Mira

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Mire! Respire! Nossos artefatos dizem mais obre nós do que nossas confissões. Brodsky Mira certamente gostaria de ter vivido o grande sucesso que vem tendo após seu falecimento. Em vida, muitas vezes amargurou isolamento e incompreensão do seu devido valor. Mira alimentava duvidas constantes sobre o seu trabalho. Tive a oportunidade de acompanhar de perto os últimos anos da vida desta grande artista e pretendo relatar aqui um pouco desta experiência vivida. Nossa apresentação ocorreu justamente pela afinidade dos artefatos: certo dia José Rezende, amigo intimo dela, diante de uma obra que fiz aos vinte anos, uma pintura feita com pigmento e chapa de ferro de 1986, me disse o seguinte: “olha marco, tem uma artista aqui no Brasil que tem muito a ver com o que você está fazendo”. Naquela época a circulação de imagens era bem mais precária, e os jovens tinham uma tendência a olhar mais para fora do que para arte brasileira. O contato com a Mira justamente representou um “turning point” na minha 1

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Mire! Respire!

Nossos artefatos dizem mais obre nós do que nossas confissões. Brodsky

Mira certamente gostaria de ter vivido o grande sucesso que vem tendo após seu falecimento. Em vida, muitas vezes amargurou isolamento e incompreensão do seu devido valor. Mira alimentava duvidas constantes sobre o seu trabalho. Tive a oportunidade de acompanhar de perto os últimos anos da vida desta grande artista e pretendo relatar aqui um pouco desta experiência vivida. Nossa apresentação ocorreu justamente pela afinidade dos artefatos: certo dia José Rezende, amigo intimo dela, diante de uma obra que fiz aos vinte anos, uma pintura feita com pigmento e chapa de ferro de 1986, me disse o seguinte: “olha marco, tem uma artista aqui no Brasil que tem muito a ver com o que você está fazendo”. Naquela época a circulação de imagens era bem mais precária, e os jovens tinham uma tendência a olhar mais para fora do que para arte brasileira. O contato com a Mira justamente representou um “turning point” na minha formação, pois comecei a olhar para a arte brasileira com mais afinco. Marcamos um almoço na casa do meu pai, José Arthur Giannotti, para conhece-la pessoalmente; estavam presentes além do Zé Resende e a Mira, Rodrigo Naves, Alberto Tassinari, Nuno Ramos, Fabio Miguez. Mira olhou para este trabalho e me disse com seu forte sotaque “ Olha Marco seu trabalho poderia ter sido feito por mim,

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não que eu o tenha influenciado, mas por que somos contemporrrrâneos, vivemos os mesmos problemas”. O seu forte sotaque não diminuía em nada sua precisão com os conceitos, Mira sempre buscou uma espécie de linguagem universal, que envolvia termos das línguas que aprendeu ao longa da vida: alemão, italiano e português. Na verdade ela me dizia que falava todas as línguas com sotaque. Apenas seu desenho poderia reunir todas estas linguagem numa espécie de esperanto universal. A partir dai começou uma grande amizade, que se fazia principalmente na visita em nossos ateliês para alimentar nossa contemporaneidade e nos fins de tarde que passávamos na galeria ou na casa do Paulo Figueiredo, seu grande marchand amigo daquela época. Eu e Fábio Miguez certamente fomos trabalhar com ele por conselho da Mira. Lembro-me que numa destas tarde ela me deu um desenho e me disse “marco, espero que você nunca venda este desenho, pois é uma recordação da nossa amizade”.

As visitas ao ateliê eram muito intensas, a começar pela carona de carro. Mira tinha horror aos solavancos provocados pelas ruas esburacadas da cidade de São Paulo. Seu corpo pequeno e frágil parecia uma casca de noz diante de um espírito forte. Ao chegar no estúdio Mira olhava longamente para as pinturas e dizia: “ um bom trabalho tem que respirrarrr”. A cor, o pigmento tem sempre que dar a sensação de ir para o ambiente e sair da superfície pictórica”. Por este motivo é que ela empregava a têmpera, técnica que permite manter o pigmento com todas suas propriedades cromáticas sob um aglutinante. Neste momento começava a discorrer sobre fenomenologia, sobre a corrporreidade da obra

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de arte, alguns conceitos que tinha descoberto especialmente com Schmitz um filósofo alemão que me disseram ainda esta vivo. O fato é que ela nos ensinou a olhar para a arte de maneira diversa, resgatando sua dimensão sensível, sinestésica de uma obra de arte. Os conceitos empregados na sua construção deveriam ser apreendidos não a priori, mas de maneira reflexiva, no embate corpóreo entre espectador e obra. Nós, que estávamos acostumados analisar uma obra principalmente em função da historia da arte, estávamos nos deparando com uma outra forma de se fazer ver.

As conversas sempre prosseguiam em um bar, especialmente o Pandoro. Nossas namoradas então nos acompanhavam para jantar. Mira naquele momento esquecia um pouco nossas apressadas considerações metafisicas sobre arte e parecia muito mais interessada na conversa feminina. Certa vez chegou-me a dizer que talvez estivesse inclinada ao lesbianismo pois, afinal de contas, as mulheres eram mesmo mais interessantes. Chegávamos em sua casa e a conversa voltava para temas ligados a arte. O papo se estendia por madrugada afora, e Mira parecia incansável diante dos seus novos interlocutores e acendia um cigarro atrás do outro.

Mira naquele momento trabalhava com seu enteado Fernando Bento como assistente. Ficava meses a fio matutando como seria a nova série de pinturas, ela sempre trabalhava com uma série fechada para não se repetir. De uma hora para outra trabalhava incansavelmente durante um mês e logo apresentava um novo conjunto bastante distinto da série anterior. Se a série anterior era branca e preta

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pautada no desenho como força motriz, Mira tentaria nesta nova série explorar o contrário, a cor com diversos índices de refração da luz conforme a técnica empregada. Para cultivar a sensibilidade do seu assistente, Mira disse-me que certa vez deixou Fernando longas horas em uma igreja românica vazia na Europa, a igreja deveria ser românica, não gótica! Sua preferencia por um estilo que salienta uma dimensão mais intima e humana certamente se faz presente em todas suas obras. Infelizmente após uma destas viagens com seu assistente Mira descobriu que estava com câncer no pulmão: algo terrível para quem gostava tanto de respirar. Lembro-me que ela me contou como lhe tinham notificado da doença de maneira brutal: simplesmente em um corredor de um hospital na Alemanha.

A partir de então Mira passou a cultivar seus últimos momentos da vida, parecia jogar com a morte como o cavaleiro do sétimo selo de Bergman. Enquanto jogava xadrez conseguia continuar a viver, mas agora alimentava o fim da partida. Seu novos amigos lhe pediam uma nova série de pinturas, mas ela me dizia: “eles não entendem que está na hora de morrer”. Lembro-me que como último presente lhe dei a morte de Ivan Illich de Tolstói. Naquele momento estava começando a aprender a cozinhar e perguntei a ela o que ela gostaria de comer: “risoto à Milanesa”. Nada mais coerente, pois o risoto à Milanesa tem coloração amarela, de modo que a cor se impregna no arroz arbório e exala o aroma intenso do açafrão. Creio que este foi um dos últimos aromas que Mira respirou.

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Marco Giannotti, Kioto, 7 de Abril de 2011.

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