Ministério da educação

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA NÍVEL DOUTORADO ALUNO: SÉRGIO EDUARDO LIMA DA SILVA TÍTULO: ANÁLISE DA EXEGESE AGOSTINIANA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA HERMENÊUTICA EXISTENCIAL

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1. MINISTRIO DA EDUCAO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA NVEL DOUTORADO ALUNO: SRGIO EDUARDO LIMA DA SILVA TTULO: ANLISE DA EXEGESE AGOSTINIANA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA HERMENUTICA EXISTENCIAL NATAL/RN MAIO DE 2012 2. SRGIO EDUARDO LIMA DA SILVA TTULO: ANLISE DA EXEGESE AGOSTINIANA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA HERMENUTICA EXISTENCIAL Tese apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor, pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientador: Prof. Dr. Glenn W. Erickson. NATAL / 2011 SRGIO EDUARDO LIMA DA SILVA 3. TTULO: ANLISE DA EXEGESE AGOSTINIANA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA HERMENUTICA EXISTENCIAL Tese apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor, pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Aprovado em (dia) (ms) (ano) BANCA EXAMINADORA Componente da Banca Examinadora Instituio a que pertence Componente da Banca Examinadora Instituio a que pertence Componente da Banca Examinadora Instituio a que pertence Componente da Banca Examinadora Instituio a que pertence Componente da Banca Examinadora Instituio a que pertence 4. ELEMENTOS AINDA PENDENTES: FICHA CATALOGRFICA (VERSO DA FOLHA DE ROSTO) DEDICATRIA (OPCIONAL, APS A FOLHA DE APROVAO) AGRADECIMENTOS (OPCIONAL, APS A DEDICATRIA) EPGRAFE (OPCIONAL) RESUMO EM PORTUGUS (DE 150 A 500 PALAVRAS) RESUMO EM LNGUA ESTRANGEIRA (ABSTRACT) SUMRIO (DEFINITIVO) SUMRIO (provisrio) 5. 1 INTRODUO....................................................................................................................09 2 ALEGORIA OU LITERALIDADE: AS PRIMEIRAS ABORDAGENS HERMENUTICAS DE AGOSTINHO AO GNESIS BBLICO...................................20 2.1 TEXTO LITERAL OU ALEGORIZAO TEXTUAL? UMA SNTESE DA ABORDAGEM AO TEXTO BBLICO.............................................................................20 2.2 O GNESIS COMPREENDIDO PELO CONVERTIDO AGOSTINHO: ANLISE DA OBRA SOBRE O GNESIS, CONTRA OS MANIQUEUS.................................................25 2.3 UMA NOVA INTERPRETAO DO GNESIS: ANLISE DA OBRA COMENTRIO LITERAL AO GNESIS, INACABADO..............................................................................55 3 A EXEGESE AO GNESIS DAS CONFISSES E A ABORDAGEM INTERPRETATIVA POSTERIOR......................................................................................76 3.1 AS CONFISSES (LIVROS XI XIII): UMA PEQUENA EXEGESE AO GNESIS...................................................................................................................................7 63.2 O COMENTRIO LITERAL AO GNESIS: A ABORDAGEM ORTODOXA...............123 3.3 A CIDADE DE DEUS: O COMENTRIO DOS LIVROS XI- XIV................................132 4 HEIDEGGER E A LEITURA DO CRISTIANISMO APOSTLICO ....................142 4.1 A ABORDAGEM FENOMENOLGICA DA EPSTOLA AOS GLATAS............142 4.2 A ABORDAGEM FENOMENOLGICA DA PRIMEIRA EPSTOLA AOS TESSALONICENSES............................................................................................................152 4.3 A ABORDAGEM FENOMENOLGICA DA SEGUNDA EPSTOLA AOS TESSALONICENSES............................................................................................................167 5 HEIDEGGER E AGOSTINHO: EXEGESE E ATUALIZAO..............................186 6 CONCLUSO...................................................................................................................??? 6. 9 1 INTRODUO O estudo da hermenutica revelou-se, nas ltimas dcadas do sculo XX, um campo extremamente frutfero em termos de publicao. possvel defini-la como a teoria ou filosofia da interpretao do sentido (BLEICHER, [s.d.], p. 13). Sua origem na filosofia, no entanto, remete a Aristteles. dele um tratado intitulado Peri Hermeneias que significa Da Interpretao. A etimologia do verbo utilizado por Aristteles esclarece o significado clssico da hermenutica: o verbo hermeneo compreende, de certa forma, a exposio do pensamento mediante a palavra. Esta definio marca os rumos que seguiro os hermeneutas clssicos, ou seja, a busca do entendimento do pensamento mediante a sua exteriorizao nas palavras. Mtodo filosfico por excelncia, sua influncia abrange as reas mais distintas, da prpria filosofia ao campo literrio, teolgico, jurdico e artstico. A hermenutica, vista por muitos como uma arte universal de interpretar o sentido dos textos, sejam eles expostos na forma de leis, escritos profanos e/ou religiosos ou qualquer outra forma de manifestao do esprito humano (e esta uma contribuio do sculo XIX), possui a sua aplicao mais valorizada no universo das cincias humanas, diante da necessidade de verificao de todos os mecanismos de interpretao vigentes, percebidos durante o processo de busca do real sentido do discurso humano, seja ele literal ou simblico. Esta valorizao da hermenutica no campo das cincias humanas atualmente decorre da discusso proveniente da existncia ou no de um mtodo nas cincias humanas e sociais capaz de rivalizar, em termos de eficcia, com o mtodo cientfico, cuja eficincia foi em tese demonstrada pelo sucesso obtido pelas cincias naturais. A palavra hermenutica, no entanto, traz consigo uma impreciso. Vista como descrita acima, ela possui o sentido de explanar, tornar claro, explicar, traduzir etc., ou seja, uma teoria da explicao. Neste sentido, hermenutica como um conhecimento aponta para aquelas produes do saber que possuem a sua forma de expresso preferencialmente na forma escrita. Na verdade, esta postura deve ser considerada clssica (anterior, como j foi dito, ao sculo XIX). Classicamente falando ento, ela era cincia da interpretao dos textos antigos. Tal postura revelou-se extremamente importante durante a Reforma Protestante, quando se 7. 10 procurou descobrir o real sentido dos textos sacros antigos, no intuito de descobrir os verdadeiros fundamentos da f crist (ao menos para os protestantes). Este objetivo tambm deve ser percebido no ambiente jurdico, quando se procura descobrir a real inteno de uma norma jurdica formulada em um passado recente ou distante, bem como nas aulas de leitura e interpretao de textos clssicos, quando se almeja descobrir a inteno dos autores tratados, realizando uma verdadeira reconstruo artstica das obras em questo, intencionando descobrir (ou redescobrir) os objetivos pretendidos por seus autores. Este entendimento da hermenutica, embora claro, como foi dito acima, impreciso. A sua impreciso nasce justamente de sua viso limitada. Na verdade, o alcance da hermenutica maior. Esta uma contribuio oriunda do sculo XIX. A dimenso filosfica da hermenutica aponta para um sentido universal de compreenso da linguagem humana, seja por meio dos conceitos, dos sentidos ou dos significados diversos. Desta forma possvel afirmar, conforme Grondin (1999, p.12), que o alcance da hermenutica vai alm das cincias meramente interpretativas, tais como a exegese clssica, a filologia ou at mesmo o direito, e abrange todas as cincias e perspectivas de orientao da vida. Heidegger estabelece as origens etimolgicas do termo com preciso. El trmino hermenutica pretende indicar el modo unitario de abordar, plantear, acceder a ella, cuestionar la facticidad. Hermeneutik (episteme, techne), deriva de hermeneuein, hermeneia, hermeneus. La etimologa de la voz es oscura. Se la pone en relacin con Hermes, el nombre del dios mensajero de los dioses. Mediante algunas referencias se puede localizar el significado originario del trmino y hacer a la vez inteligible el modo como se va transformando su significado. Platn: hoi de poietai ouden all e hermens eisin tn then (los poetas son slo los emisariosde los dioses). Por ello, de los rapsodas, cuya labor es recitar a los poetas, se dice: Oukoun hermeneon hermetes gignesthai; no seris vosotros los emisarios de los emisarios? Hermeneus es el que comunica, el que notifica a alguien lo que otro piensa, es decir, el que transmite, el que reproduce la comunicacin, la noticia; vase Sofista Platn 248 a 5, 246 e 3: aphermeneue, informa: notifca lo que los otros piensan. (1999c, p. 27-28) Nestas breves descries etimolgicas possvel perceber as diversas fontes da hermenutica e apontar a diversidade dos caminhos percorridos pela mesma. Ao derivar o seu nome do deus Hermes, a hermenutica salienta a ligao original com o viver religioso e com a necessidade de decifrar, mediante a interpretao textual, a vontade dos deuses, ou mesmo de Deus, se for observado o papel importante reservado para este saber nas religies baseadas na revelao 8. 11 escrita. Visto na relao entre rapsodos e poetas, ou melhor, como intrprete dos intrpretes, mergulha-se a hermenutica em sua dimenso artstica, em que a arte torna-se decifradora ou nomeadora do sagrado, expressa mediante formato distinto do saber cientfico ou filosfico. Por ltimo descreve-se o hermeneuta como aquele que transmite ou notifica a algum, por meio de um ato de mediao, o pensamento de outro, isto , aquele que consegue efetuar no ato da interpretao o retorno do pensamento do outro de forma absolutamente confivel, e esta a dimenso filosfica da hermenutica. Teologia, filologia, poesia e filosofia: estas so as fontes, ao menos para Heidegger, que permitem compreender a dimenso abrangente deste saber. Embora a ideia da necessidade de uma cincia da interpretao seja antiga, ou seja, remeta a um passado mais distante da realidade atual, a hermenutica como instrumental tipicamente filosfico bem recente. O desenvolvimento histrico da hermenutica, na sua forma clssica, realizou-se sem grandes sobressaltos at o sculo XVIII. Sua feio visvel era nitidamente uma ars interpretandi, convergindo naturalmente para uma exegese (direito e teologia) ou uma filologia (estudo de textos clssicos). possvel falar at em uma pr-histria da hermenutica propriamente dita. Como um exemplo desta fase encontra-se o esforo estico em alegorizar os mitos gregos, indispensvel para o seu projeto de manuteno de uma cosmoviso de mundo antigo que demonstrava sua fragilidade diante das crticas de telogos patrsticos apologetas. Os motivos da interpretao alegrica dos mitos, ou seja, da alegorese, so triplos. O primeiro de natureza moral: ela devia ajudar a eliminar o aspecto escandaloso da literatura mtica [...] O segundo motivo, semelhante ao primeiro, era de ordem racional. A Stoa queria demonstrar que a interpretao racional do mundo se coadunava com o mito, de certa maneira como o testemunho para a sua convico de o logos universal o mesmo em toda a parte. Finalmente, associava-se a estas uma motivao talvez utilitarista. Nenhum autor da poca queria dispensar a autoridade dos antigos poetas. (GRONDIN, 1999, p. 60) Neste sentido compreende-se o esforo hermeneuta estico de manter a tradio clssica da mitologia antiga, embora sacrificando o sentido literal dos mitos em prol de uma interpretao palatvel filosoficamente. O pragmatismo hermenutico com o objetivo de preservar um patrimnio cultural , neste caso, inegvel. 9. 12 Outro caso que pode ser citado como exemplo o esforo de Flon de Alexandria em harmonizar o texto mosaico com a filosofia mediante o mtodo alegrico. Filn denomina a Moiss hermeneus theou (notificador de la voluntad de Dios) (HEIDEGGER, 1999, p. 29). Outro exemplo a tipologia bblica de Orgenes de Alexandria, no qual se percebe a noo de que o texto bblico possuidor de uma tripartio (sentido corporal, psquico e espiritual) e que tal diviso corresponde aos tipos de interpretaes possveis. Com Orgenes observa-se nitidamente a influncia que o movimento cristo exercia sobre os intrpretes, pois a leitura feita por Orgenes do Antigo Testamento tinha como perspectiva enxergar nos eventos narrados o cumprimento da profecia messinica crist. , porm, com Agostinho de Hipona que se encontra uma discusso sistemtica sobre a palavra escrita seja como a encarnao (como revelao do divino), seja como objetivao do esprito (leia-se interior) do autor. Em Agostinho descobre-se a relao entre o contedo a ser interpretado e a disposio espiritual do intrprete, ou seja, percebe-se neste autor (e isto foi visto por Heidegger) a relao entre o ato hermenutico e as inquietaes que cercam o leitor- intrprete. O elemento ftico torna-se presente nas discusses hermenuticas pela primeira vez. Heidegger chama a ateno para a relao que existe entre a hermenutica e a vida ftica do homem: El trmino hermenutica pretende indicar el modo unitario de abordar, plantear, acceder a ella, cuestionar la facticidad (1999, p.28). Ao descrever a presena da hermenutica no pensamento de Aristteles, ele salienta: Aristteles: lo ente en cuanto viviente necesita la lengua para saborear tanto como para conversar acerca del trato con las cosas (por ello se encuentra tambin en la mayora), el hablar a alguien y el hablar de algo pero con los dems (conversar acerca de algo) existe para garantizar el verdadero ser de lo viviente (en su mundo y con su mundo). Hermenea substituye aqu simplemente a dilektos, el hablar coloquial de algo; ahora bien, este hablar de algo slo es el modo fctico de realizarse el logos, y el logos (el habla de algo) se cuida del deloun[] to symphron kai to blabern, (el habla hace que lo ente sea patente, accesible, en su utilidad y en su inutilidad, para el tener a la vista). A palavra hermenutica aponta, neste sentindo, no apenas para o simples processo de uso da linguagem para o trato cotidiano entre os seres humanos, mas para um processo de interpretao em que o logos assume um formato ftico, delimitado pela existncia humana. Esta facticidade do intrprete ntida em Agostinho. possvel consider-lo como o autor da maior obra hermenutica textual da antiguidade, hermenutica esta que antecipava posturas 10. 13 existenciais necessrias ao intrprete. Afirma Heidegger (citado por Grondin), em suas lies do semestre de vero de 1923: Augustinus fornece a primeira hermenutica de grande estilo: com que disposio deve a pessoa aproximar-se da interpretao de passagens no transparentes da Sagrada Escritura no temor de Deus, no cuidado de procurar nas Escrituras a vontade de Deus; impregnado de piedade, para que no tenha prazer em contendas de palavras; revestido de conhecimento de linguagem, para que no fique preso em palavras e maneiras de falar desconhecidas; guarnecido com o conhecimento de determinados objetos e ocorrncias naturais, que foram aduzidas como ilustrao, para que no minimize sua fora compulsria, subsidiado pelo contedo da verdade. (1999, p. 72) Ou seja: pela primeira vez um conjunto de regras interpretativas desloca-se da exterioridade do texto e passa a levar em considerao a postura existencial do intrprete. No so apenas as regras frias e objetivas que devem ser consideradas no ato hermenutico, mas a disposio interna com que se faz a abordagem textual. Em Agostinho encontra-se a recuperao do sentido de encontro do ser na linguagem, numa clara oposio ao aspecto tcnico-nominalista derivado da ontologia grega. Embora exista nitidamente no autor a presena de regras de interpretao textual ntidas, a tenso existencial sempre se faz presente. Este aspecto torna a hermenutica agostiniana muito mais abrangente, ultrapassando inclusive perspectivas hermenuticas posteriores, conforme o prprio Heidegger apontou numa comparao entre Schleiermacher, considerado por muitos o fundador da hermenutica moderna, e Agostinho, com sua tenso existencial que acompanha o ato hermenutico. Posteriormente, Schleiermacher restringi la idea de la hermenutica, vista con carcter general y activo (vase Agustin!), al arte (doctrina del arte) de entender el habla de otro, y la pone en relacin, en cuanto disciplina junto a la gramtica y la retrica, con la dialctica; esa metodologa es formal; y en cuanto hermenutica general (teora y doctrina del arte de entender el habla ajena en general) abarca las hermenuticas especiales, teolgica y filolgica. (1999, p. 31-32). Schleiermacher reduz de certa forma o alcance do ato hermenutico. Ao transform-lo em uma disciplina formal cuja funo consiste em entender o que foi afirmado por outro, afasta- se da pretenso agostiniana, que via a hermenutica como um processo que tinha a sua origem 11. 14 numa correta disposio espiritual do intrprete, e que culminava ou no pleno entendimento do texto ou na confisso paradoxal da impossibilidade deste mesmo entendimento pleno. O intrprete passa a ser alvo de um interesse especial. No so apenas os mtodos de interpretao que constituem a arte interpretativa, mas principalmente o intrprete como elemento ftico, vivencial, temporal. o papel do intrprete que preciso investigar, algo que s comeou a ser alvo de certa suspeita por parte da hermenutica a partir do sculo XIX, at ento obcecada com a ideia da existncia de um mtodo objetivo e frio, capaz de conduzir, isento de falhas, ao ato interpretativo correto. com Heidegger e seu retorno exegese crist apostlica e patrstica (principalmente com Agostinho), que se percebe a reviravolta deste processo hermenutico de forma mais incisiva no mundo contemporneo. Em Heidegger percebe-se uma tentativa de interpretar aquilo que est por trs do que deve ser interpretado, ou seja, as elocues apenas nos indicam exteriormente a presena do ser-a que deve ser compreendido primeiramente. O que deve ser alvo de um processo hermenutico , primordialmente, a relao do homem com o mundo, do homem em situao, como uma espcie de perspectiva prvia para a investigao da linguagem exteriormente dada. Afastando-se da noo de que caberia hermenutica a formulao de uma doutrina da interpretao, encontra-se, a partir de Heidegger, a perspectiva de que caberia ao prprio ato interpretativo uma interpretao, ou seja, o prprio processo hermenutico deveria ser alvo de uma investigao capaz no apenas de um ato de compreenso verdadeira, mas indicar os fundamentos deste compreender. No processo hermenutico no apenas algo compreendido, mas o prprio intrprete, o ser-a, tambm, e principalmente, o alvo da compreenso. Para anlise desta questo contempornea torna-se necessrio um retorno quele que teria sido o primeiro a perceber a presena e a importncia do papel existencial do intrprete durante o processo hermenutico: Agostinho de Hipona. Por qual motivo? A anlise da tenso existente entre a possibilidade de guiar-se rigidamente por regras estabelecidas, e desta maneira antecipando a discusso sobre a ditadura de um mtodo, ou optar por uma via que oscilava entre a razo e a mstica, reveladora das tenses internas, torna Agostinho um personagem emblemtico na histria, essencial para o resgate da discusso do intrprete como sujeito histrico determinado, lanado no mundo, vivenciando-o a partir dos seus preconceitos. A longa introduo geral escrita por Lope Cilleruelo (1957, p. 39) obra Sobre la doctrina cristiana fornece uma ideia da complexidade hermenutica agostiniana. 12. 15 El lenguaje de San Agustin ofrece no pequeas dificuldades. Muchas expresiones, por ejemplo, no se pueden tomar a la letra: atribuyen a Dios lo que es obra tan slo mediata de Dios; asi, se atribuyen a Dios, no slo diversos sentidos literales y no literales, sino tambin las opiniones verdaderas de los exegetas y hasta las del lector. Esta es la razn de su libertad de interpretacin. Adems, por sus tendencias parenticas se aparta no pocas veces del sentido hermenutico puro y da lugar a digresiones, que atribuye del mismo modo a la Biblia. Finalmente, aunque a vezes nos da definiciones que quieren ser precisas, ni esas definiciones corresponden a las nuestras, ni tampoco es constante l mismo em mantenerlas. Nos define, por ejemplo, qu son alegoria, smbolo, tipo, etc., pero el lector no puede forjarse ilusiones sobre su definicin ni sobre su emplo. Acostumbrado, como estaba, a utilizar su propia memoria a modo de concordancias bblicas, sus leyes de asociacin no corresponden tampoco al uso generalmente preciso y cientfico que nosotros solemos hacer de los textos. Este retrato deveras severo. Agostinho acusado de ser possuidor de uma interpretao extremamente liberal, de inconstncia nas definies, de fazer associaes interpretativas que no resistem a uma anlise mais precisa. Esta percepo acima traioeira e enganosa. Este retrato no pode ser a descrio exata daquele hermeneuta elogiado por Heidegger em Hermenutica da Facticidade. Mas como entender as variaes interpretativas realizadas por Agostinho, que iam de encontro regras hermenuticas previamente estabelecidas? Quando se investiga as alternativas propostas para, por exemplo, compreender os trechos iniciais do livro de Gnesis, a oscilao entre a literalidade textual e a alegorizao espiritual tornam-se visveis. Como entender tal processo, a no ser empreendendo o resgate do intrprete como homem do mundo, ser marcado por um projeto de existncia, algo delineado posteriormente por Heidegger? Mas torna-se necessrio um passo alm. preciso tambm verificar no apenas a historicidade do intrprete, que ao interpretar compreende-se como ser situado no mundo, mas tambm o lugar destinado para as preconcepes que acompanham este sujeito e que fazem parte tambm do seu situar-se histrico e concreto, e esta uma variao do pensamento de Heidegger a ser abordado neste trabalho, como parte das reflexes finais do mesmo. A aplicao das teses de Heidegger para o problema hermenutico agostiniano tornar possvel construir um processo de conciliao entre leituras interpretativas aparentemente dspares de um mesmo autor. Aquilo que numa viso ortodoxa seria cunhado como inexatido assume, a partir de uma filosofia existencial, o aspecto de coerncia interna, de nveis interpretativos mais interiores, de atualizao constante de textos antigos, escapando desta forma do formato frio de uma normatizao hermenutica objetiva. 13. 16 Como ser feito tal processo? A partir de um conjunto de leituras feitas por Agostinho a um mesmo grupo de textos em perodos distintos. A ideia verificar se diante de um mesmo texto existem interpretaes distintas temporalmente. Por qual motivo a escolha recaiu sobre Agostinho de Hipona? Ele tomado como um estudo de caso, tanto devido a sua importncia para a histria do pensamento filosfico e teolgico como pelas implicaes contidas na sua arte interpretativa. Este o principal motivo por que ele, e no outros autores clssicos do cristianismo patrstico, teria sido escolhido. Por que os comentrios exegticos ao Gnesis e no outras abordagens ao texto bblico? Porque tais comentrios so importantes na compreenso da polmica antimaniqueia, bem como nas clssicas discusses agostinianas sobre o tempo, relevantes em demasia para a filosofia. O comentrio do autor ao texto bblico tambm outro aspecto a ser levado em considerao nas escolhas dos textos a serem analisados. No possvel esquecer que a Escritura assumia uma importncia fundamental para o autor. Agostinho no apenas acreditava estar diante de um texto clssico. Cria estar diante da revelao do absoluto, ou numa expresso mais conhecida, diante do infinito revelado na forma finita da escrita. O texto, desta forma, continha ou revelava o infinito, o absoluto, o divino. Mais ainda: o texto era a revelao do prprio absoluto, do infinito, do divino. Neste sentido, entender o texto significa o processo de o finito (homem) ter conhecimento do infinito (o divino) em um determinado momento histrico. nesta perspectiva que deve ser lembrado o cuidado rigoroso do autor com o ato interpretativo. As regras hermenuticas eram preocupaes metodolgicas para que no se perdesse o contedo pleno da revelao. Agostinho delineia as primeiras regras hermenuticas crendo no aspecto absoluto da verdade revelada. Era preciso interpretar de forma correta o texto revelado. As interpretaes no poderiam variar dentro de uma perspectiva eclesistica. No entanto, como ser mostrado neste trabalho, percebe-se certa oscilao hermenutica do mesmo nas interpretaes distintas para um mesmo texto em um perodo relativamente curto. Como conciliar este aspecto hermenutico agostiniano luz de suas prprias regras de interpretao, que apontam para a necessidade de uma interpretao unificada? Na verdade, justamente este aspecto aparentemente contraditrio aquele que revela o aspecto existencial do intrprete, e que o prprio Agostinho assume sem o perceber. A proposta deste trabalho consiste em investigar as variaes interpretativas encontradas em Agostinho de Hipona nas suas reflexes sobre o livro do Gnesis (Comentrio Literal ao Gnesis, Sobre o Gnesis Contra os Maniqueus, Comentrio Literal 14. 17 ao Gnesis- Inacabado e As Confisses - livros XI-XIII, alm de comentrios contidos na obra Cidade de Deus, livros XI-XIV), salientando as diversas tentativas exegticas por parte do autor nestas obras. A inteno principal tornar visvel o papel do intrprete que, diante de um mesmo texto, em um curto perodo de tempo, alterna de forma mais ou menos expressiva sua interpretao textual. Ao analisar este conjunto de textos previamente escolhidos, ou seja, os diversos comentrios feitos por Agostinho aos trs primeiros captulos do Gnesis tornar-se-o perceptveis as variaes hermenuticas do autor, que, partindo de aplicaes alegricas praticamente aleatrias e passando por um platonismo mosaico, culminar numa ortodoxia estoica. Desta forma, espera-se salientar o fato do texto a ser interpretado no ser visto apenas como algo esttico, alvo de uma metodologia hermenutica pr-definida, mas o espao de interao entre o mesmo e o autor, resultando deste processo exegeses nitidamente distintas em maior ou menor grau. Com este objetivo, aps uma breve descrio histrica da evoluo da exegese bblica, examina-se o esforo hermenutico agostiniano nas obras acima citadas salientando as distines entre as mesmas. Este exame de caso se constituir na primeira parte do trabalho. A segunda parte do trabalho ser norteada nitidamente pela teoria hermenutica existencial formulada por Heidegger ao analisar as epstolas paulinas e os escritos de Agostinho na obra Fenomenologia da Vida Religiosa (1920/21),1 bem como no esclarecimento de alguns conceitos oriundos desta abordagem hermenutica a partir de um enfoque existencial nas obras Interpretaes Fenomenolgicas sobre Aristteles: Introduo investigao fenomenolgica (semestre de inverno 1921/22) e Ontologia: Hermenutica da Faticidade (semestre de vero 1923). Esta sequncia de abordagem de obras datadas do incio dos anos vinte permitir acompanhar a discusso heideggeriana acerca de a cristandade primitiva ser o outro do grego, e isto se manifestava nas posturas que poderiam ser extradas dos prprios escritos cristos, por intermdio dos indcios formais existenciais, coincidindo tal postura crist com a busca por parte de Heidegger da formulao de outra ontologia, distinta daquela formulada pelos gregos, bem como perceber o redirecionar do olhar filosfico, do mundo 1 Fenomenologia da vida religiosa (Phnomenologie des religisen Lebens) est dividida em: 1) Introduo fenomenologia da religio (Einleitung in die Phnomenologie der Religion), no semestre de inverno 1920/21; 2) Agostinho e o neoplatonismo (Augustinus und der Neuplatonismus), no semestre de Vero 1921, e 3) Os fundamentos filosficos da mstica medieval (Die Philosophischen Grundlagen Der Mittelalterlichen Mystik), constituindo de elaboraes e esboos para uma preleo no proferida (inverno de 1918/19). 15. 18 objetivo, e neste caso, do texto objetivado, para o leitor/intrprete como ser-lanado-no- mundo, vivendo ou no uma vida autntica. De que forma esta anlise da abordagem heideggeriana ser realizada? Observando a forma como Heidegger examina o texto bblico paulino e a reflexo agostiniana sobre a memria (livro X das Confisses). A tese subjacente a esta investigao que a forma como Heidegger examina os textos ora citados, o paulino e o agostiniano, pode ser utilizado como instrumento capaz de entender fenomenologicamente as variaes hermenuticas agostinianas, bem como ser aplicada para casos semelhantes do pensamento patrstico. A esta maneira peculiar de examinar os textos patrsticos e paulinos denominada neste trabalho de hermenutica existencial. O propsito da exposio da hermenutica existencial heideggeriana nesta pesquisa tentar transpor esta abordagem fenomenolgica para o texto exegtico agostiniano, compreendendo desta forma as propostas oscilantes na interpretao bblica realizada por Agostinho ao texto do Gnesis. No se pretende com esta proposta encontrar um mtodo heideggeriano hermenutico. No havia este objetivo quando Heidegger realizou a interpretao fenomenolgica nos textos paulinos e agostinianos. Alis, tais textos foram escolhidos justamente pela singularidade de tais abordagens. Estas leituras no sero doravante feitas pelo autor. A ideia em transpor a abordagem heideggeriana para a compreenso das variaes hermenuticas agostinianas que mediante tal forma de abordar permite-se revelar, na interpretao de um texto, a interpretao tambm de quem interpreta, de um sujeito lanado-no-mundo. A abordagem fenomenolgica realizada por Heidegger ao texto paulino e agostiniano emblemtica. Ela representa uma ruptura com a hermenutica clssica tradicional, que buscava encontrar ou um conjunto de regras capaz de assegurar ao intrprete a segurana exegtica necessria ou encontrar a inteno do autor original, permitindo ao exegeta a reproduo, por meio da compreenso de tal inteno, descobrir o real significado do texto. Ao utilizar a hermenutica existencial formulada por Heidegger este trabalho almeja compreender a maneira como Agostinho interpretou determinado grupo de textos, a reboque de um conjunto de regras exegticas determinadas. Por fim, como consequncia ltima deste uso da hermenutica existencial como possibilidade de interpretao do texto agostiniano, pretende-se demonstrar que esta supracitada hermenutica pode ser usada como ferramenta para explicar a prpria abordagem de Heidegger ao texto paulino e agostiniano, o uso que Agostinho fez do texto bblico (com as citadas variaes entre literalidade e uso alegrico dos 16. 19 textos), bem como tambm perceber a apropriao que os autores do Novo Testamento fizeram das profecias messinicas do Antigo Testamento visveis no ato da proclamao (gr. kerygma) crist, especialmente nos evangelhos e nas epstolas paulinas. 2 ALEGORIA OU LITERALIDADE: AS PRIMEIRAS ABORDAGENS HERMENUTICAS DE AGOSTINHO AO GNESIS BBLICO. 2.1 TEXTO LITERAL OU ALEGORIZAO TEXTUAL? UMA SNTESE DA ABORDAGEM AO TEXTO BBLICO. Um dos pontos centrais do pensamento cristo , sem sombra de dvida, o entendimento do mundo a partir do relato da criao. Ao contrrio dos gregos e romanos, no possvel encontrar no pensamento cristo a ideia de uma cosmogonia, entendida no formato mtico que se caracterizava por uma narrativa da gerao de um cosmos mediante o entrelaamento de divindades mais ou menos numerosas. A perspectiva crist toma como ponto de partida de sua viso de homem e de mundo o conjunto de textos judaicos relativo origem de todas as coisas a partir do ato criativo de Deus. Este conjunto de textos conhecido como Gnesis (hebraico Bereshit) e descreve, de forma extremamente sucinta nos seus captulos iniciais, o ato criador divino em etapas, apresentadas como dias, culminando no stimo dia, o dia do encerramento da criao, o dia do descanso divino. 17. 20 Esta descrio abrange os trs primeiros captulos do referido livro. Um olhar mais cuidadoso perceber que estes captulos no formam um todo coeso. Na verdade, ntido que esta narrativa dos princpios composta de dois documentos distintos: o primeiro abrangendo o captulo primeiro at o incio do captulo segundo (1:1 2: 4a) e o outro documento abrangendo o incio do segundo captulo e todo o captulo terceiro (2:4b 3: 24). O entendimento desta independncia textual ntido para os intrpretes modernos, porm desconhecido para os autores cristos nos primeiros sculos do cristianismo. Desta forma, o processo de abordagem destes autores cristos aos textos iniciais do Gnesis no pode ser entendido da mesma forma em que atualmente tal abordagem efetuada.2 Outro aspecto a ser levado em considerao aquele que diz respeito dependncia do cristianismo dos textos bsicos religiosos judaicos, conhecidos dentro da cosmoviso crist como Antigo Testamento. Nas suas origens possvel afirmar que o cristianismo no possua um mtodo hermenutico prprio, lanando mo de princpios de interpretao originados do judasmo; a diferena capital seria que tais interpretaes teriam um vis naturalmente cristolgico (BARRERA, 1995, p. 593-594). Este vis cristolgico nitidamente percebido nas palavras de Jesus quando o mesmo considerava o cumprimento das profecias judaicas em si mesmo, bem como na percepo escatolgica de sua misso. Esta forma de entendimento do texto judaico ampliado pelos evangelistas que narraram a vida de Jesus, bem como pelos apstolos, o que pode ser facilmente percebido na leitura das cartas apostlicas doutrinais. Em resumo, esta leitura cristolgica do Antigo Testamento torna-se uma prtica comum da igreja crist primitiva.3 A formao de um cnon cristo j a partir do sculo II torna visvel o afastamento do Antigo Testamento como o nico grupo de escritos religiosos disponvel. A partir do momento em que passa a existir um conjunto de escritos tipicamente cristo, o cristianismo passa a viver um conflito de ordem interna e outro de origem externa: admitir ou excluir o patrimnio veterotestamentrio (ordem interna) bem como admitir ou negar a influncia da cultura greco-romana (conflito externo), que aparecia como veculo de expresso e realizao da nova f (BARRERA, 1995, p. 626). Desta forma, o uso dos textos do Antigo Testamento 2 Tal abordagem contempornea pode ser vista com facilidade tanto em notas introdutrias e de rodap em Bblias de grande aceitao popular, tal como a Bblia de Jerusalm (2002, p. 21-31, 33-39), ou em textos de reconhecida abordagem crtica ao texto bblico, como pode ser exemplificado na obra O Pentateuco em Questo, de Albert de Pury (1996, p. 89-99). 3 Esta discusso sobre a hermenutica crist e sua interpretao cristolgica do Antigo Testamento pode ser vista de forma minuciosa em Barrera (1995, p. 593-622). 18. 21 por parte dos autores cristos na forma literal ou alegrica, passou a depender da perspectiva em que os mesmos entendiam a economia da salvao, e neste entendimento, a aproximao ou o afastamento dos escritos judeus era delineado. Tal postura no impediu o surgimento de tendncias dentro ou prximo ao cristianismo que passaram a repudiar todo o corpo de escritos que formavam o Antigo Testamento, negando-lhe qualquer importncia cannica e mesmo at qualquer tipo de uso dos mesmos, seja literal ou alegrico. Esta atitude pode ser exemplificada na crtica feita por Marcio ao texto do Antigo Testamento, como na leitura gnstica do mesmo efetuado por Valentino. A reao de Irineu de Lyon postura gnstica de Valentino no sculo II ilustra o posicionamento que a igreja crist passa a assumir frente a este problema. Irineu lana mo da leitura alegrica dos textos do Antigo Testamento no intuito de unir os escritos judeus com os novos escritos cristos, garantindo assim uma unidade entre os dois grupos de escritos. Como bispo, coube a Irineu tambm o inserir como fator novo nesta discusso o peso da autoridade da tradio, representada pela tradio da igreja. Irineu estabelece j o princpio da exegese na igreja, que encontrar grande desenvolvimento mais tarde na oposio que se pode denominar exegese de ctedra. A exegese h de concordar com a compreenso que a tradio da Igreja tem da Escritura (regula fidei). A interpretao no pode basear- se unicamente em critrios racionais, mas levar em conta a doutrina e autoridade da tradio, transmitida pela igreja desde os tempos apostlicos. Este princpio de interpretao encontra sua justificao no fato de que a tradio da igreja de algum modo anterior prpria Escritura, criada pelos primeiros apstolos e seus discpulos. (BARRERA, 1995, p. 630) Irineu pe desta forma a autoridade interpretativa da igreja como critrio de interpretao superior ao entendimento individual. a igreja a real intrprete das Escrituras, pois foi desta maneira que a mesma agiu deste a sua fundao, com os apstolos e os primeiros discpulos. No entendimento da igreja primitiva j estavam lanadas as bases para a leitura unitria dos dois conjuntos de textos, aqueles decorrentes do judasmo e o conjunto de textos formulados pela gerao de discpulos e apstolos de Jesus no sculo I. A interpretao dos textos do Antigo Testamento foi desta forma orientada por duas tendncias distintas, mas que se complementaram no decorrer dos sculos. De um lado a viso de mundo cristolgica, ou seja, uma leitura de mundo determinada a partir da vida-morte- 19. 22 ressurreio de Cristo, tornando possvel para o cristo-intrprete entender a realidade a partir de um critrio interno, vivido, existencial, tendo como ponto de partida a sua converso ao cristianismo. Uma nova vivncia subjetiva formada. Sua cosmoviso orientada a pautar-se pela mstica cristolgica. Cristo via a si mesmo como cumprimento das profecias do Antigo Testamento. Os evangelistas, ao reproduzirem os logia de Jesus, reafirmaram tal perspectiva. As cartas doutrinais do Novo Testamento enfatizam este fato.4 O cristo molda a sua vida a partir da noo de que Cristo de fato o centro da histria. O seu olhar para os textos judaicos refletir esta perspectiva. A escatologia torna-se presente e algo vivido, sentido, desejado. O mundo reinterpretado a partir deste viver cristolgico. Os textos, sagrados ou no, no escapam deste processo de reinterpretao da realidade. A outra tendncia aquela j delineada por Irineu de Lyon, no sculo II: a autoridade da tradio da igreja. Contrrio postura de um subjetivismo sem controle, a igreja seria o contraponto firme e incontestvel. a tradio da igreja que, em ltima instncia, determina o critrio do certo e do errado em matria de interpretao textual. A igreja antecede prpria existncia do Novo Testamento textual, e foi a igreja que soube, como ningum, definir os reais critrios de interpretao, ou seja, a correta interpretao dos textos deve concordar, no com critrios racionais, mas com a doutrina e a autoridade da tradio eclesistica. Esta uma postura que ganha fora medida que a instituio comea a galgar posies de hegemonia dentro do imprio romano. a igreja que se institucionaliza e padroniza o discurso exegtico. O dogma passa a ser levado em considerao no processo de exegese. No basta a vivncia cristolgica; preciso a concordncia doutrinal eclesistica. A escolha pela alegoria ou pela literalidade textual deixa de ser um critrio individual, passando a ser mediatizado pela instituio. Somente no sculo III E.C. colocada a questo do problema hermenutico propriamente dito com as escolas alexandrina e antioquena. O uso da liberdade e da racionalidade no processo de exegese exige agora uma postura mais definida. De forma velada est tambm em jogo a tradio exegtica oriunda do judasmo que influenciava a escola antioquena e a recepo de uma tradio helenstica acolhida pela escola de Alexandria. 4 Sobre o uso, s vezes arbitrrio, da interpretao cristolgica dos textos do Antigo Testamento pelos autores do Novo testamento, ver A Bblia judaica e a Bblia crist (BARRERA, 1995, p. 599-611). 20. 23 O mtodo alegrico, que ser utilizada posteriormente por Agostinho, tinha as suas origens no helenismo. Tambm foi utilizada por Flon de Alexandria no intuito de interpretar de forma correta textos bblicos que continham expresses que, se entendidas de forma literal, soariam como extremamente embaraosas em relao divindade ou mesmo para a compreenso de elementos histricos. Para os helenistas, a leitura alegrica possibilitava um processo de releitura dos mitos homricos, desfazendo o aspecto deveras desagradvel que porventura pudesse ser encontrado em suas narrativas. Os cristos serviram-se amplamente deste tipo de procedimento para interpretar o Antigo Testamento em uma perspectiva crist, bem como uma ferramenta que permitiria uma leitura esclarecedora de passagens obscuras da Bblia.5 Nomes como Clemente e Orgenes de Alexandria so os mais famosos expoentes do uso alegrico como ferramenta de interpretao das Escrituras Sagradas. A alegoria era compreendida como uma ferramenta capaz de permitir um entendimento mais abrangente das Escrituras, bem como defesa eficaz contra aqueles que acusavam o texto bblico de incoerncias.6 Tal uso no significava a iseno completa contra o erro e a tergiversao ou o mal-entendido, ao menos em uma perspectiva ortodoxa. Desta forma, o intrprete situava-se em uma postura livre das amarras da ortodoxia, como prefigurava a postura de Irineu de Lyon. A escola de Antioquia, influenciada pelo rabinato existente naquela localidade, inclinava-se para a interpretao literal do texto bblico. Havia uma clara oposio dos antioquenos exegese alegrica. A revelao da salvao era dada e compreendida historicamente, e no algo dissolvido ou amalgamado em smbolos e ou alegorias, ao sabor da livre interpretao do leitor.7 O fato que a cristandade do sculo III defrontava-se com duas tendncias opostas, a leitura literal ou a leitura alegrica, como ferramentas para a 5 O uso alegrico que o Apstolo Paulo faz de passagens do Antigo Testamento, tais como a imagem da rocha de Moiss (I Corintios, 10:4) ou da relao entre Sara e Hagar (Glatas, 4:21-31) como tipos da liberdade crist, ou mesmo do excessivo uso de tipos encontrados na Epstola aos Hebreus, demonstra que a alegoria como mtodo exegtico encontra-se nas razes textuais do Novo Testamento. 6 este, por exemplo, o uso que faz Orgenes de Alexandria em Contra Celso (2004). Celso, um platnico ecltico, publicara uma obra intitulada O Discurso Verdadeiro no final do segundo sculo (E.C.) ridicularizando a narrativa do Antigo Testamento e pondo em dvida o credo do Novo Testamento. A defesa que Orgenes faz da narrativa bblica basicamente alicerada no mtodo alegrico. Este o mtodo em que, segundo Orgenes, qualquer leitor bem avisado deveria utilizar para fugir do erro das ms interpretaes do texto bblico e alcanar aquilo que verdadeiramente era a inteno do autor do texto (p.83). 7 Teodoro de Mopsustia (428) e Joo Crisstomo (417) so os principais nomes desta escola. Para Teodoro de Mopsustia o sentido da Escritura era histrico ou messinico, e este sentido era indicado pelo prprio texto, e no algo sobreposto por uma exegese alegrica. Desta forma, qualquer livro bblico que no contivesse estes elementos no deveria ser considerado cannico. Neste sentido, livros tais como o Livro de J, Crnicas, Esdras, Neemias ou o Cntico dos Cnticos no teriam nenhuma inspirao divina. Por causa de tais teses, seus escritos foram condenados ao fogo no Segundo Conclio de Constantinopla, no ano 553 (BARRERA, 1995, p. 639-40). 21. 24 interpretao do texto bblico. Acerca do uso alegrico ou literal para interpretao do texto sacro afirma Barrera (1995, p. 640-641), [...], tanto para Flon como para os Padres do cristianismo, algumas passagens do AT devem ser interpretadas somente em sentido alegrico, outras somente em sentido literal e outras tanto no literal como no alegrico. Os dois tipos de interpretao alternam-se sem regras precisas que regulem o seu uso. O perigo a ser enfrentado era, em todo o caso, de uma exegese selvagem: qualquer um podia reivindicar ter recebido uma revelao divina e, sem sujeio regra exegtica alguma, aferrar-se interpretao do texto que melhor lhe agradasse. Santo Agostinho ainda enfrentou tendncias deste tipo [...]. As interpretaes literais, alegricas ou a mistura das duas eram executadas com aparente falta de critrio. Embora houvesse a regula fidei desde os primeiros anos do cristianismo ps- apostlico, como atestam os escritos de Irineu, e ela funcionava como critrio abalizador ou no das interpretaes propostas, o fato que motivaes subjetivas eram os grandes impulsionadores dos diversos critrios exegticos dados, seja literal ou alegrico. As interpretaes eram na verdade a vivncia de tenses existentes entre os intrpretes. Diante do literalismo judaico, a leitura cristolgica do Antigo Testamento tendia a ser feita mediante o processo alegrico. Diante do alegorismo radical promovido por certos movimentos gnsticos, a leitura cristolgica do Antigo Testamento era exercido de forma literal. Ao variar o estilo exegtico dos adversrios do cristianismo, possvel dizer que tambm o mtodo hermenutico cristo sofria um processo de alterao, estabelecendo-se de forma inversa. Deve-se salientar, no entanto, que tal procedimento exegtico movia-se sempre na rbita da regula fidei bem como de certos princpios racionais vigentes, ou seja, os estilos de exegese, literal ou alegrico, pautavam-se dentro de marcos regulatrios que embora no fossem to evidentes, eram, no entanto, percebidos quanto aos resultados destes esforos interpretativos.8 8 Na hora de estabelecer o critrio, para saber se uma passagem devia ser interpretada literalmente ou no, recorria-se a regula fidei e a um princpio racional: no vlido interpretar literalmente uma passagem que seja absolutamente contrria razo (BARRERA, 1995, p. 642). equivocada a percepo de arbitrariedade interpretativa. A prpria tradio religiosa do cristianismo e de seus intrpretes, parte deles oriundos do mundo filosfico greco-romano, tornou possvel a construo de regras para a alternncia dos estilos de interpretao, como ser visto posteriormente na anlise da obra de Agostinho A Doutrina Crist. 22. 25 A hermenutica agostiniana deve ser vista dentro desta perspectiva. A anlise de sua exegese no pode ser encarada apenas a partir dos seus interlocutores (maniqueus, pelagianos, donatistas etc.), mas principalmente a partir de motivaes existenciais que tornariam possvel o entendimento de certas posturas hermenuticas, nem sempre claras para o leitor moderno, mas facilmente compreensvel para a mentalidade patrstica de um homem da igreja em fins do sculo IV. Esta postura poder ser vista a partir da reflexo feita por Agostinho dos captulos iniciais do livro do Gnesis, j indicada no comeo deste captulo. 2.2 O GNESIS COMPREENDIDO PELO CONVERTIDO AGOSTINHO: ANLISE DA OBRA SOBRE O GNESIS, CONTRA OS MANIQUEUS Os comentrios ao livro do Gnesis feitos por Agostinho costumam ser analisados a partir da polmica travada pelo mesmo com os Maniqueus, seita a qual Agostinho teria se convertido e permanecido durante nove anos.9 De fato, as obras em que o autor comenta os versculos iniciais do livro do Gnesis devem ser elencados entre aqueles que o mesmo travou com a referida seita.10 No entanto, preciso estabelecer de forma mais ntida o perodo de composio destes textos, para que seja possvel compreender as motivaes existenciais que norteiam os escritos hermenuticos agostinianos. O primeiro texto a ser analisado neste trabalho data de 389 d.C.11 e intitula-se De Genesi contra Manichaeos (Sobre o Gnesis, Contra os Maniqueus). Escrito trs anos aps a converso de Agostinho ao cristianismo (386), o mesmo deve ser lido luz deste evento crucial na vida do autor, bem como de seu encontro com a filosofia neoplatnica. No possvel levar para um segundo plano o cristianismo de infncia de Agostinho, cristianismo este que provoca no autor uma tenso somente resolvida com a sua converso (ou retorno) ao 9 Durante este perodo de nove anos, desde os dezenove at aos vinte e oito, cercado de muitas paixes, era seduzido e seduzia, era enganado e enganava (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 55). Agostinho descreve o tempo de juventude que passou como ouvinte no movimento maniquesta. 10 Alm dos comentrios feitos ao livro de Gnesis possvel tambm citar outras obras escritas no combate anti-maniqueu, tais como Sobre os Costumes da Igreja Catlica e os Costumes dos Maniqueus (388), Sobre as Duas Almas Contra os Maniqueus (391/392), Contra Fortunato Maniqueu (392), Contra Admanto, Discpulo do Maniqueu (393-396), Contra as Epstolas que os Maniqueus Chamam de Fundamento (396/397), Contra Fausto Maniqueu (400), Atas com o Maniqueu Felix (404), Sobre a Natureza do Bem (405) e Contra Secundino Maniqueu (405/406). Foram adotadas as datas e as relaes utilizadas por Costa (1999, p. 176-177). 11 Usa-se aqui a datao estabelecida por Peter Brown em Augustine of Hippo: A Biography (2000, p. 64), em virtude da tabela cronolgica estabelecida pelo autor permitir a comparao entre a datao da obra e eventos histricos significativos para a compreenso da jornada filosfica agostiniana, ao contrrio de Costa (1999) que prefere estabelecer a datao das obras agostinianas a partir de temas abordados. 23. 26 cristianismo oficial na data acima citada. Mesmo durante o perodo em que Agostinho entrava em contato com a sabedoria dita pag, na figura de Ccero e de sua obra Hortnsio, um saber puramente pago era algo completamente estranho ao esprito de um jovem educado no tradicionalismo cristo. A prpria viso popular de Cristo difundido no sculo IV evocava muito mais a imagem de um mestre do que o de um messias sofredor.12 O prprio cristianismo patrstico havia difundido a ideia do cristianismo como a sabedoria por excelncia, capaz de suplantar todos os sistemas filosficos erguidos pelos gregos e que estavam marcados pelas contradies entre eles acerca da verdade conforme atesta a seguinte afirmao de Justino de Roma (1995, p. 100-101,104). Portanto, a nossa religio mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano, pela simples razo de que possumos o Verbo inteiro, que Cristo, manifestado por ns, tornando-se corpo, razo e alma. Com efeito, tudo o que os filsofos e legisladores disseram e encontraram de bom, foi elaborado por eles pela investigao e intuio, conforme a parte do Verbo que lhes coube. Todavia, como eles no conheceram o Verbo inteiro, que Cristo, eles frequentemente se contradisseram uns aos outros [...] Confesso que todas as minhas oraes e esforos tem por finalidade mostrar-me cristo, no porque as doutrinas de Plato sejam alheias a Cristo, mas porque no so totalmente semelhantes, como tambm as dos outros filsofos, os estoicos, por exemplo, poetas e historiadores. De fato, cada um falou bem, vendo o que tinha afinidade com ele, pela parte que lhe coube do Verbo seminal divino. Todavia, evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros, no alcanaram uma cincia infalvel, nem um conhecimento irrefutvel. Portanto tudo o que de bom foi dito por eles, pertence a ns, cristos, porque ns adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo Deus ingnio e inefvel. Conforme a descrio feita por Justino, o cristianismo , na verdade, a filosofia por excelncia. Recusando-se a negar a validade da filosofia grega, anterior a Cristo, Justino apela para a possibilidade de o cristianismo suplantar todas as correntes filosficas, em virtude d mesmo ser capaz de unificar todos os saberes fragmentados e frequentemente contraditrios do pensamento antigo entre si. O cristianismo afigura-se assim, para um autor do segundo sculo, como A Sabedoria e no apenas uma sabedoria entre outras. A Bblia torna-se, para Agostinho, a fonte desta sabedoria. Educado na certeza de que bons livros so livros bem escritos, ele volta-se para as Escrituras Sagradas com o intuito de descobrir em suas pginas, ditos de forma clara, a sabedoria por ele almejada. Porm, o linguajar bblico o decepciona: O que senti, quando tomei nas mos aquele livro, no foi o 12 Brown (2000, p.31) lembra que There are no crucifixes in the fourth century. 24. 27 que acabo de dizer, seno que me pareceu indigno compar-lo elegncia ciceroniana. A sua simplicidade repugnava ao meu orgulho e a luz da minha inteligncia no lhe penetrava no ntimo (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 44-45). O estilo do texto bblico no era aquilo que Agostinho esperava de uma obra, que segundo afirmavam, era a expresso da sabedoria divina. Este fato de crucial importncia para a tese aqui desenvolvida. O texto bblico, especialmente o Antigo Testamento, era desprovido totalmente de elegncia retrica. A forma antropomrfica em que a divindade era descrita em muitas ocasies do texto favorecia em muito uma leitura depreciativa do mesmo. Se este texto devesse ser levado a srio por um retrico como Agostinho, deveria ser necessrio existir outra maneira de l-lo, pois a leitura literal, desejvel, pois o texto no apontava possibilidade distinta de leitura, deveria ser substituda por outra, capaz de revelar a beleza espiritual escondida no mesmo. Os maniqueus leram o texto do Gnesis de forma literal, e esta a essncia das crticas feitas por Agostinho aos mesmos. A leitura literal era, como j foi apontado alhures, a leitura dos intrpretes judeus e, de certa forma, a nica possvel, ou no mnimo, desejvel. Seria preciso suplantar esta nica, ou forosa, possibilidade de leitura. Ao aderir ao maniquesmo e a sua interpretao dos textos bblicos, que negava o Antigo Testamento e que colocava Cristo no papel de Sabedoria divina, cria Agostinho poder reconciliar a tenso existente entre um cristianismo de infncia e uma exigncia pessoal de racionalidade; Augustine was confident, that as a Manichee, he could uphold the fundamental tenet of his religion by reason alone (BROWN, 2000, p. 37). O Maniquesmo seria o movimento racional, e ao mesmo tempo religioso, que permitiria uma leitura seletiva das Escrituras Sagradas tornando possvel a eliminao de passagens cujo teor repugnava a mente inquieta do jovem retrico.13 A desiluso de Agostinho com o Maniquesmo, causada de certa forma pelo seu contato com os cticos, chamados por ele de acadmicos (SANTO AGOSTINHO, 1987, p.86) bem como pela inconsistncia das teses maniquestas (p. 74-79, 83-84), e a descoberta da filosofia neoplatnica capaz de resolver o problema acerca do significado do mal, que tanto atormentava Agostinho e que foi uma das razes que o impulsionaram a seguir a senda maniqueia (p.115-125), abriram a possibilidade da reconciliao com a f que lhe foi doutrinada desde a infncia, bem como o surgimento de alternativas exegticas para o texto bblico. 13 A converso de Agostinho ao Maniquesmo pode ser lido nas Confisses (SANTO AGOSTINHO, 1987, p.45-48). 25. 28 O encontro em Milo, em 385, com o bispo Ambrsio foi tambm decisivo para Agostinho. Embora ainda ligado aos maniquestas na busca por uma vaga para ensinar retrica em Milo,14 Agostinho h muito havia abandonado a crena nas teses maniquias. No jogo poltico existente em Milo, Agostinho havia sido o escolhido, como retrico, para ser o adversrio de Ambrsio. Como algum que deseja conhecer o oponente antes da batalha, Agostinho escuta os sermes de Ambrsio, e neste processo, de adversrio torna-se catecmeno do catolicismo. Mais importante ainda: neste processo de converso, encontra o discurso ideal para reconciliar a leitura do texto do Antigo Testamento com as exigncias racionais retricas e filosficas pertinentes a algum mediamente educado nos clssicos latinos. Chegando a Milo, fui visitar o Bispo Ambrsio [...] Este homem de Deus recebeu-me paternalmente e apreciou a minha vida bastante episcopalmente [...] Ardorosamente o ouvia quando pregava ao povo, no com o esprito que convinha, mas como que a sondar a sua eloquncia, para ver se correspondia fama, ou se realmente se exagerava ou diminua a sua reputao oratria [...] No me esforava por aprender o que o bispo dizia, mas s reparava no modo como ele falava [...] Contudo, junto com as palavras que me deleitavam, iam-se tambm infiltrando no meu espirito os ensinamentos que desprezava. J no os podia discernir uns dos outros. Enquanto abria o corao para receber as palavras eloquentes, entravam tambm de mistura, pouco a pouco, as verdades que ele pregava. Logo comecei a notar que estas se podiam defender. J no julgava temerrias as afirmaes da f catlica, que eu supunha nada poder retorquir contra os ataques dos maniqueus. Isto consegui-o eu por ouvir muitssimas vezes a interpretao de textos enigmticos do Velho Testamento, que, tomados no sentido literal, me davam a morte. Expostos assim, segundo o sentido alegrico, muitssimos dos textos daqueles livros, j repreendia meu desespero, que me levava a crer na impossibilidade de resistir queles que aborreciam e troavam da lei e dos profetas. (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 85) A descrio elucidativa. Agostinho levado a examinar as qualidades de Ambrsio como orador. No entanto, ele surpreendido pela forma como o mesmo realiza a exegese do Antigo Testamento, exegese esta que torna o texto bblico defensvel diante das crticas dos maniqueus. Qual a alternativa proposta por Ambrsio? A negao da leitura literal e sua substituio pela leitura alegrica, comum na escola patrstica de Alexandria, porm incomum entre os latinos. por intermdio do neoplatonismo latino e pelo uso da alegoria como mtodo exegtico utilizado por Ambrsio (que tambm utilizava elementos neoplatnicos em suas 14 [...] eu prprio solicitei esse emprego por intermdio destes mesmos amigos, embriagados pelas vaidades dos maniquestas (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 84). 26. 29 leituras alegricas), que Agostinho, alm de descobrir a noo de substncia espiritual atribudo a Deus, redescobre o valor da Bblia, tanto como literatura por excelncia desprovida de erros grosseiros, como fundamento ontolgico da verdade. Alegrava-me tambm de ver que j me no propunham a leitura antiga da Lei e dos Profetas, com a mesma panormica em que, tempos antes, me pareciam absurdas tais doutrinas, quando arguia os vossos santos, na suposio de que os interpretavam como eu julgava como eu julgava, quando na verdade no os interpretavam assim. Cheio de gozo, ouvia muitas vezes a Ambrsio dizer nos sermes ao povo, como que a recomendar, diligentemente, esta verdade: a letra mata e o esprito vivifica. Removido assim o mstico vu, desvendou-me espiritualmente passagens que, letra, pareciam ensinar o erro [...] A veracidade bblica parecia-me tanto mais venervel e digna de f sacrossanta quanto era claro que, possuindo a Escritura a qualidade de ser facilmente lida por todos os homens, reservava a dignidade dos seus mistrios para uma percepo mais profunda. (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 92, 94) Est dada, desta forma, a alternativa para a leitura bblica. A alegoria seria a leitura pelo esprito, em que as verdades msticas das Escrituras seriam plenamente entendidas pelo fiel, sem o risco da leitura literal, da letra, que mata o crente que se aproxima da mesma. A leitura literal, utilizada pelos maniqueus, era uma clara induo ao erro. As verdades limpas e belas das Escrituras estavam vedadas a este olhar. O mistrio revelado na alegoria, o texto bblico, outrora visto como grosseiro, torna-se agora venervel. Em 389, Agostinho escreve seu primeiro tratado hermenutico. o texto Sobre o Gensis, Contra os Maniqueus. A motivao bem como a data de tal empreendimento dada pelo prprio autor nas suas Retrataes. Une fois tabli em Afrique, jai crit deux livres Sur la Gense contre les Manichens. Dj, dans les livres prcdents, toutes mes discussions pour montrer que Dieu, souverainement bom et immutable, est le crateur de toutes les natures changeantes et quaucune nature ou substance qui soit le mail, em tant quelle est nature ou substance, avaient t, dans mon intention, diriges contre les manichens. Pourtant, ces deux livres-ici ont t trs explicitement publis contre eux afin de dfendre lancienne loi quils attaquent avec une vhmence passionne dans leur folle erreuer. (SAINT AUGUSTIN, 1950, p. 327) 27. 30 O local da redao dos dois livros que compem esta obra foi a frica, o que aponta para o ano de 388 ou 389 (esta ltimo o mais aceito pelos especialistas). A motivao principal foi defender a lei antiga, leia-se o Antigo Testamento, dos ataques ferrenhos dirigidos pelos maniqueus ao texto bblico. Neste momento Agostinho silencia sobre o estilo exegtico tanto dele como de seus adversrios.15 O texto j no pertence ao perodo de retiro filosfico de Cassicaco,16 mas de sua volta frica, para Cartago e Tagaste, e anterior a sua ordenao ao sacerdcio, porm j se nota o tom apologtico cristo no mesmo, embora marcado pela filosofia neoplatnica. Agostinho no mais um intelectual errante, que vaga entre maniquestas e neoplatnicos e que flerta com os cticos; agora ele um homem que encontra o seu caminho junto igreja de sua infncia, igreja esta cuja verdade preciso defender. Esta defesa comea com uma leitura alegrica do texto bblico, de forma mais especfica, com o livro de Gnesis. A Bblia era considerada a palavra de Deus, no apenas para Agostinho, mas para o mundo cristo como um todo. A leitura alegrica do texto subentende que o processo de comunicao entre Deus e a humanidade no era dada direta, mas de uma maneira velada, escondida, revelada por trs da letra do texto. possvel dizer que a Palavra de Deus assume a forma de um complexo emaranhado de sinais que, lidos de forma literal, mostravam uma realidade tosca e incompreensvel, mas que lidos de forma correta, isto , alegoricamente, apontavam para realidades mais profundas, desveladas no Novo Testamento. Dito de outra forma, o aspecto bizarro e irracional em muitas passagens do Antigo Testamento apontava para verdades no Novo Testamento, mas este apontar s seria possvel mediante a leitura alegrica ou espiritual destas passagens. Os que leem a Escritura inconsideradamente enganam-se com as mltiplas obscuridades e ambiguidades tomando um sentido por outro. Nem chegam a encontrar, em algumas passagens, alguma interpretao. E assim, projetam sobre os textos obscuros as mais diversas trevas. No duvido de que a obscuridade dos Livros Santos seja por disposio particular da Providncia Divina, para 15 Futuramente Agostinho mudar radicalmente de postura, passando de uma linguagem alegrica para uma linguagem literal. Isto ser facilmente perceptvel no comentrio feito por Agostinho denominado Comentrio Literal ao Gnesis (414). 16 O perodo de recolhimento de Agostinho e um grupo de amigos em Cassicaco, a partir de 386, constitui-se a fase em que foram redigidos os primeiros textos de Agostinho como filsofo cristo. Contra os Academicos, De Beata Vita, De Ordine e Soliloquia so exemplos de obras deste perodo. Embora de teor mais filosfico do que teolgico, j se percebe a viso crist de mundo como o paradigma filosfico de Agostinho. O cio filosfico deste retiro espiritual era o Christianae Vitae Otium, o cio da vida crist. No tardar para que Agostinho direcione sua verve filosfica contra os adversrios da igreja catlica, como ser feito com as obras De moribus ecclesiae catholicae et de moribus Manichaeorum(fins de 386 e incio de 387) e De Genesi contra Manichaeos. 28. 31 vencer o orgulho do homem pelo esforo e para premunir seu esprito do fastio, que no poucas vezes sobrevm aos que trabalham com demasiada facilidade. (SANTO AGOSTINHO, 1991, p. 97) O exegeta era levado, de forma trabalhosa, a perceber a vontade divina escondida no texto, e deste modo a Providncia Divina venceria o orgulho do exegeta, que tenderia a querer interpretar a vontade divina contida no texto sem nenhum esforo, interpretando-a de forma literal e, portanto pobre, no percebendo as riquezas que esto sendo reveladas e ao mesmo tempo escondidas por trs do aspecto literal do texto. As crticas feitas pelos maniqueus podem ser perfeitamente reproduzidas a partir do prprio texto agostiniano. O autor faz questo de reproduzir a crtica feita pelos maniqueus, tais como: Defesa contra os opositores que perguntam: o que fazia Deus antes da criao do mundo, e por que de repente lhe aprouve criar o mundo? Costumam os maniqueus criticar desta maneira o primeiro livro do Antigo Testamento [...]. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 503). A ideia demonstrar a fragilidade da pergunta maniquesta que s produz resultados quando direcionado a fiis sem o devido preparo exegtico, ou seja, uma crtica textual que tem como inteno zombar de nossos irmos dbeis e infantis e engan-los, no encontrando estes como lhes responder [...]. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 501). A pergunta direcionada a um entendimento literal do texto, e a este tipo de postura que Agostinho obrigado a responder. A estratgia hermenutica agostiniana para rebater as insinuaes maniquestas ao texto do Antigo Testamento na obra Sobre o Gnesis, contra os Maniqueus simples. Ela executada a partir de dois movimentos que podem ser identificados como o processo de desqualificao das proposies dos adversrios e o estabelecimento das suas prprias teses. De certa forma, neste primeiro texto hermenutico sobre o Gnesis, nota-se uma abordagem que oscila entre a crtica retrica na abordagem da descrio cosmolgica (Gnesis, 1:1- 2:3) e uma abordagem mais alegrica, ao abordar a questo antropolgica que encontra-se em torno do relato da criao do homem e sua queda (Gnesis, 2:4-3:24). Em virtude da especificidade deste trabalho, sero analisados apenas alguns trechos relacionados com a interpretao cosmolgica e antropolgica dos primeiros captulos do livro do Gnesis; tais trechos sero utilizados apenas como exemplos do uso hermenutico agostiniano, mesmo implicando deixar de fora parte considervel das anlises de Agostinho contidas nestas passagens hermenuticas. 29. 32 A pergunta maniquesta acerca da afirmao de que em qual princpio Deus havia criado o cu e a terra (Gnesis, 1:1) e qual teria sido o elemento, se o houve, que motivou a deidade a sair de um estado de inrcia absoluta para criar algo, torna-se o primeiro elemento a ser desqualificado por Agostinho. O princpio de que fala o texto de Gnesis no pode ser visto como o princpio do tempo, mas em Cristo, o logos divino. Respondemos-lhes que Deus fez o cu e a terra no princpio, no no princpio do tempo, mas em Cristo, visto que era Verbo junto ao Pai, pelo qual e no qual tudo foi feito [...] Ainda que acreditemos que Deus fez o cu e a terra no princpio do tempo, devemos, por outro lado, entender que antes do princpio do tempo no havia tempo. Por isso no podemos dizer que havia algum tempo, quando Deus nada ainda havia feito. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 503) preciso harmonizar o Novo Testamento com o Antigo Testamento. Agostinho desloca o significado do prlogo joanino (No princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus, Joo 1:1) para o Gnesis, 1:1 (No princpio criou Deus os cus e a terra), harmonizando textos que a rigor, ainda que se refiram aos mesmos eventos, possuem significaes distintas. O sentido judaico da criao ex nihilo agora substitudo por um sentido de criao mediatizada, onde Deus cria o universo mediante o seu Verbo, o Cristo. A influncia neoplatnica est presente. O tempo, associado ao mundo criado deixado em suspenso, visto que a relao de Deus com o seu Verbo dissociado de qualquer relao temporal, tornando ento ntido a associao do tempo com o mundo criado, e negando-se qualquer possibilidade de falar-se em um antes da criao. Falar de um tempo anterior ao universo criado soa ento como ambiguidade da linguagem, nascida da ignorncia maniqueia: no existe um tempo anterior ao mundo criado. E neste sentido absurda a pergunta acerca do que fazia Deus antes de criar o mundo. O processo de desqualificar o discurso maniqueu pela leitura cristolgica do Antigo Testamento continua. Ao lerem que a terra era sem forma e vazia e que havia trevas sobre a face do abismo, e o Espirito de Deus pairava sobre as guas (Gnesis, 1:2), os maniqueus ironizavam: Deus estava no meio das trevas antes de criar a luz? (p.506). A resposta de Agostinho neste incio de texto elucidativo para se compreender a sua estratgia de enfrentamento. Os maniqueus s veriam o aspecto corpreo da linguagem, visto serem eles 30. 33 partidrios da crena de que todos os seres existentes seriam partculas da luz divina. Mais uma vez a justaposio do Novo Testamento sobre o Antigo Testamento executado. Com efeito, eles no conhecem outra luz seno a que enxergam com os olhos corporais [...] Devemos entender que h uma outra luz, na qual Deus habita, de onde procede aquela luz da qual se l no Evangelho: A luz verdadeira, que ilumina todo homem que vem a este mundo. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 503) Os olhos corporais dos maniquestas, que viam o mundo fsico como partculas da luz eterna,17 podem ser analisados a partir dos pressupostos exegticos agostinianos. De fato, ainda no existia a luz corprea, mas existia a luz espiritual, que o Cristo e por meio do qual Deus visto como no existindo em trevas absolutas. A luz espiritual, que Cristo, existia, ontologicamente falando, antes do universo fsico; a luz fsica s passa a existir depois, temporalmente falando, da criao do mundo fsico. Neste caso, o Esprito Divino estava pairando sobre as guas e as trevas cobriam o abismo primordial. As trevas, neste sentido, no podem ser interpretadas como sendo algo, mas como ausncia de alguma coisa, e neste caso, como privao da luz. Desta maneira Agostinho responde s interrogaes acerca da origem destas trevas, como se elas fossem algo. a ausncia de luz que se devem conhecer como trevas, e mais uma vez alfinetada a crena maniqueia de que as trevas deveriam ser compreendidas como alguma coisa, em consonncia com o seu dualismo cosmolgico e teolgico. De onde procede a gua em que o Esprito Divino paira?18 A falta de piedade por parte dos maniqueus obscurece sua exegese, segundo Agostinho (p. 509). A gua concebida nos versculos iniciais do Gnesis no pode ser entendida como algo tangvel e visvel. A prpria palavra terra no deve ser entendida como esta terra que agora conhecemos. No princpio, Deus criou o cu e a terra, nas palavras cu e terra est indicada toda a criatura que Deus fez e criou. Essas realidades foram denominadas com nomes de coisas visveis devido 17 A descrio pormenorizada da cosmologia e teologia maniquia, que descreve com detalhes a difuso das partculas da luz divina na natureza, pode ser vista em Costa (2002, p. 21-135). 18 Em seguida querem saber e perguntam com insolncia: De onde procedia a gua sobre a qual o Espirito de Deus pairava? Acaso est escrito acima que Deus tinha criado a gua? (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 509). 31. 34 incapacidade dos pequenos, que so menos idneos para compreender as invisveis. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p.509) A exegese agostiniana insere informaes que no constam no prprio texto. O texto em si bastante claro. As palavras cu e terra no apontam, no texto, para outro significado a no ser aqueles que elas mesmas indicam: cu e terra. Agostinho, no entanto, v nestas palavras a implicao de outros significados alm daqueles sugerido pelo prprio texto. Cu e terra apontam para a totalidade das criaturas que Deus teria feito, mas que, no entanto, se encontram de forma invisvel, necessitando, para aqueles com pouca instruo, ser nomeadas a partir de realidades visveis. Mas de que forma possvel falar de realidades invisveis a partir das palavras cu e terra? Vendo-as como indicativos da matria informe, feita do nada absoluto (p. 510). O jogo de palavras de Agostinho sugestivo. A matria informe, que Deus criou do nada, foi denominada primeiramente cu e terra, e se disse: No princpio, Deus criou o cu e a terra, no porque isso j existia, mas porque podia existir, pois o cu e a terra, conforme est escrito, foram criados depois. Assim como, observando a semente da rvore, dizemos que ali esto as razes, o tronco, os ramos, os frutos e as folhas, no porque j existam, mas porque dela existiro, do mesmo modo como foi dito: No princpio, Deus criou o cu e a terra, como que uma semente do cu e da terra, estando ainda indeterminada a matria do cu e da terra. E porque com certeza da existiriam o cu e a terra, j se denominou cu e terra a prpria matria. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p.511) A introduo de elementos da metafsica grega evidente neste texto. A expresso da terra como sem forma e vazia passa a ser interpretada a partir de categorias estranhas mentalidade judaica, mentalidade esta expressa no texto alvo das interpretaes agostinianas. Sem forma e vazia equivale matria informe, possuidora das sementes de todas as coisas. Na matria informe encontram-se, de forma potencial, os cus e a terra em sua totalidade. Cu e terra ainda no haviam sido criados de fato, mas j existiam de forma potencial, pois no seriam retirados de outro elemento a no ser da matria informe. A informidade da matria tambm recebe de Agostinho o adjetivo de terra invisvel e vaga (p. 511) em clara referncia a ausncia da beleza quando comparada aos demais seres, e seu aspecto vago indicando a falta de uma forma definida. A expresso terra sem forma e 32. 35 vazia do texto bblico torna-se para Agostinho o espao para outras elucubraes. A gua na qual o esprito divino pairava sobre ela, tambm outro termo utilizado pelo autor para denominar a matria informe. As palavras do texto bblico ganham significados vrios de acordo com a expectativa do intrprete. Existe uma intencionalidade subjacente ao texto que somente uma mente treinada capaz de perceber; a multiplicidade de sentidos do texto aponta para um desdobrar pedaggico. Portanto, todos estes nomes, seja cu e terra, seja terra invisvel e vaga e abismo tenebroso, seja gua sobre a qual pairava o Esprito, so designaes da matria informe. Assim designada com a finalidade de insinuar aos menos eruditos coisas desconhecidas com termos conhecidos e, assim, no com um nico termo, mas com muitos, evitando que, se fosse um apenas, se pensasse que significava to-s o que as pessoas costumavam entender por esse termo. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 512) Cu, abismo, terra, gua, no importam os termos, todos designam a matria informe, possuidora em potencial de todas as coisas, na qual pairava o Esprito divino. A confuso terminolgica s em aparncia manifesta-se catica. A multiplicidade dos termos apresenta-se como uma estratgia capaz de instruir aos menos dotados intelectualmente, apontando para o real significado da expresso sem forma e vazia. Logo, est esboada a noo de que algo pode ser dito de muitas formas, mediante termos completamente distintos. O desconhecido, o profundo de dimenses filosficas, distante do saber mediano, aproximado mediante a possibilidade referencial mltipla. Outra afirmao de Agostinho a este sentido pode ser aqui exemplificada: Contudo, para ns, para nos nutrirmos e compreendermos o que no se pode expressar com palavras humanas, est expresso de modo a podermos compreender (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p.514). O texto, escrito em uma linguagem que exige uma postura hermenutica diferenciada, revela a debilidade humana para falar da dignidade divina (p. 514). O Prprio falar de Deus tambm analisado a partir desta perspectiva. E chamou Deus luz dia, e s trevas, noite (Gnesis, 1:4). Como entender este chamar? Em que lngua teria falado a divindade? Na verdade, por chamar, deve-se entender o processo de diferenciar e ordenar. Para Agostinho, a descoberta desta forma peculiar de reconhecer sentidos nas palavras no manifestados literalmente, s possvel com a aproximao ntima do texto; Com efeito, quanto mais nos achegarmos s Escrituras e com ela nos 33. 36 familiarizarmos, tanto mais conhecimento adquiriremos de sua maneira de falar. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p.515). O entendimento por meio da leitura literal interdito; o saber de forma especial requer uma aproximao familiar, na qual o texto, por meio do formato discursivo, aponta para outro texto, escondido por trs das letras explcitas do material dado. A temtica da gua reaparece na interpretao agostiniana dos primeiros versos do Gnesis. E disse Deus: haja um firmamento no meio das guas, e haja separao entre guas e guas (Gnesis, 1: 6). Mas as guas eram concebidas pelo autor como um termo substituto para a matria informe, conforme foi abordado anteriormente. Qual o sentido agora que a expresso gua deveria ter neste sexto verso do Gnesis? E como entender esta diviso estre as guas? Diviso na matria prima original? A resposta de Agostinho no clara nem definitiva. Contudo, pelo fato de as guas se dividirem para haver umas acima do firmamento, e outras, sob o firmamento, visto que antes falvamos daquela matria como denominada pelo nome de gua, julgo que, no firmamento do cu, a matria corprea das coisas visveis se separou da matria incorprea das coisas invisveis. Embora o cu seja um corpo lindssimo, toda criatura invisvel excede a beleza do cu. Por isso, talvez, denominaram-se guas invisveis as que esto acima do cu, as quais poucos entendem que excedam o cu, no pelos lugares onde esto, mas pela dignidade de sua natureza. Contudo, sobre esses assuntos nada se pode afirmar temerariamente, pois so coisas obscuras e distantes de nossos sentidos humanos. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 516) O texto bblico no estabelece divises ontolgicas em relao s guas. As guas do verso dois (e o Esprito de Deus pairava sobre as guas) so as mesmas do verso seis. Esta a interpretao literal. Mas Agostinho j havia interpretado as guas do verso dois como um termo que apontaria matria informe. Neste sentido, convm estabelecer uma distino entre guas e guas. Tambm entre a prpria matria haveria uma distino crucial. Existe a matria corprea das coisas visveis e a matria incorprea das coisas invisveis, e elas se separam. Neste caso, possvel falar de uma realidade invisvel, que se encontra acima do firmamento, e que dotada de uma extrema dignidade. E existe uma realidade visvel, menos digna, separada desta realidade possuidora de maior dignidade. Crucial a observao de que tal realidade invisvel e digna encontra-se distante de nossos sentidos, e que por isto a cautela no discurso importante. De onde tirou Agostinho a ideia de uma separao entre uma matria incorprea das coisas invisveis e de uma matria corprea das coisas visveis, a no 34. 37 ser de suas leituras neoplatnicas, mas que no se encontra apoio algum na leitura simples e direta do texto? A polmica acerca do entendimento do que seria a gua no se encerra. O texto bblico retoma a ela mais uma vez ao descrever, nos versos nove e dez, a separao feita por Deus entre as guas, fazendo surgir os mares e a terra seca (E disse Deus: ajuntem-se as guas que esto debaixo dos cus num s lugar, e aparea a poro seca. E assim foi. Chamou Deus poro seca terra, e ao ajuntamento das guas, mares. E viu Deus que isso era bom. Gnesis, 1: 9,10). Agostinho havia concebido que pelo nome de gua dever-se-ia entender a matria informe, matria esta que havia surgido do nada absoluto e que Deus a usaria para criar todas as coisas. Ao mesmo tempo, esta matria informe se reveste de um elemento incorpreo que dar origem a todas as coisas invisveis e por outro lado de um elemento corpreo, que dar origem a todos os elementos visveis e menos dignos do que aquelas. Agora, ao descrever a formao da terra e dos mares, torna-se necessrio dar a este nome gua outra conotao. Neste sentido, este relato especfico designa o momento em que da matria corprea se forma o ser da gua e da terra, agora perceptvel e tocvel. A gua denominada anteriormente era sinnimo da indeterminao e obscuridade da matria, na qual pairava o Esprito de Deus; esta gua e esta terra agora descritos indicam a matria corprea na sua determinao e especificidade. Antes descrita pelo termo genrico gua, agora, dotados de entidade especfica so conhecidos pelos termos mar e terra. Outros exemplos poderiam ser citados neste aspecto cosmolgico da criao. Por enquanto os mesmos so suficientes para o propsito deste trabalho. possvel avanar na descrio agostiniana e verificar outros casos exemplares, estes da aplicao direta da alegoria, principalmente no aspecto antropolgico, ou seja, no relato do Gnesis acerca da criao do homem. Observe-se o texto bblico acerca da criao do homem e o ordenamento de superioridade do mesmo sobre todas as espcies de animais (Gnesis, 1: 27, 28).19 Neste texto claro o sentido. Caberia ao homem o processo de procriao e o povoamento da terra, bem como o domnio sobre todos os seres viventes. Este trecho de certa forma emblemtico do ponto de vista antropolgico, pois nele se afirma a superioridade humana e centralidade do 19 Deus os abenoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra, e sujeitai-a. Dominai sobre as aves dos cus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra. 35. 38 mesmo sobre todos os demais seres. Tal sentido, no entanto, negado do ponto de vista agostiniano. [...] pode-se perguntar com toda razo como se h de considerar a unio do homem e da mulher antes do pecado, e se esta beno pela qual disse: Crescei e multiplicai-vos e gerai, enchei a terra, deve ser entendida no sentido carnal ou no espiritual. -nos lcito entend-la tambm no sentido espiritual e somos levados a crer que se transformou em fecundidade carnal depois do pecado. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p.529) Como deve ser entendida tal passagem: carnalmente (sentido literal) ou espiritualmente (alegoricamente simbolicamente)? O sentido da pergunta s pertinente se existe a alternativa de enxergar no texto dado possibilidades diversas. Agostinho entende que lcito afirmar esta forma e tambm levado a admitir que o aspecto literal do texto, ou seja, a fecundidade entendida no sentido pleno s deve ser compreendido a partir da queda do homem, o pecado original. Tais compreenses no podem ser extrados do prprio texto, a no ser que se admita uma compreenso motivada por elementos estranhos ao prprio texto, mas com relativa influncia sobre o interprete do mesmo. Este texto para Agostinho deve ser lido de outra forma. O homem visto como casto originalmente, e desta forma, a unio entre ele e a mulher, tambm deve ser vista na perspectiva da castidade. O homem visto como princpio ordenador, e a mulher como elemento de obedincia, eram capazes de fecundar alegrias inteligveis e imortais (p. 529). A terra que deve ser preenchida pelos efeitos do ato de concepo, compreendida como o processo de domnio sobre o corpo e sujeio do mesmo. Anlise similar encontrada no restante do verso. O domnio sobre os animais compreendido na perspectiva de controle que o homem deve possuir sobre as suas paixes; [...] omitindo a inteligncia, pela qual claro que o homem domina pela razo todos os animais, pode- se entender tambm no sentido espiritual, ou seja, que todos os afetos e movimentos da alma, os quais possumos semelhantes a esses animais, os tivssemos sob nosso controle e os dominssemos pela temperana e pela disciplina. Com efeito, quando no se governam esses movimentos, eles irrompem e se encaminham para hbitos deveras abominveis, e nos arrebatam por meio de variados e perniciosos prazeres e nos assemelham a todo o gnero de animais. Mas quando so governados e submetidos, amansam-se totalmente e vivem em harmonia conosco. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 529-530) 36. 39 O texto deve ser lido a partir de princpios superiores e que se encontram no intrprete e no no texto em si. preciso buscar no texto as informaes espirituais escondidas por trs das palavras. O homem um ser racional, mas ao mesmo tempo um ser possuidor de paixes e desejos. Os princpios racionais devem comandar os princpios irracionais, tais como o homem, ser superior, deve dominar os animais, seres inferiores. O texto bblico remete, pois, a estes ordenamentos superiores, porm escondidos debaixo da casca da literalidade do texto. Cabe ao homem dominar seus instintos da mesma forma como possvel o mesmo exercer a funo de dominador em relao aos demais seres. Este ltimo aspecto do ponto de vista exegtico o mais simples e rasteiro. A interpretao alegrica ou simblica consegue alcanar a real interpretao pretendida pelo autor, que Deus. A interpretao alegrica vista como uma espcie de cair do vu, ou seja, o impedimento da inteligncia para perceber o sentido real do texto, sentido este escondido por trs do aspecto literal; ao comentar sobre o descanso divino no stimo dia (Gnesis, 2:3), Agostinho critica tanto os judeus por no conseguirem ver a verdade espiritual contida neste trecho, bem como os maniqueus, por se esforarem em afirmar que existe uma contradio entre o Novo Testamento e o Velho Testamento, em virtude do Cristo ter afirmado que o Pai trabalhava at aquela hora (Joo, 5:17). E aqueles, observando-o segundo a carne, e estes, execrando-o segundo a carne, no conhecem o sbado. Por isso, so convidados a passarem para o lado de Cristo para deixarem cair o vu, como diz o Apstolo. Pois o vu cair quando, retirada a cobertura da semelhana da alegoria, a verdade se manifeste para que possam enxergar [...] De acordo com este sentido figurado, resolvem-se sem qualquer dificuldade muitas questes das divinas Escrituras para aqueles que j conhecem o sentido alegrico. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 533-534) Judeus e maniquestas no conseguem perceber alm dos limites dos sentidos. O sbado e partes do texto bblico escondem mais do que revelam. Mas escondem apenas para aqueles que se aproximam das Escrituras de forma carnal, material. Torna-se necessrio que se tire o vu da obscuridade do conhecimento. Fazendo aluso a uma citao de Paulo de Tarso, na qual ele compara a ignorncia dos judeus acerca do cristianismo com a de pessoas que estavam com um vu diante de seus olhos impedindo-os de verem a verdade que se revelava 37. 40 no Cristo (II Corntios, 3: 13,14), Agostinho reafirma que somente por meio da alegoria os obstculos para a plena compreenso do texto bblico sero retirados. Mas o uso da alegoria em Agostinho ganha contornos difceis de serem plenamente compreendidos sem que se disponha de uma chave hermenutica adequada. Aps ter comentado os dias da criao de forma oscilante entre o literalismo ameno e um alegorismo moderado, Agostinho retoma de forma inexplicvel ao tema dos dias da criao como que simbolizando as idades do mundo e que ao mesmo tempo simboliza as fases de desenvolvimento dos homens de uma forma geral. A relao entre os dias da criao, os perodos da histria da humanidade e o desenvolvimento do homem individual feita de forma direta, praticamente de forma abrupta. O subjetivismo de Agostinho explcito: Vejo em todo o texto das divinas Escrituras que as seis idades, que devem ser dedicadas ao trabalho, foram marcadas por seus limites, para se chegar ao descanso na stima idade. Vejo tambm que as mesmas seis idades apresentam semelhana a esses seis dias, nos quais foram criadas as coisas que a escritura afirma terem sido criadas por Deus. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 534) Agostinho percebe no texto nuances que o mesmo no aponta de forma explcita. Vejo no texto uma expresso deveras sugestiva. O que ele v no texto, o prprio texto no mostra. A narrativa descreve os seis dias da criao e o stimo dia como o descanso divino. Agostinho v nesta descrio uma semelhana com as fases evolutivas e produtivas do homem. Em qual parte do texto bblico encontra se encontra o suporte para esta interpretao? Em nenhuma parte. Ele apenas v, e isto suficiente como fundamentao hermenutica. No h nenhuma explicao posterior para esta viso hermenutica privilegiada. necessrio buscar este modelo de comparao em outras fontes; necessrio perceber motivaes subjetivas como critrio de interpretao, motivaes estas no manifestas exteriormente. Subitamente outra modificao interpretativa invocada. Os dias da criao tambm apontam para fases da histria humana. De descries cosmolgicas, a narrativa do Gnesis torna-se agora histrica e antropolgica. 38. 41 PRIMEIRA IDADE - [...] Os primrdios do gnero humano, nos quais se passou a gozar desta luz, podem ser muito bem comparados ao primeiro dia em que Deus fez a luz. Esta idade pode ser considerada como a infncia do mesmo mundo, o qual devemos imaginar como um ser humano pelas propores de sua grandeza. Com efeito, todo o homem, primeiramente, ao nascer e sair para a luz, vive a infncia, a primeira idade. Esta idade do mundo estende-se de Ado at No em dez geraes. Como que na tarde desta idade acontece o dilvio, pois tambm nossa infncia como que se destri pelo dilvio do esquecimento. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 534-535) Neste caso, os dias da criao narram a criao do universo, mas transmitem tambm as fases evolutivas humanas, bem como a histria deste ser humano sobre a terra; tais facetas textuais s se tornam plenamente compreensveis quando o texto lido alm da letra, alcanando um significado oculto. A luz inicial cosmolgica deve ser entendida como a luz do entendimento inicial do ser humano. Este primeiro dia, alm de corresponder ao primeiro perodo do desenvolvimento humano, corresponde a uma primeira diviso da histria humana. O trmino do primeiro dia corresponde ao fim do primeiro perodo da histria humana, ou seja, as dez geraes que vo de Ado at No,20 e por sua vez corresponde ao trmino da fase infantil do homem, cuja memria desta fase logo se esvai, como que destruda por um dilvio, remetendo lembrana do dilvio no qual pertence narrativa de No no Gnesis bblico. O segundo dia aponta para a segunda idade bem como para uma fase anterior adolescncia e posterior fase infantil primeira. Agostinho tenta agora ler este segundo dia a partir da linha adotada para ler o primeiro dia. SEGUNDA IDADE- Comea de manh nos tempos de No a segunda idade, que como a puercia, e esta idade se estende at Abrao em outras dez geraes. E pode muito bem ser comparada ao segundo dia em que foi criado o firmamento entre gua e gua. De fato, No com os seus era um firmamento entre as guas inferiores, nas quais flutuava, e as superiores, das quais recebia a chuva. (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 535) Este segundo dia corresponde segunda fase do homem. Depois da fase de recm-nascido o homem passa segunda fase, a infncia primeira. Esta fase no sofre o processo do dilvio, tal qual a primeira fase, pois possvel ao homem obter algum tipo de lembrana deste perodo. O homem consegue recordar aquilo em que se constituram suas vivncias de 20 Esta contagem das geraes, de Ado at No, podem ser encontradas no quinto captulo do livro de Gnesis. 39. 42 menino, mas no possvel o mesmo para a fase da infncia primeira. Este perodo corresponde tambm narrativa da Torre de Babel,21 na qual descreve o surgimento das diversas lnguas, ressaltando-se o aspecto confuso das mesmas, bem como do fato que ainda no se falou na gerao do povo eleito, do povo de Deus. De fato, nesta fase do desenvolvimento humano, a puercia, no se pode falar