
bélico dos inimigos. Logo após a entrada na guerra o Kaiser e seus generais discutiam
como iriam espoliar a França, assim que a Alemanha vencesse a guerra.
A carnificina resultante da Primeira Guerra Mundial que deixou a Alemanha arrasada
foi a principal ferramenta para Hitler alavancar seu poder destruidor.
Na busca de entender os acontecimentos históricos nos vemos remetidos ao início do
século 19. Vivia-se forte repressão política nos anos que sucederam a queda de
Napoleão, em 1815, o assim chamado 'Período da Restauração' da antiga ordem
antidemocrática. É também sabido que a Restauração trouxe miséria, revoltas,
nacionalismo, repressão que promoveram a irrupção de revoluções imbuídas do espírito
libertário.
2 SCHOLEM, Gerschom. 'O golem, Benjamin, Buber e outros justos: JUDAICA I'. São Paulo,
Perspectiva: 1994. 3 4 Prêmio Nobel de Literatura em 1937 pela sua extensa obra: 'Les Thibault'.
4
Em 1847 os parlamentares instituíram em Frankfurt uma Assembleia Nacional visando
à elaboração de uma Constituição Democrática. Em sua composição havia inclusive
deputados judeus, que defendiam a luta por seus direitos à cidadania, da qual, após curto
período de emancipação tinham sido novamente alijados. É também o ano em que os
alemães Marx e Engels lançaram o Manifesto Comunista em Londres. Na Alemanha
estabeleceram-se muitos focos da Revolução em que, dentre as 231 pessoas que
sucumbiram lutando 21 eram judeus. Por essa razão os judeus foram responsabilizados
pelos antirrevolucionários como protagonistas da revolução. A frustração com a
Revolução de 1848 atingiu não somente os judeus, mas também todos aqueles que
almejavam a democracia.
As revoluções de 1848 surgiram em um momento de sólidas mudanças sociopolíticas e
econômicas. A Revolução Industrial e a Francesa no século 18 trouxeram intensas
alterações em todo o perfil da estrutura social.
As corporações de ofício e as guildas consolidadas há séculos foram sendo
gradativamente desestruturadas. O sociólogo norte-americano Barrington Moore Jr.
[1913-2005] explicou magistralmente seu mecanismo de funcionamento e seu fim, com
a consequente alteração sociopolítica econômica. A desestruturação trouxe desespero
àqueles que não dominavam outra forma de sobrevivência. A Alemanha foi tomada por
um surto industrializante, com o desaparecimento e consequente renovação da antiga
forma de produção. Da mesma forma houve a mudança da vida do campo para as
cidades. Pessoas tinham de passar a viver distantes de seus antigos laços familiares.
Muitos pequenos empreendedores se opunham a aceitar o trabalho fabril, porque tinham
se empenhado em ter seu próprio negócio, o que representaria um retrocesso na escala
social. Grande parte dessa população enxergava o judeu como culpado pelo seu
prejuízo, pois lhe atribuíam a desestruturação econômica vigente até então. Entretanto,
os judeus nunca puderam participar das corporações de ofício e por outro lado, estavam
inseridos na modernidade da economia. Nessa mesma época ocorreram alguns
fenômenos. August Bebel e Karl Liebknecht criaram o partido da Social Democracia
Alemã, em 1865, à qual grande parte da mão de obra industrial veio se filiar. Bebel,
5
Liebknecht, o historiador e Prêmio Nobel Theodor Mommsen, dentre outros foram os
destacados opositores da política de Bismarck.
Em meio a outros fatos relevantes dois deputados juristas judeus Edouard Lásker e
Ludwig Bamberger ajudaram Bismarck e o Kaiser Wilhelm I a organizar o Segundo
Reich, por meio da redação da Constituição alemã, da criação da Deutsche Bank, que
para nós seria o Banco Central, e também do marco alemão. Ambos estiveram ao lado
dos governantes até 1878, quando Bismarck assumiu seu envolvimento com os
antissemitas. Dado o desenvolvimento de grandes empresas, Lásker desvendou
falcatruas nas obras, sob responsabilidade de Bismarck, que se irritou de tal forma com
a descoberta que criou acirrada briga com Lásker. Por essa razão Lásker acabou
morrendo de síncope nervosa em 1884, e Bismarck proibiu qualquer deputado de
comparecer às exéquias.
Em 1872 Bismarck e o Papa Pio IX travaram uma batalha cultural, conhecida como
Kulturkampf, em vista do Papa procurar interferir no sistema educacional alemão. A
batalha só teve fim com a eleição do novo Papa, Leão XIII, em 1878. Pio IX pertencia
ao movimento ultramontano e ao grupo de pensamento antimodernidade, além de ter
sido patente antissemita.
As três guerras promovidas por Bismarck em 1862 contra a Dinamarca, com apoio da
Áustria5, em 1866 contra a Áustria com o apoio da França e finalmente em 1870 contra
a França trouxeram empobrecimento e mortes. Antes já tinha havido um período de
escassez na Alemanha por uma série de más colheitas gerando uma crise econômica
generalizada.
Após essas três vitórias bélicas Bismarck, fortalecido, conseguiu unificar o Reich
alemão, que até então estivera partilhado entre Estados de Norte e Prússia, Estados do
Sul e a Áustria, exclusive os demais países do Império Austro-húngaro. A consolidação
do Segundo Reich se deu em pleno Palácio de Versalhes, humilhando o povo francês e
5 A partir dessa guerra os Estados de Schleswig, Holstein e Lauenbug que pertenciam ao sul da
Dinamarca foram incorporados definitivamente à Alemanha.
6
fomentando seu espírito de revanche, que deixou a Alemanha arrasada em 1918 depois
da derrota ao final da Primeira Guerra Mundial.
Voltando ao século 19, pode-se afirmar que o espírito autoritário de Bismarck se
coadunou com a mentalidade de obediência de grande parte do povo alemão. E,
Bismarck continuou governando de maneira autoritária, sem ouvir o parlamento,
mesmo depois da Unificação em 1871. Numa perspectiva hodierna a educação era
rígida, a obediência irrestrita, mesmo na Academia. Bismarck era idolatrado, em
especial pelos prussianos, e o exército era tomado por militarmente invencível. Na
verdade, essa forma de governar prosseguiu sob o governo do Kaiser Wilhelm II, de
1888 em diante, que ouvia somente os generais até chegar à sua própria abdicação após
a derrota em 1918.
Vivia-se justamente o período de transição entre o antigo e o novo sistema econômico.
A entrada de maciças somas em dinheiro provenientes das indenizações pagas pela
França, como derrotada da guerra de 1870 e o fomento da construção de grandes
empresas originaram fortes especulações financeiras a tal ponto que em 1873 as bolsas
de valores quebraram, não somente na Alemanha, mas ao redor do mundo. Novamente
a culpa foi atribuída aos judeus, perdedores como todos os demais, que tinham ações na
bolsa.
A tudo isso se juntou em 1878 a publicação de livros dos professores Paul Lagarder e
Julius Langbehn, onde desenvolveram a ideologia völkisch. Foi um movimento que
pretendia fazer uma revolução contra a modernidade e trazer de volta a Alemanha de
outrora, do tempo das corporações de ofício, das guildas, de uma sociedade estática.
A base da ideologia de Lagarde era o pensamento Blut und Boden (sangue e solo)6. Ela
era permeada de superstição, racismo, e do “verdadeiro” cristianismo alemão. Para essa
6 A ideologia “Blut-und-Boden” destacava a ascendência (o sangue) e o solo (nutrição e espaço vital),
valorizava os antigos camponeses como elementos da verdadeira genealogia. Essa ideologia era
proveniente do racismo e do nacionalismo, do final do século XIX, e se tornou elemento central do
nacional-socialismo, cuja intenção belicista visava à proteção da própria raça (o sangue) legitimando a
ampliação da própria nação, exterminando outros povos e se apropriando e garantindo o solo estrangeiro.
7
ideologia, o correto era ser enraizado na cultura e no solo. O pensamento völkisch via o
judeu como inimigo7. Para Lagarde, a nação seria uma essência espiritual, um ideal em
torno do qual o povo se manteria unido. “O que estaria faltando era a verdadeira e
genuína fé germânica dotada de misticismo, em contraposição ao materialismo e ao
racionalismo”, que surgia em meio ao operariado fabril. Estes se filiavam à recém-
surgida socialdemocracia, que “representava um empecilho ao florescimento das
instituições nacionais, que iriam refletir a pureza dos sentimentos do povo”. “O povo
carecia de um meio de ligação autêntico, que realinhasse as forças espirituais do Estado
Alemão sob a ideologia völkisch. A pureza racial era deveras importante e os judeus
como estrangeiros e impuros, deveriam ser estraçalhados, como bacilos e triquinas.
Julius Langbehn morreu demente internado em instituição.
Os textos de Lagarde e Langbehn não receberam muita atenção. Mas, surgiram muitos
fatos que promoveram intenso clima de antissemitismo ao final do século 19. Até
mesmo foi criado um partido antissemita e um sem número de publicações antissemitas
foram lançadas. A extrema direita alemã, após a Primeira Guerra Mundial fez bom uso
delas.
O historiador Theodor Mommsen [1817-1902] se posicionou a favor dos judeus criando
um movimento de apoio, mas sentiu-se derrotado em face do comportamento sórdido
dos antissemitas. O filósofo Friedrich Nietzsche afastou-se do casal Richard e Cosima
Wagner em vista de serem antissemitas extremados, bem como de sua irmã Elisabeth o
cunhado Bernard Förster.
Ao final do século 19 a Alemanha era o país mais industrializado e avançado da
Europa.
O Kaiser Wilhelm II assumiu o governo alemão em 1888. Nessa época a população dos
Estados do Norte da Alemanha, em especial a Prússia, via seu exército como invencível.
Extraído de 'A gênese do nacional-socialismo na Alemanha do século 19 e a autodefesa judaica', Tese de
Doutorado da autora de 2017. 7 O cristianismo convencional, miscigenado pelo sangue judeu de Cristo não servia para Lagarde, que
desejava a existência de um cristianismo alemão, descendente da raça nórdica pura ariana.
8
O Kaiser era avesso a escutar o que o Parlamento teria a dizer. Preferia a companhia de
seus generais, para quem 'entrar em uma guerra' era uma situação 'normal'. Como dito
anteriormente a cúpula elaborava planos de como extorquir a França ao final da guerra,
em que supostamente seriam os vencedores.
Para se entender o que foi a ideologia völkisch nada mais ilustrativo do que a análise de
Victor Klemperer sobre a manipulação da linguagem por Göbbels, pois o Ministro de
Propaganda do regime nazista dominava o povo, como um coletivo que não pensa, por
meio da manipulação da linguagem. As obras de George Lachmann Mosse [1918-1997]
"The crisis of German Ideology" de 1964, republicada pelo autor em 1988 e de Fritz
Stern [1926-2016] em "The Politics of Cultural Despair – A Study in the Rise of the
Germanic Ideology" também são estudos profundos sobre o que foi a ideologia
völkisch.
Antes de 1914 o antissemitismo na Alemanha e na Áustria não era tão violento, como
aquele que já havia na França e na Rússia. Apesar de haver antissemitismo, os judeus se
destacavam por pertencer a uma elite culta, voltada aos estudos, muito identificados
com os alemães cultos.
Na França existiam os 'Jaunes' [amarelos], que eram os trabalhadores antissemitas. O
ano de 1894 marcou o início de presença na França de um terrível processo de
inspiração antissemita em que o capitão de artilharia judeu Alfred Dreyfus foi acusado
injustamente de espionagem. Ficou preso na Ilha do Diabo nas Guianas Francesas
durante muitos anos. Ao mesmo tempo, na Rússia, surgiram os 'Protocolos dos sábios
de Sião', e era lá que ocorriam os terríveis pogroms8 contra os judeus.
A Primeira Guerra Mundial marcou definitivamente a derrocada da Alemanha, até
então o país mais avançado da Europa ao final do século 19 e início do século 20. A
Alemanha até 1914 tinha uma economia florescente, alto grau de desenvolvimento
8 Pogrom: palavra russa, que significa ação de distúrbios violentos e também massacres contra judeus, e
outras minorias.
9
tecnológico e industrial, elevado nível educacional, muitas universidades, e
obrigatoriedade dos primeiros sete anos escolares para toda a população.
Era um país de economia forte e avançada e dotada de exército poderoso. Causava
preocupação aos demais países ocidentais. A França em especial pelo sentimento de
revanche produzido por Bismarck em 1871 quando proclamou a Unificação alemã em
pleno Palácio de Versalhes, humilhando todos os franceses, além da Inglaterra e do
EUA. Após quatro anos de batalhas sangrentas e aterrorizantes o Governo Alemão se
rendeu à França. A República de Weimar foi proclamada nessa mesma tarde em 9 de
novembro de 1918. Seu início foi marcado por acirradas batalhas campais dentro das
esquerdas e também por parte das forças retrógradas da direita.
O boom cultural trazido pela virada do século 19 para o 20 e a chegada da República de
Weimar foi um marco na modernização das artes, bem como inovador nas formas de
vida do século 20.
A humilhação representada pela assinatura do Tratado de Versalhes pela Alemanha
como derrotada de guerra em junho de 1919 foi explorada intensamente nos anos que se
seguiram por Hitler ao apresentar-se como salvador da pátria que devolveria o orgulho
nacional ao volk alemão. Dentre os vencedores da Entente a Inglaterra e os Estados
Unidos não se alinharam à França nos acordos leoninos do Tratado de Versalhes.
Queriam que a Alemanha não perdesse seu porte de país avançado. Mas, não foi o que
aconteceu.
O estadista judeu alemão Walther Rathenau, ministro da República de Weimar,
pertencente ao colegiado que assinou o Tratado de Versalhes em 1919 assinou também
o Tratado de Rapallo em 1922 que beneficiaria a URSS de Lênin e a Alemanha de
Weimar. O acordo previa que ambos os países renunciassem às indenizações a que
tinham direito: - a Alemanha renunciou ao direito a indenizações de guerra anteriores à
formação da URSS, e a URSS renunciou às reparações de guerra devidas pelos danos
civis e militares causados pela Alemanha. Por meio do acordo a Alemanha estaria mais
livre em relação à França e à Inglaterra. Entretanto, dois meses após a assinatura do
10
acordo Rathenau foi assassinado em plena luz do dia em Berlim. Eram já sinais da
escalada da extrema direita na Alemanha, que conduziu à Segunda Guerra Mundial.
Os militares, que em sua maioria induziram o Kaiser a entrar na guerra em 1914 não
queriam assumir a culpa da tragédia que tinham causado, afirmando que eles tinham
sido 'apunhalados pelas costas'. Pesadas indenizações de guerra foram impostas à
Alemanha pelo revanchismo francês. Os membros da aristocracia decadente obrigou a
frágil República de Weimar a lhes devolver os bens perdidos na guerra, quando o país
estava falido, e havia somente fome, pobreza, doenças e feridos de guerra.
Hitler usou a ideologia völkisch para reforçar sua 'Revolução reacionária', mesmo
rechaçando seus criadores do século anterior como desinteressantes.
As proposições que Hitler apresentou a seu público foram bem aceitas porque grande
parte da população já estava imbuída da forma völkisch de sentir. Segundo G.L. Mosse
uma parte do povo alemão, como em qualquer outro país, era do tipo grosseiro, tinha
má índole e era inculta. Não eram articulados politicamente, não tiveram interesse em se
unir em torno de algum grande político, recebendo por essa razão o desprezo de Hitler.
Mesmo assim, o nacional-socialismo foi um movimento fortemente reacionário
völkisch, emanado de raízes populares. Seu partido se chamava Deutschnationale
Volkspartei, a comunidade entre os iguais, na sua ânsia de obedecer como manada a um
líder carismático forte. O Volk [povo] mostraria o caminho para a humanização,
seguindo o discurso adotado pelo líder. Até mesmo entre os judeus, Gustav Landauer,
assassinado em 1919 por sua ativa participação nos Conselhos Populares de Munique,
de ideologia comunista, esperava que surgisse um movimento socialista democrático
völkisch.
Hitler e os nacional-socialistas denominavam seu próprio movimento como a
'Revolução Alemã'. Possuía uma dinâmica peculiar, era racista, antissemita, anti-
ocidental e reacionária. Em seu livro 'Mein Kampf', publicado em 1925, após ter sua
prisão abreviada ele escreveu: - 'Somente a visão de um mundo forte poderá conduzir à
conquista das massas', ou seja, 'um dirigente que conseguir convencer seu povo que eles
11
todos, em conjunto representam um mundo forte, terá condições de conquistar as
massas, em outras palavras, ser um ditador.
Os trinta anos desde o início da Primeira Guerra Mundial marcaram a destruição total da
Alemanha, encerrada em 8 de maio de 1945, na rendição ao Exército Vermelho.
Apesar de terem surgido no último quartel do século XIX, foi somente no Terceiro
Reich que as ideias völkisch se concretizaram. As afirmações de Jürgen Habermas e
George L. Mosse se assemelham quando ambos falam sobre a 'Grande Depressão da
economia alemã [1922-1925], questionando que suas causas não foram motivadas
somente por razões sociopolítico-econômicas, mas também pela responsabilidade de
cada pessoa'. É também sabido que a espiral inflacionária destruidora da economia
alemã foi um facilitador da desvalorização do valor da dívida aos vencedores.
O nacional-socialismo, que surgiu logo após a vergonhosa derrota alemã. Conseguiu
convencer grande parte da população de que se tratava de um movimento de massas que
traria benefícios para todos. O movimento procurou confundir as mentes indecisas de
alguma direção política, fazendo músicas 'parecidas' com as de Berthold Brecht, e
criando até um nome em que constava a palavra socialismo.
A derrota da Primeira Guerra Mundial tornou o terreno fértil para o pensamento
völkisch, porque veio a ser adotado por Hitler e seu grupo nacional-socialista, mesmo
deixando perceber que as ideias völkisch eram frágeis. Juntamente com a ascensão de
Hitler ao poder político o misticismo e o racismo obscuro eram pouco discutidos no
âmbito da vida alemã. A Weltanschauung esotérica somente passou a ser discutida
quando Hitler, como líder, se animou com as ideias völkisch.
O governo nacional-socialista foi o primeiro a afirmar que sua política era racista. Na
Alemanha a aliança entre o pensamento völkisch e o racismo foi vitorioso, propalando
sua revolução antijudaica. Foi diferente do que em outras nações da Europa. Se
analisarmos o pensamento völkisch hoje, quiçá poderemos evitá-lo no futuro.
12
A escalada de Hitler ao poder não teria sido possível sem o impacto traumático da
derrota militar alemã, a humilhação do Tratado de Versalhes, as crises econômicas da
República de Weimar e o temor de uma revolução comunista.
O antissemitismo, embora presente em Hitler, Joseph Göbbels, Himmler, Julius
Streicher e outros líderes nazistas, não era a principal questão a angariar votos para o
movimento nazista. Entretanto, quando o antissemitismo racista se tornou a ideologia
oficial do Terceiro Reich, reforçada por um extraordinário aparato de propaganda,
dirigido por Göbbels e por uma onda de leis contrárias aos judeus, o impacto foi
devastador.
Os nazistas não precisaram inventar a imagem do judeu como usurário, blasfemo,
traidor, praticante de rituais assassinos, perigoso conspirador contra a cristandade,
ameaça mortal aos fundamentos da moralidade. Foram imagens existentes durante
séculos nos subterrâneos do imaginário alemão.
Após a Primeira Guerra Mundial a Alemanha praticamente escorregou para a Segunda
Guerra Mundial. Hans-UlrichWehler [1930-2014], historiador alemão pioneiro na
desconstrução da imagem idolatrada de Bismarck, sofreu críticas por colocar em
evidência a atuação destruidora e antidemocrática do general.
O que guarda o caráter específico do Shoá é que diferentemente de outros genocídios,
como nos ensinam David Bankier e Renato Lessa nunca houve nada parecido antes,
nem depois. Nos genocídios que já houve a lógica seria a de eliminar aqueles que
viviam em determinado território geopolítico. Na Shoá a lógica foi de que todos os
judeus deveriam ser eliminados, visando 'a intenção de reconfigurar a própria idéia de
civilização ocidental, fundada no delírio supremacista e na recusa da divercidade
cultural, sustentada em valores universais de tolerância e solidariedade'.
'A Shoá foi uma perversa combinação entre concentração completa de recursos de poder
e de vitimização, por parte dos perpetradores, e ausência de previsibilidade das vítimas.
13
Foi uma forma continuada de 'inovação institucional': - o campo de extermínio - forma
continuada e sedentarizada de matar.
Hans-Ulrich Wehler faz a brilhante síntese de todo esse complexo processo histórico
que culminou com a tragédia do nazismo.
Referências
ADLER, H. G. Die Juden in Deutschland.Munique: Editora Kosel-Verlag, 1960.
AMÉRY, Jean. Além do crime e castigo. Tentativas de superação. Rio de Janeiro:
Contraponto Editora, 2013.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
________________ Homens em tempos sombrios. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
________________ Origens do Totalitarismo. Antissemitismo, Imperialismo,
Totalitarismo. São Paulo: Editora Schwarcz, 1989.
________________ RahelVarnhagen. Rio de Janeiro: Dumará, 1994.
BAPTISTA PEREIRA. O Brasil e o antissemitismo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1945.
BARBOSA, Rui. O processo do Capitão Dreyfus. São Paulo, Editora Giordano, 1994.
BARKAI, A. Wehr Dich!, Der Central Verein deutscher Staatsbürger jüdischen
Glaubens 1893-1938. Munique: C.H.Beck Verlag, 2002.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed. 1998.
BORRIES, Achim von. Organizador. Selbstzeugnisse des deutschen Judentums 1870-
1945. Frankfurt am Main, Fischer Bücherei, 1962.
CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
DIEKMANN, Irene A. & GÖTZE, Bettina L. Vom Schutzjuden Levin zum Staatsbürger
Lesser. Das preußische Emanzipationsedikt von 1812, Berlin: Geb.Ausgabe, 2012.
DOBB, Maurice. Do feudalismo para o capitalismo. In: DOBB, Maurice. A transição
do feudalismo para o Capitalismo. Um debate. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2004.
DOHM, Christian Konrad Wilhelm von. Über die Bürgerliche Verbesterung der Juden.
Berlin u. Stettin: Kaiserslautern 1891.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
14
_____________ Os Alemães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
ELON, Amos. The Pity of It All. Fifth Avenue. New York: Picador, 2002.
EVANS, R. J. A chegada do Terceiro Reich. São Paulo: Planeta, 2012.
FAYE, J. P. Antisémitisme: Hitler et le mot «völkish». Paris, Hermann, 1972.
FISHER, F. Wehrt Euch!! Ein Mahnwort an die Juden. Berlin: Central-Buchhandlung,
1893.
FRIEDLÄNDER, Saul. A Alemanha nazista e os judeus – os anos de perseguição –
1933-1939. São Paulo: Perspectiva, 2012.
GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
GELLATELY, Robert. Apoiando Hitler – Consentimento e Coerção na Alemanha
Nazista. Rio de Janeiro: Record, 2011.
GINSBERG, Benjamin. Judeus contra Hitler. São Paulo: Cultrix, 2014.
GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
GROSSER, Alfred. Hitler, la presse et la naissance d’une dictature. Paris: Armand
Colin, 1959.
GRUNFELD, Frederic V. Profetas malditos. El mundo trágico de Freud, Mahler,
Eisntein y Kafka. Barcelona: Editorial Planeta AS, 1980.
GUINSBURG, J. Org. O judeu e a modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1970.
HAFFNER, Sebastian. Geschichte eines Deutschen. Stuttgart/ München: Deutsche
Verlags-Anstalt, 2000.
HEINE, H. Heine, hein? Poeta dos contrários. SPaulo: Perspectiva/Goethe-Inst, 2011.
HERZIG, Arno e RADEMACHER, Cay [orgs]. Die Geschichte der Juden in
Deutschland. Hamburg, Ellert & Richter Verlag, 2007.
HERZL, Theodor. DerJudenstaat – Versuch einer modernen Lösung der
Judenfrage.Bodenheim: Athenaeum, 1985.
HILBERG, Raul. Destruction of the European Jews. New Jersey: Holmes & Meier
Publishers Publishers, 1985.
HOBSBAWM, Eric. Tempos fraturados: Cultura e sociedade no século XX. São Paulo:
Cia. das Letras, 2013.
15
ISRAEL, Jonathan. Democratic Enlightment. Philosophy, Revolution, and Human
Rights, 1750-1790. Oxford: Oxford University Press, 2011.
KATZ, Jacob. Out of the Ghetto. Syracuse: Harvard College, 1973.
KERSHAW, Ian. Hitler, Um Perfil do Poder. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
KLEMPERER, Victor. LTI, A linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro:
Contraponto Editora, 2009.
________________ Und so ist Alles schwankend. Berlin: ATVerlag, 1996.
LEY, Michael. Holokaust als Menschenopfer: vom Christentum zur politischen Religion
des Nationalsozialismus. Münster, 2002.
LÖWY, Michael. Redenção e utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
MANN, Golo. Deutsche Geschichte.1919–1945. Frankfurt aM: Fisher Bücherei, 1961.
MASSING, Paul W. Rehearsal for Destruction: A Study of Political Anti-Semitism in
Imperial Germany. New York: Harper, 1949.
MAZZARI, Marcos. Heine. O Rabi de Bacherach e três textos sobre o ódio racial. São
Paulo: Hedra, 2009.
MENDES de Almeida, Ângela. A República de Weimar e a ascensão do nazismo. São
Paulo: Brasiliense, 1982.
MOSSE, George L. The Crisis of German Ideology – Intellectual Origins of the Third
Reich’. Nova York: Howard Fertig, 1998.
NAQUET, Pierre Vidal. Os assassinos da memória: “Um Eichmann de papel”, e outros
ensaios sobre o revisionismo. Campinas: Papirus, 1988.
OELSNER, Miriam 'A gênese do nacional-socialismo na Alemanha do século 19 e a
autodefesa judaica'. Tese Doutorado. Dpt.d e História. São Paulo: Universidade de São
Paulo, 2017.
OPPENHEIMER, Hans. Lexikon des Judentums. New York: C. Bertelsmann Verlag,
1967.
POLIAKOV, Léon. O Mito Ariano. São Paulo: Perspectiva, 1974.
PULZER, Peter G. J. The Rise of Political Anti-Semitism in Germany and Austria. New
York: John Wiley and Sons, 1964.
16
REINHARZ, Jehuda. Fatherland or Promised Land – The Dilemma of the German Jew,
1893 –1914. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1975.
RICHARD, Lionel [org.]. Berlim, 1919-1933. A encarnação da modernidade. Rio de
Janeiro: Zahar, 1993.
RIEGER, Paul. Ein Vierteljahrhundert im Kampf um das Recht und die Zukunft der
deutschen Juden.Berlin: CV, 1918.
ROSENFELD, Anatol. Mistificações literárias: Os protocolos dos Sábios de Sião. São
Paulo: Perspectiva, 1976.
SARTRE, J. P. Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1960.
SCHOLEM, Gershom. O Golem, Benjamin, Buber e outros justos: Judaica I. São
Paulo: Perspectiva, 1994.
SHAKED, Gershon. Sombras de Identidade. São Paulo: Perspectiva, 1988
SORLIN, Pierre. O antissemitismo alemão. São Paulo: Perspectiva, 1974.
STERN, Fritz. Gold and Iron: Bismarck, Bleichröder and the Building of the German
Empire. New York: Alfred A. Knopf, 1977.
VOLKOV, Shulamit. Antisemitism as a Cultural Code. Reflections on the History and
Historiography of Antisemitism in Imperial Germany. YLBI, XXIII, 1978, pp. 25-46.
WASSERMANN, Jacob. My life as German and Jew. NYork: Coward-McCann1933.
____________________ O processo Maurizius. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
WEHLER, Hans-Ulrich. Deutsche Gesellschafts Geschichte 1849-1914. München:
Verlag C.H.Beck München, 1995.
YERUSHALMI, Yosef Haym. Zakhor. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
ZWEIG, Stefan. Autobiografia: o mundo de ontem. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.